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Processo nº 924/2006
 Plenário
 Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
 
  
 
  
 Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional:
 
  
 
  
 I
 O pedido e a apresentação do problema
 
  
 
 1.  O Presidente da República, nos termos do artigo 115º, nº 8, da Constituição 
 e dos artigos 26º e 29º, nº 1, da Lei nº 15‑A/98, de 3 de Abril, requereu a 
 fiscalização preventiva da constitucionalidade e da legalidade da proposta de 
 referendo aprovada pela Resolução nº 54‑A/2006 da Assembleia da República 
 
 (publicada no Diário da República, I Série, de 20 de Outubro de 2006).
 A resolução em causa tem o seguinte teor:
 Propõe a realização de um referendo sobre 
 a interrupção voluntária da gravidez realizada por opção da mulher nas primeiras 
 
 10 semanas
 A Assembleia da República resolve, nos termos e para os efeitos do artigo 115º e 
 da alínea j) do artigo 161º da Constituição da República Portuguesa, apresentar 
 a S. Ex.a o Presidente da República a proposta de realização de um referendo em 
 que os cidadãos eleitores recenseados no território nacional sejam chamados a 
 pronunciar-se sobre a pergunta seguinte:
 
 “Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se 
 realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de 
 saúde legalmente autorizado?”
 Aprovada em 19 de Outubro de 2006.
 O Presidente da Assembleia da República, Jaime Gama.
 
  
 
 2.  A Resolução nº 54‑A/2006 corresponde ao Projecto de Resolução apresentado 
 por Deputados do Partido Socialista, em 20 de Setembro de 2006, invocando “o 
 compromisso de suscitar um novo referendo sobre a despenalização da interrupção 
 voluntária da gravidez, nos termos anteriormente submetidos ao voto popular”.
 Nesta mesma sessão legislativa, foram apresentados três projectos de lei 
 relativos a matéria de despenalização relativa da interrupção voluntária da 
 gravidez: os Projectos de Lei nº 308/X, do Partido Comunista Português, nº 
 
 309/X, do Partido Os Verdes (Diário da Assembleia da República, II Série‑A, de 
 
 21 de Setembro de 2006); e o Projecto de Lei nº 317/X, do Bloco de Esquerda 
 
 (Diário da Assembleia da República, II Série‑A, de 6 de Outubro de 2006).
 Todos estes projectos prevêem a despenalização da interrupção voluntária da 
 gravidez até um certo prazo, quando praticada por solicitação de mulher grávida.
 Assim, diz‑se no projecto do Partido Comunista Português:
 
  
 Artigo 1º
 
 (Interrupção da gravidez não punível)
 
  
 O artigo 142.º do Código Penal passa a ter a seguinte redacção:
 
  
 
 «Artigo 142.º
 
 (...)
 
 1 – Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua 
 direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, 
 quando realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez a pedido da mulher para 
 preservação do direito à maternidade consciente e responsável.
 
 2 – De igual modo, não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico 
 ou sob a sua direcção em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente 
 reconhecido, com o consentimento da mulher quando, segundo o estado dos 
 conhecimentos e da experiência da medicina:
 a)   (actual alínea a) do n.º 1 do artigo 142.º)
 b)  Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e irreversível 
 lesão para o corpo ou para a saúde física e psíquica da mulher e for realizada 
 nas primeiras 16 semanas de gravidez;
 c)   (actual alínea c) do n.º 1 do artigo 142.º, com a redacção que lhe foi dada 
 pela Lei n.º 90/97, de 30 de Julho)
 d)   Houver seguros motivos que indiciem risco de que o nascituro venha a 
 sofrer, de forma incurável, de HIV (síndroma de imunodeficiência adquirida) e 
 for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, comprovadas nos termos 
 referidos na alínea anterior;
 e)   (actual alínea d) do n.º 1 do artigo 142.º, com a redacção que lhe foi dada 
 pela Lei n.º 90/97, de 30 de Julho)
 f)   Nos casos referidos na alínea anterior, sendo a vítima menor de 16 anos ou 
 incapaz por anomalia psíquica se a interrupção da gravidez for realizada nas 
 primeiras 24 semanas comprovadas nos termos referidos na alínea c).
 
 3 – Sempre que se trate de grávida toxicodependente não é punível a interrupção 
 da gravidez efectuada a seu pedido nas condições referidas no n.º 1 durante as 
 primeiras 16 semanas de gravidez.
 
 4 – A verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da 
 gravidez, referidas no n.º 2, é certificada em atestado de médico, escrito e 
 assinado antes da intervenção, por médico diferente daquele por quem, ou sob 
 cuja direcção, a interrupção é realizada.
 
 5 –  (actual n.º 3)
 
 6 –  (actual n.º 4).
 
  
 No projecto do Partido Os Verdes, lê‑se o seguinte:
 
  
 Artigo 1.º
 Alteração ao Código Penal
 Os artigos 140.º e 142.º do Código Penal, com as alterações que lhe foram 
 introduzidas pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, e pela Lei n.º 90/97, de 30 
 de Julho, passam a ter a seguinte redacção:
 
  
 Artigo 140.º
 Aborto
 
 1 – (…)
 
 2 – (…)
 
 3 – (eliminado)
 
  
 Artigo 142.º
 Interrupção da gravidez não punível
 
 1 – Não é punível a interrupção da gravidez quando efectuada por médico, ou sob 
 a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, 
 com o consentimento da mulher grávida, nas primeiras 12 semanas de gravidez para 
 preservação da sua integridade moral, dignidade social ou do seu direito à 
 maternidade responsável e consciente.
 
 2 – Da mesma forma, não é punível a interrupção da gravidez quando efectuada por 
 médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou 
 oficialmente reconhecido, com o consentimento da mulher grávida, quando, segundo 
 o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina:
 a)   (actual alínea a))
 b)  Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura 
 lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida e for 
 realizada nas primeiras 16 semanas de gravidez;
 c)   Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma 
 incurável, de grave doença, designadamente de HIV (vírus da imunodeficiência 
 humana) ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de 
 gravidez, comprovadas ecograficamente ou por outro meio adequado de acordo com 
 as leges artis, excepcionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a 
 interrupção poderá ser praticada a todo o tempo;
 d)   (actual alínea d))
 e)   Nos casos referidos na alínea anterior, sendo a vítima menor de 16 anos ou 
 incapaz por anomalia psíquica, se a interrupção da gravidez for realizada nas 
 primeiras 24 semanas comprovadas nos termos descritos na alínea c).
 
 3 – A verificação das circunstâncias, previstas nas alíneas a) a e) do número 
 anterior, que tornam não punível a interrupção da gravidez, é certificada 
 através de atestado médico, escrito e assinado antes da intervenção por médico 
 diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, a interrupção é realizada.
 
 4 – (actual n.º 3)
 
 5 – (actual n.º 4)
 
  
 E, finalmente, o projecto do Bloco de Esquerda tem o seguinte teor:
 
  
 Artigo 1.º
 Direito de optar
 Todas as mulheres têm o direito de controlar os aspectos relacionados com a sua 
 sexualidade, incluindo a sua saúde sexual e reprodutiva, e de decidir livre e 
 responsavelmente sobre estas questões, sem coacção, discriminação ou violência.
 
  
 Artigo 2.º
 Exclusão de ilicitude do aborto
 O artigo 142.º do Código Penal passa a ter a seguinte redacção:
 
  
 Artigo 142.º
 
 (…)
 
 1 – Não é punível o aborto efectuado por médico, ou sob a sua orientação, em 
 estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, nas seguintes 
 situações:
 a)  A pedido da mulher, nas primeiras 12 semanas de gravidez;
 b)   No caso de existirem seguros motivos para crer que o nascituro virá a 
 sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação e for realizada nas 
 primeiras 24 semanas com consentimento da mulher;
 c)   Sempre que exista perigo de vida para a mulher grávida ou de grave e 
 irreversível lesão para a sua saúde física e psíquica e for realizado com o seu 
 consentimento até às 16 semanas de gravidez;
 d)   Sempre que existirem sérios indícios de que a gravidez resultou de crime 
 contra a liberdade e autodeterminação sexual e for realizado, com consentimento 
 da mulher grávida, nas primeiras 16 semanas, ou nas primeiras 24 semanas, no 
 caso da vítima ser menor ou ser incapaz por anomalia psíquica;
 e)   Quando se trate de grávida toxicodependente, desde que realizado, com o seu 
 consentimento, nas primeiras 16 semanas de gravidez;
 f)   No caso de mulheres grávidas portadoras de HIV (síndroma de 
 imunodeficiência adquirida) ou afectadas por este vírus, até às 24 semanas, se 
 for esse o consentimento da mulher;
 g)   No caso de fetos inviáveis, a interrupção de gravidez poderá ser feita em 
 qualquer idade gestacional;
 h)   Constituir o único meio de remover o perigo de morte ou de grave e 
 irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher 
 grávida.
 
 2 – (…)
 
 3 – (…)
 
 4 – (…)
 
  
 O Partido do Centro Democrático Social – Partido Popular formulou uma proposta 
 de substituição da pergunta apresentada pelos Deputados do Partido Socialista, 
 em que pretendia a alteração da redacção da pergunta, substituindo 
 
 “despenalização” por “liberalização” e “interrupção voluntária da gravidez” por 
 
 “aborto” (cf. Diário da Assembleia da República, I Série, nº 14, de 20 de 
 Outubro de 2006).
 Em Reunião Plenária de 19 de Outubro de 2006, a Assembleia da República aprovou, 
 após debate, o Projecto de Resolução nº 148/X, com votos a favor do Partido 
 Socialista, do Partido Social Democrata e do Bloco de Esquerda e votos contra do 
 Partido Comunista Português, do Partido Ecologista “Os Verdes”, de uma Deputada 
 do Partido Socialista e de um Deputado do Partido Social Democrata e abstenções 
 do Partido do Centro Democrático Social – Partido Popular, de duas Deputadas do 
 Partido Socialista e de um Deputado do Partido Social Democrata.
 Após esta aprovação, a Assembleia da República considerou prejudicada a votação 
 da proposta de substituição da pergunta do Partido do Centro Democrático Social 
 
 – Partido Popular.
 
  
 
  
 
 3.  A pergunta que constitui objecto da presente proposta de referendo 
 corresponde, exactamente, à pergunta submetida à fiscalização de 
 constitucionalidade e legalidade no Acórdão nº 288/98 (D.R., I Série‑A, de 18 de 
 Abril de 1998), pelo qual o Tribunal Constitucional decidiu ter por verificada a 
 constitucionalidade e a legalidade do referendo proposto na Resolução nº 16/98 
 da Assembleia da República.
 Assim, em 1998, os portugueses foram já confrontados em referendo com a presente 
 pergunta, não tendo, porém, esse referendo, em que a resposta negativa foi 
 maioritária, sido vinculativo, nos termos do artigo 115º, nº 11, da 
 Constituição. A resposta negativa atingiu 50,9% dos votantes, a afirmativa 49,1% 
 e a abstenção 68,1% – cf. Mapa Oficial nº 3/98, D.R., I Série‑A, de 10 de Agosto 
 de 1998.
 Em 2005, a mesma pergunta foi apresentada como objecto de uma proposta de 
 referendo. O Tribunal Constitucional, pelo Acórdão nº 578/2005, de 28 de Outubro 
 
 (D.R., I Série‑A, de 16 de Novembro de 2005), entendeu que não estavam cumpridas 
 as exigências constitucionais, em face do artigo 115º, nº 10, da Constituição, 
 sem ter apreciado a substância da pergunta.
 
  
 
  
 
 4.  A pergunta objecto da presente proposta de referendo é pois igual à pergunta 
 sobre a qual o Tribunal Constitucional já se pronunciou no Acórdão nº 288/98. 
 Algumas razões, porém, impõem que o Tribunal Constitucional não remeta, sem 
 mais, para os fundamentos daquele Acórdão.
 Em primeiro lugar, existiu uma alteração parcial da composição do Tribunal, o 
 que justifica que as conclusões alcançadas naquele aresto, por maioria, na base 
 de um certo acordo em matéria tão complexa, tenham que ser necessariamente 
 debatidas de novo.
 Em segundo lugar, entre 1998 e 2006 desenrolou‑se uma história legislativa, 
 política, social e de justiça penal que tem de ser considerada. E também no 
 plano internacional, do Direito Comparado e do Direito Europeu existem 
 contribuições relevantes para a ponderação. 
 Em terceiro lugar, no pensamento sobre as penas e sobre a política criminal há 
 dados novos a considerar. E esses dados podem contribuir para a conclusão acerca 
 da dignidade e da tutela penal da vida intra-uterina.
 Em quarto lugar, no plano da discussão pública, não deixa de assumir particular 
 relevância a precedência de um referendo sobre a mesma questão, que foi 
 considerado constitucional e legalmente admissível.
 Em quinto lugar, o estado da discussão política sobre a punição das mulheres que 
 pratiquem o crime de aborto evoluiu em aspectos cruciais, com o surgimento de 
 novas ideias e propostas.
 Por último, o facto de o anterior Acórdão contar com desenvolvidos votos de 
 vencido justifica que alguns argumentos que não lograram vencimento mereçam ser 
 analisados de novo.
 Não nos situamos assim, em 2006, no ponto de partida exacto do Acórdão do 
 Tribunal Constitucional nº 288/98, mas num outro momento histórico‑jurídico, que 
 exigirá a consideração de elementos nessa altura não ponderados. Vejamos, então, 
 nesta perspectiva, quais as questões essenciais a debater, considerando os novos 
 elementos do debate. 
 Entende‑se que as questões fundamentais são três:
 
 –      A conformidade da pergunta aos requisitos constitucionais e legais, com 
 especial incidência na clareza e objectividade da sua formulação e no seu 
 carácter dilemático ou binário;
 
 –      A determinação do universo eleitoral; 
 
 –      A verificação se o dilema suscitado pela pergunta pode suscitar, pelo 
 menos, uma resposta incompatível com a Constituição ou com a lei.
 
 É sobre estas questões que se podem reflectir, igualmente, os novos dados da 
 presente situação histórica e social em matéria de interrupção voluntária da 
 gravidez que se passa a enunciar.
 
  
 II
 Enquadramento actual da questão
 objecto da proposta de referendo
 
  
 
 5.  No plano do Direito Comparado, remetendo‑se para a extensa abordagem do 
 Acórdão nº 288/98, deverá salientar‑se que permanece uma tendência para a 
 consolidação de soluções legislativas descriminalizadoras ou que enunciam causas 
 de afastamento da responsabilidade segundo certas indicações. Não há 
 conhecimento, no grupo dos países com a estrutura de Estado de Direito 
 democrático, de um “retrocesso” no sentido criminalizador (cf. Bertrand Mathieu, 
 Le droit à la vie, Edições do Conselho da Europa, 2005). E esta tendência diz 
 respeito quer aos Estados que adoptaram a solução dos prazos quer aos Estados 
 que adoptaram o método das indicações.
 Entre 1998 e 2006, registou‑se, no Direito francês, o alargamento do prazo em 
 que a mulher pode solicitar a interrupção voluntária da gravidez de dez para 
 doze semanas, alterando‑se, assim, a chamada Lei Veil que procedeu à 
 descriminalização da interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas, em 
 situações de angústia. Tal regime está contido no Code de la Santé Publique 
 
 (Ord. nº 2000‑548, de 15 de Junho de 2000), o qual prevê agora o seguinte (Art. 
 L. 2212‑1):
 
  
 A mulher grávida que o seu estado coloca numa situação de angústia pode 
 solicitar a um médico a interrupção da gravidez. Esta interrupção da gravidez 
 não pode ser praticada senão antes da décima segunda semana de gravidez.  [La 
 femme enceinte que son état place dans une situation de détresse peut demander a 
 un médecin l’interruption de sa grossesse. Cette interruption ne peut être 
 pratiquée qu’avant la fin de la douzième semaine de grossesse.]
 
  
 No Art. L. 2212‑2, acrescenta‑se que a interrupção voluntária da gravidez só 
 pode ser realizada por um médico, num estabelecimento de saúde público ou 
 privado, satisfazendo as condições do artigo L. 2322 (Lei nº 2001‑588, de 4 de 
 Julho de 2001) e no “quadro de uma convenção” entre o médico e o estabelecimento 
 de saúde. A referida lei estabeleceu que os menores, em caso de recusa dos pais, 
 podem apelar a um adulto da sua escolha para os apoiar nas suas diligências. Por 
 outro lado, o aconselhamento prévio torna‑se facultativo e criminaliza‑se o 
 entrave à interrupção voluntária da gravidez. O Conselho Constitucional 
 pronunciou‑se sobre tal lei (Décision nº 2001‑446 DC – 27 Juin 2001, consultável 
 em www.conseil-constitutionnel.fr/decision/2001/20011446/20011446dc.htm), 
 considerando que “a lei não quebrou o equilíbrio que o respeito da Constituição 
 impõe entre, por um lado, a salvaguarda da dignidade da pessoa humana contra 
 toda a forma de degradação e, por outro lado, a liberdade da mulher que decorre 
 do artigo 2º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”.
 Por outro lado, na Irlanda realizou‑se, em Março de 2002, novo referendo, em que 
 esteve em causa uma alteração da Constituição, visando consagrar uma emenda 
 segundo a qual a vida intra‑uterina deveria ser protegida de acordo com a 
 Protection of Human Life in Pregnant Act, de 2001, legislação que apenas 
 permitia a interrupção voluntária da gravidez no caso de perigo para a vida da 
 mulher diverso do risco de suicídio. Neste referendo, discutiu‑se a inversão ou 
 não da jurisprudência que considerou justificada a interrupção voluntária da 
 gravidez em caso de invocação do risco de suicídio da mulher – no caso de uma 
 jovem de 14 anos vítima de violação (cf. Lisa Smith, The Politics of 
 Reproduction in Contemporary Ireland, 2005, p. 17 e ss.). O resultado do 
 referendo foi, porém, negativo, tendo-se mantido a situação anterior.
 Também o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, numa decisão de 8 de Julho de 
 
 2004, em que se pronunciou sobre um caso de negligência médica num aborto 
 terapêutico, teceu, entre outras, as seguintes considerações: “O Tribunal está 
 convencido de que não é desejável nem mesmo possível actualmente responder em 
 abstracto à questão de saber se o nascituro é uma pessoa no sentido do artigo 2º 
 da Convenção” embora, “na ausência de um estatuto jurídico claro do nascituro, 
 este não [esteja] privado de qualquer protecção no direito francês” (caso Vo c. 
 France – Application nº 53924/00 [2004] ECHR 326, consultável em 
 
 www.worldlii.org/eu/cases/ECHR/2004/326.html).  
 Por outro lado, o Parlamento Europeu, na sequência do Relatório de Anne E. M. 
 Van Lancker de 6 de Junho de 2002, aprovou uma resolução sobre a política a 
 seguir nos países integrantes da União Europeia quanto a “direitos em matéria de 
 saúde sexual e reprodutiva” (Resolução do Parlamento Europeu sobre Direitos em 
 Matéria de Saúde Sexual e Reprodutiva – JO C Nº 271 E, de 12 de Novembro de 
 
 2003). Nessa resolução recomenda-se aos governos dos Estados‑Membros e dos 
 países candidatos à adesão “que pugnem pela implementação de uma política de 
 saúde e social que permita uma diminuição do recurso ao aborto, nomeadamente 
 graças à disponibilização de serviços de planeamento familiar e de 
 aconselhamento e à prestação de assistência e apoio financeiro a grávidas em 
 dificuldade, e considerem o aborto de risco como tema fundamental de saúde 
 pública”. Mas recomenda-se ainda “que a interrupção voluntária da gravidez seja 
 legal, segura e universalmente acessível, a fim de salvaguardar a saúde 
 reprodutiva e os direitos das mulheres”, exortando-se “os governos dos 
 Estados‑Membros e dos países candidatos à adesão a absterem‑se, em quaisquer 
 circunstâncias, de agir judicialmente contra mulheres que tenham feito abortos 
 ilegais”.
 Assume‑se, assim, no âmbito do Parlamento Europeu, uma perspectiva preventiva e 
 de saúde pública quanto ao aborto, com distanciamento das soluções punitivas.
 Já em matéria de planeamento familiar, o Regulamento (CE) nº 1567/2003, do 
 Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Julho de 2003 (JO L 224, de 
 
 06.09.2093), relativo à ajuda para políticas e acções em matéria de saúde 
 reprodutiva e sexual e direitos conexos nos países em desenvolvimento, estipula 
 que “A Comunidade e os Estados‑Membros reconhecem o direito de cada indivíduo 
 escolher livremente o número de filhos e o intervalo entre nascimentos, e 
 condenam todas as violações dos direitos humanos sob a forma de aborto 
 obrigatório, esterilização forçada, infanticídio, rejeição, abandono ou maus 
 tratos a crianças não desejadas como forma de reduzir o aumento demográfico”.
 
  
 
  
 
 6. No terreno da discussão jurídico‑política, é certo que se mantiveram e 
 desenvolveram com firmeza as posições contra a despenalização do aborto (cf., 
 por exemplo, no lado contrário à despenalização, entre nós, Paulo Ferreira da 
 Cunha, Constituição do crime, da substancial constitucionalidade do Direito 
 Penal, 1998, Bacelar Gouveia e Henrique Mota, Vida e Direito – Reflexões sobre 
 um referendo, 1998, e Paulo Otero, Direito da Vida, 2004). 
 Mas também é verdade que surgiram posições, ainda no quadro da actual solução 
 legislativa, que reconhecem as dificuldades morais em punir com justiça, nos 
 casos concretos, as mulheres que cometerem aborto ilegal. Para além de 
 pronunciamentos em vários órgãos de comunicação social, como a defesa da não 
 punição da mulher que aborte, numa lógica de desculpa, defendida por Freitas do 
 Amaral (cf. Visão de 12 de Fevereiro de 2004), veja-se o Projecto de Lei nº 20/X 
 
 (Diário da Assembleia da República, II Série‑A, de 2 de Abril de 2005), 
 apresentado pelas Deputadas do PS Maria do Rosário Carneiro e Teresa Venda, que 
 propugnou a “suspensão provisória do processo (contra a mulher que abortou) com 
 carácter obrigatório”, invocando a “não indiferença ao sofrimento, a ponderação 
 das circunstâncias individuais, a defesa da dignidade das mulheres e a 
 ponderação das alternativas inclusivas”. 
 
