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Processo n.º 340/06
 
 2.ª Secção
 Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
 
  
 
  
 
  
 
  
 
  
 
  
 Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
 
  
 
  
 A – Relatório
 
  
 
  
 
                  1 – A., melhor identificado nos autos, reclama, ao abrigo do 
 disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), da 
 decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso proferida pelo 
 relator.
 
  
 
                  2 – A decisão reclamada tem o seguinte teor:
 
                  
 
         «1 – A., melhor identificado nos autos, recorre para o Tribunal 
 Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei 
 n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), tendo o recurso por “fundamento a aplicação 
 de normas jurídicas pelo tribunal a quo em violação do princípio constitucional 
 ne bis in idem, consagrado no artigo 29.º, n.º 5, da C.R.P., bem como no artigo 
 
 54.º da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, de 14.07.1985, no artigo 
 
 14.º da Convenção Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de New York e 
 na Convenção entre os Estados Membros das Comunidades Europeias relativa à 
 aplicação do Princípio Ne bis in idem, todas parte integrante do direito 
 português, nos termos do artigo 8.º da C.R.P. e do (ii) princípio da legalidade 
 das normas penais consagrado, em termos gerais, no artigo 29.º da C.R.P.
 
  
 
         2 – Compulsados os autos, cumpre relatar, com interesse para a decisão 
 do presente recurso, o seguinte:
 
  
 
         2.1 – O recorrente, inconformado com a decisão condenatória proferida no 
 Processo Comum n.º 18851/97.0TDLSB da 2.ª Secção das Varas de Competência Mista 
 Cível e Criminal do Funchal, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de 
 Lisboa, onde, em síntese, argumentou que:
 
  
 
  
 
 “(…)
 A) Os presentes autos tiveram origem em diligências de investigação levadas a 
 cabo pelo UCLAF em vários países, as quais conduziram às conclusões do relatório 
 de que se juntou cópia como doc. nº 1 ao requerimento do arguido de 4/6/2003, 
 que refere factos criminosos praticados em vários países da União Europeia, 
 relativos sempre a crimes de fraude na obtenção de subsídios. 
 B) O mencionado relatório contém, entre outros, os factos pelos quais o arguido 
 vem acusado nos presentes autos, tanto mais que esse relatório, ou excertos 
 desse relatório, se encontram juntos aos presentes autos em diversas línguas 
 desde há muito tempo.
 C) Tal relatório e os factos dele extraídos para os presentes autos, foram já 
 objecto de procedimento criminal contra o arguido no seu país de origem, i. e, 
 em Itália.
 D) De acordo com o art. 50º do cód. proc. pen. italiano, que é uma norma 
 imperativa enquanto derivada do art. 112º da constituição italiana, o Ministério 
 Público (fora daqueles casos em que é necessária queixa particular) está 
 obrigado a proceder criminalmente sempre que conhecer de factos que possam 
 importar a responsabilidade criminal de um agente.
 E) Conforme resulta do art. 9º do cód. pen. italiano, o dever de acção penal da 
 Justiça italiana impõe-se mesmo quanto a factos praticados fora do território 
 italiano desde que o autor dos factos seja cidadão italiano, encontrando-se em 
 território italiano à data da notícia do crime e que a lei italiana preveja para 
 os mesmos pena de prisão perpétua ou pena não inferior a três anos, como é o 
 caso, não tendo podido, pois, o Tribunal italiano sequer ignorar a notícia do 
 crime praticado em Portugal.
 F) Ora, tendo o Tribunal italiano recebido a notícia do crime praticado em 
 Portugal, bem como muitos outros elementos objecto destes autos, conclui-se que 
 a sentença proferida no processo que correu termos no Tribunal de Fermo incidiu 
 sobre os factos que estão agora a ser julgados novamente em Portugal, na medida 
 em que os Tribunais Italianos conheceram e processaram os factos que originaram 
 os presentes autos.
 G) Apesar de os factos comuns ao presente processo criminal não virem 
 especificados na sentença, o que é certo é que foram conhecidos e processados em 
 Itália. Sucedeu, porém, que de acordo com um juízo de mérito feito pela justiça 
 Italiana, tais factos nem à sentença chegaram. Concluir o contrário seria 
 admitir que o art. 50º do cód. proc. pen. italiano derivado do preceito 
 constitucional do art. 112º da constituição italiana, não é uma norma 
 imperativa, o que não se concebe, nem se concede.
 H) De acordo com o artigo 54º da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen de 
 
