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Processo 61/08
 
 3ª Secção
 Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
 
 
 Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional 
 
  
 
  
 I – RELATÓRIO
 
  
 
  
 
 1. Nos presentes autos em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, 
 o primeiro vem interpor recurso para este Tribunal do acórdão do Tribunal da 
 Relação de Lisboa, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do 
 Tribunal Constitucional, invocando a inconstitucionalidade de diversas 
 interpretações normativas, a saber: 
 
  
 i)                           A resultante do n.º 1 do artigo 187º do CPP [na 
 redacção anterior à Lei n.º 48/2007], quando interpretada no sentido de que 
 
 “fossem ordenadas escutas telefónicas através de despachos que não obedecem aos 
 requisitos de fundamentação e consequentemente também não justificada a 
 indispensabilidade e proporcionalidade daquele meio a autorizar” (fls. 416);
 
  
 ii)                         A resultante dos n.ºs 1 e 3 do artigo 188º do CPP 
 
 [na redacção anterior à Lei n.º 48/2007], quando interpretada no sentido de 
 
 “permitir [que] o Jic tenha conhecimento das interpretações passados mais de 4 
 meses sobre o início das mesmas, (fls. 1417), a fim de poder este decidir sobre 
 a junção daquelas aos autos e ordenar a sua transcrição” (fls. 417);
 
  
 iii)                       A resultante dos n.ºs 1 e 3 do artigo 188º do CPP [na 
 redacção anterior à Lei n.º 48/2007], quando interpretada no sentido de “também 
 ordenar novos períodos de escuta e respectiva continuação, sem que o juiz 
 primeiro tome conhecimento das gravações anteriores para decidir da continuação 
 ou não de novos períodos” (fls. 417);
 
  
 iv)                       A resultante dos n.ºs 3 e 4 do artigo 188º do CPP, 
 este último conjugado com as normas contidas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 101º do 
 CPP [na redacção anterior à Lei n.º 48/2007], quando interpretada no sentido de 
 
 “não impor que a selecção do material recolhido na intercepção e gravação das 
 comunicações telefónicas, com ordem de transcrição dos elementos considerados 
 relevantes seja efectuada e determinada imediatamente após a correspondente 
 audição, mas possa sê-lo posteriormente, (a ordem de transcrição), 
 designadamente passados 40 ou mais dias, após, tal audição ter tido lugar” (fls. 
 
 418);
 
  
 v)                         A resultante dos n.ºs 3 e 4 do artigo 188º do CPP, 
 este último conjugado com as normas contidas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 101º do 
 CPP [na redacção anterior à Lei n.º 48/2007], quando interpretada no sentido de 
 
 “toda a iniciativa e verificação do interesse da matéria interceptada ficou a 
 cargo exclusivo dos elementos da Polícia Judiciária, a qual não foi de imediato 
 apresentada ao M. Juiz, estando no desconhecimento deste por vezes mais de 30 
 dias, nem a sua transcrição no mais curto espaço de tempo, foi feita” (fls. 
 
 418);
 
  
 vi)                       A resultante dos n.ºs 3 e 4 do artigo 188º do CPP, 
 este último conjugado com as normas contidas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 101º do 
 CPP [na redacção anterior à Lei n.º 48/2007], quando interpretada no sentido de 
 
 “autorizar novos períodos de escuta sem que a autorização de prorrogação seja 
 precedida de conhecimento judicial do resultado das escutas anteriores, 
 entende-se que as escutas realizadas aos postos móveis são nulas e 
 consequentemente nulo o valor das provas obtidas mediante o recurso às mesmas, 
 por violação dos preceitos constitucionais” (fls. 418);
 
  
 vii)                     A resultante dos n.ºs 1 e 2 do artigo 13º do CPP [na 
 redacção anterior à Lei n.º 48/2007], conjugado com o artigo 51º do Decreto-Lei 
 n.º 15/93, quando interpretadas no sentido de “que o tribunal de Júri é 
 competente para julgar criminalidade altamente organizada tal como é definida no 
 artº 1º-2 do C.P.P.” (fls. 418 e 419).
 