  
 
  
 
 7. Do lado favorável à despenalização, assistiu‑se à afirmação de uma 
 perspectiva preventiva, de saúde pública, que privilegia as dificuldades morais 
 e sociais da mulher que aborta. Assim, registou-se, por parte de alguns 
 intervenientes no debate público, uma tendência para situar a discussão num 
 nível não puramente ideológico e para basear a decisão em valorações apoiadas 
 nos projectos de vida de cada pessoa, nas concretas oportunidades sociais para 
 uma maternidade consciente e em emoções, como a angústia, que podem levar à 
 rejeição da maternidade (cf., já nessa linha, Ronald Dworkin, Life’s Dominion – 
 An Argument about Abortion and Euthanasia, 1993, e, em geral sobre o papel das 
 emoções – como a compaixão –, na base de julgamentos éticos razoáveis e das 
 próprias decisões políticas, Martha Nussbaum, Upheavals of Thought, The 
 Intelligence of Emotions, 2001, p. 441 e ss.).
 No pólo oposto, em defesa do não alargamento da despenalização, vêm‑se 
 referindo, pragmaticamente, os efeitos criminógenos da despenalização e os seus 
 reflexos nas concepções sociais sobre o valor da vida, alertando-se para os 
 perigos de uma “cultura de morte”.
 De todo o modo, tanto do lado das posições mais favoráveis à despenalização como 
 do lado contrário se verifica um movimento convergente para aproximar a 
 discussão sobre o aborto de perspectivas não absolutas, que reconhecem a 
 existência de conflito, e para utilizar argumentos próximos dos interesses 
 imediatamente perceptíveis por cada pessoa, que se reflectem na sua vida. Por 
 conseguinte, a discussão sobre a despenalização da interrupção voluntária da 
 gravidez dentro de certo prazo e em certas condições emergiu como questão 
 diversa da pura afirmação, em abstracto, de valores como a vida ou a liberdade 
 
 (valores absolutos como lhes chama Lawrence Tribe, em The Clash of Absolutes, 
 
 1990, para concluir que “muito do que cada um acredita sobre todos estes 
 assuntos diz mais sobre o que somos, de onde provimos do que sobre a nossa visão 
 ou sobre a última verdade” (p. 40).
 
  
 
  
 
 8.  A reflexão sobre valores numa sociedade democrática, pluralista e de matriz 
 liberal quanto aos direitos fundamentais tem sido objecto privilegiado do 
 pensamento filosófico contemporâneo. Tal reflexão exprime-se na ideia de um 
 
 “consenso de sobreposição” (overlapping consensus) desenvolvida por John Rawls, 
 em Political Liberalism, 1993, p. 133 e ss.. O autor concebe a possibilidade de 
 um consenso sobre valores políticos, como o respeito mútuo ou a liberdade, sem o 
 sacrifício de valores mais abrangentes e de visões particulares, mas a partir da 
 diversidade dos valores. Por exemplo, diferentes concepções religiosas podem 
 confluir, sem abandonar a respectiva matriz, num núcleo de valores estritamente 
 políticos.
 Ora, independentemente de se aceitarem as teses resultantes da referida 
 orientação, não poderá deixar de se registar que a discussão sobre valores induz 
 a reconhecer que a possibilidade de um Estado de Direito democrático os impor é 
 problemática. Uma tal imposição não se legitima na mera evidência intuída pela 
 consciência individual, num mandato divino ou até na decisão discricionária do 
 poder político, ainda que legitimado pela maioria. A decisão sobre valores é 
 fundamentante do Estado de Direito e não está arredada da discussão democrática, 
 orientada por regras de liberdade, igualdade de oportunidades, participação 
 política efectiva e limites lógicos à autocontradição (cf. Arthur Kaufmann, 
 Rechtsphilosophie, 1997, p. 336 e ss., onde se lê que “só na livre discussão de 
 opiniões a verdade tem uma chance” e que “a indagação da verdade é um problema 
 de liberdade”).
 Não pode, por conseguinte, o Tribunal Constitucional abordar os problemas 
 jurídico‑constitucionais suscitados pela pergunta, prescindindo de dar conta de 
 que há uma investigação jurídico-filosófica mantida, no nosso tempo, sobre a 
 fundamentação dos valores e a legitimidade da sua imposição. Dessa investigação 
 resulta que os valores não estão acima da discussão livre e que não é possível 
 impô‑los ao “outro”, sem cumprir um estrito dever de fundamentação sujeito a um 
 método argumentativo e participado.
 
  
 
  
 
 9.  Também no que se refere ao pensamento sobre o crime e a pena, têm sido 
 introduzidas perspectivas que aumentam a complexidade dos modelos puramente 
 preventivos ou retributivos de política criminal. A reflexão sobre a pena 
 orienta‑se para modalidades e funções compensadoras das vítimas e da sociedade. 
 Por outro lado, acentua‑se, por essa via, a ideia de que a pena não pode retirar 
 a sua legitimidade senão do bem que possa gerar na vítima, na sociedade e no 
 próprio condenado (quer a partir de perspectivas de prevenção quer na linha de 
 um modelo de justiça reparadora dos danos do crime). Recusa-se, desde logo, que 
 a pena constitua apenas o mal que corresponde (e acresce) ao mal do crime. 
 Tal ideia repercute‑se, necessariamente, no conteúdo e no sentido da pena, mas 
 também na conveniência e na necessidade de solucionar o conflito entre o agente 
 e o Estado através da pena. Em confluência com esta perspectiva, faz sentido 
 distinguir entre merecimento e necessidade da pena como dois patamares 
 diferenciados de justificação da tutela penal (cf. Figueiredo Dias, Direito 
 Penal, Parte Geral, 2004, p. 120 e ss.).
 A ideia de pena não deixa de ser, para um certo pensamento filosófico, um 
 conceito em crise. Já Paul Ricoeur sugeria, em “Interprétation du mythe de la 
 peine” (Le conflit des interprétations, 1969, p. 348 e ss.), que a crise reside 
 na duvidosa racionalidade da equivalência entre o crime e a pena (como 
 sofrimento moral) e na (duvidosa) capacidade de esta apagar o mal do crime ou 
 solucionar o seu problema.
 A perspectiva de que o crime reclama sempre a punição e não outra forma de 
 superação é algo cuja racionalidade não está, nesta linha de pensamento, acima 
 de qualquer dúvida. E não está isenta de dúvida mesmo para quem, como Paul 
 Ricoeur, se posicione dentro da cultura bíblica, na qual o mal do pecado – que é 
 a separação de Deus – é superado pelo perdão e pela graça.
 Em sentido idêntico, mas a partir de outras raízes culturais, tem-se sustentado 
 a racionalidade da ultrapassagem de uma protecção neutral (e igual) dos bens e 
 direitos pela compreensão “ do significado humano e do impacto das leis”, 
 preferindo-se a compaixão na vida pública à punição retributiva (cf. Martha 
 Nussbaum, ob. cit., p. 443).
 Assim, no pensamento jurídico-filosófico sobre a pena, não só a sua finalidade e 
 justificação como também a sua adequação ao crime têm sido objecto de discussão, 
 tanto por quem não duvida que certos comportamentos (incluindo a interrupção 
 voluntária da gravidez) merecem reprovação ética como por quem, partindo do 
 debate político-criminal, rejeita uma função meramente retributiva da pena e lhe 
 atribui uma função preventiva baseada no princípio da necessidade e da 
 intervenção mínima do jus puniendi.
 
  
 
  
 
 10.  As manifestações da crise da ideia de pena e de uma insatisfação cultural 
 quanto a ela revelam‑se, nos sistemas jurídicos contemporâneos, na adopção de 
 medidas paralisadoras da punição. Assim, no terreno processual penal, 
 consagra-se a suspensão provisória do processo e o arquivamento em caso de 
 dispensa de pena. No quadro de uma desjudicialização, aceita-se a figura da 
 mediação penal (cf., sobre esta figura e sobre a justiça restaurativa em geral, 
 Anabela Rodrigues, “Mediação Penal: a propósito da introdução do regime de 
 mediação no processo penal”, Revista do Ministério Público, ano 27, 2006, nº 
 
 105, p. 127 e ss., Francisco Amado Ferreira, Justiça Restaurativa, natureza, 
 finalidades e instrumentos, 2006, e Cândido da Agra e Josefina Castro, “Mediação 
 e Justiça Restaurativa: esquema para uma lógica do conhecimento e da 
 experimentação”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, ano 
 II, 2005, p. 95 e ss.). Por fim, no âmbito do Direito Penal material, prevê-se, 
 desde 1982, o expressivo instituto da dispensa da pena, que implica condenação 
 sem punição (artigo 74º do Código Penal).
 Em suma, o pensamento sobre o crime e a pena, quer na sua expressão filosófica 
 quer na sua expressão jurídica, sugere que, sendo pacífica a proposição de que 
 não há pena sem crime, não é verdadeira a proposição inversa. E, no plano do 
 conceito material de crime, reflecte‑se tal entendimento na acentuação da 
 
 “carência da tutela penal” como modo de justificação da criminalização fora de 
 uma lógica retributiva.
 Por outro lado, também é verdade que, numa outra óptica de pensamento, se tem 
 intensificado o apelo à pena para reprimir a violação de direitos humanos e o 
 Direito Penal ressurgiu, no plano internacional, como um instrumento de 
 protecção das pessoas em situação de fraqueza contra diversas manifestações de 
 domínio ilegítimo proveniente de fontes formais ou informais de poder, incluindo 
 os Estados. Assim, o Direito Penal surge como âncora dos fracos e juiz da 
 História, assumindo‑se como instrumento de defesa de causas humanitárias e de 
 luta contra a prepotência.
 
 É num horizonte cultural complexo que as várias questões suscitadas pela 
 pergunta objecto da proposta de referendo se colocam. O Tribunal analisará tais 
 questões, a fim de verificar a constitucionalidade e a legalidade do referendo 
 proposto, não se alheando da situação histórica e do ambiente de pensamento 
 envolvente. Deste enquadramento retiram-se, no essencial, três linhas de 
 orientação: a relação entre a ideia de Estado de Direito democrático (artigo 2º 
 da Constituição) e a necessidade de discutir valores; a crise da pena como 
 solução do problema do crime; e a justificação da criminalização numa lógica da 
 necessidade da pena.
 
  
 
  
 III
 Fundamentação
 
  
 
 11.  Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 115º, nº 8, e 223º, nº 2, 
 alínea f), da Constituição, 26º da Lei Orgânica do Regime do Referendo (Lei nº 
 
 15‑A/98, de 3 de Abril) e 11º da Lei do Tribunal Constitucional, cumpre a este 
 Tribunal proceder à prévia verificação da constitucionalidade e da legalidade da 
 proposta de referendo, incluindo a apreciação dos requisitos relativos ao 
 respectivo universo eleitoral.
 Nessa conformidade, deve assinalar‑se, em primeiro lugar, que a proposta de 
 referendo foi aprovada pelo órgão competente para o efeito, ao abrigo do artigo 
 
 115º, nº 1, da Constituição, ou seja, a Assembleia da República.
 Na verdade, sendo a Assembleia da República um dos dois órgãos de soberania 
 constitucionalmente autorizados (conjuntamente com o Governo), a propor ao 
 Presidente da República a realização de referendos, no presente caso só ela 
 poderia fazê‑lo, tal como refere o Acórdão nº 288/98, “pois que a matéria sobre 
 que incide a pergunta – despenalização em certas circunstâncias da interrupção 
 voluntária da gravidez – se insere na sua esfera de competência legislativa 
 reservada e, de acordo com o estabelecido no citado artigo 115º, nº 1, a 
 proposta há‑de respeitar a matéria da competência do órgão competente”.
 Trata‑se de matéria de competência da Assembleia da República não só porque se 
 enquadra no artigo 165º, nº 1, c), mas também porque surge em volta da eventual 
 violação dos artigos 24º, nº1, e 26º, sendo pois abrangida pelo artigo 165º, nº 
 
 1, alínea b), da Constituição (vide o Acórdão nº 288/98 e já também o Parecer nº 
 
 21/82 da Comissão Constitucional, em Pareceres da Comissão Constitucional, 20º 
 vol., pp. 92-3).
 
  
 
  
 
 12.  Também se verifica o requisito exigido pelo artigo 115º, nº 3, da 
 Constituição, na medida em que estamos perante questão de relevante interesse 
 nacional, que deve ser decidida pela Assembleia da República ou pelo Governo 
 através da aprovação de acto legislativo. 
 Tal afirmação fundamenta‑se no facto de a matéria se incluir na reserva relativa 
 de competência da Assembleia da República e de se tratar de uma questão tida 
 como central no debate político dos últimos anos. Dada a evidência do relevante 
 interesse nacional da matéria, prescinde‑se de encarar o problema de saber se se 
 encontra na margem de livre decisão do órgão proponente e do Presidente da 
 República ou se tal requisito deve constituir objecto de apreciação pelo 
 Tribunal Constitucional (no mesmo sentido, o Acórdão nº 288/98).
 
  
 
  
 
 13.  A presente proposta de referendo não integra, igualmente, as situações 
 excluídas do âmbito do referendo pelo nº 4 do artigo 115º da Constituição.
 Com efeito, a matéria em causa não reveste conteúdo orçamental, tributário ou 
 financeiro nem se enquadra na reserva absoluta da competência da Assembleia da 
 República, integrando, como se disse, a reserva relativa.
 O objecto do presente referendo também não se integra no elenco das matérias 
 previstas no artigo 161º, nem na alínea c) do referido artigo 161º como se 
 evidenciou no Acórdão nº 288/98, em que se disse que “também a matéria em causa 
 se não encontra prevista no artigo 161º, pois que, de entre as aí mencionadas, 
 apenas poderia ser abrangida pela alínea c), onde se atribui à Assembleia da 
 República competência para ‘fazer leis sobre todas as matérias’. Só que a 
 referência à exclusão das matérias do artigo 161º não pode obviamente aplicar‑se 
 em tal caso, pois que, então, se entraria em contradição com o nº 1 e o nº 3 do 
 artigo 115º, porque nenhuma matéria que devesse ser tratada por via legislativa 
 
 – salvo se da reserva do Governo – poderia ser o objecto do referendo”.
 E, finalmente, a presente proposta de referendo não visa alterar a Constituição, 
 já que a legislação a aprovar na sequência do referendo não pretende assumir 
 valor constitucional.
 
  
 
  
 
 14.  Como ficou esclarecido no Acórdão nº 288/98, não é de confundir a questão 
 anterior com a de saber se é vedado pela Constituição o referendo sobre uma 
 matéria por ela extravasar o âmbito de discricionariedade legislativa “a 
 resolver através de uma opção política devolvida ao eleitorado” (Acórdão nº 
 
 288/98) ou por o legislador estar constitucionalmente vinculado a uma opção e 
 ser vedada a opção resultante de um dos sentidos de resposta à questão objecto 
 do referendo.
 Questão que tem outra natureza, embora a resposta dada à anterior se projecte 
 nela inevitavelmente, é ainda a de saber se, no caso sub judicio, a pergunta se 
 encontra formulada de modo a que uma das possíveis respostas implica uma solução 
 inconstitucional, independentemente de uma vinculação constitucional a uma 
 determinada opção legislativa.
 
  
 
  
 
 15.  Mas, deixando para mais tarde esta última questão, há‑de concluir‑se, tal 
 como no Acórdão nº 288/98, que a matéria em análise é enquanto tal passível de 
 referendo, na medida em que está ainda na margem de discricionariedade do 
 legislador criar ou não criar áreas de despenalização da interrupção voluntária 
 da gravidez dentro dos limites constitucionais.
 Afasta‑se, portanto, a perspectiva segundo a qual, em nome do direito à vida do 
 feto, o legislador não poderia nunca subtrair ao Direito Penal condutas de 
 interrupção voluntária da gravidez ou a perspectiva inversa de que toda a 
 punição da interrupção voluntária da gravidez dentro de certo prazo seria 
 constitucionalmente inviável.
 Diferentemente, entende o Tribunal Constitucional que o legislador, dentro de 
 limites constitucionalmente definidos, mantém uma margem de liberdade de decisão 
 quanto ao âmbito da criminalização, da justificação e do afastamento da 
 punibilidade da interrupção voluntária da gravidez. E mantém essa margem de 
 liberdade porque o Direito Penal não é conformado constitucionalmente como um 
 imperativo categórico imposto ao legislador ordinário, regulando‑se antes por 
 ponderações de valores e de interesses situadas num contexto histórico e por uma 
 justificação derivada de necessidades político‑criminais e da realização da 
 justiça em função do modo como, em cada momento, os problemas criminais se 
 colocam.
 Por outro lado, essa margem de liberdade também não está vedada em nome do 
 reconhecimento de direitos insusceptíveis de ser objecto de referendo. Com 
 efeito, não seriam esses direitos, em si, o objecto do referendo, mas antes uma 
 ponderação sobre um conflito de direitos e valores ou a possível solução para um 
 tal conflito em conexão com a intervenção do Direito Penal.
 
  
 
  
 
 16.  Finalmente, a possibilidade de ponderação de direitos e valores 
 constitucionalmente tutelados ser sujeita a referendo não é impedida pelo facto 
 de ser essa a tarefa normal do julgador. É certo que o próprio legislador 
 realiza essa tarefa de ponderação, à luz da Constituição, sendo ele também, como 
 refere o Acórdão nº 288/98, “um aplicador da Constituição”. E onde o legislador 
 possa intervir não há razões, em geral, para subtrair ao âmbito do referendo uma 
 dada matéria.
 Assim, na linha do citado aresto, continua este Tribunal a entender que nada 
 impede que uma matéria de conflito de direitos e valores constitucionalmente 
 protegidos – ou até mesmo de concretização de limites imanentes, que implique a 
 realização de uma concordância prática dos mesmos direitos e valores – possa ser 
 devolvida por um dos seus intérpretes – o legislador da Assembleia da República 
 
 – para o voto dos cidadãos, em certas circunstâncias. E essa conclusão vale 
 desde que as soluções possíveis não impliquem alteração ou violação da 
 Constituição, situando‑se, ainda, naquele plano das interpretações possíveis 
 sobre o modo de desenvolvimento dos valores constitucionais. 
 Mesmo para quem entenda que, perante uma dúvida sobre a solução a dar a um 
 conflito de valores, só há uma interpretação possível da Constituição, será 
 ainda admissível – no caso de dificuldade profunda em atingir uma solução 
 aceitável por todos como válida – trocar a pura investigação (limitada pela 
 subjectividade do intérprete) pela discussão democrática e pelo voto, como 
 método de determinar a boa solução (assim, Ronald Dworkin, Life’s Dominion – An 
 Argument about Abortion and Euthanasia, 1993, p. 157).
 
  
 
  
 
 17.  Confrontando agora a pergunta objecto da proposta de referendo com os 
 artigos 115º, nº 6, da Constituição, e 7º da Lei Orgânica do Regime do 
 Referendo, verifica‑se, desde logo, que ela recai sobre uma só matéria – a 
 despenalização da interrupção voluntária da gravidez dentro de certo prazo – 
 existindo, aliás, uma só pergunta, formal e materialmente –, sem qualquer 
 intróito.
 Em segundo lugar, a pergunta é formulada para uma resposta de “sim” ou “não”, 
 segundo uma lógica “que é necessariamente dilemática, bipolar ou binária, ou 
 seja, que pressupõe uma definição maioritariamente unívoca da vontade popular, 
 num ou noutro dos sentidos possíveis de resposta à questão cuja resolução é 
 devolvida directamente aos cidadãos” (Acórdão nº 360/91, em Acórdãos do Tribunal 
 Constitucional, 19º vol., p. 701). Com efeito, a pergunta interroga os eleitores 
 sobre se concordam com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez 
 realizada, por opção da mulher grávida, dentro de um certo prazo determinado e 
 em estabelecimento de saúde legalmente autorizado. Trata‑se, pois, de uma opção 
 entre despenalização e penalização da prática de uma conduta bem identificada, 
 em circunstâncias indicadas com precisão.
 
  
 
  
 
 18.  O facto de poderem existir outras posições que a pergunta não consagra – 
 tal como a aceitabilidade de uma justificação da interrupção voluntária da 
 gravidez segundo o método das indicações, acrescentando‑se, por exemplo, novas 
 indicações às legalmente previstas, alargando-se o prazo para tal ou 
 prescindindo-se da realização da interrupção voluntária da gravidez em 
 estabelecimento de saúde – não retira à presente pergunta o carácter dilemático. 
 
 
 Os eleitores deverão decidir, em face da única opção que lhes é proposta, se a 
 consideram aceitável ou rejeitável, mesmo que preferissem outras opções (que não 
 estão em causa). São confrontados apenas com um e não com todos os dilemas, 
 devendo os dilemas que não estão em causa ser por eles ponderados e resolvidos 
 numa perspectiva pessoal, de consciência ou de opção política, para efeito de 
 resposta à (única) questão suscitada. Os dilemas morais, políticos e jurídicos 
 sobre as condições preferíveis de despenalização situam‑se a montante do que é 
 expresso na pergunta, a qual revela que o legislador apenas pretende averiguar a 
 opção dos eleitores quanto a uma certa solução.
 
