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Processo n.º 134/05
 
 1ª Secção
 Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
 
  
 
  
 
  
 Acordam o Tribunal Constitucional
 
  
 
  
 
  
 No Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas foi, em 13 de Julho de 2004, 
 proferida sentença em acção de regulação do exercício do poder paternal 
 instaurada pelo Ministério Público, na qual – na parte que interessa agora 
 considerar –, depois de dar por assente que a menor A., nascida em 12 de 
 Fevereiro de 2002, tinha sido entregue pela mãe, em 28 de Maio do mesmo ano, ao 
 casal constituído por B. e C. 'para que seja adoptada plenamente pelos mesmos, 
 integrando-se na sua família', e que estes desde então têm tratado da menor, de 
 tal forma que a Segurança Social requerera em Março de 2004, naquele Tribunal, a 
 confiança judicial da menor com vista à sua adopção pelo referido casal, decidiu 
 o seguinte:
 
  
 Nestes termos, o Tribunal decide regular o exercício do poder paternal 
 relativamente à menor A.:
 
 1) A menor A. fica confiada à guarda e cuidados do pai [D.], que exercerá o 
 poder paternal; 
 
 2) A menor beneficiará de acompanhamento efectivo e periódico de natureza 
 psicológica/pedopsiquiatra, com a frequência indicada pelos médicos/técnicos 
 designados, encarregando-se a equipa de Tomar do IRS de providenciar, 
 urgentemente pelo início e desenrolar do acompanhamento; 
 
 3) Num primeiro período de 6 meses a contar da data da decisão, a progenitora 
 
 [E.] poderá visitar a filha e tê-la consigo, aos Domingos, quinzenalmente, no 
 período entre as 10H00 e as 19H00; 
 
 4) Decorridos seis meses, a mãe poderá visitar a filha e tê-la consigo, aos 
 fins-de-semana, quinzenalmente, desde as 10H00 de Sábado às 19H00 de Domingo;
 
 5) No dia de aniversário da menor esta tomará uma refeição principal com cada um 
 dos progenitores;
 
 6) Relativamente ao Natal, a menor passará a noite de 24 para 25 na companhia de 
 um progenitor e o dia 25 com o outro, o mesmo sucedendo com a noite e dia de Ano 
 Novo, alternadamente; 
 
 7) A título de alimentos para a menor, a mãe contribuirá com a quantia de € 100 
 
 (cem euros) mensais, a entregar à mãe [pai?] por intermédio de cheque, 
 transferência bancária, ou vale postal, até ao dia 8 de cada mês;
 
 8) O pai da menor receberá os abonos de família e todos os demais subsídios a 
 que a menor tenha direito;
 
 9) Em Janeiro de cada ano, o montante referido em 7) será actualizado em função 
 do índice de aumento de preços no consumidor publicado pelo Instituto Nacional 
 de Estatística.
 
  
 Notificados da decisão, os aludidos B. e C. dela pretenderam recorrer para a 
 Relação de Coimbra, através de requerimento apresentado em 16 de Julho de 2004.
 A pretensão foi negada ainda no Tribunal de Torres Novas por despacho do 
 seguinte teor:
 
  
 Os recorrentes B. e mulher não são titulares da relação material controvertida 
 que versa sobre o exercício do poder paternal relativo à menor A..
 Por conseguinte, não têm legitimidade para impugnarem a decisão que regulou o 
 exercício do poder paternal.
 Por tal motivo, indefiro o recurso interposto pelos mesmos - art. 680º e 687º 
 n.º 3 do CPC.
 Custas no incidente pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em duas 
 UC’s.
 Notifique.
 
  
 Inconformados, os interessados reclamaram para o Presidente da Relação de 
 Coimbra, nos seguintes termos:
 
  
 O recurso de apelação interposto sufraga-se nos artigos 680º n.º 2 do Código de 
 Processo Civil e 4º al. i) da Lei n.º 147/99 de 1 de Setembro ex vi do art. 
 
 147º-A da Organização Tutelar de Menores. 
 Resulta das disposições legais referidas o “direito de participação” de quem tem 
 a guarda de facto do menor e a legitimidade para recorrer das “pessoas directa e 
 efectivamente prejudicadas pela decisão (...) ainda que não sejam partes na 
 causa”. 
 Assim, não pode deixar de entender-se que o “direito de participação” inclui o 
 direito de recurso de quem tem a guarda de facto da menor, num processo de 
 regulação do poder paternal que decide retirar-lhes a criança e entregá-la ao 
 pai biológico, que a mesma nem conhece. 
 Aliás, a legitimidade para recorrer é garantida expressamente pelos arts. 123° 
 n.º 2, 104° n.º 1 e 105° n.º 2 da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em 
 Perigo “a quem tiver a guarda de facto da criança ou do jovem”. 
 Ora, a sentença a quo de que se pretende apelar considerou provados os seguintes 
 factos: 
 
 - “28 — A menor vive actualmente com B. e C....” 
 
 - “30 —...a entrega da criança, o que aconteceu em 28 de Maio de 2002...”
 
 - “35 — Em Março de 2004 a Segurança Social requereu neste Tribunal a confiança 
 judicial da menor, com vista a futura adopção, ao casal composto por B. e C.”. 
 E, expressamente refere: 
 
 - “A menor encontra-se, de facto, à guarda de terceiras pessoas». (pág. 11) 
 
 - “Em termos económicos é o referido casal que oferece melhores condições à 
 menor, não se questionando também que o mesmo possua um enorme afecto por esta, 
 tratando-a como se sua filha fosse” (pág. 16). 
 
 - “Atenta a circunstância de a mesma ter estado desde os 3 meses a viver com o 
 casal a quem foi entregue”. (pág. 17) 
 
 - “... relativamente à pendência do processo de confiança judicial com vista a 
 futura adopção (...) os presentes autos demonstraram também, indirectamente, a 
 inexistência dos pressupostos de adoptabilidade ...“ 
 Dúvidas não restam, pois, que os recorrentes vêm exercendo a guarda de facto 
 sobre a menor, entendida como a relação que se estabelece entre a criança e a 
 pessoa que com ela vem assumindo, continuadamente (e exclusivamente) as funções 
 essenciais (e as demais) próprias de quem tem responsabilidades parentais (art. 
 