 14 de Julho de 1985, publicado no D.R. I SÉRIE – A de 25/11/1993, “aquele que 
 tenha sido definitivamente julgado por um tribunal de uma Parte Contratante não 
 pode, pelos mesmos factos, ser submetido a uma acção judicial intentada por uma 
 outra Parte Contratante, desde que, em caso de condenação, a sanção tenha sido 
 cumprida ou esteja actualmente em curso de execução ou não possa já ser 
 executada, segundo a legislação da Parte Contratante em que a decisão de 
 condenação foi proferida”.
 I) Igual entendimento resulta do nº 7 do art. 14º da Convenção Internacional 
 sobre direitos civis e políticos de New York, de que Portugal é signatário, 
 segundo o qual “no one shall be liable to de tried or punished again for an 
 offence for which he has already been finally convicted or acquitted in 
 accordance with the law and penal procedure of each country”.
 J) Também na nossa lei ordinária e constitucional encontramos consagração do 
 princípio ne bis in idem.
 L) Assim, tendo já o arguido sido julgado pelos factos dos autos, não o podia 
 ter sido novamente pelos Tribunais Portugueses.
 M) Do facto de o processo italiano ter tido por base o relatório do UCLAF e as 
 confissões do arguido, que se referem a factos passados em Portugal, resulta 
 provado que o Tribunal Italiano teve a notícia dos crimes cometidos em Portugal, 
 conhecendo-os desde o início do processo.
 N) Semelhante conclusão resulta ainda de inúmeros documentos produzidos em 
 língua portuguesa que se encontram também no processo italiano e cujas cópias 
 foram enviadas para o Tribunal “a quo”.
 O) Alguns desses documentos produzidos em língua portuguesa, são referentes a 
 factos criminosos que estão a ser julgados em Portugal, nestes autos, 
 demonstrando-se, pela sua inclusão no processo italiano, que, relativamente aos 
 factos criminosos passados em Portugal, o Tribunal de Fermo não se bastou com o 
 relatório do UCLAF, tendo obtido mais elementos.
 P) O Tribunal “a quo” preferiu concentrar-se nos factos constantes da sentença 
 do Tribunal de Fermo, onde não chegaram a ser referidos os factos passados em 
 Portugal, pelos quais o arguido foi julgado em Portugal.
 Q) O facto de a sentença do Tribunal italiano não mencionar expressamente os 
 factos passados em Portugal, não significa que estes factos não tenham sido 
 objecto do processo. 
 R) Ora, o Tribunal “a quo” nem se pronunciou acerca do facto de o relatório do 
 UCLAF constar do processo italiano.
 S) Não podia o Tribunal “a quo” não perceber que muitos outros elementos 
 relativos aos factos passados agora julgados em Portugal constavam do processo 
 italiano.
 T) Não deveria o Tribunal “a quo” ter entendido o sentido das disposições acerca 
 do princípio ne bis in idem – das quais se referiu apenas à que consta da 
 Constituição da República Portuguesa, ignorando as fontes convencionais 
 internacionais alegadas pelo arguido – no sentido restritivo de este princípio 
 operar apenas em casos em que tenha havido uma absolvição expressa por uma 
 sentença. Qualquer juízo de absolvição, ainda que consista numa omissão de 
 condenação, como é o caso, deve ser entendido como suficiente para efeitos de 
 fazer operar aquele princípio geral de direito. 
 U) A interpretação extensiva de normas desincriminadoras é obrigatória em 
 direito penal por força do princípio da legalidade. Com efeito, o que se proíbe 
 para as normas penais de sentido positivas, torna-se obrigatório para as normas 
 penais de sentido negativo.
 V) Ao condenar o arguido por factos pelos quais este tinha já sido processado 
 criminalmente num processo findo, o Tribunal “a quo” violou, assim, as referidas 
 normas constitucionais e convencionais que consagram o princípio fundamental do 
 ne bis in idem. Violação esta que incidiu directamente sobre as normas e também 
 sobre a interpretação extensiva que destas deveria ter feito, pelo que o 
 Tribunal “a quo” violou também o princípio da legalidade.
 X) Ao não considerar que os factos criminosos julgados em Portugal tinham sido 
 objecto do processo que correu termos no Tribunal italiano, o Tribunal “a quo” 
 errou, também na apreciação da prova.
 Z) Tendo em conta tudo quanto exposto, deve o acórdão recorrido ser revogado, 
 absolvendo-se o arguido da prática dos crimes pelos quais foi condenado.
 AA) O arguido agiu sempre instrumentalizado por B., como resulta com clareza dos 
 elementos constantes dos autos, tais como o próprio relatório do UCLAF, pelo que 
 o julgamento de onde resultou a decisão recorrida só seria um julgamento justo 
 se B. tivesse sido julgado ao lado do arguido.
 AB) Durante o julgamento muitos foram os elementos que ligavam factos criminosos 
 sob apreciação a B., conforme resulta da decisão recorrida na enumeração das 
 provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal e dos nºs. 141 e 
 