  
 
  
 
 19.  Esta análise prende‑se, aliás, com a questão da clareza, objectividade e 
 precisão da pergunta. Poderia objectar‑se que a pergunta não seria clara, 
 objectiva e precisa porque seria possível que os eleitores entendessem que se 
 encontravam confrontados com uma opção entre penalização absoluta e 
 despenalização e não com uma escolha entre a solução actual (que não corresponde 
 a uma penalização absoluta) e uma despenalização até às dez semanas de gravidez. 
 Nesse caso, estaria em causa uma opção entre a incriminação pura e simples e a 
 despenalização proposta. 
 A ser assim, a pergunta não exprimiria o que efectivamente está presente no 
 debate político que justifica o referendo. No entanto, tal objecção não pode 
 resultar da mera interpretação do texto da pergunta, que interpela os eleitores 
 quanto a uma certa solução inexistente na ordem jurídica portuguesa, não pondo 
 em causa a subsistência do regime actual como alternativa.
 Aliás, se o problema ainda poderia, eventualmente, ter sentido em 1998, no 
 contexto do primeiro referendo realizado sobre esta matéria, em que a pergunta 
 era exactamente a mesma, agora não tem pertinência. Nesta fase, já foi feito um 
 debate público em campanhas eleitorais para eleições legislativas, e os diversos 
 partidos políticos tiveram oportunidade de esclarecer os eleitores sobre a sua 
 posição acerca do tema.
 
  
 
  
 
 20.  Por outro lado, entender‑se que a pergunta não patenteia o que está em 
 causa no debate político – que se pressupõe claro e não viciado –, por não 
 veicular informação densificada sobre a manutenção do sistema actual como um dos 
 pólos do dilema, equivale a concluir que o próprio debate político não é um 
 elemento imprescindível na interpretação do texto da pergunta pelos eleitores. 
 Uma pergunta que retratasse de forma esgotante o debate político poderia ser 
 outra, porventura mais complexa. Todavia, não é razoável atribuir falta de 
 clareza, objectividade e precisão a uma pergunta que confronta os eleitores com 
 uma única solução sem equacionar outras. No plano lógico, o significado mais 
 razoável de uma tal redução é encarar como alternativa à mudança a persistência 
 da solução já consagrada.
 
  
 
  
 
 21.  Não pode deixar de se considerar que uma pergunta com informação 
 pormenorizada poderia até ser menos clara, porque iria utilizar termos técnicos, 
 uma linguagem especializada ou transmitir excesso de informação (cf., no sentido 
 destas preocupações, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 704/2004, D.R., I 
 Série‑A, de 30 de Dezembro de 2004). Por isso, tal pergunta seria até, 
 presumivelmente, mais difícil de apreender com rapidez.
 Estando em causa a opção entre a solução actual de não punição no caso de se 
 verificarem certas indicações (terapêutica, ética e eugénica) e (com excepção do 
 aborto em defesa da vida da mãe) dentro de certos prazos, por um lado, e, por 
 outro lado, uma solução de ausência das referidas indicações dentro de um certo 
 prazo, um dos modos possíveis de fazer a pergunta com clareza lógica é 
 questionar os eleitores sobre se concordam com uma despenalização sem mencionar 
 aquelas indicações – referindo apenas um prazo, com a condição de a interrupção 
 voluntária da gravidez ser realizada em estabelecimento de saúde legalmente 
 autorizado. 
 A menção das indicações legalmente previstas e dos prazos que lhes correspondem 
 seria porventura compatível com uma pergunta ainda clara, mas sem dúvida mais 
 complexa, e criaria o risco de submeter as indicações da actual lei que valem 
 para além do prazo de 10 semanas (artigo 142º, nº 1, do Código Penal) a uma 
 resposta de sim ou de não. Segue‑se portanto, também neste ponto, a lógica 
 argumentativa do Acórdão nº 288/98, em que se disse:
 
  
 E, do mesmo modo, também se não aceita a crítica tendente a considerar que a 
 pergunta se encontra mal formulada, porquanto não permite uma opção clara entre 
 o «sim» e o «não» a quem entenda que a solução mais conveniente na matéria 
 consiste em despenalizar apenas a mulher que aborta. É que a solução em causa 
 não se encontra colocada na pergunta em análise, bem podendo dizer‑se que 
 constituiria objecto para uma outra pergunta. E quanto à pergunta em apreço, 
 devendo ser respondida, nos termos constitucionais e legais, por uma afirmativa 
 ou uma negativa, não pode necessariamente abrir espaço para soluções matizadas.
 
  
 
  
 
 22.  Numa outra perspectiva, a falta de clareza pode ser invocada ante a 
 utilização de expressões ou vocábulos como “despenalização” e “interrupção 
 voluntária da gravidez” ou até mesmo “opção”, que são pouco frequentes na 
 linguagem comum.
 A essas objecções se responderá com a argumentação expendida no Acórdão nº 
 
 288/98, no qual se refere:
 
  
 A esta objecção, contudo, se responderá de duas formas. 
 Em primeiro lugar, dir‑se‑á que o risco derivado de um deficiente entendimento 
 da pergunta, que pode decorrer do nível de instrução de uma parte do eleitorado, 
 
 é inerente à utilização do processo referendário, em que os boletins de voto se 
 não podem revestir da simplicidade que caracteriza os utilizados nos actos 
 eleitorais, designadamente através do recurso aos símbolos partidários. 
 Em segundo lugar, sublinhar‑se‑á que a clareza da pergunta se há‑de conjugar com 
 a sua objectividade e precisão, o que implica uma maior complexidade na 
 formulação e a utilização de terminologia rigorosa, para se evitar 
 posteriormente a existência de equívocos quanto às soluções propugnadas, por a 
 pergunta abranger situações não pretendidas ou consentir leituras ambíguas. Face 
 a uma pergunta rigorosamente formulada, embora de difícil entendimento para uma 
 importante parte do eleitorado, sempre se poderá obter uma resposta consciente, 
 caso exista um esforço de esclarecimento da opinião pública – e para isso serve 
 a campanha regulada na lei. Mas, pelo contrário, face a uma pergunta 
 aparentemente simples, mas recheada de ambiguidades ou imprecisões, nunca se 
 poderá conhecer o verdadeiro sentido da resposta. E isto, até porque se a 
 pergunta se encontrar deficientemente formulada do ponto de vista técnico, 
 utilizando conceitos pouco rigorosos, não disporá sequer da clareza necessária 
 para aqueles que, afinal, terão necessariamente de proceder a uma mediação 
 explicativa perante a opinião pública.
 Ora, no caso em apreciação, algumas hipóteses de simplificação da pergunta 
 teriam como consequência uma indesejável imprecisão, já que se afigura 
 importante – até para que a pergunta possa ter uma mínima correspondência com o 
 objecto da iniciativa legislativa – que dela constem, por exemplo, referências à 
 iniciativa da mulher e ao facto de a interrupção da gravidez se efectuar em 
 estabelecimento de saúde. E se é possível sustentar que esses elementos da 
 pergunta poderiam ter sido enunciados de forma mais acessível, embora 
 tecnicamente menos perfeita, a verdade é que ao Tribunal Constitucional não cabe 
 averiguar se a pergunta se encontra formulada da melhor maneira, mas tão‑só 
 certificar‑se que ela ainda satisfaz adequadamente as exigências constitucionais 
 e legais, o que se afigura ocorrer no caso sub judicio.
 Por outro lado, assinale‑se que, não permitindo a Constituição e a lei que se 
 proceda a um referendo sobre um concreto projecto de lei, daí resulta que – por 
 razões de necessária limitação da dimensão da pergunta, já que cada novo 
 elemento pode contribuir para atentar contra a sua clareza – nem todos os 
 aspectos do regime que se pretenda estabelecer têm obrigatoriamente de constar 
 da pergunta formulada. É o que acontece, por exemplo, no caso dos autos, com a 
 consulta em centro de aconselhamento familiar, prevista no projecto de lei nº 
 
 451/VII, que não ficará afastada pelo facto de não se encontrar mencionada na 
 pergunta.
 
  
 
  
 
 23.  Também não procede a objecção de que a falta de clareza, objectividade e 
 precisão decorreria da referência a estabelecimento de saúde legalmente 
 autorizado, na medida em que a condição contida na parte final da pergunta 
 pressupõe a existência de estabelecimentos legalmente autorizados a realizar a 
 interrupção da gravidez por opção da mulher, que só existirão no futuro, na 
 hipótese de resposta positiva à própria pergunta.
 Com efeito, tal como o Acórdão nº 288/98 afirmou, para que um estabelecimento de 
 saúde possa ser legalmente autorizado para efeitos da pergunta não é necessário 
 que aquela autorização decorra de uma lei aprovada na sequência de maioritária 
 resposta afirmativa no referendo, tendo em conta o seguinte:
 
  
 
 (…) a definição das condições indispensáveis à atribuição de uma tal autorização 
 poderá constar de lei autónoma e, mesmo, preexistente, até porque já hoje é 
 possível efectuar, em certas circunstâncias, a interrupção voluntária da 
 gravidez em «estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido».
 
  
 
  
 
 24.  De todo o modo, a referência a estabelecimento de saúde legalmente 
 autorizado não predispõe para uma resposta afirmativa, nem transmite a ideia de 
 que seria absurda a penalização por os estabelecimentos de saúde já estarem 
 legalmente autorizados a realizar tais intervenções. Na realidade, tal condição 
 apenas exclui da despenalização o aborto realizado por instituição (ou pessoa) 
 que não reúna as condições de um estabelecimento de saúde legalmente autorizado.
 A não referência a tal condição é que poderia modificar o objecto da pergunta, 
 transfigurando‑a numa outra, em que estaria em causa uma “liberalização” da 
 interrupção voluntária da gravidez realizada em quaisquer condições sem 
 exigência de protecção da saúde da mulher grávida (sendo realizada por qualquer 
 pessoa, sem a formação profissional e ética que é exigida a quem exerça funções 
 e possa vir a praticar tal intervenção num estabelecimento de saúde legalmente 
 autorizado).
 Estaria então em causa a despenalização até às 10 semanas da interrupção 
 voluntária da gravidez, incluindo o chamado “aborto clandestino”. Mas, por não 
 ser esse o objecto da pergunta, a referência em causa não lhe retira a 
 objectividade. 
 Assim, em face de tudo quanto foi exposto, o Tribunal Constitucional considera 
 que a pergunta objecto do referendo respeita as exigências de clareza, 
 objectividade e precisão constantes da Constituição e da lei.
 
  
 
  
 
 25.  Assinale‑se, igualmente, que a presente proposta de referendo respeitou as 
 exigências constantes dos artigos 10º a 14º da Lei nº 15‑A/98, de 3 de Abril, 
 bem como a que resulta do artigo 15º do mesmo diploma legal. Com efeito, a 
 proposta de referendo coube a Deputados à Assembleia da República (artigo 10º, 
 nº 1) e assumiu a forma de projecto de resolução (artigo10º, nº 2), o qual foi 
 devidamente aprovado (artigo 13º) e posteriormente publicado na 1ª Série do 
 Diário da República (artigo 14º). 
 Por outro lado, esta proposta de resolução de referendo não envolve, no ano 
 económico em curso, aumento de despesas ou diminuição de receitas do Estado 
 previstas no Orçamento (artigo 11º). E também são respeitadas as exigências do 
 artigo 8º da Lei nº 15‑A/98, na redacção dada pela Lei Orgânica nº 4/2005, de 8 
 de Setembro. 
 
  
 
  
 
 26.  Compete ainda ao Tribunal verificar o requisito relativo ao universo 
 eleitoral previsto nos artigos 115º, nº 12, e 223º, nº 1, alínea f), da 
 Constituição.
 A proposta de referendo apenas prevê a participação dos cidadãos eleitores 
 recenseados no território nacional, colocando‑se, portanto, a pergunta sobre se 
 um referendo com este objecto poderá restringir desta forma o universo 
 eleitoral. 
 Há razões para uma resposta afirmativa relacionadas com o âmbito de validade 
 espacial do Direito Penal, conforme se concluiu no Acórdão nº 288/98. Com 
 efeito, os cidadãos portugueses residentes no estrangeiro não estão, em regra 
 sujeitos, à aplicação da lei penal portuguesa senão nas condições limitadas do 
 artigo 5º, nº 1, alínea c), do Código Penal. 
 Assim, a aplicação da lei penal portuguesa depende da própria solução da lei 
 penal do local em que residem e de serem encontrados em território nacional. O 
 facto de o princípio geral da aplicação da lei penal ser o princípio da 
 territorialidade (artigo 4º do Código Penal) torna a aplicação da lei penal 
 portuguesa a cidadãos residentes no estrangeiro relativamente excepcional e 
 condicionada. 
 Acresce que esta matéria não tem a ver especificamente com a particular situação 
 dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro, na sua condição de 
 emigrantes, razão que justificaria o alargamento do universo eleitoral a que se 
 refere o artigo 115º, nº 12, da Constituição. E, finalmente, o problema que o 
 referendo visa decidir tem especial relevância na perspectiva das condições 
 sociais e das instituições de saúde do local em que a gravidez e a maternidade 
 futura se desenrolam.
 
  
 
  
 
 27.  Por fim, o Tribunal Constitucional deverá analisar a conformidade material 
 do objecto do referendo com a Constituição, ao abrigo da competência emanada do 
 artigo 223º, nº 2, alínea f): “verificar previamente a constitucionalidade e 
 legalidade dos referendos nacionais”.
 Tal como o Acórdão nº 288/98 explicitou, entende‑se que no âmbito do controlo da 
 constitucionalidade do referendo se integra tal competência, até porque “seria 
 absurdo que, apesar de a Constituição estabelecer uma fiscalização preventiva 
 obrigatória da constitucionalidade do referendo, o povo pudesse ser chamado a 
 pronunciar‑se directamente sobre certa questão, quando o Tribunal 
 Constitucional, à partida, havia detectado a sua inutilidade, porquanto sempre 
 uma das possíveis respostas, a ser adoptada, determinaria a aprovação de 
 legislação que não poderia vir a ser aplicada, por inconstitucional”.
 E esta razão inscreve‑se numa exigível harmonização do princípio maioritário com 
 o princípio da constitucionalidade, em que o conflito entre ambos só pode ser 
 superado maximizando ambos os princípios, com a compressão das possibilidades de 
 expressão da vontade popular ab initio e não a posteriori. Reduzir‑se-á, assim, 
 como afirmou o Acórdão nº 288/98, o risco da ocorrência de um conflito aberto 
 entre os dois princípios. 
 De qualquer modo, a superação do conflito é sempre realizada nos termos do 
 Estado de Direito democrático que vive no cerne do princípio da 
 constitucionalidade – isto é, atendendo ao conteúdo de direitos, liberdades e 
 garantias fundamentais que dão pleno sentido ao princípio maioritário enquanto 
 princípio democrático. 
 Seguindo, pois, a orientação do Acórdão nº 288/98, o Tribunal Constitucional 
 apreciará, em concreto, a constitucionalidade do objecto da pergunta, no sentido 
 de verificar se qualquer das respostas possíveis implica a adopção de normas 
 legais inconstitucionais.
 
  
 
  
 
 28.  A verificação da constitucionalidade da pergunta objecto do referendo impõe 
 que se confrontem as respostas afirmativa e negativa com os princípios e as 
 normas constitucionais.
 Analisar‑se‑á, consequentemente, se uma concordância com a despenalização da 
 interrupção voluntária da gravidez até às 10 semanas, por opção da mulher, em 
 estabelecimento de saúde legalmente autorizado, implica uma solução 
 inconstitucional e, inversamente, se de uma resposta negativa resulta também uma 
 tal solução.
 O âmbito da análise não deverá abranger a apreciação de todas as soluções 
 legislativas concretas que uma resposta afirmativa ou negativa possa sustentar. 
 Apenas pode estar em causa a verificação ou controlo sobre se uma das respostas 
 
 (ou até as duas) do dilema subjacente à pergunta determina uma violação da 
 Constituição, inquinando todas as soluções legislativas concretas que se apoiem 
 nessa mesma resposta.
 Não terá, assim, o Tribunal Constitucional de equacionar todo o universo de 
 soluções legislativas presentes ou futuras concebíveis que dêem cumprimento às 
 respostas, mas apenas de analisar se, na essência ou raiz das respostas, se 
 detecta uma violação da Constituição, que se projectará, enquanto tal, nas 
 soluções legislativas.
 
  
 
  
 
 29.  Começando por analisar a resposta afirmativa, coloca-se o problema de saber 
 se a despenalização referida na pergunta viola a protecção consagrada no artigo 
 
 24º, nº 1, da Constituição, segundo o qual a vida humana é inviolável.
 No plano da discussão jurídico‑constitucional, a tese a favor da 
 inconstitucionalidade assume mais do que uma configuração. Segundo uma 
 configuração mais radical, decorre da protecção da inviolabilidade da vida 
 humana que todas as suas fases devem ser protegidas de igual modo, existindo 
 verdadeiramente um direito subjectivo à vida de que o feto seria titular. O 
 pressuposto da essencial igualdade entre todas as fases da vida levaria a 
 considerar que uma despenalização da interrupção voluntária da gravidez implica 
 a violabilidade da vida humana através de um tratamento do feto diverso do que 
 se concede à pessoa já nascida.
 Esta apresentação da tese da inconstitucionalidade é, no entanto, rejeitável por 
 várias considerações. 
 Da inviolabilidade da vida humana como fórmula de tutela jurídica não deriva, 
 desde logo, que a protecção contra agressões postule um direito subjectivo do 
 feto ou que não seja de distinguir um direito subjectivo à vida de uma protecção 
 objectiva da vida intra-uterina, como resulta da jurisprudência constitucional 
 portuguesa e de outros países europeus. O facto de o feto ser tutelado em nome 
 da dignidade da vida humana não significa que haja título idêntico ao 
 reconhecido a partir do nascimento. 
 Na verdade, constata-se que na generalidade dos sistemas jurídicos o feto não é 
 considerado uma pessoa titular de direitos (veja-se a distinção entre “ser 
 humano” e “pessoa humana” constante da Convenção de Oviedo do Conselho da Europa 
 
 – Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano 
 face às Aplicações da Biologia e da Medicina, aprovada para ratificação pela 
 Resolução da Assembleia da República nº 1/2001 e ratificada pelo Decreto do 
 Presidente da República nº 2/2002 – cf. D.R., I Série A, de 3 de Janeiro de 
 
 2001). Esta perspectiva insere-se num contexto histórico, cultural e ético que 
 recolhe informação da Ciência mas não extrai dela, por mera dedução lógica, o 
 conceito de pessoa. Os dados resultantes da observação dos processos naturais 
 relativos a funções vitais não determinam, como condição necessária e 
 suficiente, as valorações próprias do Direito. Por exemplo, os critérios sobre o 
 início das funções cerebrais ou da actividade cerebral superior (cuja 
 determinação não é, aliás, indiscutível) não dão, em si mesmos, solução aos 
 conflitos de valores.
 Por outro lado, nem a inviolabilidade da vida humana nem sequer a necessidade de 
 protecção da vida intra‑uterina impõem especificamente uma tutela penal idêntica 
 em todas as fases da vida, tal como concluiu o Acórdão nº 288/98. A própria 
 história do Direito Penal revela-o, ao ter feito quase sempre a distinção entre 
 homicídio e aborto (cf. Glanville Williams, The Sanctity of Life and Criminal 
 Law, 1957, e para a história do Direito Penal português, Rui Pereira, O crime de 
 aborto e a reforma penal, 1995). 
 Além disso, entre a definição do princípio da inviolabilidade da vida humana e a 
 intervenção penal não há uma linha recta ou uma relação de necessidade lógica, 
 nomeadamente pela interferência de perspectivas de exclusão da ilicitude, de 
 desculpa ou ainda de afastamento da responsabilidade devido à “necessidade da 
 pena”, cuja relevância varia conforme se trate da vida intra-uterina ou de 
 pessoa já nascida. 
 Ainda no plano da interpretação da Constituição, há quem entenda, segundo a 
 linha de orientação de um Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria‑Geral 
 da República, que o artigo 24º, nº 1, na mente dos constituintes, não pretendeu 
 abranger a protecção da vida intra‑uterina, afastando também, por aí, a 
 necessidade de uma referência a esse preceito e ao princípio da inviolabilidade 
 da vida humana do problema da despenalização da interrupção voluntária da 
 gravidez (cf. Acórdão nº 288/98, em que, na mesma perspectiva, se refere o 
 Parecer da Procuradoria‑Geral da República nº 31/82, Boletim do Ministério da 
 Justiça nº 320, Novembro de 1982, p. 224 e ss.; ver ainda, como referência 
 paralela sobre a interpretação do artigo 2º da Convenção Europeia dos Direitos 
 do Homem, a decisão da CEDH de 13 de Maio de 1980, no caso X c. Reino Unido – 
 Décisions et Rapports, vol. 19, Outubro de 1980, p. 244).
 Deste modo, a partir de qualquer uma destas considerações – mesmo que não se 
 concorde com todas –, a perspectiva de inconstitucionalidade não encontra 
 fundamento no artigo 24º da Constituição.
 