  
 
 2. A Relatora ordenou a notificação dos recorrentes para produzirem alegações 
 junto deste Tribunal, nos termos do artigo 79º, nºs 1 e 2, da LTC, relativamente 
 
 à questão de inconstitucionalidade da interpretação normativa dada aos n.ºs 1 e 
 
 2 do artigo 13º do CPP [na redacção anterior à Lei n.º 48/2007], conjugado com o 
 artigo 51º do Decreto-Lei n.º 15/93, tendo ainda convidado o recorrente para:
 
  
 
 “2. Se pronunciar, no prazo de 10 (dez) dias, quanto à possibilidade de não 
 conhecimento parcial do objecto do recurso, no que diz respeito às 
 interpretações normativas do artigo 187º, n.º 1 (conjugado com o 97º, n.º 4) e 
 do artigo 188º, n.ºs 1 a 4, todos do CPP, pois afigura-se existirem razões para 
 tal, visto que as interpretações normativas reputadas de inconstitucionais pelo 
 recorrente aparentam não ter sido efectivamente aplicadas pela decisão 
 recorrida, conforme imposto pelo artigo 79º-C da LTC.” (fls. 427)
 
  
 
 3. Notificado deste despacho, o recorrente limitou-se a dar entrada nos autos às 
 alegações de recurso, optando por não se pronunciar sobre a possibilidade de não 
 conhecimento parcial do objecto de recurso. Das alegações constam as seguintes 
 conclusões:
 
  
 
 «1ª       O art° 207° nº 1 da CRP exclui a intervenção do Tribunal de Juri no 
 julgamento de crimes de terrorismo e criminalidade violenta ou altamente 
 organizada. 
 
  
 
 2ª         De acordo com as regras de competência material e funcional previstas 
 no art° 11° e ss do CPP, conjugadas com a previsão do art° 51° do D.L. 15/93, 
 equiparam-se aos casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente 
 organizada, as condutas que integram os crimes previstos nos art°s 21 a 24 e 28 
 do D.L.15/93. 
 
  
 
 3ª         Caso existisse qualquer dúvida quanto à Lei Constitucional afastar 
 através do seu art° 207° a competência material e funcional do Tribunal de Juri, 
 no que tange aos crimes previstos nos arts. 21°, 24° e 28° do D.L. 15/93, a 
 actual redacção do art° 1° do C.P.P., lei adjectiva, veio definir na sua al. m) 
 criminalidade altamente organizada”, como as condutas que integrarem crimes de 
 associação criminosa, - . tráfico de estupefacientes ou substâncias 
 psicotrópicas... 
 
  
 
 4ª         Caso o art° 51º do D. L. 15/93 não concretizasse que as condutas 
 enquadradas nas previsões dos arts. 21° e 28° do aludido diploma não integrassem 
 a definição de criminalidade altamente organizada sempre teríamos actualmente a 
 nova redacção dada ao art° 1° do C.P.P. na sua ai. m) ao definir aquele tipo de 
 criminalidade. 
 
  
 
 5ª         Pelo que quer o Tribunal da 1ª Instância, quer o Tribunal da Relação 
 ao entenderem que é competente para julgar os crimes pelo que o arguido vem 
 pronunciado, o Tribunal de Júri, fizeram errada interpretação e aplicação das 
 normas contidas no art° 13° nº 2, conjugado com as normas contidas no art° 51° 
 do D.L. 15/93 e art° 1° n°2 e actual alínea m) do art° l°do C.P.P. 
 
  
 
 6ª         Em suma é inconstitucional por violação do preceituado nos art°s 204° 
 e 207 da C.R.P. a interpretação dada ao n° 2 do art° 13° do C.P., conjugado com 
 as normas constantes do art° 51° do D.L. 15/93, ao permitir que os crimes 
 previstos no art° 21°, 24° e 28° do D.L. 15/93 e a que faz alusão o art° 51° do 
 D.L. 15/93, possam ser julgados pelo Tribunal de Juri.»
 
  
 
  
 
 4. Por sua vez, o Ministério Público apresentou as seguintes conclusões nas 
 contra-alegações: 
 
  
 
  
 
 «1.       Pela Lei Constitucional nº 1/97, o legislador constituinte alterou as 
 competências do Tribunal de Júri, excluindo — dessas competências — os casos 
 
 (crimes) de terrorismo e os de criminalidade altamente organizada, pela (nova) 
 redacção ao (actual) artigo 207°, nº 1, da Constituição da República Portuguesa. 
 
 
 
 2.         Os crimes previstos nos artigos 22° a 28° do Decreto-Lei n° 15/93 são 
 equiparados, por força deste mesmo diploma (ex vi artigo 51°), aos crimes de 
 terrorismo ou de criminalidade altamente organizada, para os “efeitos do Código 
 de Processo Penal”, efeitos estes que incluem “a fase de julgamento”.
 