 5º al. b) da Lei 147/99 de 1 de Setembro), desde que a menor tinha 3 meses de 
 idade, e que, a sentença em causa, os prejudica directa e efectivamente. 
 Porém, o Meritíssimo Juiz a quo “indeferiu” o recurso interposto pelos 
 recorrentes, alegando a sua ilegitimidade, com base nos arts. 680º e 687° n.º 3 
 do Código de Processo Civil e condenou-os em custas no valor de 2 UC’s. 
 
 É pois patente que o recurso não foi admitido uma vez que, certamente por lapso, 
 o Tribunal a quo não atendeu ao disposto no art. 147°-A da Organização Tutelar 
 de Menores, que manda aplicar os princípios previstos na Lei de Protecção de 
 Crianças e Jovens em Perigo, entre os quais se encontra o da participação de 
 quem tiver a guarda de facto do menor, que inclui o direito de recurso. 
 Este normativo legal sobrepõe-se ao estatuído no Código de Processo Civil, pois 
 lex specialis derrogat lex generalis. 
 Aliás, a não admissão do recurso com fundamento nos art. 680° e 687° n.º 3 do 
 Código de Processo Civil é uma interpretação que implica a inconstitucionalidade 
 destas normas, por violação dos artigos 20°, 13° e 69° da Constituição da 
 República Portuguesa, concernentes ao direito de acesso aos Tribunais e ao 
 princípio da igualdade e ao dever de protecção da criança.
 Na realidade, está em causa impedir o direito de intervenção processual de quem 
 tem a guarda de facto do menor, negando de forma injustificada a possibilidade 
 de actuação ou expressão dos interesses que se pretenderam prosseguir com a 
 introdução do art. 147°-A da Organização Tutelar de Menores, pela Lei n.º 133/99 
 de 28 de Agosto. 
 Acresce que o art. 687° n.º 3 do Código de Processo Civil prevê o indeferimento 
 do requerimento de interposição do recurso, mas não define as situações 
 elencadas, não sendo fundamento bastante para motivar o indeferimento. 
 E, o art. 680º do Código de Processo Civil, que estabelece a regra geral sobre 
 
 “quem pode recorrer”, alarga a legitimidade para o recurso a terceiros que sejam 
 directa e efectivamente prejudicados pela decisão, através do n.º 2. Note-se 
 que, a título de exemplo, Lebre de Freitas indica “podem figurar-se os casos de 
 terceiros destinatários de uma decisão judicial que ordene a entrega de 
 documentos em seu poder” (Código de Processo Civil anotado, vol. 3, pág. 22). 
 Logo, terceiros com legitimidade para recorrer hão-de ser também os 
 destinatários de uma decisão judicial que ordena a entrega de uma menor sobre 
 quem têm a guarda de facto. 
 Então, a decisão sub judice é contra legem, tanto por violar o n.º 2 do art. 
 
 680° do Código de Processo Civil, quanto por ignorar o art. 147°-A da 
 Organização Tutelar de Menores. 
 Resulta portanto que os recorrentes têm legitimidade para interpor o recurso de 
 apelação. 
 Em face do exposto, forçoso é concluir que o recurso interposto terá de ser 
 admitido. 
 Concluindo: 
 Tendo o Meritíssimo Juiz a quo proferido despacho que indeferiu o requerimento 
 de interposição do recurso de apelação interposto da sentença proferida nos 
 autos, com fundamento em ilegitimidade dos recorrentes, é manifesto que ocorre 
 aqui lapso por não atender às normas dos arts. 680º nº 2 do Código de Processo 
 Civil e 4º al. i) da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo aplicável 
 ex vi do art. 147° A da Organização Tutelar de Menores e erro de interpretação e 
 aplicação dos arts. 680° n.º 1 e 687° n.º 3 do Código de Processo Civil. 
 Digne-se Vossa Excelência admitir a presente reclamação e não a ter por 
 impertinente ou dilatória e, em consequência, julgá-la procedente e ordenar o 
 recebimento do recurso interposto.
 
  
 Todavia, a reclamação foi indeferida por despacho do Presidente da Relação de 
 Coimbra, com o seguinte teor:
 
  
 No 2°. Juízo da Comarca de Torres Novas, a Digna Procuradora-Adjunta intentou 
 acção de Regulação do Exercício do Poder Paternal da menor A. contra seus pais 
 D. e E.. 
 Proferida a sentença que regulou o referido poder paternal, surgiram B. e mulher 
 C. pretendendo interpor recurso daquela sentença, recurso que não foi recebido 
 com o fundamento de aqueles cidadãos não serem titulares da relação 
 controvertida e, portanto, não terem legitimidade para o efeito. 
 Daí a presente reclamação dos mesmos cidadãos, pretendendo obter o recebimento 
 do recurso, alegando que a menor se encontra, de facto, à sua guarda, como se vê 
 da sentença, o que lhes confere legitimidade para o recurso nos termos da Lei de 
 Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, aplicável por força do art. 147-A da 
 OTM. De qualquer forma, consideram-se directa e efectivamente prejudicados pela 
 decisão, pelo que, mesmo não sendo partes na causa entendem ter legitimidade 
 para recorrer ao abrigo do disposto no art. 680º, nº. 2, do C. P. Civil. 
 O despacho foi sustentado. 
 Cumpre decidir: 
 Começando pelo segundo argumento invocado pelos reclamantes, há desde já que 
 salientar que a decisão que regula o exercício do poder paternal nunca pode 
 prejudicar “directa e efectivamente” terceiros, pois os únicos interesses 
 atendíveis na causa são os do menor. Tudo o mais é irrelevante. 
 Logo, não tem manifestamente aplicação o invocado artigo 680, n°. 2. 
 Como é claramente improcedente a invocação do disposto no art. 147-A, da OTM. 
 