 142, 173 a 178 e 257 a 260 dos factos considerados provados.
 AC) Haver apenas um arguido no presente processo foi uma opção de quem deu 
 origem a este processo – a Comissão Europeia – pela qual o arguido pagou o preço 
 da injustiça. Sozinho, não só pareceu o único culpado de tudo quanto sucedido, 
 como também se viu impedido de procurar reparar a União Europeia dos danos 
 provocados, o que seria outra atenuante forte a seu favor.
 AD) O arguido não tem antecedentes criminais, o que não pode deixar de ser 
 atendido para efeitos de determinação da medida da pena, como circunstância 
 atenuante geral.
 AE) Outra forte atenuante é o facto de o arguido sempre ter colaborado com a 
 Justiça, como resulta de ter confessado os factos que lhe eram imputados perante 
 o UCLAF. O arguido só não fez o mesmo no julgamento de onde resultou a decisão 
 recorrida por estar impedido de se deslocar a Portugal para esse efeito, por 
 motivos de saúde, conforme resulta dos vários atestados médicos juntos ao 
 processo.
 AF) O debilitado estado de saúde do arguido aconselha uma ponderação acerca dos 
 efeitos de uma pena de prisão na sua saúde, uma vez que sofre de um quadro 
 clínico caracterizado pelo aparecimento de uma sintomatologia isquémica das 
 coronárias, causada pelo esforço e pela emoção, pela doença de Angor, verificada 
 por esforços de pequena entidade e pela hipertensão sistémica e com 
 deslipidemia, tornando necessário que o arguido evite o stress psico-fisíco que 
 possa agravar a situação clínica particularmente sensível a situações emotivas e 
 impondo a abstenção de modificações ambientais que possam ter influência sobre a 
 instabilidade das coronárias.
 AG) Também esta circunstância atinente ao arguido foi ignorada pelo Tribunal “a 
 quo” na determinação da medida da pena, sendo que uma pena da extensão da que 
 foi aplicada ao arguido pode bem vir a revelar-se uma pena perpétua.
 AH) Perante tudo quanto exposto, caso não se decida pela absolvição do arguido, 
 o que por mera hipótese se admite, sem conceder, deve a pena do arguido ser 
 reduzida em conformidade com as circunstâncias atenuantes gerais agora referidas 
 e que foram ignoradas pelo Tribunal “a quo”, revogando-se a decisão recorrida.
 
 (…)”.
 
  
 
  
 
         2.2 – Por Acórdão de 21 de Fevereiro de 2006, o Tribunal da Relação de 
 Lisboa decidiu julgar o recurso improcedente, deixando consignado, na parte 
 relativa à alegada violação do Princípio ne bis in idem, que:
 
         
 
         “(…)
 
 «9.2. Do caso julgado:
 
  
 Quanto a esta questão importa referir que a mesma já havia sido suscitada e 
 apreciada pelo tribunal recorrido, podendo observar-se a seguinte apreciação 
 prévia constante da decisão em recurso:
 
  
 
 'A fls. 1229 a 1288 o arguido A. veio invocar a questão do ne bis in idem, por 
 já Terem, o relatório da Comissão e os factos dele extraídos, sido objecto de 
 procedimento criminal contra o arguido, em Itália, no Tribunal de Fermo, 
 conforme decisão que juntou aos autos e se encontra traduzida a fls. 1495 a 
 