  
 
  
 
 30.  Note‑se que uma linha de argumentação a favor da inconstitucionalidade que 
 nivele a vida em todos os seus estádios poderia levar, no limite, a considerar 
 inconstitucional a solução do actual Código Penal, que admite a não punibilidade 
 de certas situações de interrupção voluntária da gravidez, segundo uma lógica de 
 ponderação de valores baseada no método das indicações. De acordo com tal 
 perspectiva poderia ser, na verdade, inconstitucional qualquer uma das respostas 
 
 (o sim e o não), porque a manutenção da actual situação legislativa já conduzirá 
 a uma sub‑protecção da vida intra‑uterina.
 Mas, em suma, não poderá aceitar‑se esta perspectiva não só porque ela não 
 decorre do artigo 24º, nº 1, da Constituição, mas também por partir de 
 pressupostos inaceitáveis, que levariam, em última análise, a negar a relevância 
 de uma específica ponderação de valores em matéria de interrupção voluntária da 
 gravidez relativamente ao crime de homicídio. 
 Ora, a negação da possibilidade de uma específica ponderação de valores na 
 interrupção voluntária da gravidez levaria, em total coerência, a soluções 
 inconstitucionais como seria, por exemplo, a rejeição de uma causa de exclusão 
 da ilicitude ou de não punibilidade no chamado aborto terapêutico, impondo à 
 mulher grávida, mesmo que não fosse essa a sua vontade, uma grave lesão do corpo 
 ou da saúde ou o sacrifício da própria vida.
 
  
 
  
 
 31.  Porém, uma perspectiva que parta da não inconstitucionalidade de causas de 
 exclusão da ilicitude ou mesmo do mero afastamento da punibilidade a partir de 
 uma ponderação de valores, como sucede no actual artigo 142º, nº 1, do Código 
 Penal, pode alegar ainda que o método dos prazos ínsito na pergunta conduz a uma 
 total desprotecção jurídica da vida intra‑uterina nas dez primeiras semanas de 
 gravidez, em nome da liberdade da mulher grávida. Seria, por isso, 
 inconstitucional a despenalização da interrupção voluntária da gravidez naqueles 
 termos.
 O Acórdão nº 288/98 respondeu directamente a essa argumentação, não a aceitando 
 e sustentando que o método dos prazos, tal como surge na pergunta, realiza uma 
 harmonização ou concordância prática entre os valores conflituantes, pois que 
 tal harmonização ou concordância prática «se faz entre bens jurídicos, 
 implicando normalmente que, em cada caso, haja um interesse que acaba por 
 prevalecer e outro por ser sacrificado. Quer isto dizer que, sempre dentro da 
 perspectiva que agora se explicita, o legislador não poderia estabelecer, por 
 exemplo, que o direito ao livre desenvolvimento da personalidade da mulher era 
 hierarquicamente superior ao bem jurídico “vida humana intra‑uterina” e, 
 consequentemente, reconhecer um genérico direito a abortar, independentemente de 
 quaisquer prazos ou indicações; mas, em contrapartida, já pode determinar que, 
 para harmonizar ambos os interesses, se terão em conta prazos e circunstâncias, 
 ficando a interrupção voluntária da gravidez dependente apenas da opção da 
 mulher nas primeiras dez semanas, condicionada a certas indicações em fases 
 subsequentes e, em princípio, proibida a partir do último estádio de 
 desenvolvimento do feto».
 E acrescenta o mesmo aresto: “Assim, neste último caso, procura‑se regular a 
 interrupção voluntária da gravidez, ainda de acordo com uma certa ponderação de 
 interesses que tem também como critério o tempo de gestação, pelo que a referida 
 ponderação se há‑de efectuar, tendo em conta os direitos da mulher e a protecção 
 do feto, em função de todo o tempo de gravidez, não sendo, portanto, exacto 
 considerar isoladamente que, durante as primeiras dez semanas, não existe 
 qualquer valoração da vida intra‑uterina; num contexto global, esta será quase 
 sempre prevalecente nas últimas semanas, enquanto nas primeiras se dará maior 
 relevo à autonomia da mulher (uma vez respeitadas certas tramitações legais que, 
 aliás, podem traduzir uma preocupação de defesa da vida intra‑uterina)”.
 
  
 
  
 
 32.  Adoptando o ponto de vista do aresto citado, ainda se acrescentará que a 
 perspectiva de que o método dos prazos, tal como está inscrita na pergunta, só 
 exprimiria uma absoluta rejeição da protecção jurídica da vida intra‑uterina se 
 não existissem, mesmo nessa fase, meios legais de protecção da maternidade na 
 Ordem Jurídica portuguesa, que deverão actuar no sentido de dar a oportunidade à 
 mulher grávida de se decidir pela maternidade.
 A criminalização da interrupção voluntária da gravidez é, aliás, apenas um modo 
 sancionatório de tutela da vida intra‑uterina e nunca o meio preferencial de 
 protecção jurídica, dada a natureza do conflito vivido pela mulher grávida e o 
 sentido comum da maternidade (na gravidez, estabelece‑se, em princípio, uma 
 forte relação emocional, de proximidade e de amor pelo ser em gestação e não 
 meramente uma “relação de respeito” por um bem alheio). 
 Assim, existem, na Ordem Jurídica portuguesa, vários regimes de protecção da 
 maternidade, nomeadamente os previstos nos artigos 33º a 52º do Código do 
 Trabalho, 66º a 113º da Lei nº 35/2004, de 29 de Julho, a Lei nº 3/84, de 24 de 
 Março, relativa à educação sexual e ao planeamento familiar, a Lei nº 120/99, de 
 
 11 de Agosto, que reforça as garantias do direito à saúde reprodutiva, a Lei nº 
 
 90/2001, de 20 de Agosto, que toma medidas de apoio social a pais e mães 
 estudantes, o Decreto-Lei nº 154/88, de 29 de Abril, relativo à protecção da 
 maternidade, paternidade e adopção no âmbito da Segurança Social, e o 
 Decreto-Lei nº 77/2005, de 13 de Abril.
 
  
 
  
 
 33.  Dir‑se‑á ainda que a argumentação que considera existir uma total 
 desprotecção da vida intra‑uterina na possibilidade de opção pela interrupção 
 voluntária da gravidez nas primeiras dez semanas, negando existir qualquer 
 ponderação de valores no método dos prazos, rejeita que a liberdade de 
 desenvolver um projecto de vida pela mulher (artigo 26º da Constituição), como 
 expressão do desenvolvimento da personalidade, possa ser um dos valores a 
 harmonizar com a vida intra‑uterina. No entanto, a discordância quanto ao modo 
 como se faz a ponderação ou a harmonização não justifica a afirmação da 
 inexistência de ponderação ou harmonização.
 E não se trata de admitir que uma “privacy”, como direito constitucional a 
 abortar livremente, prevaleça sobre a vida do feto, mas antes reconhecer que, 
 para efeitos de punição, num tempo delimitado, a liberdade de opção da mulher 
 possa impedir a intervenção do Direito Penal.
 Desta forma, sem divergir, no essencial, da linha de orientação dos Acórdãos nºs 
 
 25/84 e 85/85 quanto à dignidade da vida intra‑uterina como bem jurídico 
 protegido pela Constituição, independentemente do momento em que se entenda que 
 esta tem início, sempre se reconhecerá – tal como fez o Acórdão nº 288/98 – que 
 a presente pergunta não pressupõe o abandono da protecção jurídica da vida 
 intra‑uterina e se coloca no plano de uma ponderação de valores e mesmo de uma 
 harmonização, concordância prática, coordenação e combinação dos bens jurídicos 
 em conflito, de forma a evitar o sacrifício total de uns em relação a outros. 
 Apenas se terá de concluir que à liberdade de manter um projecto de vida é dada 
 uma superior valoração, nesta primeira fase, para efeitos de não‑punição, sem 
 que isso queira e possa implicar “abandono jurídico” da vida intra‑uterina.
 
  
 
  
 
 34.  Tal como já resultava do Acórdão nº 288/98, deverá salientar‑se que estamos 
 no terreno da responsabilidade penal, onde prevalece o princípio da necessidade 
 da pena e não perante uma mera discussão sobre o reconhecimento de valores ou 
 meras lógicas de merecimento de protecção jurídica. 
 Nesse patamar, não só grande parte da doutrina nega a existência de 
 incriminações (implícitas) obrigatórias (cf. Costa Andrade, “O aborto como 
 problema de política criminal”, Revista da Ordem dos Advogados, ano 39, 
 Maio‑Agosto, 1979, p. 293 e ss., Rui Pereira, O crime de aborto e a reforma 
 penal, ob.cit., p. 75 e ss., Claus Roxin, Strafrecht Allgemeiner Teil, I, 
 Grundlagen, Aufbau der Verbrechenslehre, 3ª ed., 1997, p. 25 e ss., Figueiredo 
 Dias, Direito Penal, Parte Geral, 2004, p. 122 e ss., e, entre outros, Fernanda 
 Palma, Direito Constitucional Penal, 2006, p. 100 e ss.), mas também existe a 
 necessidade de avaliação político‑criminal das incriminações, do seu efeito 
 preventivo, de efeitos criminógenos associados, do afrontamento de outros 
 valores, avaliação essa que incumbirá ao legislador realizar (cf. Fernanda 
 Palma, ob.cit., p. 54 e ss.). E ainda se dirá, tal como o Acórdão nº 288/98, 
 que:
 
  
 A admissibilidade constitucional do reconhecimento da licitude da interrupção 
 voluntária da gravidez realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez 
 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado, ou, pelo menos, da 
 renúncia à utilização de sanções penais, nessas circunstâncias, não pode, porém, 
 ser interpretada como aceitação de que a Lei Fundamental consagra o aborto como 
 método de planeamento familiar ou de controlo da natalidade.
 A isso se opõe o entendimento de que a vida humana intra‑uterina constitui um 
 bem jurídico protegido, independentemente do título a que deva tal protecção.
 Nesta conformidade, afiguram‑se particularmente importantes, por poderem vir a 
 revelar‑se bem mais eficazes que a própria repressão penal, medidas comuns à 
 generalidade das legislações europeias sobre a matéria, como sejam a 
 obrigatoriedade de uma prévia consulta de aconselhamento, em que possa ser dada 
 
 à mulher a informação necessária sobre os direitos sociais e os apoios de que 
 poderia beneficiar no caso de levar a termo a gravidez, bem como o 
 estabelecimento de um período de reflexão entre essa consulta e a intervenção 
 abortiva, para assegurar que a mulher tomou a sua decisão de forma livre, 
 informada e não precipitada, evitando‑se a interrupção da gravidez motivada por 
 súbito desespero.  
 
 É bem verdade que estes elementos não constam da pergunta formulada. Todavia, 
 como já se referiu, não seria possível integrá‑los a todos na mencionada 
 pergunta sem que esta assumisse proporções inadmissíveis. E nada permite 
 concluir que, em caso de resposta afirmativa no referendo, não possam vir a 
 constar da legislação aprovada na sua sequência.
 
  
 Por tudo isto, a resposta afirmativa à pergunta não será inconstitucional.
 
  
 
  
 
  
 
 35.  Caberá igualmente ao Tribunal Constitucional questionar se uma resposta 
 negativa, que impedisse a modificação legislativa do sistema actual, no sentido 
 da despenalização nas primeiras dez semanas nas condições apontadas pela 
 pergunta (é este o único sentido de uma tal resposta), seria inconstitucional.
 A resposta a esta última questão é também negativa. E é negativa, por variadas 
 razões. 
 A não despenalização não implica qualquer alteração do sistema vigente. E este, 
 tal como está configurado no artigo 142º, nº 1, do Código Penal, permite uma 
 ponderação de valores que exclui a incriminação em situações de grave lesão de 
 direitos da mulher grávida, como a sua vida e saúde, a sua dignidade pessoal 
 
 (aborto ético) ou mesmo as suas condições psíquicas e materiais de maternidade 
 
 (aborto eugénico), cuja não relevância excludente da responsabilidade poderia 
 afrontar princípios constitucionais, como os princípios da culpa e da 
 necessidade da pena. A isto acresce que o sistema penal contém, nomeadamente, 
 causas de desculpa que sempre deverão impedir a punição, em situações de não 
 censurabilidade devido a grave conflito existencial.
 Aliás, a resposta negativa não impedirá, ainda assim, uma solução mais 
 abrangente no sentido da exclusão de responsabilidade pela qual o legislador 
 poderia optar de acordo com os princípios constitucionais. 
 
  
 
  
 
 36.  E mesmo para quem não considere suficiente, na perspectiva do princípio de 
 necessidade da pena, um sistema de ponderação com os critérios actuais e entenda 
 que deveriam estar consagrados outros critérios, entre os quais o da relevância 
 da livre opção em certo prazo inicial da gravidez, será admissível sujeitar a 
 referendo a alternativa entre uma ponderação limitada, através do método 
 restrito das indicações como o actual, e a solução da despenalização nas 
 primeiras dez semanas. 
 De facto, reconhecer-se-á, nesse caso, que estamos perante matéria controversa 
 na sociedade, em que se atingem perspectivas sobre valores que reflectem visões 
 da vida muito íntimas e enraizadas. Com efeito, sendo necessário resolver o 
 dilema pela imposição a uma parte dos cidadãos de uma solução que afecta as suas 
 concepções de vida, em aspectos existenciais de que podem discordar 
 profundamente, é constitucionalmente justificável devolver ao voto directo a 
 solução de tal dilema, concedendo uma oportunidade alargada de discussão e de 
 pronúncia.
 
  
 
  
 
 37.  Estaremos ante uma situação em que tem todo o sentido afirmar, como Tribe, 
 que “numa democracia, votar e persuadir é tudo o que temos. Nem sequer a 
 Constituição está para além de uma revisão. E desde que nós tenhamos de nos 
 persuadir uns aos outros mesmo acerca de que direitos a Constituição deve 
 colocar fora do alcance do voto da maioria, nada, nem a vida nem a liberdade, 
 pode ser olhada como imune à política com letras grandes” (The Clash of 
 Absolutes, ob.cit., p. 240).
 Poder‑se‑á, na realidade, pugnar pela não discutibilidade de certos valores, mas 
 está para além de um modo cooperativo de decisão sobre valores entender que a 
 própria discutibilidade ou indiscutibilidade de alguns valores seja, ela 
 própria, indiscutível. Como, neste caso, não estaremos sequer perante matéria 
 subtraída pela Constituição à possibilidade de ser objecto de referendo ou que 
 seja insusceptível de revisão constitucional, nada impede o legislador de dar 
 lugar a uma discussão alargada e directa antes de optar por uma solução, apesar 
 de não estar obrigado a fazê‑lo.
 Por último, mesmo que se entenda que não estão directamente em causa a aceitação 
 e a rejeição do valor da vida intra‑uterina, mas apenas se verifica um problema 
 de política criminal – e, nesse sentido, não haverá sequer necessidade de 
 discutir a colocação em crise do direito à vida ou da protecção da vida 
 intra‑uterina –, também não viola a Constituição eleger a presente pergunta como 
 objecto de um referendo. Nada impede o legislador de apurar se dispõe de 
 condições para fazer uma ponderação de necessidade aceitável por uma vasta 
 maioria.
 Em suma, como foi afirmado no Acórdão nº 288/98, entende‑se que “não havendo uma 
 imposição constitucional de criminalização na situação em apreço, cabe na 
 liberdade de conformação legislativa a opção entre punir criminalmente ou 
 despenalizar a interrupção voluntária da gravidez efectuada nas condições 
 referidas na pergunta constante da proposta de referendo aprovada pela Resolução 
 nº 16/98 da Assembleia da República”.
 Concluindo este ponto, o Tribunal Constitucional reafirma a solução do Acórdão 
 nº 288/98, considerando que nenhuma das respostas – afirmativa ou negativa – à 
 pergunta formulada implica necessariamente uma solução jurídica incompatível com 
 a Constituição.
 
  
 
  
 IV
 Decisão 
 
  
 
 38.  Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide:
 
  
 
 1º  Considerar que 
 a)  A proposta de referendo constante da Resolução nº 54‑A/2006 da Assembleia da 
 República foi aprovada pelo órgão competente para o efeito, nos termos do 
 disposto no nº 1 do artigo 115º da Constituição da República Portuguesa;
 b)  O referendo proposto tem por objecto questão de relevante interesse nacional 
 que deve ser decidida pela Assembleia da República através de acto legislativo, 
 conforme se preceitua no nº 3 do mesmo artigo;
 c)  A matéria sobre que ele incide não se encontra excluída do âmbito 
 referendário, de acordo com o estabelecido no nº 4 do mencionado artigo 115º;
 d)  O referendo proposto recai sobre uma só matéria, através de uma só pergunta, 
 sem quaisquer considerandos, preâmbulos ou notas explicativas, sendo a questão 
 formulada para uma resposta de sim ou não e cumprindo, nestes aspectos, as 
 exigências constantes do nº 6 do artigo 115º da Constituição e do artigo 7º da 
 Lei Orgânica do Regime do Referendo;
 e)  A pergunta formulada satisfaz os requisitos de objectividade, clareza e 
 precisão, enunciados nas mesmas disposições;
 f)   A proposta de referendo respeitou as formalidades especificadas nos artigos 
 
 10º a 14º da Lei Orgânica do Regime do Referendo;
 g)  A restrição da participação no referendo aos cidadãos residentes em 
 território nacional cumpre os requisitos do universo eleitoral prescritos no nºs 
 
 1 e 12 do artigo 115º da Constituição;
 h)  O Tribunal Constitucional, no âmbito da verificação prévia da 
 constitucionalidade do referendo, a que se refere a alínea f) do nº 2 do artigo 
 
 223º da Constituição, é competente para apreciar se a pergunta formulada não 
 coloca os eleitores perante uma questão dilemática em que um dos respectivos 
 termos aponta para uma solução jurídica inconstitucional;   
 i)   Nenhuma das respostas – afirmativa ou negativa – à pergunta formulada 
 implica necessariamente uma solução jurídica incompatível com a Constituição.
 
  
 
 2º  Consequentemente, ter por verificada a constitucionalidade e a legalidade do 
 referendo proposto na mencionada Resolução nº 54‑A/2006, da Assembleia da 
 República.
 
  
 
  
 Lisboa, 15 de Novembro de 2006
 Maria Fernanda Palma
 Bravo Serra
 Gil Galvão
 Vítor Gomes
 Maria Helena Brito
 Maria João Antunes (com declaração)
 
                                      Rui Manuel Moura Ramos. Vencido quanto às 
 alíneas e) e i) do n.º 1, e ao n.º 2 da decisão, e com declaração de voto quanto 
 
 à alínea g) do n.º 1, nos termos da declaração de voto junta.
 
                              Maria dos Prazeres Pizarro Beleza. Vencida quanto 
 
 às alíneas e), h) e i) do n.º 1 e, consequentemente quanto ao n.º 2 da decisão, 
 conforme declaração de voto junta.
 
                                 Paulo Mota Pinto (vencido quanto às alíneas e), 
 g), e i) do n.º 1, e, consequentemente, quanto ao n.º 2 da decisão, nos termos 
 da declaração de voto que junto)
 
                                 Benjamim Rodrigues (vencido quanto às alíneas e) 
 e i) do n.º 1 e, decorrentemente, ao n.º 2 da decisão, e com declaração de voto 
 quanto à sua alínea g) do n.º 1, nos termos da declaração de voto junta.)
 
                          Mário José de Araújo Torres (Vencido relativamente às 
 alíneas e), g) e i) do n.º 1 e, consequencialmente, ao n.º 2 da decisão, nos 
 termos da declaração de voto junta)
 
                             Carlos Pamplona de Oliveira (vencido quanto às 
 alíneas  e) e i) do n.º 1 e quanto ao n.º 2 da decisão conforme declaração em 
 anexo que, para além disto, abrange as matérias  tratadas nas alíneas b), c), 
 d), g) e h) do aludido n.º 1 da decisão do presente aresto).
 Artur Maurício
 
  
 
  
 
  
 DECLARAÇÃO DE VOTO
 
  
 
  
 
  
 Votei a alínea h) do ponto 1º da Decisão, sem prejuízo de ulterior reponderação 
 da questão de saber se o Tribunal Constitucional é competente, no âmbito da 
 verificação prévia da constitucionalidade do referendo, para apreciar se a 
 pergunta formulada não coloca os eleitores perante uma questão dilemática em que 
 um dos respectivos termos aponta para uma solução jurídica inconstitucional.
 Maria João Antunes
 
  
 
  
 DECLARAÇÃO DE VOTO
 
  
 
  
 
                  1. Votei vencido o número 2 da decisão, considerando não 
 verificada a constitucionalidade e legalidade do referendo proposto, uma vez que 
 não acompanho as conclusões constantes das alíneas e) e i) do número 1, pelas 
 razões que passo sumariamente a enunciar. Ficaram-me ainda dúvidas quanto à 
 conclusão expressa na alínea g) do número 1, que não foram porém suficientes 
 para me levar a afastar, neste ponto, da decisão – e enunciarei igualmente a 
 justificação do meu ponto de vista.
 