 3.         Assim, a interpretação da norma do artigo 13° do Código de Processo 
 Penal, no sentido de que o Tribunal de Júri é competente para julgar os crimes 
 supra referidos viola o disposto no artigo 207°, nº 1 da Constituição da 
 República Portuguesa, e é por isso, inconstitucional.»
 
  
 
  
 Assim sendo, cumpre apreciar e decidir.
 
  
 
  
 II – FUNDAMENTAÇÃO
 
  
 A)    Não conhecimento parcial do objecto do recurso
 
  
 
 5. Antes de avançar, deve afirmar-se que é impossível conhecer do objecto do 
 recurso, no que diz respeito às questões relacionadas com a interpretação de 
 normas processuais penais relativas ao regime de escutas telefónicas (a saber: 
 artigos 187º, n.º 1, conjugado com o 97º, n.º 4, e do artigo 188º, n.ºs 1 a 4, 
 todos do CPP), na medida em que as diversas interpretações normativas invocadas 
 pelo recorrente não foram alvo de aplicação efectiva por parte da decisão 
 recorrida. Note-se, aliás, que, notificado para se pronunciar sobre a 
 eventualidade de não conhecimento do objecto do recurso quanto a esta parte, o 
 recorrente nem sequer esboçou uma demonstração de que aquelas interpretações 
 normativas tivessem sido efectivamente aplicadas pela decisão recorrida, 
 optando, antes, por apresentar alegações quanto à alegada inconstitucionalidade 
 da interpretação normativa dos n.ºs 1 e 2 do artigo 13º do CPP [na redacção 
 anterior à Lei n.º 48/2007], conjugado com o artigo 51º do Decreto-Lei n.º 
 
 15/93, quando interpretadas no sentido de “que o tribunal de Júri é competente 
 para julgar criminalidade altamente organizada tal como é definida no artº 1º-2 
 do C.P.P.” (fls. 418 e 419).
 
  
 
  
 Assim, resta aferir da alegada inconstitucionalidade da norma extraída dos nºs 1 
 e 2 do artigo 13º do CPP [na redacção anterior à Lei n.º 48/2007], conjugado com 
 o artigo 51º do Decreto-Lei n.º 15/93, quando interpretada no sentido de que o 
 tribunal de Júri é competente para julgar o crime de tráfico de estupefacientes 
 enquanto criminalidade altamente organizada, tal como é definida no artº 1º-2 do 
 C.P.P. (fls. 418 e 419).
 
  
 B)    A questão de constitucionalidade do n.ºs 1 e 2 do artigo 13º do CPP [na 
 redacção anterior à Lei n.º 48/2007], conjugado com o artigo 51º do Decreto-Lei 
 n.º 15/93 
 
  
 
 6. Através da Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, o legislador 
 constituinte aditou ao actual artigo 207º da Lei Fundamental a referência aos 
 crimes “de criminalidade altamente organizada”, vedando expressamente a 
 constituição de tribunais de júri quanto a tais crimes. 
 
  
 Conforme notado por Alexandre Sousa Pinheiro e Mário João Fernandes (in 
 
 “Comentário à IV Revisão Constitucional”, Lisboa, 1999, p. 465):
 
  
 
 “À excepção do crime de terrorismo foi aditada a da «criminalidade altamente 
 organizada». A CRP não fornece elementos quanto a uma definição constitucional 
 deste tipo de criminalidade, porém, pensamos que o critério da sua determinação 
 deve atender ao tipo de crime, e não ao grau de organização dos criminosos. Um 
 caso típico que pode ser encontrado na lei é o das associações no âmbito do 
 tráfico de estupefacientes (artº 28º do decreto-lei nº 15/83, de 22 de 
 Janeiro).”
 