 1499, do 6º volume.
 O assistente e o Ministério Público opuseram-se à procedência da questão.
 O arguido requereu a junção de documentos para prova da matéria alegada, cuja 
 admissibilidade foi objecto dos despachos de fls. 1406, 1489 e 1490.
 Este último relegou para decisão final o conhecimento da questão do ne bis in 
 idem.
 Cumpre agora decidir.
 Do confronto dos documentos de fls. 9 a 15 (que mencionam o projecto X levado a 
 cabo pela empresa C.), com o depoimento da testemunha D., que participou na 
 auditoria levada a cabo pela Comissão em vários países além de Portugal e 
 noutras empresas, além das ora arguidas, e com o teor da decisão de fls. 1495 a 
 
 1499, não impugnado resulta que:
 O arguido A. é também arguido no processo italiano;
 Objecto do processo italiano e da decisão do Tribunal de Fermo são factos que 
 praticou como gerente de facto e efectivo gestor da empresa C., relativos ao 
 projecto 92.IT.06.069 C. s.a.s. XX (aprovado pela Comissão n. C (92) 3124 do 
 
 3/12/92) denominado XY, apresentando o referido projecto com dados falsos e 
 previsões exageradas e superiores às necessárias para a realização do projecto, 
 comunicando a execução dos trabalhos relativos ao projecto e omitindo o facto de 
 não Ter alcançado os objectivos;
 Objecto desse processo foi ainda a emissão de facturas relativas a operações em 
 tudo ou em parte inexistentes (factura n. 1 de 12/1/93, no total de 600.000.000 
 liras italianas emitida pela E. e a cargo da sociedade C.; factura n. 22 de 
 
 12/12/92, no montante de 66.801.650 liras italianas, emitida pela F. para a C.; 
 factura n. 12 de 7/9/93, no montante de 53.939.2151iras italianas, emitida pela 
 F. para a C.).
 Ora, de fls. 115 do apenso F2 resulta que a factura da C. objecto dos presentes 
 autos e mencionada nos arts. 179º e 180º da acusação tem o nº 262, data de 
 
 9/5/94, tem o valor de 6.056.000 escudos portugueses e está descrita na 
 contabilidade da G., sendo diversa das que se mencionam no processo Italiano.
 Os projectos comunitários objecto da acusação nos nossos autos têm o nº 
 
 93PT06023, o denominado projecto Y, apresentado pela H. e o nº 93PT06002, o 
 denominado projecto Algarve, apresentado pela G., sendo diversos do projecto e 
 da empresa referidos na decisão do Tribunal de Fermo (cfr. arts. 188º e 61º da 
 acusação).
 A empresa C. aparece no projecto Algarve como empresa subcontratada, por 
 referência a uma factura que nada tem a ver com as mencionadas na decisão do 
 Tribunal de Fermo. 
 As facturas da F. emitidas à C. e objecto do processo Italiano também não 
 constituem objecto dos presentes autos.
 Pelos fundamentos acabados de expor afigura-se que os factos objecto do processo 
 Italiano e da decisão do Tribunal de Fermo, supra mencionada, são diferentes dos 
 factos objecto deste processo e por isso não há lugar à violação do princípio do 
 ne bis in idem consagrado no art. 29º nº 5 da C.R.P.
 Não há outras questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do 
 mérito da causa.'
 
  
 Tudo visto, resulta evidente que o recorrente foi acusado e julgado pelos 
 tribunais italianos (Tribunal de Fermo) por factos típicos e ilícitos por si 
 praticados na qualidade de administrador de facto e efectivo gestor de uma 
 sociedade de direito italiano, com sede nesse mesmo País, denominada C. s.a.s. 
 
 (s.r.l.) e relativos ao projecto 92.IT.06.069, denominado XY, aprovado pela 
 Decisão da Comissão nº C (92) 3124. E somente quanto a tais factos.
 Nos presentes autos, o arguido A. veio acusado e condenado pela prática de dois 
 crimes de fraude na obtenção de subsídio praticados em seu nome e seu interesse 
 e nos das sociedades de direito português, e com sede no nosso País, denominadas 
 G., LDA. e H., LDA. Estão em causa o projecto nº 93PT06002 (denominado projecto 
 ALGARVE), aprovado pela Decisão da Comissão nº C (93) 1606, e o projecto nº 
 
 93PT06023 (denominado projecto Y), aprovado pela Decisão da Comissão nº C (93) 
 
 3403. 
 