  
 
                  2. A alínea e) da decisão dá por verificados os requisitos de 
 objectividade, clareza e precisão exigidos pelo número 6 do artigo 115º da 
 Constituição. Começando pelo primeiro, pode desde logo perguntar-se se ele não 
 será afectado pelo o inciso final da pergunta “em estabelecimento de saúde 
 legalmente autorizado”, na medida em que a sua inclusão nesta é susceptível de 
 ser vista como induzindo uma resposta afirmativa. Com efeito, a autorização 
 legal pode considerar-se reportada  à realização da interrupção voluntária da 
 gravidez nos termos em que se pretende questionar o eleitorado, e só em caso de 
 resposta afirmativa existiriam estabelecimentos autorizados a levá-la a cabo. 
 Admitimos no entanto que por tal inciso se tenha em vista a existência de 
 estabelecimentos de saúde legalmente autorizados a praticar em geral actos 
 cirúrgicos, ou actos do tipo daqueles em que se incluem os que interferem no 
 processo de interrupção voluntária da gravidez, o que afastaria o risco de a 
 pergunta predispor necessariamente a uma resposta positiva. Só que, a ser assim, 
 tal redunda numa menor clareza da pergunta, uma vez que no respectivo contexto 
 ela consente a dúvida legítima sobre o que se entende por “estabelecimento de 
 saúde legalmente autorizado”. Dúvida que poderia aliás ser facilmente 
 esclarecida se se falasse em “estabelecimento de saúde a autorizar”. Semelhante 
 ambivalência pode ainda ligar-se ao conceito de “despenalização” que integra a 
 pergunta, na medida em que nos podemos legitimamente interrogar sobre o seu 
 alcance. Visa ele a supressão total da infracção, nas suas duas componentes, a 
 hipótese e a sanção, ou limita-se apenas a esta última, deixando permanecer o 
 carácter ilícito do comportamento mas sem lhe ligar qualquer  sanção penal, na 
 linha de uma tendência referida no acórdão e que  contesta a racionalidade da 
 ideia de que o crime reclama sempre uma pena (nº 9 do acórdão)? Pode igualmente 
 questionar-se se o estádio visado pela pergunta é o de uma total e radical 
 descriminalização da interrupção voluntária da gravidez (quando realizada por 
 opção voluntária da mulher, nas primeiras dez semanas e em estabelecimento de 
 saúde legalmente autorizado), em termos de esta deixar, em tais condições, de 
 constituir um facto ilícito e de ser objecto de uma censura ético-jurídica (o 
 que parece ser inculcado pela última condição enunciada), ou se a ela apenas 
 deixa de estar ligada uma sanção  de carácter penal, sem que no entanto a ordem 
 jurídica deixe de a considerar como censurável. A falta de nitidez e de 
 univocidade dos sentidos possíveis da pergunta prejudica assim irremediavelmente 
 a sua clareza, em termos de justificar o nosso voto de vencido quanto à alínea 
 e) do nº 1 da decisão.
 
  
 
                  3. Também não sufragamos a afirmação, feita na alínea i) da 
 decisão, de que nenhuma das respostas – afirmativa ou negativa – à pergunta 
 formulada implica necessariamente uma solução jurídica incompatível com a 
 Constituição. Entendemos, na verdade, que tal sucede com a resposta afirmativa, 
 uma vez que, ao possibilitar a realização da interrupção voluntária da gravidez, 
 
 “por opção da mulher, nas primeiras dez semanas”, se lesa, de forma 
 constitucionalmente insuportável, o princípio da inviolabilidade da vida humana 
 consagrado no artigo 24º, nº 1 da Constituição. Em nosso entender, deste 
 princípio decorre igualmente a protecção da vida  intra-uterina, uma vez que 
 
 “funcionando o direito à vida como pressuposto e condição de todos os restantes 
 direitos do ser humano, (…), é o momento  de origem  da vida que torna operativo 
 o postulado constitucional da sua inviolabilidade” (Paulo Otero, Direito da 
 Vida, Coimbra, 2004, p. 82).
 
  
 
                  Do reconhecimento da protecção constitucional da vida 
 intra-uterina não decorre porém, em nosso entender, que lhe deva ser 
 necessariamente dispensada uma tutela jurídico-penal idêntica em todas as fases 
 da vida e que uma tal tutela seja absoluta. Designadamente, aceitamos que uma 
 lógica de ponderação de valores e de concordância prática como a que se exprime 
 no método das indicações (tal como consagrado presentemente entre nós ou 
 porventura noutras variantes) possa conduzir à não punibilidade de certas 
 situações de interrupção voluntária da gravidez. É por isso aliás que não temos 
 por constitucionalidade inadmissível uma resposta negativa à pergunta formulada, 
 uma vez que a solução jurídica que dela resultaria – a insusceptibilidade de 
 alterar, nos termos contemplados na pergunta, o regime da interrupção voluntária 
 da gravidez, com a consequente manutenção da situação presente – não contraria, 
 em nosso entender a Constituição. O que já contrariará a Constituição, pelo 
 contrário, será uma solução legislativa que, num dado período (dez semanas, no 
 texto da pergunta), permita o sacrifício de um bem jurídico constitucionalmente 
 protegido, por simples vontade da mãe, independentemente de toda e qualquer 
 outra consideração ou procedimento. Em tais casos, não poderá falar-se em nosso 
 entender de concordância prática ou de ponderação de valores, uma vez que 
 nenhuma protecção é dispensada ao bem jurídico vida. É certo que o acórdão 
 sustenta, diferentemente, existir ainda aqui uma ponderação, ou uma tentativa de 
 concordância prática, entre o bem jurídico vida (do feto) e o direito à 
 autodeterminação da mulher grávida. Simplesmente, entendemos que, com a solução 
 legal proposta, ao fazer prevalecer sempre, em todos os casos e 
 independentemente das circunstâncias, o que se designa por “direito ao livre 
 desenvolvimento da personalidade da mulher”, se está afinal a postergar 
 completamente a protecção da vida intra-uterina que cremos ser objecto de tutela 
 constitucional. Também não ignoramos que o acórdão pretende responder a esta 
 objecção considerando existir uma protecção do bem jurídico vida, como que vista 
 diacronicamente, uma vez que se a ponderação se faz nas primeiras dez semanas a 
 favor do direito ao livre desenvolvimento da mãe grávida ela passa depois por 
 admitir uma tentativa de concordância prática nos termos do método das 
 indicações para, no período final da gravidez, reverter à protecção total do bem 
 jurídico vida. Não podemos porém aceitar esta versão, na medida em que a 
 protecção dos bens jurídicos não pode ser vista em abstracto, desenraizada da 
 consideração dos seus titulares e que, no sistema proposto, o bem jurídico vida 
 
 é, sempre e independentemente das circunstâncias, desconsiderado nas primeiras 
 dez semanas, não lhe sendo nunca pois, em tal período, dispensada qualquer 
 protecção. É por conduzir assim, no período considerado, a essa total 
 desconsideração do bem de vida, quando radicado num sujeito, sejam quais forem 
 os motivos que levam à decisão da mãe, que entendemos que o sistema proposto 
 contraria o imperativo de protecção da vida intra-uterina constitucionalmente 
 consagrado, com o que temos por justificada a nossa discordância com a conclusão 
 formulada na alínea i) do nº 1.
 
  
 
                  4. Finalmente, não temos por conseguida a justificação 
 fornecida pelo acórdão para a definição do universo eleitoral a que procede a 
 proposta. Na verdade, explicar a restrição deste universo aos cidadãos 
 residentes em Portugal pela circunstância de a aplicação da lei penal portuguesa 
 se orientar em princípio por um critério de natureza territorial é conceber o 
 interesse dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro de forma redutora, 
 excluindo-o por não serem eventuais potenciais integrantes do círculo de pessoas 
 susceptíveis de serem abrangidas pelo comando de uma norma incriminadora. Ora, 
 diversamente, e também atento o relevante interesse nacional reconhecido à 
 questão objecto do referendo, a participação dos portugueses no estrangeiro 
 
 (rectius, daqueles de entre estes chamados  a participar) justifica-se pela 
 particular ligação destes (traduzida  pelo recenseamento) à vida nacional e pela 
 circunstância de a questão a decidir integrar como que o património cultural da 
 comunidade em  que se têm por inseridos.
 
  
 
                  Nestes termos, não temos por congruente a fundamentação dada 
 pelo acórdão a este propósito. Simplesmente, dispondo a Constituição, no seu 
 artigo 115º, nº 12, que os cidadãos portugueses residentes no estrangeiro 
 regularmente recenseados são chamados as participar nos referendos “quando 
 recaiam sobre matéria que lhes diga também especificamente respeito”, não temos 
 por claro o que se deva entender a este propósito. Ou seja, se é para nós nítido 
 que tal ocorre num eventual referendo sobre a vinculação de Portugal a um 
 tratado europeu, já temos dúvidas que uma questão central da  vida comunitária 
 diga especificamente respeito aos cidadãos residentes no estrangeiro, muito 
 embora não se possa duvidar que lhes diga igualmente respeito. É por não 
 podermos excluir, sob reserva de melhor estudo, que o citado preceito 
 constitucional vise como fundadas razões limitar em maior grau a participação 
 dos residentes no estrangeiro nas iniciativas referendárias, que nos limitamos a 
 dar conta das nossas dúvidas a este respeito, sem dissentir contudo da solução a 
 que o acórdão chegou a este respeito na alínea g) do nº 1 da decisão.
 Rui Manuel Moura Ramos
 
  
 DECLARAÇÃO DE VOTO
 
  
 
  
 Votei vencida quanto às alíneas e), h) e i) do n.º 1º. e, consequentemente, 
 quanto ao n.º 2º. da decisão, pelas razões que indiquei no voto de vencida que 
 juntei ao acórdão n.º 288/98, que transcrevo, e que a meu ver não são postas em 
 causa pelo presente acórdão:
 
 «Votei vencida quanto à alínea f) [correspondente à actual al. e) do n.º 1] do 
 n.º 1º. porque entendo que a pergunta não satisfaz, tanto quanto podia e devia 
 satisfazer, os requisitos constitucionalmente exigidos de objectividade, clareza 
 e precisão.
 
          No plano da objectividade, importaria sobretudo garantir, na medida do 
 possível, a neutralidade da pergunta relativamente às posições dominantes no 
 debate público da questão, em especial a posição que se traduz em manter o 
 actual sistema legal de não punibilidade do aborto terapêutico, eugénico ou 
 criminológico, nas condições definidas pelo artigo 142º. do Código Penal, o qual 
 se não pode confundir de modo nenhum com a ideia de penalização absoluta da 
 interrupção voluntária da gravidez. Ora, nos termos em que se encontra 
 formulada, a pergunta sugere uma escolha entre penalização e despenalização que 
 não exprime a alternativa emergente dos debates que lhe deram origem, e que se 
 coloca entre a despenalização relativa da lei actual e a despenalização absoluta 
 até às dez semanas de gravidez.
 
          Quanto aos requisitos da clareza e da precisão, eles mostram-se 
 imperfeitamente cumpridos, tanto do ponto de vista da resposta positiva ao 
 referendo, como do ponto de vista da resposta negativa. Com efeito, uma resposta 
 positiva pode ser entendida como favorável a uma simples eliminação da 
 incriminação do aborto, mantendo-se este, no entanto, como um acto não lícito 
 para outros efeitos, da mesma forma que pode ser entendida no sentido da 
 liberalização – e, portanto, da licitude – do aborto nas primeiras dez semanas 
 de gravidez, como sugere a parte final da pergunta ao referir-se à sua prática 
 em estabelecimento legalmente autorizado. Uma resposta negativa, por seu lado, 
 pode traduzir, quer o entendimento de que a criminalização deve ser mantida nos 
 termos actuais, quer a opinião de que tanto deve ser despenalizado o aborto 
 realizado em estabelecimento legalmente autorizado como o que é executado fora 
 desses estabelecimentos.
 
          Votei vencida quanto à alínea i) [actual al. h) do n.º 1] do n.º 1º. 
 por ter sérias dúvidas quanto à possibilidade de o Tribunal Constitucional, na 
 fase de fiscalização preventiva da constitucionalidade e da legalidade da 
 proposta de referendo, se pronunciar sobre a constitucionalidade material da 
 pergunta do ponto de vista da eventual desconformidade de alguma das respostas 
 possíveis. Os referendos exigem um grau de simplificação das questões que 
 normalmente inviabilizará um juízo fundado sobre a conformidade constitucional 
 das respostas hipotéticas. Só mais tarde, se e quando uma lei vier a ser 
 aprovada em consequência do referendo, e em face dos termos concretos da 
 regulamentação que nela se contiver, o Tribunal Constitucional estará em 
 condições de se pronunciar acerca da adequação constitucional das soluções 
 adoptadas. O referendo apenas produz consequências mediatas sobre a ordem 
 jurídica, relativamente indeterminadas e, não obstante o efeito vinculativo 
 sobre o legislador, aliás sem qualquer sanção eficaz, também incertas. 
 
  Poderá, em sentido contrário, argumentar-se que há questões em que os 
 parâmetros constitucionais são tão nítidos e peremptórios que não oferecerá 
 dificuldades um juízo sobre a constitucionalidade de uma questão submetida a 
 referendo, ainda que reduzida à sua máxima simplificação. Mesmo, todavia, que 
 fosse esse o caso presente, a apreciação da constitucionalidade material da 
 pergunta, quanto a este aspecto, encontra-se inviabilizada por força de 
 imprecisões e ambiguidades de que, a meu ver, ela padece. Refiro-me, 
 nomeadamente, à incerteza do significado de uma resposta positiva, a que acima 
 aludi, pois a diferença entre a liberalização e a simples despenalização do 
 aborto tem decerto profundas implicações constitucionais.
 
  Se, no limite, se poderia talvez defender que a simples descriminalização é 
 compatível com o princípio da inviolabilidade da vida humana, ficando esta 
 protegida por formas de tutela jurídica sem carácter penal, já, porém, a 
 liberalização, no sentido de tornar a interrupção voluntária da gravidez um acto 
 lícito não condicionado por qualquer causa justificativa, me parece 
 inconciliável com o princípio da inviolabilidade da vida humana, razão pela qual 
 entendo que deveria ser mantida a jurisprudência deste Tribunal, fixada nos 
 acórdãos nºs 25/84 e 85/85, apenas compatível com o sistema das indicações. 
 Fica, assim, igualmente fundamentado o meu voto de vencida quanto à alínea j) 
 
 [actual al. i) do n.º 1] do mesmo n.º 1º. 
 Fica de igual modo justificado que, na falta de objecções à formulação da 
 pergunta, me teria pronunciado no sentido  de considerar preenchidos os 
 requisitos de realização do referendo que, na perspectiva atrás desenvolvida, 
 incumbe ao Tribunal, neste momento, apreciar, possibilitando assim o 
 conhecimento qualificado da concepção dominante sobre a matéria em causa. Tendo, 
 porém, em conta as considerações precedentes, votei contra o segundo ponto da 
 decisão.»
 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
 
  
 
  
 DECLARAÇÃO DE VOTO
 Votei vencido quanto às alíneas e), g) e i) do n.º 1, e, consequentemente, 
 quanto ao n.º 2 da decisão, pelas razões que passo a expor:
 
 1.A minha discordância em relação à alínea e) assenta fundamentalmente nas 
 razões expostas na declaração de voto que juntei ao acórdão n.º 288/98 (a que 
 pertencem os passos retomados seguidamente). A meu ver, as exigências, 
 constantes dos artigos 115.º, n.º 6, da Constituição, e 7.º, n.º 2, da Lei 
 Orgânica do Regime do Referendo, de que as perguntas objecto de referendo sejam 
 formuladas com objectividade, clareza e precisão, são cruciais para assegurar a 
 correcção e a idoneidade democrática do procedimento referendário. Elas visam 
 permitir aos eleitores a leitura e compreensão acessível e sem ambiguidades da 
 pergunta, evitando “que a vontade expressa dos eleitores seja falsificada pela 
 errónea representação das questões” e eliminando a possível sugestão de 
 respostas, directa ou implícita (J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, 
 Constituição da República Portuguesa anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, anot. X ao 
 art. 118.º). Requer-se, assim, “a minoração, na medida do possível, do risco de 
 leituras e entendimentos da questão pelos seus destinatários que possam – 
 directa ou implicitamente, por interrogações ou ambiguidades que suscitem no 
 eleitor – apontar para uma das respostas alternativas. Sendo esta a finalidade 
 precípua das referidas exigências, impõe-se concluir que elas devem ser 
 apreciadas a partir justamente do ponto de vista dos destinatários, considerando 
 mesmo, mais do que um ‘tipo médio’ de eleitor, um tipo de eleitor com graus de 
 instrução e literacia abaixo da média, e não podendo, assim, a precisão e o 
 rigor técnico-científicos da questão prevalecer, na medida em que sejam 
 susceptíveis de afectar a clareza para aquele tipo de eleitor. Por outro lado, 
 clareza e objectividade afiguram-se-me necessariamente atributos relativos, 
 podendo dizer-se que esta ou aquela formulação é mais ou menos clara, ou mais ou 
 menos objectiva, em termos de respeitar os requisitos constitucionais e legais 
 mínimos, mas tendo de considerar-se neste juízo a maior ou menor frequência do 
 uso de certas expressões na linguagem acessível aos destinatários da questão, 
 bem como a existência de expressões ou formulações alternativas, muito próximas 
 ou praticamente equivalentes, mas significativamente mais claras e objectivas”.
 Continuo a considerar que a pergunta proposta não satisfaz o requisito de 
 objectividade, designadamente, por o enquadramento na frase da expressão “em 
 estabelecimento legalmente autorizado” se afigurar susceptível de conduzir a um 
 enviesamento da resposta, ou, pelo menos, de despertar dúvidas nos 
 destinatários. Com efeito, “a condição contida nesta parte final da pergunta 
 pressupõe a existência de estabelecimentos legalmente autorizados a realizar a 
 interrupção voluntária da gravidez por opção da mulher, mas estes só existirão 
 em caso de resposta positiva à própria pergunta posta à consideração do 
 eleitorado. A hipótese da pergunta pressupõe, pois, uma resposta positiva, e 
 pode predispor a esta resposta por se entender que, existindo estabelecimentos 
 legalmente autorizados a realizar a interrupção voluntária da gravidez nas 
 condições definidas, seria paradoxal penalizar esta interrupção”. A meu ver, 
 este ponto pode, pelo menos, continuar a despertar dúvidas ao leitor que ignore 
 o estado actual da nossa legislação, no que toca à inexistência de tal 
 autorização legal, e considero que o seu esclarecimento não é de remeter apenas 
 para a campanha eleitoral, não devendo permitir-se qualquer enviesamento da 
 questão a submeter a referendo. Nem creio que à utilização do instituto do 
 referendo seja inerente o risco de tais ambiguidades. Deve antes dizer-se, a meu 
 ver, que, não podendo simplesmente elencar-se nomes ou símbolos (como nos 
 restantes actos eleitorais), e antes se tendo que formular questões – tarefa 
 mais sujeita a manipulações e distorções – “por maioria de razão, a exigência de 
 objectividade surge acrescida” (assim, Maria Benedita Urbano, O Referendo, 
 Coimbra, 1998, p. 210). A resposta a este argumento, no sentido da falta de 
 objectividade da pergunta, que se contém no Acórdão n.º 288/98 e foi retomada na 
 presente decisão (n.º 23), assenta, a meu ver, num equívoco: o de separar a 
 autorização legal aos estabelecimentos de saúde, a que se refere a questão, da 
 realização da interrupção da gravidez por mera opção da mulher (diz-se, assim, 
 que, já hoje sendo possível efectuar em certas condições a interrupção 
 voluntária da gravidez, já existem “estabelecimentos de saúde legalmente 
 autorizados”). É claro, porém, que a pergunta se refere – e é mesmo nesse 
 sentido que é entendida pelo “destinatário normal” – a estabelecimentos de saúde 
 legalmente autorizados a realizar a interrupção da gravidez por mera opção da 
 mulher, e tal pressupõe já uma resposta positiva à pergunta (exigir-se-ia, pois, 
 pelo menos, que se falasse de “estabelecimentos de saúde que venham a ser 
 legalmente autorizados” a tanto).
 Para além desta reserva, ficaram-me novamente dúvidas quanto à clareza do termo 
 
 “despenalização”, não só em face de hipóteses alternativas, de sentido 
 equivalente mas indubitavelmente mais claras, segundo o critério que apontei e 
 que julgo decisivo, como em relação à possível permanência do juízo de ilicitude 
 do aborto (embora sem pena, ou, mesmo, fora do domínio criminal).
 
 2.Votei também vencido quanto à alínea g) do n.º 1 da decisão, sobre o universo 
 eleitoral do referendo proposto.
 Entendo que no artigo 115.º, n.º 12, da Constituição, e no artigo 37.º, n.º 2, 
 da Lei Orgânica do Regime do Referendo, que se referem a matérias que digam 
 
 “também especificamente respeito” aos cidadãos portugueses residentes no 
 estrangeiro: a) não se prevê a participação dos cidadãos portugueses residentes 
 no estrangeiro em todos os referendos nacionais (como resulta da formulação e da 
 própria localização sistemática das referidas normas); b) não se requer um 
 interesse específico apenas dos cidadãos não residentes, distinguindo-se a 
 fórmula empregue, por exemplo, da do “interesse específico” que era exigido para 
 a delimitação dos poderes legislativos das regiões autónomas (trata-se de 
 matérias que digam também especificamente respeito aos cidadãos não residentes 
 em Portugal).
 A meu ver, é excessiva a exigência de que a matéria do referendo “tenha a ver 
 com a específica situação dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro”, 
 ou de uma “particular incidência relativamente aos interesses da emigração 
 portuguesa”. Por isso não é decisivo o critério da aplicação da lei penal no 
 espaço, em que se baseia o presente Acórdão, sem aprofundar a dilucidação do 
 sentido da formulação constitucional e legal. Em face destas, deve entender-se, 
 a meu ver, que nas matérias que digam “também especificamente respeito” aos 
 cidadãos não residentes se incluem ainda aquelas que são susceptíveis de 
 interessar a estes ao mesmo título que aos cidadãos que residem em Portugal, ou 
 simplesmente as que não respeitem a um interesse específico destes cidadãos 
 residentes. É o que acontece, designadamente, com alterações da legislação 
 nacional que impliquem, ou traduzam, uma alteração fundamental nos valores 
 subjacentes à ordem jurídica nacional, ou uma “mudança de paradigma” na 
 protecção de bens jurídicos fundamentais – como seria, por exemplo, o caso (se 
 esses referendos fossem constitucionalmente possíveis) com referendos relativos 
 
 à reintrodução da pena de morte ou da prisão perpétua. Como resulta do que direi 
 a seguir, entendo que é igualmente o caso da presente alteração da legislação 
 relativa à interrupção voluntária da gravidez, pelo facto de se passar a 
 prescindir de qualquer indicação ou motivo para a sua realização, para além da 
 opção de um dos progenitores.
 Considerei, pois, que era de exigir o chamamento dos cidadãos portugueses 
 residentes no estrangeiro a participar no presente referendo.
 