  
 
             Com efeito, através desta relevante alteração, o legislador 
 constituinte pretendeu garantir que a especial garantia de imparcialidade do 
 tribunal penal que julga crimes de terrorismo fosse estendida a crimes não 
 expressamente tipificados pelo actual artigo 207º da Constituição como de 
 
 “criminalidade altamente organizada”. Com esta limitação, visa-se garantir a 
 imparcialidade e independência dos jurados não magistrados, evitando que aqueles 
 possam vir a ser pressionados pelos titulares dos interesses que sustentam 
 aquele tipo de criminalidade altamente organizada, designadamente, mediante 
 ameaças à sua vida e integridade física. No mesmo sentido se pronunciaram, mais 
 recentemente, Jorge Miranda e Rui Medeiros (in “Constituição Portuguesa 
 Anotada”, Coimbra, 2007, pp. 94 e 95):
 
  
 
 “A Constituição determina casos em que a constituição ou mera previsão legal do 
 tribunal de júri está excluída. São os casos de terrorismo ou de criminalidade 
 
 «altamente organizada». A razão de ser desta exclusão, constitucionalmente 
 imposta, deriva de uma presunção inilidível – à luz da Constituição – de que os 
 juízos leigos não têm, nestes casos, a capacidade para administrar a Justiça, 
 face ao grau de ameaça ou de intimidação que o julgamento de tais casos poderia 
 comportar. Sendo estas razões fundadas, os conceitos restritivos, a que a norma 
 apela, suscitam algumas dificuldades, nomeadamente, no caso de «criminalidade 
 altamente organizada». Com efeito, esta exclusão pressupõe que se determine 
 exactamente o que seja «criminalidade altamente organizada», tal qual estava 
 subjacente à «mente» do legislador constituinte (ou seja, de acordo com o 
 conceito do Código de Processo Penal, entretanto «redefinido» pela Lei n.º 
 
 48/2007, de 29 de Agosto, que revê o CPP.”
 
  
 
             Estando, pois, assente que o artigo 207º da Constituição impede a 
 previsão legal e a constituição efectiva de tribunais de júri para efeitos de 
 julgamento de crimes “altamente organizados”, importa, porém, determinar quais 
 os crimes que, à luz da Constituição, se revestem dessa mesma qualidade.
 
  
 
             7. Bem entendido, a mera circunstância de a recente Lei n.º 48/2007, 
 de 29 de Agosto, ter procedido a uma definição legal de “criminalidade altamente 
 organizada”, através do aditamento da alínea m) do artigo 1º do CPP, não se 
 afigura apta a evidenciar o critério preconizado pelo legislador constitucional. 
 Ainda que a referida alínea m) do artigo 1º do CPP qualifique os crimes de 
 
 “tráfico de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas” como tal, essa 
 opção legislativa ordinária não é bastante para concluir pela inclusão daqueles 
 crimes no conceito jus-constitucional de “criminalidade altamente organizada”. 
 Fazer o contrário seria interpretar a Lei Fundamental à luz da lei ordinária, ao 
 invés daquilo que impõe a Ideia de Garantia da Constituição, enquanto parâmetro 
 de validade das demais normas.
 
  
 
             Vejamos, então, enquanto mero instrumento auxiliar interpretativo, 
 os trabalhos preparatórios das sucessivas revisões constitucionais que 
 delimitaram o conceito de “criminalidade altamente organizada”.
 
  
 
             No âmbito da Comissão Eventual de Revisão Constitucional [CERC] de 
 
 1997, foi proposta a revisão do actual artigo 207º da Constituição, mediante 
 proposta de Deputados do Partido Social Democrata [PSD], que foi alvo de adesão 
 por parte dos Deputados do Partido Socialista, no sentido de estender a 
 proibição constitucional de formação de tribunal de júri – que até então se 
 dirigia exclusivamente aos casos de “terrorismo” – aos casos de “criminalidade 
 altamente organizada” (cfr. in «Diário da Assembleia da República – IV Revisão 
 Constitucional», 7ª legislatura, 2ª sessão legislativa, n.º 102, 26 de Julho de 
 
 1997, p. 3851). Durante os referidos trabalhos de discussão na especialidade, 
 foi suscitada a dúvida acerca do conceito relativamente indeterminado de 
 
 “criminalidade altamente organizada”, tendo os proponentes daquela alteração 
 invocado os seguintes argumentos:
 
  
 
 “O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Luís Marques Guedes, no uso do meu direito de 
 pedir esclarecimentos, gostava de perguntar qual é o significado da expressão 
 