 É, pois, evidente a não violação do princípio ne bis in idem por o arguido e 
 recorrente não ter sido julgado ' [...] mais do que uma vez pela prática do 
 mesmo crime.' - artigo 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa
 Tal como o próprio recorrente reconhece:
 
 'O Tribunal 'a quo' preferiu concentrar-se nos factos constantes da sentença do 
 Tribunal de Fermo, onde não chegaram a ser referidos os factos passados em 
 Portugal, pelos quais o arguido foi julgado em Portugal.'
 O objecto de cada um dos processos é totalmente diverso, pelo que não se pode 
 questionar sequer a existência de qualquer caso julgado, pelo que o recurso é 
 nesta parte manifestamente improcedente nos próprios termos alegados».
 
         “
 
  
 
         2.3 – Discordando desse entendimento, o arguido interpôs, nos termos 
 supra descritos, recurso para o Tribunal Constitucional, passando o mesmo a ser 
 decidido, atento o disposto no artigo 76.º, n.º 3 da LTC, nos termos referidos 
 no artigo 78.º-A, n.º 1, do mesmo diploma legislativo.
 
  
 
         3 – Constitui pressuposto do recurso ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, 
 alínea b), da LTC, que o tribunal a quo haja aplicado, como ratio decidendi, uma 
 norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo.
 Como é consabido, o objecto da fiscalização jurisdicional da constitucionalidade 
 são apenas normas jurídicas, não podendo o Tribunal Constitucional pronunciar-se 
 sobre uma (eventual) “inconstitucionalidade da decisão judicial”, como, de 
 resto, tem sido unanimemente acentuado pela jurisprudência deste Tribunal – cf. 
 nesse sentido o Acórdão n.º 199/88 (publicado no Diário da República II Série, 
 de 28 de Março de 1989), onde se afirmou que “este Tribunal tem decidido de 
 forma reiterada e uniforme que só lhe cumpre proceder ao controle da 
 constitucionalidade de ‘normas’ e não de ‘decisões’ –, o que exige que, ao 
 suscitar-se uma questão de inconstitucionalidade, se deixe claro qual o preceito 
 legal cuja legitimidade se questiona, ou no caso de se questionar certa 
 interpretação de uma determinada norma, qual o sentido ou a dimensão normativa 
 do preceito que se tem por violador da lei fundamental”.
 Nestes termos, em face da delimitação dos poderes assinalados a este Tribunal, 
 urge reconhecer, semel pro semper, que os recursos de constitucionalidade, 
 embora interpostos de decisões de outros tribunais, visam controlar o juízo que 
 nelas se contém sobre a violação ou não violação da Constituição por normas 
 mobilizadas na decisão recorrida como sua ratio decidendi, não podendo visar as 
 próprias decisões jurisdicionais qua tale, identificando-se, nessa medida, o 
 conceito de norma jurídica como elemento definidor do objecto do recurso de 
 constitucionalidade, daí resultando, pois, que apenas as normas e não já as 
 decisões judiciais podem constituir objecto de tal recurso – cf., nestes exactos 
 termos, o Acórdão n.º 361/98 e, entre muitos outros, os Acórdãos nºs 286/93, 
 
 336/97, 702/96, 336/97, 27/98 e 223/03, todos disponíveis para consulta em 
 
 www.tribunalconstitucional.pt/.
 E isto porque a Constituição não configurou o recurso de constitucionalidade 
 como um recurso de amparo no âmbito do qual fosse possível sindicar qualquer 
 lesão dos direitos fundamentais, aí se incluindo a possibilidade de conhecer, 
 nesse âmbito, do mérito da própria decisão judicial sindicanda, antes tendo 
 recortado a competência do Tribunal Constitucional em torno do conhecimento de 
 questões de constitucionalidade de normas, sendo perante tal conformação do 
 sistema jurídico-constitucional de recursos que o Tribunal pode actuar em termos 
 de avaliar da bondade constitucional de critérios normativos aplicados pelos 
 demais tribunais.
 Note-se, porém, que o facto de “não exist[ir], no sistema 
 jurídico-constitucional português, um processo de «queixa constitucional» 
 
 (Verfassungsbeschwerde, staatsrechtliche Beschwerde, recurso de amparo) que 
 permita aos cidadãos lesados nos seus direitos fundamentais apelarem 
 directamente para um tribunal constitucional (...)”, não significa uma 
 