 É certo que a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo reconhece às 
 pessoas que têm à sua guarda os menores o direito de certa intervenção nos 
 respectivos processos. 
 Só que, o art. 147-A ao dispor que “são aplicáveis aos processos tutelares 
 cíveis os princípios orientadores das intervenções previstas na lei de protecção 
 de crianças e jovens em perigo, com as devidas adaptações”, não está a regular a 
 intervenção das partes ou terceiros no processo, mas a intervenção do próprio 
 Tribunal. 
 Na verdade, o preceito não está a fazer mais do que a mandar aplicar, com as 
 necessárias adaptações, no âmbito da OTM, os “princípios orientadores de 
 intervenção” do Tribunal consagrados no artigo 4°. da Lei de Protecção, como se 
 vê claramente da própria epígrafe deste preceito, e não mais do que isso, cuja 
 alínea i) o Tribunal cumpriu ao ouvir os reclamantes na audiência. 
 Claudica, assim, a pretensão dos reclamantes de obter o recebimento do recurso. 
 Se eles entenderem que a menor está em perigo, poderão acautelar os seus 
 interesses, seus, naturalmente, da menor, e não dos próprios reclamantes, 
 através de algum dos procedimentos previstos naquela Lei, enquanto ela estiver à 
 sua guarda. 
 Agora o que não têm claramente é legitimidade para impugnar a sentença que 
 regulou o poder paternal. 
 Resta referir que nem sequer é equacionável a questão da tutela, constitucional 
 do direito ao recurso por quem não é parte no processo, não foi afectado pela 
 decisão em qualquer interesse seu legítimo e atendível, e nem sequer tentou, 
 antes dessa decisão, qualquer intervenção nos autos ou suscitou qualquer questão 
 em que tivesse sido vencido, como é o caso dos reclamantes. 
 Nestes termos, indefiro a reclamação. 
 Custas pelos reclamantes, em que se inclui o custo das certidões de fl.s 12 e 
 seguinte (já contada) e de fls. 46 e seguintes (a contar).
 
  
 Sempre inconformados, os reclamantes pretenderam recorrer deste despacho para o 
 Tribunal Constitucional, apresentando nos autos o seguinte requerimento:
 
  
 B. e sua mulher C., tendo sido notificados da decisão de 5 de Setembro de 2004, 
 que lhes nega a legitimidade para impugnar a sentença proferida no processo n.º 
 
 1.149/03.3TBTNV-B, 2° Juízo, do Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas, 
 dela pretendem recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do art. 70 n.º 
 
 1 al b) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro. 
 Com este recurso visa-se a apreciação da inconstitucionalidade dos arts. 680° e 
 
 687° do Código de Processo Civil, tal como interpretados e aplicados na decisão 
 em causa. 
 Em cumprimento do disposto no art. 75° al. b) n.º 2 da Lei do Tribunal 
 Constitucional, consignam que se consideram violados os arts, 13º, 20º e 69° da 
 Constituição da República Portuguesa, concernentes ao princípio da igualdade, ao 
 direito de acesso aos Tribunais e ao dever de protecção da criança, conforme 
 suscitado na Reclamação dirigida ao Venerando Presidente do Tribunal da Relação 
 de Coimbra. 
 Não pode deixar de referir-se desde já, a propósito do afirmado na decisão sub 
 judice “nem sequer é equacionável a questão da tutela constitucional do direito 
 ao recurso por quem não é parte no processo, não foi afectado pela decisão em 
 qualquer interesse seu legítimo e atendível e nem sequer tentou, antes dessa 
 decisão, qualquer intervenção nos autos ou suscitou qualquer questão em que 
 tivesse sido vencido, como é o caso dos reclamantes”, que os reclamantes tiveram 
 intervenção nos autos. 
 Nomeadamente, no início do processo, juntaram procuração passada a advogado e, 
 posteriormente, em 20.01.2004 foi junto substabelecimento pela mandatária. 
 Em 26.02.2004, foi a advogada notificada da data designada para a audiência de 
 discussão e julgamento. E, tendo estado presente em 07.05.2004, foi impedida 
 pelo Mmo. Juiz de ia instância de intervir. 
 Finalmente, cm 13.07.2004, foram os requerentes notificados da sentença. 
 Digne-se pois V. Exa. considerar interposto o recurso e ordenar os ulteriores 
 termos do processo.
 
  
 Também esta pretensão não foi atendida. Com efeito, o Presidente da Relação de 
 Coimbra, autor do despacho recorrido, decidiu:
 
  
 B. e mulher C. pretendem, ao abrigo do art. 70, n°. 1, al. b), da Lei 28/82, 
 recorrer para o Tribunal Constitucional da minha decisão de 15 de Setembro, 
 pretendendo ver declarada a inconstitucionalidade dos art.º 680º e 687º do 
 Código de Processo Civil nos termos em que foram aplicados naquela decisão.
 Ora, nessa mesma decisão escrevi:
 
 'Resta referir que nem sequer é equacionável a questão da tutela constitucional 
 do direito ao recurso por quem não é parte no processo, não foi afectado pela 
 decisão em qualquer interesse seu legítimo e atendível, e nem sequer tentou, 
 antes dessa decisão, qualquer intervenção nos autos ou suscitou qualquer questão 
 em que tivesse sido vencido, como é o caso dos reclamantes.'
 Procurando rebater esta afirmação, dizem estes que no início do processo 
 juntaram procuração a advogado e, depois, substabelecimento, tendo a advogada 
 sido notificada para o julgamento e da sentença; tendo estado presente nesse 
 julgamento, foi impedida de nele intervir pelo Senhor Juiz.
 Ora, a junção da procuração e notificações são absolutamente inócuas. Não 
 conferem nem retiram direitos.
 Relevante é o facto de os reclamantes terem sido impedidos de intervir no 
 julgamento, sem que a isso tivessem reagido. Dessa forma, tornou-se definitiva, 
 porque transitou, a decisão que lhes negou legitimidade para intervir no 
 processo.
 Assim sendo, por falta de legitimidade já declarada definitivamente e por 
 manifesta improcedência, em obediência ao disposto no art. 76, n°. 2, da citada 
 Lei 28/82, não recebo o recurso.
 Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 5 Ucs.
 
  
 Reclamaram então os mesmos interessados para o Tribunal Constitucional, que, por 
 acórdão de 19 de Janeiro de 2005 decidiu:
 
  
 Em causa está, pois, saber se o recurso que os recorrentes pretendem interpor 
 para o Tribunal Constitucional deve ou não ser recebido. Não foi recebido no 
 Tribunal recorrido, recorde-se, por ter sido recusada aos recorrentes 
 legitimidade para este efeito, para além de se haver julgado manifestamente 
 improcedente o recurso interposto.
 O recurso de inconstitucionalidade previsto na alínea b) do n. 1 do artigo 70º 
 da LTC, como o presente, exige, entre outros, a verificação dos requisitos que 
 constam do artigo 72º da mesma LTC; pode recorrer quem tenha essa faculdade face 
 
 à lei processual no domínio da qual foi proferida a decisão recorrida. Na 
 verdade, aos recorrentes foi negada a faculdade de impugnarem, perante um 
 tribunal superior, a sentença que decidiu a matéria em causa, visto que lhes não 
 foi reconhecida, face a uma determinada interpretação dos artigos 680º e 687º n. 
 