 'pelo menos quando a acusação ou a defesa o requeiram', ou seja, o que é que 
 acontece quando não o requererem? Fica para a lei? Nesse caso, talvez se devesse 
 explicitar.
 Por outro lado, suponho que o conceito de criminalidade altamente organizada 
 está fixado internacionalmente; mas também gostava de saber onde está a 
 fronteira entre o altamente e o mediamente organizado. Para responder, tem a 
 palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.
 O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, é com muito gosto que 
 tentarei responder a algumas das dúvidas que V. Ex.ª agora formulou.
 O conceito de criminalidade altamente organizada está hoje, passe o pleonasmo, 
 conceptualizado no artigo 1.º do Código de Processo Penal português. Portanto, 
 existe já uma densificação exacta deste conceito: ele não foi inventado mas, 
 sim, transposto de outro lugar da ordem jurídica portuguesa, em sede de lei 
 ordinária.” (cfr. in «Diário da Assembleia da República – IV Revisão 
 Constitucional», 7ª legislatura, 2ª sessão legislativa, n.º 102, 26 de Julho de 
 
 1997, p. 3851);
 
 “O Sr. José Magalhães (PS): (…) Quanto ao conceito relativamente indeterminado 
 utilizado na primeira parte da norma, o de 'criminalidade altamente organizada', 
 ele resultou de uma reflexão que tem vindo à ser feita no âmbito da Assembleia 
 da República, tanto em sede de legislação ordinária como de instrumentos de 
 direito internacional, tendente a isolar um conceito que recorte certos tipos de 
 criminalidade de especial gravidade, em que os elementos de organização e, logo, 
 de eficácia e perigosidade são elementos relevantes. O Código de Processo Penal, 
 no seu artigo 1.º. n.º 2, recortou esse conceito como integrando aqueles crimes 
 que dolosamente se dirigem contra a vida, a integridade física ou a liberdade 
 das pessoas e sejam puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 
 anos. Mas, obviamente, não estamos a constitucionalizar este segmento normativo 
 do Código de Processo Penal, não estamos a importar para a Constituição este 
 exacto recorte normativo. O legislador ordinário é livre de desenhar noutros 
 termos o que seja a criminalidade altamente organizada e pode fazê-lo, com uma 
 limitação: é que o que prima aqui são precisamente os elementos da organização e 
 da especial gravidade das infracções que essa organização visa perpetrar.” (cfr. 
 in «Diário da Assembleia da República – IV Revisão Constitucional», 7ª 
 legislatura, 2ª sessão legislativa, n.º 102, 26 de Julho de 1997, p. 3852).
 
             Daqui decorre que o conceito de “criminalidade altamente 
 organizada”, aditado ao então artigo 210º da Constituição (actual artigo 207º), 
 assentou no conceito jus-penal decorrente do Direito Internacional e do conceito 
 
 (então) fixado pela lei processual penal, ainda que não haja uma identidade 
 absoluta entre este último e o conceito constitucional. Este conceito 
 constitucional de “criminalidade altamente organizada” pressupõe: i) um elevado 
 grau de organização do processo criminoso; ii) uma especial lesividade e 
 perigosidade das condutas criminosas.
 
             Ora, sucede que a redacção do (então) nº 2 do artigo 1º do CPP 
 dispunha que, “para efeitos do disposto no presente Código, apenas podem 
 considerar-se como casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente 
 organizada as condutas que: a) Integrarem os crimes previstos nos artigos 299º, 
 
 300º e 301º do Código Penal; ou b) Dolosamente se dirigirem contra a vida, a 
 integridade física ou a liberdade das pessoas e forem puníveis com pena de 
 prisão de máximo igual ou superior a cinco anos”. Significaria isto que, à data 
 do aditamento do conceito de “criminalidade altamente organizada” ao actual 
 artigo 207º da Constituição, o legislador constituinte aparentou não querer 
 abranger – pelo menos de modo expresso – os crimes de tráfico de 
 estupefacientes, atenta a dificuldade em qualificá-los como crimes cujo bem 
 jurídico especialmente tutelado é a vida, a integridade física ou a liberdade 
 das pessoas.
 
             Sucede, porém, que – ainda que não expressamente referido no decurso 
 dos trabalhos parlamentares de revisão constitucional –, àquela data, já 
 vigorava o n.º 1 do artigo 53º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 2 de Janeiro, que 
 dispunha o seguinte:
 
 “1 – Para efeitos do disposto no Código de Processo Penal, e em conformidade com 
 o n.º 2 do artigo 1º do mesmo Código, consideram-se equiparadas a casos de 
 terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada as condutas que 
 integrem os crimes previstos no artigos 22.º a 25º e 28º desta lei.”
 