 “protecção enfraquecida dos direitos fundamentais uma vez que “os particulares 
 podem, nos feitos submetidos à apreciação de qualquer tribunal e em que sejam 
 parte, invocar a inconstitucionalidade de qualquer norma (...) fazendo assim 
 funcionar o sistema de controlo da constitucionalidade (...) numa perspectiva de 
 controlo subjectivo” – cf. Gomes Canotilho (in “Direito Constitucional e Teoria 
 da Constituição, 4.ª edição, Coimbra, 2000, p. 493).
 Perscrutando os autos à luz deste entendimento, torna-se bem patente que o 
 recorrente não suscitou, durante o processo, qualquer questão de 
 constitucionalidade – normativa, por antonomásia.
 De facto, em passo algum do processo – principaliter, nas alegações de recurso 
 para o Tribunal da Relação de Lisboa, onde se retoma, de forma mais apurada, o 
 teor do requerimento de fls. 1229, apresentado em 4 de Junho de 2003 – o 
 recorrente controverte sub species constitutionis a bondade jusfundamental dos 
 critérios normativos que determinaram a prolação da decisão recorrida, 
 limitando-se, em vez disso, a sustentar que «o Tribunal “a quo” violou, assim, 
 as referidas normas constitucionais e convencionais que consagram o princípio 
 fundamental do ne bis in idem».
 Ora, essa “violação”, imputada directamente ao acto de concreta aplicação do 
 direito, e não aos preceitos legais aplicados pelas instâncias, não densifica 
 nem traduz um problema de constitucionalidade normativa susceptível de ser 
 apreciado por este Tribunal.
 Na verdade, como se constata pelo teor das alegações transcritas, é manifesto 
 não ser possível inferir a partir do exposto a suscitação de qualquer questão de 
 
 (in)constitucionalidade normativa, sendo certo que, como vem sendo assumido, de 
 forma reiterada, por este Tribunal, «“Suscitar a inconstitucionalidade de uma 
 norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é 
 colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para 
 decidir. Isto reclama, obviamente, que (...) tal se faça de modo claro e 
 perceptível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada 
 interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a 
 Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa 
 incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou 
 princípio constitucional infringido.” Impugnar a constitucionalidade de uma 
 norma implica, pois, imputar a desconformidade com a Constituição não ao acto de 
 aplicação do Direito – concretizado num acto de administração ou numa decisão 
 dos tribunais – mas à própria norma, ou, quando muito, à norma numa determinada 
 interpretação que enformou tal acto ou decisão (cfr. Acórdãos nºs 37/97, 680/96, 
 
 663/96 e 18/96, este publicado no Diário da República, II Série, de 15-05-1996). 
 
 [§] É certo que não existem fórmulas sacramentais para formulação dos pedidos, 
 nem sequer para suscitação da questão de constitucionalidade. [§] Esta tem, 
 porém, de ocorrer de forma que deixe claro que se põe em causa a conformidade à 
 Constituição de uma norma ou de uma sua interpretação (...)» – cf., inter alia, 
 o Acórdão n.º 618/98 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt/). 
 
  
 
 4 – Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar 
 conhecimento do recurso».
 
  
 
                  3 – Na reclamação, ora deduzida, o arguido sustenta que:
 
                  
 
    «(…)
 
    1
 No entender do recte., a decisão do Tribunal a quo é inconstitucional porque 
 aplica normas jurídicas de acordo com interpretações que não respeitam 
 directamente a Constituição da República Portuguesa, não respeitando ainda 
 tratados e convenções ratificados pelo Estado Português. 
 
 2
 O que o recte. pretende é, pois, que seja fiscalizada a constitucionalidade da 
 interpretação de normas jurídicas, independentemente de ter referido que tal 
 interpretação provocou a inconstitucionalidade da decisão, o que não é falso.
 
 3
 Assim, ao recorrer-se do modo como o Tribunal a quo interpretou o princípio ne 
 bis in idem, segundo o qual não se consideram como tendo sido julgados os factos 
 que tenham sido objecto de um juízo absolutório tácito em processos judiciais no 
 estrangeiro, está-se a suscitar a inconstitucionalidade da norma nessa 
 interpretação, a qual sempre seria violadora de outro princípio constitucional, 
 o princípio da legalidade das normas penais. 
 