 3 do Código de Processo Civil, legitimidade processual bastante. Isto é, o 
 Tribunal comum entendeu que uma determinada norma, constante dos artigos 680º e 
 
 687º n. 3 do Código de Processo Civil, proíbe aos recorrentes a faculdade de 
 recorrer da sentença proferida. Acontece que os recorrentes acusam de 
 inconstitucional precisamente essa norma. Então, se forem impedidos de impugnar 
 perante o Tribunal Constitucional a decisão que, aplicando a norma que acusam de 
 inconstitucional, lhes retira a faculdade de intervir no processo, fechar-se-ia 
 um círculo que de forma absoluta os impediria não só de intervir no processo – 
 impugnando a decisão jurisdicional tomada –, como ainda de contestar a 
 conformidade constitucional da norma por força da qual lhes é recusada aquela 
 possibilidade. O que, como é bom de ver, é inadmissível. 
 Na verdade, destinando-se o recurso de inconstitucionalidade previsto na alínea 
 b) do n. 1 do artigo 70º da LTC a sindicar decisões que “apliquem norma cuja 
 inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”, deve ter-se por 
 assente que – observados os restantes requisitos deste tipo de recurso – pode 
 usar este mecanismo todo aquele que é vencido quanto à questão de 
 inconstitucionalidade na decisão recorrida, incluindo o interessado a quem foi, 
 por via daquela decisão, negado o direito de intervir na lide. 
 No domínio da legitimidade para recorrer exige-se ainda que o recurso só possa 
 ser interposto por quem haja suscitado a questão da inconstitucionalidade, de 
 modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão 
 recorrida. Pretende-se, através deste requisito, que a questão haja sido 
 oportunamente colocada ao tribunal recorrido por forma a que este a deva 
 conhecer e, ainda, que a suscitação da questão tenha sido feita pela parte ou 
 interveniente processual que se apresenta a recorrer. Os reclamantes visam 
 questionar a norma, retirada dos artigos 680º e 687º n. 3 do Código de Processo 
 Civil, segundo a qual aquele que exerce a guarda de facto sobre uma criança não 
 tem legitimidade para recorrer no âmbito de um processo de regulação do poder 
 paternal do menor. 
 Esta questão foi suscitada pelos recorrentes na reclamação que apresentaram ao 
 Presidente da Relação de Coimbra, quando invocaram que uma tal interpretação 
 normativa determinava a violação dos artigos 13º, 20º e 69º da Constituição, e 
 foi conhecida e decidida no despacho de que pretendem recorrer. 
 Há ainda que reconhecer que a norma questionada foi efectivamente aplicada, como 
 sua ratio decidendi, na decisão recorrida.
 Estão assim verificados os requisitos formais que condicionam a admissibilidade 
 do recurso.
 Resta dizer que, ao contrário do que se afirma no despacho reclamado, não poderá 
 adiantar-se um julgamento de manifesta improcedência da suscitada questão de 
 inconstitucionalidade, pelo menos, como diz o Ministério Público, “numa análise 
 puramente liminar e perfunctória”, como é aquela que, neste momento processual, 
 deve ocorrer.
 Assim, decide-se deferir a reclamação, determinando o recebimento do recurso 
 interposto pelos reclamantes.
 
  
 O recurso foi então admitido, com subida imediata e efeito suspensivo, por 
 despacho do Presidente da Relação de Coimbra.
 
  
 No Tribunal Constitucional todos os interessados apresentaram alegações.
 
  
 Os recorrentes concluíram a sua alegação dizendo:
 
  
 
 1.            O presente recurso é interposto do douto Despacho do Exmo. Senhor 
 Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra de 15 de 
 Setembro de 2004, que decidiu a reclamação apresentada pelos ora recorrentes, ao 
 abrigo dos arts. 680º e 687º do Código de Processo civil, negando-lhes 
 legitimidade para recorrer. 
 
 2.            Desta decisão não cabe recurso ordinário, conforme disposto no 
 art. 689º n.º 2 do Código de Processo Civil, cumprindo-se assim o pressuposto do 
 art. 70º n.ºs 2 e 3 da Lei n.º 28/82, que torna admissível o recurso para este 
 Venerando Tribunal Constitucional. 
 
 3.            O recurso é interposto ao abrigo da al. b) do art. 70º n.º 1 da 
 mesma Lei. 
 
 4.            As normas cuja constitucionalidade se pretende que o Venerando 
 Tribunal Constitucional aprecie são as dos arts. 680º e 687º n.º 3 do Código de 
 Processo Civil, na interpretação restritiva que lhes foi dada pela decisão 
 recorrida, mantendo o sentido atribuído pela reclamada decisão da 1ª instância. 
 
 5.            Esta interpretação restritiva nega legitimidade para recorrer da 
 sentença que regula o exercício do poder paternal a quem detém a guarda de facto 
 da menor, desde que esta tinha 3 meses de idade, e com quem a menor estabeleceu 
 relação de filiação, como é o caso dos recorrentes. 
 
 6.            As normas ou princípios constitucionais considerados violados 
 foram o princípio da igualdade, o direito de acesso à Justiça e a uma tutela 
 judicial efectiva e o dever de protecção da infância, consagrados nos art. 13º 
 
 20º e 69º da Constituição da República Portuguesa, respectivamente. 
 
 7.            A peça processual em que os recorrentes oportunamente suscitaram a 
 questão da inconstitucionalidade foi a da já referida reclamação, apresentada ao 
 abrigo do art. 688º do Código de Processo Civil. 
 
 8.            A questão processual suscitada está na sede da legitimidade, 
 existindo esta se a interpretação feita pela decisão recorrida for considerada 
 inconstitucional, como se sustenta. 
 
 9.            O n.º 2 do art. 680º do Código de Processo Civil, interpretado em 
 conformidade com os preceitos constitucionais, confere legitimidade a quem 
 detenha a guarda de facto da menor, para recorrer de decisões que regulem o 
 exercício do poder paternal sobre a mesma. 
 
 10.          O Tribunal recorrido fez uma interpretação restritiva dos arts. 
 
 680º e 687º do Código de Processo Civil, denegando legitimidade para recorrer a 
 quem não é parte no processo. 
 