 3.Quanto à discordância em relação à alínea i) do n.º 1 da decisão, mantenho as 
 razões expostas na declaração de voto anexa ao acórdão n.º 288/98. Assim, 
 acompanho a consideração – que vem, aliás, no seguimento da anterior 
 jurisprudência do Tribunal e da maioria da doutrina – de que a vida humana 
 pré-natal é abrangida pela garantia de inviolabilidade constante do artigo 24.º 
 da Constituição. Com uma formulação ampla, esta norma não se limita a garantir 
 um direito fundamental à vida a todas as pessoas, mas consagra igualmente uma 
 tutela não subjectivada do bem “vida humana em formação”, e, em meu entender, 
 impõe igualmente ao legislador um correspondente dever de protecção. Como se 
 pode ler na referida declaração de voto, aceito, porém, “a tese de que esta 
 protecção não tem que assumir as mesmas formas nem o mesmo grau de densificação 
 da exigida para o direito à vida subjectivado em cada pessoa, bem como a tese de 
 que tal protecção se pode e deve ir adensando ao longo do período de gestação. 
 Aceito, ainda, que, quando se verifique estarem outros direitos 
 constitucionalmente protegidos em conflito com a vida intra-uterina, se possa e 
 deva proceder a uma tentativa de optimização, não sendo esta possibilidade 
 vedada por qualquer escala hierárquica de valores constitucionais – embora 
 defenda que a inegável importância do bem ‘vida humana’, como pressuposto 
 necessário de todos os outros direitos, e, desde logo, o seu carácter de comando 
 prima facie (portanto, mesmo não invocando, nem a específica estrutura desse 
 bem, nem a sua eventual consagração numa regra, assentes numa lógica de tudo ou 
 nada), sempre requerem, pelo menos, a verificação da existência de um direito em 
 conflito com esse bem (…), assim como a definição, pelo legislador, das 
 circunstâncias em que a ponderação pode conduzir a uma limitação da tutela da 
 vida humana intra-uterina”.
 O que não acompanho é a conclusão de que a afirmada “concordância prática” entre 
 a liberdade, ou o “direito ao desenvolvimento da personalidade”, da mulher e a 
 protecção da vida intra-uterina “possa conduzir a desproteger inteiramente esta 
 
 última nas primeiras dez semanas (durante as quais esse bem é igualmente objecto 
 de protecção constitucional), por a deixar à mercê de uma livre decisão da 
 mulher, que se aceita será lícita, em abstracto, ou seja, independentemente da 
 verificação de qualquer motivo ou indicação no caso concreto”. Por outras 
 palavras, não concordo com que, pela via da alegada harmonização prática dos 
 interesses em conflito, a Constituição permita chegar a uma “solução dos 
 prazos”, com aceitação da total “indiferença dos motivos” ou de uma 
 
 “equivalência de razões” para proceder à interrupção voluntária da gravidez, 
 para a qual todas as razões podem servir – “quer seja realizada por absoluta 
 carência de meios económicos e de inserção social, quer seja motivada por puro 
 comodismo, quer resulte de um verdadeiro estado depressivo da mãe, quer vise 
 apenas, por exemplo, selar a destruição das relações com o outro progenitor”.
 Entendo que a garantia da inviolabilidade da vida humana, incluindo a vida 
 intra‑uterina, pode ter de ceder perante outros direitos ou interesses 
 constitucionalmente protegidos, se se verificar em concreto a presença de um 
 motivo constitucionalmente relevante para a realização da interrupção voluntária 
 da gravidez, pois “aquela garantia há-de ter, pelo menos, o conteúdo de tutelar 
 o bem em causa contra a liberdade da mulher de prática de ‘aborto a pedido’, sem 
 invocação de qualquer motivo e, em princípio, com indiferença deste para a ordem 
 jurídica” – tendo igualmente por inconstitucional a solução de total liberdade 
 da mãe quanto ao «destino» de uma vida humana que já iniciou o seu percurso, v., 
 entre outros, Maria Conceição Ferreira da Cunha, Constituição e crime, Porto, 
 
 1995, p. 386; no mesmo sentido Rabindranath Capelo de Sousa, O direito geral de 
 personalidade, Coimbra, 1995, p. 166, n. 241, e, com uma análise comparatística 
 das soluções vigentes em vários sistemas europeus, João Loureiro, “Aborto: 
 algumas questões jurídico‑constitucionais (A propósito de uma reforma 
 legislativa)”, in Boletim da Faculdade de Direito, vol. 74, Coimbra, 1998, pp. 
 
 327-403. Ou seja, entendo que o dever de protecção da vida humana intra-uterina, 
 que a Constituição impõe, não pode deixar de ter como conteúdo mínimo a 
 protecção contra a liberdade de pôr termo a esta vida intra-uterina, sem 
 invocação de razões. Assim, considero que o direito à liberdade da mulher, bem 
 como o direito ao “livre desenvolvimento da personalidade” – direito que, aliás, 
 se refere aqui apenas a um dos progenitores, e, onde, como se sabe, no limite 
 tudo poderia caber (cf. Paulo Mota Pinto, “O direito ao livre desenvolvimento da 
 personalidade”, in Portugal-Brasil – ano 2000, Stvdia Ivridica, 40, Coimbra, 
 
 2000, pp. 149-246) – não são suficientes para fundamentar a desprotecção da vida 
 pré-natal, mesmo nas primeiras dez semanas, se não forem reforçados com a 
 presença de uma indicação no caso concreto. E isto, não curando sequer de saber 
 qual o tipo de indicação que seria constitucionalmente relevante ou a quem deve 
 competir avaliá-la – pressuposto apenas que não basta a mera opção da mãe, 
 desvinculada de qualquer controlo exterior.
 Não encontro, nem no Acórdão n.º 288/98, nem na presente decisão, razões que 
 afastem a relevância constitucional da “indiferença dos motivos” (a consideração 
 de que, em nome da liberdade de um dos progenitores, qualquer motivo serve) para 
 destruir um bem constitucionalmente tutelado. Em particular, é claro que a 
 referência ao prazo das primeiras dez semanas (n.º 31 da decisão) apenas pode, 
 na própria lógica de compatibilização com a protecção da vida intra-uterina, 
 seguida pelos acórdãos de que dissenti, servir para delimitar o momento antes do 
 qual não existe qualquer protecção. Já não existem argumentos para fundamentar a 
 menor ponderação em termos de “concordância prática”, justamente até às 
 primeiras dez semanas, da vida intra-uterina que se reconhece tutelada na 
 Constituição, sendo evidente que mesmo tal restrição a um prazo inicial da 
 gravidez conduz ao sacrifício total, pela interrupção da gravidez, do bem 
 protegido.
 Noto, aliás, que o presente aresto se recusou a considerar concretamente 
 quaisquer elementos científicos, como os emergentes da chamada “revolução 
 ecográfica”, relativos à caracterização do feto nas suas diversas fases de 
 desenvolvimento, afastando‑os apenas com a fundamentação, a meu ver extremamente 
 insuficiente, de que “não dão, em si mesmos, solução aos conflitos de valores”, 
 e resumindo o “valor conflituante”, no presente caso, à “liberdade da mulher 
 grávida”, ou ao “livre desenvolvimento da personalidade”. Ora, a “concordância 
 prática” exige, como se sabe, o cumprimento de um ónus de argumentação jurídica 
 dirigido a fundamentar o tipo de concordância a que se chega, sob pena de se 
 esgotar numa mera “fórmula vazia” (no sentido de ligar a estrutura da ponderação 
 a fazer para a concordância prática de direitos fundamentais a uma teoria da 
 argumentação jurídica que remete para uma teoria da argumentação prática em 
 geral, v. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, Frankfurt, 1985, p. 154). 
 O referido ónus de argumentação não é, por outro lado, cumprido com a 
 consideração genérica, que ecoa mais do que uma vez no presente aresto (n.º 16 e 
 
 36), de que, sendo a questão em causa discutida, e objecto de divisões profundas 
 na sociedade, é de admitir (mesmo no plano constitucional) resolvê-la devolvendo 
 a decisão ao voto directo do povo soberano. Independentemente de outras 
 considerações que possa merecer este argumento (o próprio Ronald Dworkin, Life’s 
 Dominion. An Argument About Abortion, Euthanasia and Individual Freedom, 1993, 
 pp. 154-159, citado no Acórdão, conclui, aliás, o tratamento da relevância da 
 coerção na matéria da interrupção da gravidez no sentido de que, se a questão 
 for a de saber se o Estado pode impor quer a proibição dessa interrupção, “o 
 facto de a escolha ser aprovada pela maioria não é melhor justificação num caso 
 do que no outro”), deve notar-se que ele não pode ser relevante para o controlo 
 da constitucionalidade de uma pergunta referendária. Na verdade, o parâmetro de 
 constitucionalidade ou a intensidade do respectivo controlo não variam entre o 
 controlo da constitucionalidade da pergunta no referendo ou de uma norma 
 jurídica aprovada pelo parlamento (por exemplo, um diploma aprovado na sequência 
 do referendo), o que, além do mais, se torna evidente logo que se pensa, por 
 exemplo, em que para o resultado do referendo não releva apenas uma maioria 
 constituinte (a Constituição proíbe, aliás, o referendo sobre alterações à 
 Constituição), mas logo maioria simples.
 Não pode, também, merecer o meu acordo a fundamentação que remete para a 
 harmonização entre a vida intra-uterina, por um lado, e garantia de uma 
 maternidade consciente, por outro, e, em termos de conduzir ao sacrifício geral 
 desta durante as primeiras dez semanas. Com efeito, subjacente “à afirmação da 
 licitude da interrupção voluntária da gravidez com base na garantia de uma 
 maternidade consciente parece-me estar uma visão do aborto como meio de 
 contracepção, ou, mesmo, de planeamento familiar, que não considero 
 constitucionalmente admissível (a garantia da maternidade consciente é, aliás, 
 prevista na Constituição a par do direito ao planeamento familiar). E mesmo que 
 se considerasse que a garantia da maternidade consciente tem uma dimensão 
 subjectiva que vai além do planeamento familiar, podendo incluir o aborto, não 
 vejo o que poderia este argumento acrescentar à invocação do direito à 
 liberdade, em termos de prevalecer em geral, durante as primeiras dez semanas, 
 sobre a garantia da vida intra-uterina, a qual, como condição de base de todos 
 os outros direitos, assume uma posição-chave”.
 Consideraria, assim, a resposta afirmativa à pergunta – na medida em que conduz 
 
 à despenalização da interrupção voluntária da gravidez por opção da mulher, e, 
 portanto, com irrelevância dos motivos invocados para pôr termo à gravidez – 
 como inconstitucional, por violar o princípio da “proibição da insuficiência”, 
 quanto à protecção da vida pré-natal (o “Untermabverbot” – v., entre nós, José 
 Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª 
 ed., Coimbra, 2003, p. 273), isto é, o “défice” de tutela de um bem cuja 
 protecção é constitucionalmente assegurada (sem que esta garantia seja afastada 
 pela proposta compatibilização com outros interesses constitucionalmente 
 protegidos). Isto, uma vez que, por outro lado, não se divisam outros meios a 
 que o legislador possa recorrer para proteger esse bem, afirmando a sua 
 dignidade ética para a comunidade jurídica, e que a protecção penal é, apesar de 
 tudo, a única que se pode revestir de alguma eficácia jurídica (e notando 
 igualmente que a questão submetida a apreciação não contende directamente com a 
 da punibilidade do aborto clandestino, não sendo sequer líquido que uma resposta 
 positiva viesse a contribuir para a diminuição deste, ou, muito menos, para a 
 diminuição geral do número de abortos).
 
 4.Por último, e ainda a propósito da alínea i) do n.º 1 da decisão, discordei 
 também da fundamentação empregue para justificar a não inconstitucionalidade de 
 uma resposta negativa. O presente aresto inova aqui em relação ao Acórdão n.º 
 
 288/98. Mas a inovação, com uma pronúncia “incidental” sobre o regime vigente, 
 passa, a meu ver, ao lado do objecto de cognição do Tribunal no presente 
 processo – a constitucionalidade da pergunta referendária – e é mesmo 
 contraditória com o sentido que se atribui ao controlo pelo Tribunal, a 
 propósito da resposta positiva.
 Com efeito, já desde o Acórdão n.º 288/98 se entendeu que ao Tribunal não cabe, 
 a propósito do controlo da constitucionalidade de uma pergunta de um referendo 
 destinado a propor uma alteração do regime vigente, pronunciar-se sobre o 
 concreto regime jurídico, em vigor ou que viesse provavelmente a ser aprovado. 
 Antes lhe cabe apenas apreciar se uma das respostas à pergunta, ou eventualmente 
 as duas, implicam necessariamente uma solução inconstitucional – implicação 
 necessária, esta, avaliada, naturalmente, em relação aos efeitos do referendo, 
 com os correspondentes deveres de agir ou de não agir da Assembleia da República 
 delimitados pelo teor da pergunta a que se respondeu (cf., falando de acto 
 legislativo correspondente às perguntas objecto de resposta, ou de acto “de 
 sentido correspondente”, os artigos 241.º e 243.º da Lei n.º 15-A/98, de 3 de 
 Abril). Justamente por isso se afirmou no Acórdão n.º 288/98 que podem existir 
 outros elementos (como a exigência de um aconselhamento da mulher) que, não 
 constando da pergunta, poderiam, porém, vir a ser previstos na legislação 
 aprovada na sua sequência (n.º 52).
 Uma resposta negativa apenas impede, pois, o legislador de alterar o regime 
 vigente no sentido correspondente à pergunta. E aplicado a tal resposta, o 
 critério para a sua inconstitucionalidade – repete-se: o da implicação 
 necessária de uma solução inconstitucional – significa que a resposta negativa 
 só seria inconstitucional se existisse uma imposição constitucional de alteração 
 do regime vigente justamente no sentido previsto na pergunta, isto é, se a única 
 alteração constitucionalmente aceitável fosse a correspondente ao sentido da 
 pergunta. Já outras alterações (tal como os outros elementos que poderiam ser 
 previstos em caso de resposta positiva) não seriam abrangidas pelo efeito do 
 referendo. Resulta daqui, com toda a linearidade, que o Tribunal, a entender 
 tratar desenvolvidamente da questão de saber se a resposta negativa implicava 
 necessariamente uma solução inconstitucional – diversamente do Acórdão n.º 
 
 288/98, que se limitou a remeter o problema da manutenção da incriminação para a 
 liberdade de conformação do legislador (não deixando, a este propósito, de 
 responder àquela questão) –, haveria de ter apurado se o legislador estava 
 constitucionalmente vinculado a alterar o regime vigente justamente no sentido 
 correspondente à resposta positiva.
 Não foi, porém, assim que o presente Acórdão entendeu dever abordar a questão, 
 antes se pronunciando (n.º 35) sobre o regime vigente – com considerações 
 relativas ao “sistema vigente” ou a uma “solução mais abrangente no sentido da 
 exclusão da responsabilidade” (itálico aditado). Tais considerações não tinham, 
 a meu ver, lugar no contexto do presente Acórdão, mesmo que fossem movidas pelo 
 intuito de atalhar a qualquer alteração do regime vigente num sentido mais 
 restritivo – àquilo que (destoando numa decisão judicial que, além do mais, tem 
 de pronunciar‑se sobre a objectividade da pergunta referendária) o Acórdão 
 qualifica, noutro passo (n.º 5), como um “retrocesso” num sentido 
 criminalizador. Pois tal alteração nunca esteve em causa nem pode ser 
 
 “implicação necessária” de qualquer uma das respostas à pergunta.
 Paulo Mota Pinto
 
  
 
  
 
  
 DECLARAÇÃO DE VOTO
 
  
 
 1 – Votei vencido quanto à decisão constante da alínea e), na parte em que, aí, 
 se julga que a pergunta formulada na proposta de referendo satisfaz os 
 requisitos da objectividade e da clareza; votei com dúvidas a decisão constante 
 da alínea g) e votei vencido quanto à decisão constante da alínea i), na parte 
 em que aí se considera que a resposta afirmativa à pergunta formulada não 
 implica necessariamente uma solução jurídica incompatível com a Constituição, 
 todas as alíneas do ponto 38 do acórdão. 
 
                  Tal posição fundamenta-se nas razões que passo, sucintamente, a 
 expor.
 
                  
 
                  2 – Antes de as dar a conhecer, não posso, porém, deixar passar 
 em branco a convocação feita no Acórdão [Parte II, ponto 9, epigrafada de 
 
 “Enquadramento actual da questão objecto da proposta de referendo”] à cultura 
 bíblica enquanto razão tida como susceptível de concitar dúvidas, no plano da 
 racionalidade, sobre “a perspectiva doutrinária de que o crime reclama sempre a 
 punição e não outra forma de superação”, por, ali, “o mal do pecado – que é a 
 separação de Deus – é [ser] superado pelo perdão e pela graça”.
 
                  Na verdade, tal abordagem apresenta-se efectuada não só em 
 termos ambíguos, como não consegue afastar, igualmente, a suspeita de que a sua 
 referência poderá ser vista como estando, subliminar e utilitariamente, 
 funcionalizada para gerar alguma aceitação da doutrina do acórdão por parte de 
 alguns sectores sociais que seguem, ou estão próximos de tal cultura, como regra 
 de conduta da sua vida.
 
                  Omite-se ou ignora-se, porém, que, na doutrina bíblica, não tem 
 qualquer pertinência, no plano da racionalidade, a afirmação da existência de 
 qualquer relação ou sequer conexão, em termos de simples correspondência, e 
 muito menos em termos de equivalência, entre crime e pena. Estes são conceitos 
 que, nesse domínio, são totalmente imprestáveis. No plano de relação entre o 
 Homem e Deus não há lugar para a existência das figuras de crime e de punição. 
 
                  Segundo a doutrina bíblica, Deus é, em Si próprio, Amor e Vida. 
 Por mor do acto de criação, Deus estabelece com o Homem uma relação pessoal de 
 Amor. O pecado consiste, assim, em um corte, voluntário e consciente, do Homem 
 com a fonte da sua Vida e de Amor que apenas acontece quando aquele repudia, 
 consciente e voluntariamente, a vontade manifestada de Deus. O mal do pecado 
 traduz-se, pois, assim, no “sentimento” ou “efeito” de privação ou de falta que 
 a pessoa criada, por puro acto de Amor, tem relativamente ao seu Criador, por se 
 ter por abandonada quando, de acordo com o seu acto de criação, continua a 
 
 “ansiar” por Ele. A restauração da relação pessoal de Amor entre o Homem e Deus 
 representa o fim desse “sofrimento”, resultando de puro acto de misericórdia, 
 próprio do Amor do Criador, em face do acto de arrependimento da pessoa criada, 
 traduzido na sua reconciliação com o Criador.
 
                  Não tem, pois, qualquer sentido ou utilidade a 
 descontextualizada convocação da doutrina bíblica para o thema decidendum. Ao 
 invés, o que resulta dessa doutrina é que, correspondendo a vida a um acto 
 pessoal do Amor de Deus, não deverá o Homem negar a sua contínua revelação real, 
 no devir do tempo e dos tempos.
 
  
 
                  3 – Segundo penso, a pergunta formulada aos eleitores não é 
 clara e objectiva. 
 Note-se que se trata de exigências constitucionais (art.º 115.º, n.º 6) e não só 
 de requisitos conformados pelo legislador ordinário (art.º 7.º da Lei Orgânica 
 do Regime do Referendo). 
 Como tal, o sentido que se lhes deve conferir, tem de ser, no meu ponto de 
 vista, um sentido que se conjugue, com a máxima expansividade de protecção, 
 decorrente da sua natureza de direitos e garantias fundamentais (art.º 18.º, n.º 
 
 2, da Constituição da República Portuguesa – CRP) com o princípio democrático do 
 direito à participação política e do direito ao sufrágio e ao respectivo 
 exercício (art. 48.º e 49.º da CRP). 
 Sendo assim, a pergunta há-de poder ser entendida, em toda a sua extensão, 
 quanto ao seu conteúdo e projecção da resposta, por quem, nos termos 
 constitucionais e legais, poderá ser eleitor. 
 Deste modo, não pode o grau de exigência desligar-se do universo real que 
 constitui esse colégio eleitoral. 
 Assim, suscitam-se-nos ponderadas dúvidas sobre a clareza da pergunta na medida 
 em que tal qual a pergunta é feita, esta supõe que o eleitor, para poder fazer 
 um juízo ponderativo-decisório, conheça qual o regime vigente quanto à 
 penalização da interrupção voluntária de gravidez e, nomeadamente, as suas 
 actuais causas de desculpabilização e de justificação.
 Ora, parte relevante dos eleitores não será detentora de tais conhecimentos. 
 Além de que, a pergunta faz apelo a conceitos de matriz técnico-jurídica, como 
 sejam os de “despenalização da interrupção voluntária da gravidez”, “por opção 
 da mulher”, cuja inteligibilidade escapa a grande parte do colégio eleitoral, 
 bem podendo, por isso, gerar a dúvida aos eleitores sobre se eles não estão 
 assumidos na proposta em sentido diferente daquele pelo qual essa realidade 
 empírica é expressada comummente, em linguagem vulgar, mas que é a seguida, 
 normalmente, na comunicação política: aborto e completa liberalização dentro das 
 
 10 primeiras semanas, desde que a mulher o queira e o mesmo seja efectuado em 
 estabelecimento de saúde legalmente autorizado.
 