 4
 Com efeito, o recte. apresentou a questão da inconstitucionalidade perante o 
 Tribunal da Relação de Lisboa em termos de pôr em causa a constitucionalidade da 
 interpretação dada a normas jurídicas, como se depreende da parte suas 
 conclusões que aqui se transcrevem: 
 
 “T) Não deveria o Tribunal “a quo” ter entendido o sentido das disposições 
 acerca do princípio ne bis in idem (...) no sentido restritivo de este princípio 
 operar apenas em casos em que tenha havido uma absolvição expressa por uma 
 sentença. Qualquer juízo de absolvição, ainda que consista numa omissão de 
 condenação, como é o caso, deve ser entendido como suficiente para efeitos de 
 fazer operar aquele princípio geral de direito. 
 
  
 U) A interpretação extensiva de normas desincriminadoras é obrigatória em 
 direito penal por força do princípio da legalidade. Com efeito, o que se proíbe 
 para as normas penais de sentido positivas, torna-se obrigatória para as normas 
 penais de sentido negativo 
 
  
 V) Ao condenar o arguido por factos pelos quais este tinha já sido processado 
 criminalmente num processo findo, o Tribunal “a quo” violou, assim, as referidas 
 normas constitucionais e convencionais que consagram o princípio fundamental do 
 ne bis in idem. Violação esta que incidiu directamente sobre as normas e também 
 sobre a interpretação extensiva que destas deveria ter feito, pelo que o 
 Tribunal “a quo” violou também o princípio da legalidade” 
 
  
 
 5 
 Não existem, de facto, fórmulas sacramentais para formulação dos pedidos, nem 
 sequer para suscitação da questão da inconstitucionalidade, mas, ao contrário do 
 que a decisão reclamada sustenta, o recte. suscitou de forma clara e perceptível 
 questões de constitucionalidade de normas. 
 
 6 
 Assim, o recte. tem direito a que a constitucionalidade da norma que invocou em 
 sua defesa, seja apreciada por esse Tribunal no sentido da fiscalização da 
 interpretação que os Tribunais, de primeira Instância e da Relação, fizeram da 
 mesma. 
 
  
 Termos em que, com o douto suprimento de Vossas Excelências ao exposto, deve ser 
 dado provimento à presente reclamação, ordenando-se o prosseguimento dos autos, 
 com as legais consequências».
 
  
 
  
 
                  4 – O Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal Constitucional, 
 pugnou pelo indeferimento da reclamação, dizendo:
 
  
 
 “1 – A presente reclamação é manifestamente improcedente. 
 
 2 – Na verdade, como decorre da argumentação do reclamante este não suscitou, em 
 termos processualmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade 
 normativa, susceptível de integrar objecto idóneo do recurso de fiscalização 
 concreta interposto”. 
 
  
 
                  Cumpre agora julgar.
 
  
 
  
 B – Fundamentação
 
  
 
                  5 – A presente reclamação em nada abala os fundamentos com base 
 nos quais foi proferida a decisão reclamada de não conhecimento do objecto do 
 recurso, porquanto, como aí se deixou consignado, o reclamante em passo algum do 
 processo suscitou qualquer questão de constitucionalidade normativa.
 
                  Nem mesmo, agora, na sua reclamação esclarece qual o preceito 
 legal – ou a dimensão normativa dele inferida – que pretendia colocar à 
 apreciação deste Tribunal.
 
                  Por outro lado, a alegada violação do princípio ne bis in idem 
 não configura uma questão de constitucionalidade normativa, sem que o reclamante 
 identifique de forma clara e processualmente adequada o critério legal-normativo 
 que em seu juízo atentava contra o referido princípio. 
 
                  Não o tendo feito, fica-lhe vedado o recurso para o Tribunal 
 Constitucional das decisões que apliquem norma cuja constitucionalidade haja 
 sido suscitada durante o processo – artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC.
 
  
 
  
 C – Decisão
 
  
 
                  6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional 
 decide indeferir a reclamação.
 
                  Custas pelo reclamante, com 20 (vinte) UCs. de taxa de justiça.
 Lisboa, 12 de Julho de 2006
 Benjamim Rodrigues
 Maria Fernanda Palma
 Rui Manuel Moura Ramos