 11.          O art. 20º da Constituição da República Portuguesa assegura 'a 
 todos o acesso ao direito e aos Tribunais para defesa dos seus direitos e 
 interesses legalmente protegidos'. Daí que seja inconstitucional a interpretação 
 restritiva que nega o direito de recurso aos recorrentes, quanto a uma decisão 
 que directa e gravemente os afecta, impossibilitando-os de assegurar os direitos 
 da menor de quem têm a guarda de facto a um desenvolvimento físico, moral e 
 psíquico harmonioso, num ambiente familiar afectivo, educativo e responsável sem 
 descontinuidades graves, e a acautelar o interesse da menor quanto à manutenção 
 do convívio familiar (filial) que estabeleceu com os recorrentes. 
 
 12.          Deste modo, o presente recurso tem por fundamento que tal 
 interpretação restritiva é inconstitucional, por violação do art. 69º da 
 Constituição da República Portuguesa, uma vez que, tendo os recorrentes a guarda 
 de facto da menor, e exercendo na prática todos os poderes-deveres 
 característicos do poder paternal, deve ser-lhes reconhecida a faculdade de 
 recorrerem contenciosamente de todas e quaisquer decisões judiciais que afectem 
 a menor, com vista ao seu desenvolvimento integral e à protecção contra o 
 abandono. 
 
 13.          A interpretação em crise viola também o princípio da igualdade 
 previsto no art. 13º da Constituição da República Portuguesa, uma vez que sem 
 qualquer motivo ponderável, nega o direito de recurso a quem de facto exerce o 
 poder paternal e detém a guarda de facto da menor. 
 
 14.          Aos recorrentes que detêm a guarda de facto da menor e a 
 representam, há-de ser reconhecido o direito de recurso de uma sentença que faz 
 prevalecer os direitos dos progenitores sobre os direitos da criança, em 
 violação da Convenção dos Direitos da Criança que vigora no Direito Português 
 desde a sua ratificação em 21 de Outubro de 1990.
 
 15.          Com base no exposto, os recorrentes recorreram da decisão do 
 Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas que atribuiu o poder paternal ao 
 progenitor/requerido. 
 
 16.          O Tribunal pronunciou-se e depois o Exmo. Senhor Presidente do 
 Tribunal da Relação de Coimbra confirmou a decisão da 1ª Instância, no sentido 
 da ilegitimidade dos Recorrentes, com base no argumento de estes não serem 
 partes no processo, defendendo a tese de que os arts. 680º e 687º do Código de 
 Processo Civil circunscrevem a quem seja parte no processo a legitimidade para 
 recorrer. 
 
 17.          Tal interpretação restritiva é violadora dos arts. 13º, 20º e 69º 
 da Constituição da República Portuguesa, conforme supra desenvolvido. 
 
 18.          O recurso não é manifestamente infundado, uma vez que se pretendem 
 assegurar os direitos da menor que está à guarda de factos dos recorrentes, 
 impedindo que lhe sejam causados danos graves e irreversíveis. 
 
 19.          Em face do exposto, deve ser declarado por este Venerando Tribunal 
 Constitucional que a interpretação conferida pelo Tribunal a quo a estas normas, 
 torna-as inconstitucionais, só deixando de o ser se interpretadas com o sentido 
 de os recorrentes, na situação jurídica de detentores da guarda de facto da 
 menor, com confiança administrativa pelo Centro Distrital de Solidariedade e 
 Segurança Social de Santarém e estando pendente o processo de confiança judicial 
 da menor aos recorrentes, instaurado por aquele órgão da Segurança Social, têm 
 legitimidade para recorrer da decisão que atribui o exercício do poder paternal 
 a terceiro. 
 Termos em que, 
 devem as normas constantes dos artigos 680º e 687º n.º 3 do Código de Processo 
 Civil (Decreto Lei n.º l80/96. de 25 de Setembro) interpretadas no sentido de 
 denegar legitimidade para recorrer a quem exerce a guarda de facto sobre uma 
 criança, no âmbito de um processo de regulação do poder paternal, apesar de 
 terem manifestado interesse em intervir espontaneamente na causa, ser julgadas 
 inconstitucionais, por violação das disposições conjugadas dos artigos 20º n.º 
 
 1, 13º e 69º da Constituição da República Portuguesa. E, consequentemente, 
 ordenar-se a reformulação da decisão a quo, em conformidade com o juízo de 
 inconstitucionalidade.
 
  
 Por seu lado, a recorrida E. concluiu:
 
  
 A) Vêm os recorrentes peticionar que o Venerando Tribunal Constitucional se 
 pronuncie pela inconstitucionalidade da interpretação restritiva dos artigos 
 
 680° e 687°, n.º 3 do Código de Processo Civil feita no sentido em que denegam 
 legitimidade para recorrer a quem exerce a guarda de facto sobre uma criança, no 
 
 âmbito de um processo de regulação do poder paternal, apesar de terem 
 manifestado interesse em intervir espontaneamente na causa, viola assim os 
 artigos 13°,20° e 69° da Constituição da República Portuguesa. 
 B) Com o devido respeito, entendemos não assistir razão à pretensão dos 
 recorrentes. 
 C) Nos termos do artigo 680°, n.º 1 do CPC o direito de recorrer é atribuído 
 apenas e em princípio a quem for parte principal na causa, e a título 
 excepcional é reconhecido também às pessoas directa e efectivamente prejudicadas 
 pela decisão, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes 
 acessórias. 
 D) Ora, conforme foi expendido pelo Exmo. Presidente do Tribunal da Relação de 
 Coimbra, os aqui Recorrentes não são parte na causa, não foram afectados pela 
 decisão em qualquer interesse seu legítimo e atendível, e nem sequer tentaram 
 antes dessa decisão qualquer intervenção nos autos ou suscitaram qualquer 
 questão em que tivessem sido vencidos, 
 E) Efectivamente os aqui recorrentes não foram parte na causa, 
 F) Acresce que, o n.°2 do artigo 680° do CPC apenas prevê a hipótese de poderem 
 recorrer da decisão as pessoas que não sejam parte na causa mas que foram 
 directa e efectivamente prejudicadas pela decisão, 
 G) O referido prejuízo para poder classificar-se de directo e imediato, tem de 
 resultar da própria decisão e de ser actual e positivo, no sentido de impor 
 responsabilidades ou implicar a imediata afectação de direitos ou interesses 
 juridicamente tutelados, isto é tem de ser real e jurídico. 
 H) Em nosso entendimento os recorrentes não poderão considerar-se prejudicados 
 pela decisão, 
 I) Na douta sentença foram dados como provados factos que interessam para a 
 decisão do presente recurso, designadamente: 
 