                  Para além disso, a utilização da expressão “estabelecimento de 
 saúde legalmente autorizado” é, também, equívoca, pois permite tanto uma acepção 
 de estabelecimento de saúde (público ou privado), autorizado, apenas, para a 
 prática do aborto nas condições propostas, como a de estabelecimento (público ou 
 privado) autorizado, de prestação de serviços de saúde (pública), que pode 
 praticar, igualmente, esses e outros actos abortivos, cuja prática já não é 
 punida no regime vigente.
 
                  E, do mesmo passo, a pergunta não é objectiva nem neutra no que 
 importa à sua intencionalidade. 
 Na verdade, a referência a “estabelecimento de saúde legalmente autorizado”, 
 para a prática da interrupção voluntária de gravidez, por opção da mulher, nas 
 primeiras 10 semanas de gravidez, deixa entender que a condição apenas existirá 
 no caso prevalecer a resposta positiva, dado esse acto, nas condições propostas, 
 não ser hoje autorizado em qualquer estabelecimento de saúde, predispondo por 
 isso a uma tal resposta para que a condição seja possível. 
 Por outro lado, a previsão de que o aborto, por simples opção da mulher, dentro 
 do prazo assinalado, será efectuado em estabelecimento de saúde legalmente 
 autorizado sugere uma ideia de completa inexistência de quaisquer outros valores 
 constitucionais ou legais que tenham de entrar em confronto com a opção da 
 mulher, ou seja, uma ideia de completa liberalização do aborto, desde que 
 realizado dentro do prazo das 10 semanas e em estabelecimento de saúde 
 autorizado.
 
  
 
                  4 – Votei, ainda, com dúvidas quanto à questão do universo 
 subjectivo eleitoral. 
 Não tendo, todavia, chegado a um juízo de não conformidade constitucional, outra 
 solução não poderia aceitar que a da aplicabilidade do princípio da presunção de 
 constitucionalidade. 
 Diz o n.º 12 do art.º 115.º da CRP que “nos referendos são chamados a participar 
 cidadãos residentes no estrangeiro, regularmente recenseados ao abrigo do 
 disposto no n.º 2 do artigo 121.º, quando recaiam sobre matéria que lhes diga 
 também especificamente respeito”.
 
                  Na verdade, se é certo que, na aplicação da lei penal, vigora o 
 princípio da territorialidade (art.º 4.º do Código Penal) e que os cidadãos 
 portugueses residentes no estrangeiro não estão, em regra, sujeitos à aplicação 
 da lei penal, salvo nas condições limitadas do art.º 5.º, n.º 1, alínea c), do 
 mesmo código, argumentos estes que apontam para a solução da não 
 inconstitucionalidade do universo eleitoral adoptado, também não o deixa de ser 
 que a questão pode ser vista fora do enfoque, apenas, da conexão com o direito 
 penal, podendo argumentar-se que, estando em causa uma alteração tão profunda ao 
 sistema de valores jurídicos do direito pátrio, essa alteração não é de todo 
 indiferente à situação dos portugueses residentes no estrangeiro, enquanto 
 cidadãos que tendem a reger a sua vida por esses valores e esse direito e deles 
 dão expressão nos locais onde vivem. Neste aspecto, estar-se-ia perante “matéria 
 que lhes diria [diz] também especificamente respeito”. 
 Tal solução seria postulada, de resto, pela mesma lógica substancial que 
 justifica a participação dos portugueses residentes no estrangeiro nas eleições 
 para o cargo de Presidente da República, podendo encontrar-se em tal 
 circunstância a coincidência de universo eleitoral estabelecida no referido n.º 
 
 12 do art.º 115.º da CRP. A participação dos portugueses, nestas eleições, 
 também se explica pelo facto de estar em causa a instituição representativa do 
 povo português e dos valores constitucionais que sedimentou na sua Constituição. 
 Subsistem-me, porém, dúvidas sobre se a Assembleia da República não goza de 
 discricionariedade normativo-constitutiva, relativamente às situações em que a 
 matéria objecto do referendo não diga directamente respeito aos portugueses 
 residentes no estrangeiro enquanto tal, como é o caso.
 
                  
 
                  5.1 – Finalmente, votei vencido quanto à decisão constante da 
 alínea i) do ponto 38 do acórdão, na parte em que aí se considera que a resposta 
 afirmativa à pergunta formulada não implica necessariamente uma solução jurídica 
 incompatível com a Constituição.
 
                  Não irei expor longamente os fundamentos 
 jurídico-constitucionais com base nos quais se considera que a vida humana 
 uterina tem consagração e protecção constitucionais nos termos do art.º 24.º, 
 n.º 1, da nossa Lei fundamental. E não o farei, exactamente, porque, quer o 
 Acórdão n.º 288/98, ao qual constantemente se arrimou, aí de modo inequívoco, 
 quer o presente Acórdão não deixam de pressupor, ainda que, neste, de forma não 
 tão impressiva, que a vida uterina tem protecção constitucional, correspondendo 
 a um direito ou garantia fundamentais. Depois, porque acompanho, no essencial, 
 os votos apostos àquele Acórdão n.º 288/98 pelos senhores conselheiros que 
 votaram vencido e que aqui se recuperam.
 
                  Nesse ponto – e com naturais reflexos, como não poderá deixar 
 de ser quanto à solução desta questão – a nossa discordância com o acórdão 
 reside, essencialmente, na intensidade de protecção jurídico-constitucional que 
 se entende derivar de tal preceito, quer no que importa à dúvida, nele 
 concitada, sobre a titularização/subjectivação do direito à vida humana no art.º 
 
 24.º, n.º 1 da CRP, quer na resposta a dar quando esse direito ou garantia 
 fundamentais entrem em conflito com outros direitos da mulher, mormente, a agora 
 designada “liberdade de manter um projecto de vida” “como expressão do livre 
 desenvolvimento da personalidade”.
 
                  Não obstante isso – e com referência à metodologia seguida – 
 não é de passar em branco que o acórdão, ansiando, porventura, acentuar os 
 argumentos que, na sua óptica, abonarão a favor da não inconstitucionalidade de 
 uma solução jurídica perspectivada na senda de uma resposta afirmativa ao 
 referendo, discorre, essencialmente, sobre um diálogo de ponderação entre os 
 direitos fundamentais, susceptíveis de entrarem em conflito, a partir de uma 
 
 “configuração mais radical” do âmbito da protecção da vida humana, como se a 
 solução passasse, no caso concreto, por essa linha de protecção, esbatendo a 
 existência, no direito vigente, de causas de desculpabilização e de justificação 
 que dão expressão, num plano autónomo e exterior, às exigências demandadas, no 
 caso, por um juízo ponderativo de concordância prática entre os direitos tidos 
 como estando em conflito.
 
                  Ao contrário do suposto como elemento de argumentação, não se 
 afirma, nem se viu alguma vez defendido na ciência jurídica, que, tendo por 
 referência a vida pré-natal e pós-natal, “tenha de existir uma protecção penal 
 idêntica em todas as fases da vida”, como postulado ou decorrência da 
 inviolabilidade da vida humana ou que haja “uma argumentação a favor da 
 inconstitucionalidade [da resposta afirmativa ao referendo] que nivele a vida em 
 todos os seus estádios”.
 
                  Tal princípio constitucional não demanda que a protecção penal 
 da vida humana tenha de ser idêntica, em intensidade, em todo o continuum da 
 vida e em todas as circunstâncias de facto. 
 O que o princípio da inviolabilidade da vida humana reclama é que a violação do 
 direito à vida (uterina e pós-uterina) tenha, sempre, protecção penal, valendo, 
 dentro dos diferentes níveis dessa protecção, os princípios gerais de direito 
 criminal, de matriz, igualmente, constitucional, da justificação do facto, da 
 culpa e do estado de necessidade.     
 
                  Assim, não está o legislador ordinário impedido, em geral, de 
 conformar diferentes níveis de protecção criminal, expressos, maxime, no recorte 
 do facto ilícito típico e da pena, para os diferentes momentos e circunstâncias 
 do continuum em que se desenvolve a vida humana, diferenciando, dentro dele, a 
 vida intra-uterina da pós-uterina. O que a Constituição reclama é que, salvo a 
 existência de causas de desculpabilização ou de justificação, a vida seja 
 penalmente protegida.
 
                  Em segundo lugar, o argumento de que não existe “uma linha de 
 inflexível necessidade lógica”, como afirma o acórdão, entre a definição da 
 inviolabilidade da vida humana e a intervenção penal, “nomeadamente pela 
 interferência de perspectivas de justificação, de desculpa ou ainda de 
 afastamento da responsabilidade devido “à necessidade da pena” assenta sobre uma 
 patente incongruência lógica, dado que as dimensões alegadas para afastar a 
 intervenção penal são já institutos que pressupõem, necessariamente, a 
 existência dessa protecção penal.
 
                  Em terceiro lugar, a convocação do entendimento seguido no 
 referido Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, 
 segundo o qual na mente dos constituintes do art.º 24.º, n.º 1, da CRP não 
 caberia a protecção da vida uterina só teria sentido para quem – posição que 
 parece não ser, de modo assumido, a do acórdão e não é, seguramente, a do Ac. 
 
 288/98, em que constantemente se abona, nem dos votos de vencido a eles apostos 
 
 – seguisse uma tese radical de exclusão do âmbito de protecção conferida por tal 
 artigo da vida intra-uterina.
 
  
 
                  5.2 – Sendo, assim, admitido como está, pelo acórdão e por 
 todos os vencidos, que a vida humana intra-uterina goza de protecção 
 constitucional, o que importa saber, é se, a operação de concordância prática 
 dos direitos e valores constitucionalmente relevantes, presentes no caso, que o 
 acórdão levou a cabo se apresenta efectuada com respeito pelo princípio 
 constitucional que emerge do art.º 18.º, n.ºs 2 e 3 da CRP. 
 
                  Por nós, temos por seguro que não. E firmamos esse juízo, 
 essencialmente, nas seguintes considerações.
 
                  Desde logo, porque não deixa de impressionar-nos que o acórdão 
 perspective a tutela de inviolabilidade da vida humana, estabelecida no art.º 
 
 24.º, n.º 1, da CRP, desligada do ser que constitua o seu titular, acabando por 
 reduzir, subliminarmente, segundo uma óptica radical que tanto critica, o seu 
 
 âmbito de protecção apenas aos fetos com mais de 10 semanas de gestação e às 
 pessoas nascidas.
 
                  Ora, não vemos, como melhor se verá adiante, que tenha sentido 
 falar-se de inviolabilidade da vida humana sem ser por referência ao ser que 
 dela seja titular, seja este ser já uma pessoa ou apenas um ser a caminho de ser 
 pessoa (cf. Laura Palazzani, Il concetto di persona tra bioetica e diritto, 
 Torino, 1996; A. M. Almeida Costa, “Abortamento provocado”, in Bioética, AA. VV. 
 Coordenada por Luís Archer, Jorge Biscaia e Walter Osswald, Lisboa, 1996, pp. 
 
 201 e segs., e João Carlos Loureiro, “Estatuto do Embrião”, in Novos Desafios à 
 Bioética, AA. VV., coordenada por Luís Archer, Jorge Biscaia, Walter Osswald e 
 Michel Renaud, Porto 2001, pp. 110 e segs).
 
                   Do mesmo passo, não se compreende que se erija a essencial 
 fundamento da tutela constitucional devida ao embrião/feto o princípio 
 constitucional da dignidade humana, quando este princípio supõe, precisamente, a 
 existência de um ser dotado de vida humana e o preceito do art.º 24.º, n.º 1, da 
 CRP não só não aponta em qualquer sentido restritivo, como corresponderia a uma 
 solução contrária ao princípio da “máxima efectividade e expansividade” dos 
 direitos e garantias fundamentais, constantemente, invocado para justificar a 
 inclusão nos direitos fundamentais de realidades que suscitam alguma dúvida.
 
                  Por outro lado, o acórdão não realizou qualquer juízo de 
 concordância prática entre os dois valores ou direitos constitucionais, tidos 
 como estando em conflito: o direito do ser, “embrião/feto humanos”, a nascer e a 
 
 “liberdade da mulher a manter um projecto de vida, como expressão do livre 
 desenvolvimento da sua personalidade”. E não efectuou, porque, pura e 
 simplesmente, para fazer prevalecer este último, rejeita a titularização, no 
 
 âmbito do art.º 24.º, n.º 1, da CRP (subjectivação constitucional), do direito à 
 vida humana e, decorrentemente, do conteúdo essencial do direito do feto a 
 nascer, admitindo a possibilidade de, sem censura penal, lhe tirar a vida 
 humana.
 
                  De qualquer modo, pressuposta, como se defende na doutrina e 
 jurisprudência constitucionais, a inexistência de hierarquia entre direitos 
 constitucionais, precisamente com base na identidade da sua fonte, nunca a 
 colisão de direitos constitucionais poderá ser resolvida, pelo legislador 
 ordinário, com base num critério normativo de prevalência da liberdade da mulher 
 a manter um projecto de vida à custa da morte do feto, titular constitucional de 
 vida humana e da respectiva dignidade.
 
                  A operação de concordância prática entre direitos 
 constitucionais, posicionados como estando em conflito, demanda a realização de 
 um juízo de ponderação (legislativa ou judicial) que dê satisfação ao princípio 
 constitucional da máxima efectividade de protecção dos direitos e garantias 
 fundamentais. 
 Tal equivale por dizer que esse juízo deve efectuar-se de modo a tentar obter 
 uma optimização do âmbito de eficácia da protecção constitucional conferida a 
 tais direitos e que nunca poderá chegar a um resultado de eliminação de um deles 
 em favor do outro, pois, neste caso, está-se, radicalmente, a eliminar o 
 conteúdo essencial do preceito constitucional que reconhece a inviolabilidade da 
 vida humana, na sua expressão de direito do titular da vida humana uterina a 
 nascer e a violar-se frontalmente o disposto na parte final do art.º 18.º, n.º 
 
 3, da CRP.
 
 [E a solução não varia se se fizer radicar, segundo a lógica dubitativa que o 
 acórdão admite, a tutela constitucional do titular embrião/feto no princípio da 
 dignidade de vida humana – lógica essa, diga-se, incongruente, se referida à 
 dignidade do embrião/feto, por essa dignidade da vida humana supor a existência 
 da vida humana e de um seu titular, ou, então, contraditória, se a alegada 
 dignidade disser respeito à mulher grávida, por, nesse caso, inexistir a 
 perspectivada situação de colisão de direitos]
 
                  Por outro lado, o juízo de concordância prática não pode deixar 
 de ter presente a estrutura e natureza dos concretos direitos ou garantias 
 constitucionais, que se apresentam como estando em conflito, mormente para 
 avaliação dos resultados sob a óptica do princípio da proporcionalidade, na sua 
 dimensão de justa medida, ao qual deve obediência.
 
                  Ora, nesta sede, não deve desconhecer-se que estão em causa 
 direitos ou garantias constitucionais em concreto, radicados em diferentes 
 titulares constitucionais: de um lado, a liberdade da mulher grávida a manter um 
 projecto de vida e do outro o direito do concreto embrião/feto a nascer, em cada 
 situação de gravidez. Cada situação de gravidez gera uma situação de existência 
 de um concreto titular do direito à vida humana a nascer.
 
                  Nesta perspectiva, cabe acentuar que a Constituição, sempre que 
 quer conferir uma especial intencionalidade protectora ou eficácia do âmbito de 
 protecção constitucional a certos direitos ou garantias constitucionais, usa 
 expressões reveladoras desse significado, como o adjectivo “inviolável” ou 
 expressões de exclusão como “ninguém”, “quaisquer”, etc. (cf., por exemplo, 
 quanto ao primeiro caso, os art.ºs 24.º, n.º 1, 25.º n.º 1 e 34.º, n.º 1, e, 
 quanto ao segundo caso, os art.ºs 26.º, n.º 1, 27.º, n.º 2, e 29.º, n.º 1, e, a 
 ambas as situações, o art.º 13.º, n.º 2).
 
                  O direito à vida humana é protegido pela Constituição (art.º 
 
 24.º, n.º 1) como direito inviolável. O vocábulo “inviolável” só poderá 
 significar que se trata de um direito que não poderá ser violado em caso algum, 
 mesmo pelo Estado legislador. Nesta óptica, apenas, se conceberão causas de 
 exclusão que consubstanciem, perante a Constituição, situações de não violação, 
 como sejam as causas constitucionais de desculpabilização ou de justificação.
 
                  Trata-se, deste modo, de um direito ou garantia constitucional 
 que se encontra dotado de uma especial força de tutela constitucional. E bem se 
 compreende que o seja, porquanto se trata de um direito fundante de todos os 
 outros, de um direito que é pressuposto necessário de todos os outros, pois sem 
 titulares de vida humana não poderá falar-se em dignidade humana ou sequer 
 constituir-se comunidade organizada em Estado de direito democrático.
 
                  Ao contrário, o direito ou garantia fundamental que se 
 apresenta em colisão com ele – a liberdade da mulher a manter um projecto de 
 vida como expressão do livre desenvolvimento da sua personalidade – não se 
 apresenta dotado constitucionalmente de uma tal força excludente de lesão. 
 
                  Na verdade, essa liberdade é não a liberdade a que se refere o 
 art.º 27.º, n.º 2, da CRP, a liberdade física ou liberdade de “ir e vir” – essa 
 sim dotada de tal força excludente – mas sim uma específica dimensão do 
 princípio do desenvolvimento da personalidade, consagrado no art.º 26.º, n.º 1.
 
                  Assim sendo. Existente um direito à vida humana titularizado no 
 ser resultante da partogénese celular, ser esse diferente, não só biológica e 
 geneticamente (cf. Fernando J. Regateiro, Manual de Genética Médica, Coimbra, 
 
 2003, pp. 310 a 312 e Fernando Regateiro, “Doenças Genéticas”, in Comissão de 
 
 Ética – Das Bases Teóricas à Actividade Quotidiana, AA. VV. Coordenada por Maria 
 do Céu Patrão Neves, 2.ª edição, Coimbra, 2002, pp. 351 e 352), como também 
 constitucionalmente (cf., entre outros, João Carlos Loureiro, “Estatuto do 
 Embrião”, in Novos Desafios à Bioética, AA. VV., coordenada por Luís Archer, 
 Jorge Biscaia, Walter Osswald e Michel Renaud, Porto 2001, pp. 110 e segs., e A. 
 M. Almeida Costa, op. cit., pp. 210 e segs.), do ser da sua mãe ou mulher 
 grávida – seja ele já uma pessoa ou não, mesmo numa acepção constitucional – e 
 podendo ele estar em colisão com o direito a manter um projecto de vida como 
 expressão do livre desenvolvimento da sua personalidade, titularizado na mulher 
 grávida, não pode deixar, numa ponderação de concordância prática dos valores 
 constitucionais, de adoptar-se, do ponto de vista da sua estrutura e natureza 
 constitucional, uma solução que não acarrete o sacrifício do titular da vida 
 humana. 
 
                  Anote-se, de resto, que só o (implícito) reconhecimento de uma 
 alteridade de titularidade constitucional do ser embrião/feto em relação à sua 
 mãe é que justifica que o próprio acórdão, na esteira, aliás, do de 1998, 
 procure intentar uma demonstração de existência de concordância prática entre o 
 direito titularizado da mulher grávida e o direito respeitante ao embrião/feto.
 
                  O aborto importa a morte do concreto titular da vida humana, do 
 concreto embrião/feto. Com ele extingue-se o direito de se desenvolver no seio 
 materno (e de mais tarde nascer), de acordo com a informação codificada no DNA, 
 a vida humana do concreto feto advindo do específico ovo ou zigoto, este, por 
 sua vez, resultante da fecundação do concreto ovócito pelo concreto 
 espermatozóide. O ser irrepetível advindo da partogénese celular deixa de 
 existir, saindo violado, por completo, o seu direito à vida humana. 
 Pelo contrário, o prosseguimento da vida uterina não extingue a liberdade da 
 mulher a manter um projecto de vida como expressão do livre desenvolvimento da 
 sua personalidade, mas tão só, quando muito, a obriga a que adapte, para o 
 futuro, o seu projecto de vida às novas circunstâncias, tal qual pode acontecer 
 por força de muitas outras circunstâncias possíveis naturalisticamente, como, 
 por exemplo, a doença, o desemprego, acidentes, etc. 
 Ela continua a ser titular de um direito pessoal ao livre desenvolvimento, de o 
 poder exercer e manifestar, repetidamente, em todas as outras condições da sua 
 vida. Seguindo a lógica do acórdão, a mulher grávida manterá a sua liberdade de 
 desenvolver o seu projecto de vida quantas as vezes que optar pela interrupção 
 da gravidez. Porém, em todas essas vezes, ocorrerá a extinção do direito à vida 
 humana de um concreto titular – o concreto feto em gestação.
 
                  Nesta linha de pensamento, há-de convir-se que a interrupção 
 voluntária de gravidez, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de 
 gravidez, assume tão só a natureza de um simples meio de contracepção ou mesmo 
 de planeamento familiar cuja determinação do concreto conteúdo corresponde a um 
 direito absoluto da mulher grávida, fazendo irrelevar, para o concreto 
 embrião/feto, qualquer protecção constitucional do seu direito à vida humana, 
 consagrado no art.º 24.º, n.º 1, da CRP. 
 