             Significa isto que, quando os membros da CERC de 1997 pretenderam 
 remeter o conceito de “criminalidade altamente organizada” para aquele adoptado 
 pela lei processual penal não podiam ter deixado de ter em conta a circunstância 
 de o regime processual penal não decorrer exclusivamente das normas incluídas no 
 CPP, mas igualmente daquelas normas processuais penais incluídas em diplomas 
 avulsos, designadamente, o n.º 1 do artigo 53º do Decreto-Lei n.º 15/93. Ou 
 seja, quando pretenderam retirar o conceito de “criminalidade altamente 
 organizada” daquele adoptado pela lei processual penal, não podem ter deixado de 
 nele incluir os crimes de tráfico de estupefacientes, visto que estes já naquele 
 eram incluídos deste a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 15/93.
 E, ainda que assim não fosse, o elemento meramente histórico (v.g., a referência 
 exclusiva ao então n.º 2 do artigo 1º do CPP, em sede de trabalhos 
 preparatórios) não pode afigurar-se como determinante da vontade do legislador 
 constituinte, na medida em que tal implicaria uma cristalização no tempo dos 
 conceitos jurídicos plasmados na Lei Fundamental. Cristalização essa que 
 impediria uma interpretação actualista da Constituição que garantisse a sua 
 permanente vivificação e adaptação ao devir social e político.
 
             Ciente dessa mesma evolução permanente, o legislador constituinte – 
 ainda que sem alterar expressamente o artigo 207º da Constituição – veio a 
 renovar a sua intenção legislativa quanto ao conceito de “criminalidade 
 altamente organizada”, por altura das reuniões da CERC que deram lugar à 
 aprovação da Lei Constitucional n.º 1/2001. Dessa feita, a revisão 
 constitucional de 2001 introduziu uma profunda alteração ao n.º 3 do artigo 34º 
 da Constituição, autorizando a entrada durante a noite no domicilio de qualquer 
 pessoa, ainda que sem o seu consentimento, “em casos de criminalidade 
 especialmente violenta ou altamente organizada, incluindo o terrorismo e o 
 tráfico de pessoas, de armas e de estupefacientes”.
 
             Então, a alteração do n.º 3 do artigo 34º da Constituição decorreu 
 de um projecto inicial de revisão apresentado por Deputados do Centro 
 Democrático Social – Partido Popular [CDS-PP], que visava – originariamente – 
 permitir apenas a entrada no domicílio, de noite e sem consentimento, mas com 
 autorização judicial, precisamente em casos de tráfico de estupefacientes. 
 Aliás, a expressa referência aos crimes de tráfico de estupefacientes resultou, 
 segundo os próprios proponentes, das dúvidas quanto à inserção daquele tipo de 
 crimes no conceito de “criminalidade altamente organizada” (cfr. in «Diário da 
 Assembleia da República – V Revisão Constitucional», 8ª legislatura, 3ª sessão 
 legislativa, n.º 3, 30 de Maio de 2001, p. 45).
 
  
 Sucede que, durante os trabalhos de discussão na especialidade, foi obtido um 
 acordo entre os grupos parlamentares do PSD, PS e CDS-PP, na sequência de 
 propostas das diversas personalidades que participaram nas audições públicas, no 
 sentido de ampliar a aplicação daquele n.º 3 do artigo 34º da Constituição a 
 todos os crimes especialmente violentos ou altamente organizados, seguindo-se um 
 elenco de tipos de crime que – segundo a Constituição – podem ser qualificados 
 como tal:
 
  
 
 “O Senhor Jorge Lacão (PS): (…) Como sabem, a proposta inicial apresentada pelo 
 CDS-PP fazia uma delimitação material extremamente restritiva, no sentido em que 
 a admitia tão-só para o tráfico de droga. Do conjunto de impressões aqui 
 trocadas em Comissão, e também nas audições que tiveram lugar, de alguma maneira 
 foi-se criando entre nós um consenso no sentido de alargar o seu âmbito de 
 aplicação. O problema põe-se agora em termos de tecnicidade 
 jurídico-constitucional: ou alargar o âmbito de aplicação segundo uma cláusula 
 aberta, de tal maneira que o legislador ordinário possa conformá-la como 
 entender, segundo o seu critério, ou, em todo o caso, tentar uma delimitação 
 material um pouco mais trabalhada em sede constitucional. É neste sentido que 
 mais nos inclinamos. Portanto, sem embargo de estarmos disponíveis para 
 considerar uma formulação definitiva, entendemos que devem ser aqui ressalvados, 
 pela natureza dos crimes em causa e como critério material, aqueles casos que 
 envolvam criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada, incluindo 
 como tipos materiais, necessariamente, o terrorismo, o tráfico de pessoas, de 
 armas e de estupefacientes.” (cfr. in «Diário da Assembleia da República – V 
 Revisão Constitucional», 8ª legislatura, 3ª sessão legislativa, n.º 3, 30 de 
 Maio de 2001, p. 45).
 