 - que em Março de 2004 a Segurança Social requereu no Tribunal a confiança 
 judicial da menor com vista a futura adopção ao casal composto B. e C., 
 
 - e que tal processo se encontra suspenso a aguardar a decisão a proferir nos 
 autos de regulação do poder paternal, 
 J) Acresce que, consta também da douta sentença, que ambos os progenitores 
 desejam assumir o exercício do poder paternal, 
 L) E que a factualidade provada não permite concluir pela existência de qualquer 
 causa justificativa de inibição ou limitação ao exercício do poder paternal 
 relativamente aos progenitores, 
 M) Efectivamente, só excepcionalmente e perante situações sérias devidamente 
 comprovadas é que o Tribunal não deve entregar a menor aos pais mas a terceira 
 pessoa. 
 N) Tendo em conta a factualidade assente na douta sentença e que conduziu a que 
 a menor ficasse confiada à guarda do pai, e com o devido respeito, não 
 vislumbramos que possa considerar-se que os aqui recorrentes têm legitimidade 
 para interpor recurso no âmbito de um processo de regulação de poder paternal, 
 por alegadamente exercerem a guarda de facto sobre uma criança, 
 P) Entendem os recorrentes que os referidos normativos, na interpretação feita, 
 são inconstitucionais, dado serem detentores da guarda de facto da menor com 
 confiança administrativa pelo Centro Distrital de Solidariedade e Segurança 
 Social de Santarém, estando pendente o processo de confiança judicial da menor 
 aos recorrentes, 
 O) Acontece que, tendo sido proferida decisão nos autos de regulação do poder 
 paternal e proferido despacho a ordenar a entrega da menor ao pai, 
 P) Não detêm os recorrentes nenhum especial poder de guarda sobre a menor, nem 
 se vislumbra que o mesmo lhes possa ser reconhecido, 
 Q) Ora, os recorrentes não podem considerar-se como directa ou efectivamente 
 prejudicados pela sentença que regulou o poder paternal, desde logo porque não 
 são titulares, por não lhes ter sido conferido, qualquer direito efectivo no que 
 concerne ao exercício do poder paternal relativamente à menor, 
 R) Por todo o exposto deve manter-se na íntegra o douto despacho recorrido, 
 S) O qual não violou qualquer normativo legal. 
 Com o que, e mui douto suprimento de Vossas Excelências se fará 
 JUSTIÇA!
 
  
 O recorrido D. diz, a concluir:
 
  
 A - Não está ferida de inconstitucionalidade a decisão que interpreta os art°s 
 
 680° n.º 2 e 687° n° 3 do C.P.C. no sentido e interpretação dadas de negar 
 legitimidade para recorrer da sentença que regulou o exercício do poder paternal 
 a quem detêm consigo a menor, e vem exercendo funções próprias dos pais contra a 
 vontade destes e à margem de qualquer decisão administrativa ou judicial que 
 lhes a haja confiado. 
 B- Tal sentença, acautelando o superior interesse da menor, não prejudica 
 qualquer interesse jurídico legalmente protegido dos recorrentes, nem viola os 
 art°s 20º, n.º 1, 13° e 69º da Constituição da República Portuguesa. 
 Termos em que, 
 Deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
 
  
 Finalmente, o representante do Ministério Público neste Tribunal apresentou 
 alegação em que conclui:
 
  
 
 1º - É inconstitucional, por violação do direito de acesso aos tribunais, 
 conjugado com o princípio da protecção da infância, afirmado pelo artigo 69º da 
 Constituição, a interpretação normativa do nº 2 do artigo 680º do Código de 
 Processo Civil, que denega legitimidade para recorrer aos detentores da “guarda 
 de facto” de certa menor, exercida a solicitação e com o expresso consentimento 
 da mãe biológica, relativamente à decisão que, no âmbito da acção de regulação 
 do poder paternal entre os progenitores biológicos, decidiu – sem que fosse 
 admitida qualquer intervenção dos primeiros – atribuir o poder paternal ao pai 
 biológico, implicando o decidido a abrupta e radical separação do núcleo 
 familiar em que, praticamente desde o nascimento, a menor se integrara.
 
 2º - Na verdade, tal interpretação – num caso em que foi determinada a suspensão 
 da instância, por prejudicialidade, do processo da confiança judicial, com vista 
 
 à adopção pelos detentores da referida “guarda de facto” da menor – priva em 
 absoluto estes de qualquer oportunidade para expressarem no processo a sua 
 valoração de qual seja a melhor forma de alcançar o interesse da criança e, por 
 essa via, influenciar a decisão que – tendo como matriz essencial o superior 
 interesse da criança – irá regular o destino desta, determinando em que núcleo 
 familiar se terá de integrar.
 
 3º - Termos em que deverá proceder o presente recurso.
 
  
 
  
 
 2.            Importa decidir.
 
  
 
 2.1.        Deve começar-se por precisar o âmbito do presente recurso. 
 No requerimento de interposição do recurso sustentam os recorrentes que visam 
 obter a apreciação da conformidade constitucional dos artigos 680° e 687° n.º 3 
 do Código de Processo Civil enquanto negam legitimidade para recorrer, no âmbito 
 de um processo de regulação do exercício do poder paternal, a quem tem a guarda 
 de facto de uma criança, norma que seria violadora dos princípios da igualdade, 
 do direito de acesso aos Tribunais e do dever de protecção da criança, 
 constantes dos artigos 13°, 20° e 69° da Constituição da República.
 
  
 A competência do Tribunal Constitucional cifra-se na verificação da conformidade 
 constitucional das normas efectivamente aplicadas nas decisões dos outros 
 tribunais, não lhe cabendo averiguar se tais decisões interpretaram 
 correctamente as normas impugnadas. 
 
  
 Em causa está o despacho do Presidente da Relação de Coimbra que, indeferindo a 
 reclamação formulada pelos recorrentes contra o despacho de não admissão de 
 recurso que pretendiam interpor da sentença do tribunal de Torres Novas, 
 confirmou esse despacho, essencialmente com a seguinte fundamentação: 
 
  
 
 '[...] a decisão que regula o exercício do poder paternal nunca pode prejudicar 
 
 “directa e efectivamente” terceiros, pois os únicos interesses atendíveis na 
 causa são os do menor. Tudo o mais é irrelevante. Logo, não tem manifestamente 
 aplicação o invocado artigo 680 n.º 2. (...)
 Se eles [recorrentes] entenderem que a menor está em perigo, poderão acautelar 
 os seus interesses, seus, naturalmente, da menor e não dos próprios reclamantes, 
 através de algum dos procedimentos previstos naquela Lei, enquanto ela estiver à 
 sua guarda. 
 Agora o que não têm claramente é legitimidade para impugnar a sentença que 
 regulou o poder paternal. 
 Resta referir que nem sequer é equacionável a questão da tutela constitucional 
 do direito ao recurso por quem não é parte no processo, não foi afectado pela 
 decisão em qualquer interesse seu legítimo e atendível, e nem sequer tentou, 
 antes dessa decisão, qualquer intervenção nos autos ou suscitou qualquer questão 
 em que tivesse sido vencido, como é o caso dos reclamantes.'
 
  
 O despacho indeferiu, assim, a reclamação formulada pelos recorrentes e manteve 
 a decisão tomada pelo tribunal de Torres Novas de não os admitir a recorrer da 
 sentença que culminou o processo de regulação de poder paternal.
 
 É, no entanto, manifesto que a Relação indeferiu a pretensão dos recorrentes com 
 base no n.º 2 do artigo 680º do Código de Processo Civil, no entendimento de que 
 a decisão que regula o exercício do poder paternal nunca pode prejudicar directa 
 e efectivamente terceiros, pois os únicos interesses atendíveis na causa são os 
 da menor.
 
  
 Haverá, por isso, que reduzir o âmbito do recurso à norma contida no n.º 2 do 
 artigo 680º do Código de Processo Civil, preceito que, subordinado à epígrafe 
 
 'Quem pode recorrer', tem a seguinte redacção:
 
  
 
 1.        Os recursos, exceptuada a oposição de terceiro, só podem ser 
 interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido.
 
 2.        Mas as pessoas directa e efectivamente prejudicadas pela decisão podem 
 recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes 
 acessórias.   
 
  
 
  
 
 2.2.        O questionado despacho do Presidente da Relação de Coimbra, que 
 confirmou o despacho de não admissão de recurso proferido no tribunal  de Torres 
 Novas, foi proferido no âmbito de uma acção de regulação do exercício do poder 
 paternal. 
 Tais processos, fundamentalmente regulados pela OTM no âmbito dos processos 
 tutelares cíveis (Título II da Lei respectiva) são, desde a versão originária da 
 mesma, expressamente qualificados como processos de jurisdição voluntária 
 
 (artigo 150º). Isto implica, desde logo, que se apliquem as regras constantes 
 dos artigos 1409º e seguintes do Código de Processo Civil, regras que ampliam o 
 poder de cognição do tribunal em matéria de facto e no domínio da prova (artigo 
 
 1409º, n.º 2), atribuem ao juiz o poder de julgar segundo critérios de 
 conveniência e oportunidade (artigo 1410º) e permitem alterar as medidas 
 decretadas quando as circunstâncias o justifiquem, sem que a força de caso 
 julgado própria das decisões judiciais o impeça (artigo 1411º n.º 1, sempre do 
 Código de Processo Civil).
 Essas regras, diferentes em aspectos fundamentais das que vigoram para a 
 jurisdição contenciosa, explicam-se por visarem disciplinar processos em que a 
 lei confere ao tribunal  o poder de prosseguir da maneira mais adequada 
 
 (discricionariamente, neste sentido) um determinado interesse, como se de uma 
 actividade materialmente administrativa (e só orgânica ou formalmente 
 jurisdicional) se tratasse. 
 Como explicam A. Varela, J. M. Bezerra e S. Nora (Manual de Processo Civil, 2ª 
 ed., Coimbra, 1985):
 
  
 Entre os processos especiais previstos na legislação vigente, contam-se os 
 processos de jurisdição voluntária (artigos 1409º e seguintes).
 Nos processos de jurisdição contenciosa, que constituem a regra, há um conflito 
 de interesses entre as partes (credor e devedor; proprietário e possuidor; 
 locador e locatário; etc.) que ao tribunal incumbe dirimir, de acordo com os 
 critérios estabelecidos no direito substantivo. Nos processos de jurisdição 
 voluntária há um interesse fundamental tutelado pelo direito (acerca do qual 
 podem formar-se posições divergentes), que ao juiz cumpre regular nos termos 
 mais convenientes.
 
 [...] Nos processos de jurisdição voluntária (...), a função exercida pelo juiz 
 não é tanto de intérprete e aplicante da lei, como de verdadeiro gestor de 
 negócios – negócios que a lei coloca sob a fiscalização do Estado através do 
 poder judicial.'
 
  
 O tribunal  é, assim, colocado perante a necessidade de adoptar as medidas mais 
 adequadas à prossecução do interesse que lhe cabe acautelar; neste sentido, não 
 se espera que adopte a posição exigida no comum dos processos, valorando de 
 igual forma os interesses de que as partes são portadoras.
 Na verdade, por muito que exista controvérsia no âmbito da jurisdição 
 voluntária, acima do interesse de cada um dos envolvidos nessa controvérsia está 
 aquele que justifica a inclusão do processo no âmbito da jurisdição voluntária. 
 Como diz Castro Mendes (Direito Processual Civil, AAFDL, 1980. p.79),
 
  
 II. A jurisdição voluntária resulta do facto de um ou mais interesses 
 particulares se poderem encontrar em situações anómalas que, sem serem de 
 litígio, justificam que a prossecução dos mesmos interesses seja condicionada 
 pela intervenção de uma entidade, ela em si desinteressada. Para fazer as vezes 
 de tal entidade, recorre a ordem jurídica aos tribunais 
 Assim, a distinção entre jurisdição contenciosa e voluntária assenta neste 
 ponto: a jurisdição contenciosa tem por fim a justa composição de litígios; a 
 graciosa tem por fim a regulamentação de situações anómalas de interesses mas 
 que não são litígios. 
 III. Antigamente, era muito comum a distinção entre os dois tipos de jurisdição 
 ser feita da seguinte forma: a contenciosa desenrolar-se-ia entre pessoas que 
 não estão de acordo, “inter nolentes” ou “inter invitos”; a graciosa, entre 
 pessoas que estão de acordo, “inter volentes”. Assim, o art. 1 § 1º, do mais 
 antigo Código de Processo Civil, de 1876, define: “O processo é contencioso 
 quando mantém os direitos que são contestados; gracioso, quando regula os actos 
 jurídicos sem contestação de parte” 
 Ora, não é a verificação ou não verificação de controvérsia (conflito de 
 opiniões), nem sequer a sua possibilidade ou impossibilidade, que caracteriza os 
 dois tipos de jurisdição e processo. Pode não haver controvérsia em processo 
 contencioso, se o réu não contestar ou até confessar logo o pedido; pode nem a 
 poder haver, em certos casos excepcionais (artigo 3º, n.º 2 e, por exemplo, art. 
 