  
 Ainda que aquele elenco de crimes não exclua a possibilidade de qualificação de 
 outros crimes como “criminalidade altamente organizada”, afigura-se 
 incontroverso que, pelo menos desde a revisão constitucional de 2001, o conceito 
 jus-constitucional de “criminalidade altamente organizada” abrange, 
 necessariamente, os crimes de tráfico de estupefacientes.
 
  
 Diga-se, aliás, que o facto de essa qualificação ter sido operada para os 
 efeitos previstos no n.º 3 do artigo 34º da Constituição não pode deixar de 
 produzir as necessárias consequências interpretativas quanto aos demais 
 preceitos constitucionais que acolhem a noção jus-penal de “criminalidade 
 altamente organizada”, sob pena de completo desrespeito pela necessidade de 
 interpretação sistemática das normas e princípios constitucionais. Apresenta-se, 
 assim, incontroverso que o legislador constituinte acolheu uma actualização do 
 conceito de “criminalidade altamente organizada”, de modo a que este passasse a 
 abranger não só os crimes tipificados na redacção do n.º 2 do artigo 1º do CPP, 
 tal como vigente no momento da aprovação da Lei Constitucional n.º 1/1997, mas 
 igualmente crimes que, entretanto, passaram a justificar uma especial 
 intervenção punitiva do Estado, atenta a sua particular lesividade e capacidade 
 de organização dos respectivos agentes.
 
  
 
             Retirando as necessárias consequências para o caso em apreço nos 
 presentes autos, resta reforçar que a circunstância de o artigo 13º do CPP não 
 excluir expressamente a possibilidade de formação de tribunais de júri para 
 efeitos de julgamento de crimes de tráfico de estupefacientes não permite uma 
 interpretação normativa que autorize tal formação. Por força do artigo 207º da 
 Constituição, que prevalece necessariamente sobre as normas ordinárias, 
 incluindo as processuais penais, enquanto parâmetro decisivo de validade, não é 
 permitido nem ao legislador autorizar a formação de tribunal de júri, nem ao 
 julgador dar execução àquela formação, sempre que estejam em causa “crimes 
 altamente organizados”, entre os quais se inserem os crimes de tráfico de 
 estupefacientes.
 
  
 
             Em suma, o artigo 207º da Constituição impede a formação de 
 tribunais de júri para julgamento dos crimes de tráfico de estupefacientes 
 previstos nos artigos 22º a 25º e 28º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de 
 Janeiro, na medida em que aqueles se inserem no conceito jurídico-constitucional 
 de “criminalidade altamente organizada”.
 
  
 
  
 III. DECISÃO
 
  
 Pelos fundamentos supra expostos, decide-se:
 
  
 i)                    Não conhecer do objecto do presente recurso, relativamente 
 
 às interpretações normativas extraídas dos artigos 187º, n.º 1, conjugado com o 
 
 97º, n.º 4, e do artigo 188º, nºs 1 a 4, todos do Código de Processo Penal [na 
 redacção anterior à Lei n.º 48/2007], tal como configuradas pelo recorrente no 
 requerimento de interposição de recurso;
 
  
 ii)                  Conceder provimento ao recurso, quanto ao mais, julgando 
 inconstitucional a norma extraída dos nºs 1 e 2 do artigo 13º do Código de 
 Processo Penal [na redacção anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto], 
 conjugado com o artigo 51º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 2 de Janeiro, quando 
 interpretada no sentido de que o tribunal de Júri é competente para julgar o 
 crime de tráfico de estupefacientes enquanto criminalidade altamente organizada, 
 tal como é definida no artº 1º-2 do C.P.P. [na redacção anterior à Lei n.º 
 
 48/2007, de 29 de Agosto].
 
  
 Sem custas, por não serem devidas.
 Lisboa, 24 de Setembro de 2008
 
  
 Ana Maria Guerra Martins
 Carlos Fernandes Cadilha
 Maria Lúcia Amaral
 Vítor Gomes
 Gil Galvão