 394º); pelo contrário, pode haver controvérsia em processo gracioso. Assim, por 
 exemplo, se o marido quiser pedir ao tribunal suprimento do consentimento da 
 mulher para vender um bem imóvel (arts. 1682º-A, nº 1 e 1684º, nº 3 do Código 
 Civil), intenta um processo de jurisdição voluntária (arts. l425º e segs.) que a 
 mulher pode contestar (art. 1425º, nºs. 1 e 2); e a possibilidade de contestação 
 verifica-se em muitos outros processos deste tipo. 
 Nas providências relativas aos filhos, pode haver falta de acordo ou 
 controvérsia; o juiz resolve “de harmonia com os interesses do menor” (art: 180º 
 da Organização Tutelar de Menores) e só dele.
 A distinção resulta, não da existência ou não existência de controvérsia, mas da 
 existência ou não existência de litígio. Os processos de jurisdição voluntária — 
 e isso os caracteriza — não têm por objecto uma situação anómala de interesses, 
 diferente de um litígio.
 
  
 No caso da regulação do exercício do poder paternal, é, naturalmente, o 
 interesse do menor afectado que deve ser prosseguido pelo tribunal; o interesse 
 de qualquer outra pessoa afectada (seja de qualquer dos pais, seja de outra 
 pessoa relacionada com a controvérsia) é sempre colocado em segundo plano.
 Só que o interesse prosseguido com o processo de regulação do poder paternal não 
 pode, naturalmente, ser utilizado para definir quem tem legitimidade processual, 
 seja para intervir num processo tutelar cível como este, seja para recorrer da 
 decisão que nele venha a ser proferida, quer tenha, quer não tenha, sido parte 
 em primeira instância. 
 
  
 
 2.3.        Observada a questão pelo prisma deste interesse de natureza 
 processual, importará – então – saber se é conforme à Constituição a regra 
 extraída do n.º 2 do artigo 680º do Código de Processo Civil, segundo a qual 
 aquele que exerce a guarda de facto de uma criança não tem legitimidade para 
 recorrer no âmbito de um processo de regulação do exercício do poder paternal do 
 menor.
 Ora, no julgamento desta questão, é inevitável fazer apelo ao parâmetro 
 constitucional que garante a tutela jurisdicional efectiva, constante do n.º 1 
 do artigo 20º da Constituição, o qual assegura 'a todos' o acesso ao direito e 
 aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
 O Tribunal Constitucional tem interpretado esta garantia no sentido da proibição 
 de regimes adjectivos que em absoluto retirem a uma das partes o seu direito de 
 defesa. Conforme se diz no Acórdão 440/94, in DR, II Série, de 1 de Setembro de 
 
 1994:
 
  
 Ora, como assinalam Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit. [Constituição da 
 República Portuguesa Anotada], pp. 163 e 164, no âmbito normativo daquele 
 preceito constitucional deve integrar-se ainda 'a proibição da 'indefesa' que 
 consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os 
 
 órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito. 
 A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista de 
 limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não 
 observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta 
 a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí 
 resultando prejuízos efectivos para os seus interesses'.
 
        Entendimento similar tem vindo a ser definido pela jurisprudência do 
 Tribunal Constitucional, caracterizando o acórdão nº 86/88, Diário da 
 República, II série, de 22 de Agosto de 1988, o direito de acesso aos tribunais 
 como sendo 'entre o mais um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que 
 se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de 
 imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto 
 funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes 
 poder `deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, 
 controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de 
 umas e outras' (cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 
 cit., p. 364)'.
 
  
 
                  
 O despacho recorrido interpretou o n.º 2 do artigo 680º do Código de Processo 
 Civil no sentido de que, não sendo o interesse dos recorrentes que está em causa 
 no processo de regulação do poder paternal, mas o da menor que lhes foi entregue 
 pela mãe, não se pode considerar que sejam 'directa e efectivamente' 
 prejudicados pela decisão de regulação do poder paternal entre os pais 
 biológicos.
 Ora, não obstante a particular feição que a causa em concreto tomou, a decisão 
 proferida tem como objectivo a entrega da menor ao pai, retirando-a aos 
 recorrentes, sem que, aliás, se lhes tenha conferido qualquer direito de 
 convívio com a menor, ainda que condicional e hipotético. Ora, impedir, nesta 
 hipótese, o direito de intervenção processual dos recorrentes que pretendem ter 
 essa intervenção, significaria negar de forma absoluta a possibilidade de estes 
 expressarem o seu interesse, defendendo-o no processo em igualdade de 
 circunstâncias dos outros intervenientes processuais. Acresce que, como salienta 
 o Ministério Público nas alegações apresentadas no Tribunal Constitucional, foi 
 suspensa a instância no processo de confiança judicial da menor, iniciado com 
 vista à adopção da criança pelos ora recorrentes, por se considerar que o 
 processo de regulação do poder paternal era prejudicial. 
 Ficaria, portanto, violado de forma inaceitável, do ponto de vista 
 constitucional, o direito de acesso à tutela jurisdicional efectiva, consagrado 
 no n.º 1 do artigo 20º da Constituição, se, nestas circunstâncias, lhes não for 
 permitido intervir no processo para impugnar a decisão que ordenou a entrega da 
 menor ao pai, retirando-a aos recorrentes.
 Tanto é o suficiente para poder já concluir pela inconstitucionalidade da norma 
 impugnada.
 
  
 
 3.            Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide:
 a)        julgar inconstitucional, por violação do n.º 1 do artigo 20º da 
 Constituição, a norma constante do n.º 2 do artigo 680º do Código de Processo 
 Civil, segundo a qual aquele que tem a guarda de facto de uma criança não tem 
 legitimidade para recorrer no âmbito de um processo de regulação do exercício do 
 poder paternal do menor. 
 b)        consequentemente, conceder provimento ao recurso, determinando a 
 reformulação da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de 
 inconstitucionalidade.
 
  
 Lisboa, 30 de Janeiro de 2007
 Carlos Pamplona de Oliveira
 Maria João Antunes
 Maria Helena Brito
 Rui Moura Ramos
 Artur Maurício