                  Ou seja, a concepção do acórdão assenta numa ideia de completa 
 liberalização do aborto, condicionando-o a condições que visam apenas acautelar 
 o aspecto de saúde da mulher abortanda e não em qualquer ideia de que deve ser 
 efectuada uma ponderação de direitos ou valores: contra a vontade, de livre 
 opção, da mulher de abortar, nas primeiras 10 semanas de gravidez, em 
 estabelecimento de saúde legalmente autorizado, nada (absoluto) se pode opor.
 
                  Trata-se, por outro lado, de uma solução cuja admissibilidade 
 não vemos como possa ser acolhida pelo princípio constitucional da 
 proporcionalidade, na sua acepção de justa medida. Essa desproporcionalidade 
 torna-se patente não só quando abandona, por inteiro, a natureza do direito que 
 está em colisão com o direito da mulher grávida, permitindo o seu sacrifício, de 
 plano, nas primeiras 10 semanas, como quando a valoração acaba por ficar 
 dependente apenas da decorrência de simples prazos de gestação, e da 
 aleatoriedade decisória que, durante eles, poderá ser feita, livremente, pela 
 mulher grávida, podendo ser levada a cabo, sem censura penal, num limite em que 
 o feto tem até já forma humana (desde as 8 semanas) (cf. Fernando J. Regateiro, 
 Manual de Genética Médica, Coimbra, 2003, pp. 310 a 312).
 
                  Como se verifica dos seus termos, o acórdão invoca a realização 
 de uma concordância prática dos direitos em questão no plano abstracto, 
 indicando até, nesse sentido, a existência de vários regimes de protecção da 
 maternidade, que identifica. 
 Todavia, a primeira objecção que poderá fazer-se a propósito de tal atitude é 
 que, posta a questão em termos abstractos (plano do conteúdo/extensão do direito 
 objectivo à vida humana), no plano de constitucionalidade, caberia ao próprio 
 legislador constitucional resolvê-la e não ao legislador ordinário, mormente no 
 que toca ao conteúdo essencial do direito, que é aquele que é tocado pelo 
 aborto. 
 
                  E não se esgrima, contra esta posição, como está pressuposto 
 pelo acórdão, para justificar a existência de um juízo ponderativo de 
 concordância prática, que só tal operação permite enquadrar constitucionalmente 
 as causas de desculpabilização e de justificação da interrupção voluntária de 
 gravidez existentes na lei em vigor, pois estas, apenas, correspondem a 
 concretizações, relativamente aos concretos direitos constitucionais que estão 
 em causa, de princípios constitucionais autónomos, que valem para todo o direito 
 criminal – as causas de justificação e de desculpabilização.
 
                  Depois a tese do acórdão sofre de um verdadeiro ilogismo: é que 
 os direitos cuja existência alega, apenas, constituirão direitos para quem tiver 
 a sorte de não ser abortado. A sua eficácia depende da existência de titulares 
 de direito à vida humana que tenham nascido.
 
                  A vida humana não existe sem um titular e não é possível 
 falar-se de violação, que o preceito constitucional proíbe, sem ser 
 relativamente à posição jurídica de quem se encontre investido na titularidade 
 de um direito. 
 
                  De contrário, o que está em causa é, ainda, a definição do 
 conteúdo constitucional desse direito, dos seus contornos, do seu conteúdo 
 essencial, no mínimo. E, a ser assim, tal domínio não cabe nos poderes do 
 legislador ordinário, mas nos do constitucional.
 
                  Essa é, também, a razão pela qual repudiamos a tese, admitida 
 no acórdão (pontos 7 a 10), sobre a admissibilidade de uma dúvida interpretativa 
 sobre a solução, em abstracto, no plano da constitucionalidade, de um conflito 
 de valores ou direitos constitucionais, como a que está, em causa, na proposta 
 de referendo, poder ser devolvida ao eleitorado, através de mecanismos como o 
 referendo e não de eleições em que possam ser assumidos poderes constituintes 
 por parte da Assembleia da República.
 
                   É que o voto expresso neste caso, desde que afirmativo, apenas 
 pode traduzir uma posição de poder político legislativo ordinário, no sentido 
 transportado pela pergunta, ou seja, corporiza, apenas, uma posição de poder 
 legislativo ordinário, não incorporando quaisquer poderes de definição do 
 conteúdo dos direitos e garantias constitucionais, só possível através da 
 concessão/assumpção de poderes constituintes.
 
                  Resta, por último, apreciar a posição em que se abona o 
 acórdão, segundo a qual não se esgota, no domínio penal, o âmbito de protecção 
 do direito constitucional à vida humana e de que não existe uma imposição 
 constitucional à criminalização. 
 
                  Estamos de acordo quanto à primeira consideração, mas já não 
 podemos acompanhar, de forma alguma, a segunda proposição.
 
                  E não podemos, porque entendemos que existem direitos 
 constitucionais cuja existência e exercício hão-de, necessariamente, impor a 
 criminalização das atitudes que os violarem, por, na sua defesa, o legislador 
 ordinário dever usar todos os meios constitucionalmente possíveis e entre estes, 
 evidentemente, a sua última ratio – o direito criminal. 
 
 É o caso do direito à vida humana uterina e pós-uterina. Trata-se de um direito 
 que é pressuposto necessário da existência de todos os demais (direito com 
 pretensão de absoluto), de um direito sem cuja existência, em seres concretos, 
 não é concebível qualquer princípio de dignidade da pessoa humana e existência 
 de uma comunidade politicamente organizada em Estado. 
 O direito à vida humana de qualquer titular constitucional que ele seja, nascido 
 ou não nascido, porque a Constituição os não distingue, é um direito fundante do 
 Homem e da sociedade organizada. 
 Na mesma situação se encontra, por exemplo, a protecção do princípio democrático 
 do Estado de direito. Sem protecção do princípio democrático do Estado de 
 direito, por todos os meios constitucionalmente permitidos, este não poderá 
 existir e subsistir. Sendo assim, não poderá o legislador ordinário deixar de 
 utilizar na sua protecção a última ratio – o direito criminal.
 Benjamim Rodrigues
 
  
 
  
 
  
 DECLARAÇÃO DE VOTO
 
  
 
                                  Votei vencido por entender que: (i) a 
 formulação da pergunta não satisfaz os requisitos constitucionais e legais da 
 clareza e da objectividade; (ii) é injustificada a restrição do “universo 
 eleitoral” aos eleitores residentes no território nacional; e (iii) a resposta 
 afirmativa é susceptível de conduzir a uma solução jurídica inconstitucional.
 
  
 
                                  1. A falta de clareza e de objectividade da 
 pergunta.
 
                                  1.1. A Constituição da República Portuguesa 
 
 (CRP) exige, no seu artigo 115.º, n.º 6, que as questões objecto de referendo 
 sejam “formuladas com objectividade, clareza e precisão”, tendo a Lei Orgânica 
 do Regime do Referendo (Lei n.º 15‑A/98, de 3 de Abril, alterada pela Lei 
 Orgânica n.º 4/2005, de 8 de Setembro – LORR) reiterado que “as perguntas são 
 formuladas com objectividade, clareza e precisão (...), sem sugerirem, directa 
 ou indirectamente, o sentido das respostas”.
 
                                  Os requisitos da clareza e da precisão implicam 
 que a pergunta seja formulada “de modo unívoco e explícito, sem ambiguidades” 
 
 (Acórdão n.º 704/2004), insusceptível de “comportar mais do que uma 
 interpretação” (Acórdão n.º 531/98). O requisito da objectividade impede a 
 utilização de formulações susceptíveis de “induzir os eleitores em erro, 
 influenciando o sentido da resposta” (Acórdão n.º 531/98).
 
                                  Entendo que a pergunta ora em apreciação não é 
 clara quando utiliza a expressão “em estabelecimento de saúde legalmente 
 autorizado”, e não é objectiva quando usa a expressão “despenalização da 
 interrupção voluntária da gravidez”.
 
  
 
                                  1.2. A primeira expressão é susceptível de duas 
 interpretações: tratar‑se de estabelecimento de saúde legalmente autorizado a 
 praticar abortos (autorização específica) ou tratar‑se de estabelecimento de 
 saúde legalmente autorizado a funcionar como estabelecimento de saúde tout 
 court (autorização genérica).
 
                                  No Acórdão n.º 288/98 o Tribunal Constitucional 
 interpretou a expressão naquele primeiro sentido, interpretação que foi mantida 
 pelo precedente acórdão. Afigura‑se‑me, porém, que é a segunda a interpretação 
 correcta, como, a meu ver, resulta da história das iniciativas parlamentares 
 pertinentes, em que a expressão surge como equivalente a “estabelecimento de 
 saúde oficial ou oficialmente reconhecido” (cf. Projectos de Lei n.ºs 177/VII, 
 
 235/VII, 236/VII, 417/VII, 451/VII, 453/VII, 16/VIII, 64/VIII, 1/IX, 89/IX, 
 
 405/IX, 409/IX, 1/X, 6/X, 12/X, 19/X e 166/X), que é, aliás, a utilizada no 
 corpo do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal. O que se pretendeu exigir terá 
 sido que o aborto fosse praticado em estabelecimento de saúde, quer oficial, 
 quer legalmente autorizado (no sentido de oficialmente reconhecido), e não em 
 quaisquer outras instalações, mas não se terá querido limitar tais intervenções 
 a estabelecimentos de saúde especificamente autorizados a praticar abortos 
 
 (admitindo que estas autorizações específicas existam ou venham a existir). A 
 simples existência desta dualidade de interpretações demonstra a falta de 
 clareza desta parte da pergunta.
 
  
 
                                  1.3. Mais grave, porém, é a falta de 
 objectividade que deriva do uso da expressão “despenalização da interrupção 
 voluntária da gravidez”.
 
                                   Interessará começar por recordar as oito 
 formulações propostas para a pergunta ao longo das diversas tentativas de 
 processo referendário nesta matéria:
 
                                  1) “Não existindo razões médicas, o aborto deve 
 ser livre durante as primeiras 12 semanas?” (Projecto de Resolução n.º 38/VII, 
 apresentado pelo PSD, Diário da Assembleia da República (DAR), II Série‑A, n.º 
 
 12, de 9/1/1997);
 
                                  2) “Não existindo razões médicas, o aborto deve 
 ser livre durante as primeiras 10 semanas?” (Projecto de Resolução n.º 75/VII, 
 apresentado pelo PSD, DAR, II‑A, n.º 23, de 15/1/1998);
 
                                  3) “1 – Concorda que o aborto seja livre nas 
 primeiras 10 semanas de gravidez? 2 – Concorda que razões de natureza económica 
 ou social possam justificar o aborto por constituírem perigo grave para a saúde 
 da mulher?” (proposta de substituição do Projecto n.º 75/VII, apresentada pelo 
 PSD e CDS‑PP, DAR, I, n.º 51, de 20/3/1998);
 
                                  4) “Concorda com a despenalização da 
 interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas 10 
 primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?” (proposta 
 de substituição do Projecto n.º 75/VII, apresentada pelo PS (DAR, I, n.º 51, de 
 
 20/3/1998), que viria a ser adoptada pela Resolução da Assembleia da República 
 n.º 16/98 (Diário da República (DR), I Série‑A, n.º 76, de 31/3/1998), e 
 retomada no Projecto de Resolução n.º 69/X, apresentado pelo PS (DAR, II‑A, n.º 
 
 50, de 22/9/2005), adoptado pela Resolução da Assembleia da República n.º 
 
 52‑A/2005 (DR, I‑A, Supl. ao n.º 188, de 29/9/2005), e no Projecto de Resolução 
 n.º 148/X, apresentadas pelo PS (DAR, II‑A, n.º 2, de 21/9/2006), adoptado pela 
 Resolução da Assembleia da República n.º 54‑A/2006 (DR, I Série, 2.º Supl. ao 
 n.º 203, de 20/10/2006));
 
                                  5) “Concorda que deixe de constituir crime o 
 aborto realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez, com o consentimento da 
 mulher, em estabelecimento legal de saúde?” (Projecto de Resolução n.º 7/X, 
 apresentado pelo BE, DAR, II‑A, n.º 4, de 2/4/2005);
 
                                  6) “Concorda que deixe de constituir crime o 
 aborto realizado nas primeiras 10 semanas de gravidez, com o consentimento da 
 mulher, em estabelecimento legal de saúde?” (Projecto de Resolução n.º 9/X, 
 apresentado pelo PS (DAR, II‑A, n.º 4, de 2/4/2005), adoptado pela Resolução da 
 Assembleia da República n.º 16‑A/2005 (DR, I‑A, Supl. ao n.º 78, de 21/4/2005));
 
                                  7) “Concorda com a despenalização do aborto 
 realizado nas primeiras 16 semanas de gravidez, com o consentimento da mulher, 
 em estabelecimento legal de saúde” (proposta de substituição do Projecto n.º 
 
 9/X, apresentado pelo CDS‑PP, DAR, II‑A, n.º 8, de 22/4/2005);
 
                                  8) “Concorda com a liberalização do aborto, se 
 realizado, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de 
 saúde legalmente autorizado?” (Proposta de substituição do Projecto n.º 148/X, 
 apresentada pelo CDS, DAR, II‑A, n.º 12, de 28/10/2006).
 
                                  Nestas formulações são utilizados os conceitos 
 de “liberalização”, “despenalização” e “descriminalização”, que, como é sabido, 
 têm sentidos bem diferenciados e efeitos distintos, desde logo o de que, como 
 assinala Jorge de Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense do Código Penal, 
 Parte Especial, Tomo I, Coimbra, 1999, p. 178), “se a interrupção for um facto 
 ilícito, ainda que não punível, o Estado se sentirá desobrigado das prestações 
 sociais decorrentes da intervenção médica – de acordo com o princípio de que não 
 podem ser dispendidos dinheiros públicos com factos constitutivos de ilícitos 
 penais”.
 
                                  Tenho por evidente que a medida legislativa que 
 os proponentes do referendo visam aprovar, na hipótese de resposta afirmativa 
 vinculativa, não consiste numa mera despenalização (sem descriminalização). Não 
 se trata, na verdade, de previsão de situações de não aplicação de penas a 
 determinados autores de condutas que continuam a ser qualificadas como 
 criminalmente ilícitas (como acontece com as propostas de eliminação do n.º 3 do 
 artigo 140.º do Código Penal, constantes dos Projectos de Lei n.ºs 308/X (PCP), 
 
 309/X (Os Verdes) e 317/X (BE), que, essas sim, conduzem à não punição da mulher 
 grávida em todas as situações de crimes de aborto, praticados fora das previsões 
 do artigo 142.º), mas muito mais do que isso. Trata-se de deixar de considerar 
 como crime, relativamente a todos os participantes nessas intervenções (e não 
 apenas à mulher grávida), o aborto praticado, nas primeiras dez semanas de 
 gravidez, por opção da mulher, em estabelecimento de saúde legalmente 
 autorizado. E não se trata apenas de afastar a ilicitude criminal, mas toda e 
 qualquer ilicitude. E ainda mais: trata‑se de assegurar, pelo próprio Estado, 
 designadamente através do serviço nacional de saúde, a prática desses actos. 
 Isto é: pretende‑se passar de uma situação de “crime punível”, não a uma 
 situação de “crime não punível”, mas a uma situação de “não crime”, de “não 
 ilícito” e de “direito a prestação do Estado”.
 
                                  Nem se diga, como foi aduzido no debate 
 parlamentar, que não se trata de “descriminalização” por o crime de aborto 
 continuar a ser punível quando praticado para além das 10 semanas. A questão, 
 porém, é que um conjunto de situações (prática do aborto, por opção da mulher, 
 até às 10 semanas de gravidez, sem que se verifiquem as “indicações” do artigo 
 
 142.º), que eram consideradas crime e como tal punidas, deixam de ser 
 consideradas como crime relativamente a todos os intervenientes nessas práticas.
 
                                  Neste contexto, embora fosse sustentável que, 
 em rigor, se trata de uma “legalização” do aborto em causa [na apresentação da 
 Projecto de Resolução foi expressamente referido: “(...) ao legalizar a 
 interrupção voluntária da gravidez sob determinadas condições, não se está, como 
 
 é evidente, a liberalizar o aborto, está‑se apenas a alargar, de forma razoável 
 e equilibrada, o elenco das excepções, já hoje admitidas na lei, à regra geral 
 de criminalização que permanece em vigor. (..) Por isso, propomos a realização 
 desta consulta popular, onde a única questão a decidir é saber se «sim» ou 
 
 «não» à licitude da interrupção voluntária da gravidez, nas primeiras 10 
 semanas, em estabelecimento autorizado” – DAR, I, n.º 14, de 20/10/2006, p. 8 
 
 (sublinhados acrescentados)], a pergunta a formular, para ser objectiva, teria, 
 no mínimo, de referir a intenção de “deixar de constituir crime” tal conduta. 
 Isto é: devia ter sido mantida a formulação dos Projectos de Resolução n.ºs 7/X 
 
 (BE) e 9/IX (PS) – “Concorda que deixe de constituir crime o aborto realizado 
 nas primeiras 10 [12 para o BE] semanas de gravidez, com o consentimento da 
 mulher, em estabelecimento legal de saúde?” – acolhida na Resolução da 
 Assembleia da República n.º 16‑A/2005.
 
                                  A isto acresce que, quer na discussão pública 
 em curso sobre este tema, quer, mais relevantemente, na apresentação parlamentar 
 da iniciativa referendária, se tem sistematicamente insistido na associação 
 desta iniciativa ao propósito de pôr termo à perseguição criminal, julgamento, 
 condenação e prisão das mulheres grávidas que pratiquem aborto. E o uso da 
 expressão “despenalização”, na pergunta, pode propiciar o entendimento de que é 
 esse propósito que se visa alcançar, o que não corresponde à realidade. Na 
 verdade, face ao apontado desiderato, a aprovação da medida legislativa que 
 resultará de eventual resposta positiva vinculativa ao referendo surge como 
 inadequada, por defeito e por excesso: por defeito, porque não evitará a 
 perseguição criminal das mulheres que pratiquem aborto para além das 10 semanas 
 fora das indicações do artigo 142.º do Código Penal e ainda das que pratiquem 
 aborto dentro das 10 semanas, mas fora de estabelecimento de saúde legalmente 
 autorizado; por excesso, porque exclui da incriminação, não apenas as mulheres 
 grávidas, mas todos os intervenientes no acto em causa.
 
                                  Não se leia nas considerações precedentes 
 qualquer tomada de posição negativa quanto ao mérito da iniciativa. Não é disso 
 que se visa nesta sede, em que apenas se trata de verificar o respeito dos 
 requisitos de clareza e de objectividade exigíveis à pergunta do referendo.
 
                                  E, pelas razões expostas, concluo que, para 
 além da falta de clareza da expressão “estabelecimento de saúde legalmente 
 autorizado”, a expressão “despenalização da interrupção voluntária da gravidez” 
 não respeita o requisito da objectividade, pois se mostra susceptível de 
 
 “induzir os eleitores em erro, influenciando o sentido da resposta”.
 
  
 
                                  2. A definição do “universo eleitoral”.
 
                                  A proposta referendária limita a intervenção no 
 referendo aos “cidadãos eleitores recenseados no território nacional”.
 
                                  O precedente acórdão (n.º 26), para considerar 
 justificada esta limitação, invoca argumentos (ser a “aplicação da lei penal 
 portuguesa a cidadãos residentes no estrangeiro relativamente excepcional e 
 condicionada” e não ter a matéria do referendo “a ver especificamente com a 
 particular situação dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro”), que 
 não posso acompanhar.
 
                                  Com efeito, afigura‑se‑me de todo impertinente 
 o argumento extraído das regras sobre a aplicação no espaço da lei penal 
 portuguesa. Não pode constituir critério adequado para aferir da relevância da 
 participação no referendo dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro a 
 circunstância de, por regra, as normas penais portuguesas lhes não serem 
 aplicáveis. O interesse na participação no referendo não pode resultar da 
 susceptibilidade de ser autor ou vítima dos crimes em causa.
 
                                  Por outro lado, a CRP (artigo 115.º, n.º 12) 
 não restringe a participação dos cidadãos residentes no estrangeiro aos 
 referendos sobre matéria que apenas lhes diga especificamente respeito, mas sim 
 sobre matéria “que lhes diga também especificamente respeito”. E em lado algum a 
 CRP manda considerar esses cidadãos “na sua condição de emigrantes”, condição 
 que, aliás, muitos deles não terão.
 
                                  Há que atender que não é à generalidade dos 
 cidadãos portugueses residentes no estrangeiro que é facultada a participação no 
 referendo, nem sequer ao grupo, mais reduzido, dos que, estando recenseados, 
 são eleitores da Assembleia da República. É, apenas, ao grupo estrito de 
 cidadãos portugueses a quem, apesar de residirem no estrangeiro, foi admitida a 
 participação nas eleições para Presidente da República por mantenham “laços de 
 efectiva ligação à comunidade nacional” (artigo 121.º, n.º 2, da CRP, para que 
 remete o artigo 115.º, n.º 12) e que efectivamente exercitaram esse direito de 
 recenseamento (o que revela a actualidade do seu interesse na participação nos 
 assuntos públicos nacionais), designadamente titulares de órgãos da União 
 Europeia e de organizações internacionais, diplomatas e outros funcionários e 
 agentes em serviço em representações externas do Estado, funcionários e agentes 
 das comunidades e da União Europeia e de organizações internacionais, 
 professores de escolas portuguesas, cooperantes (artigo 1.º‑A, n.º 1, da Lei 
 Eleitoral para Presidente da República – Decreto‑Lei n.º 319‑A/76, de 3 de Maio, 
 alterado, por último, pela Lei Orgânica n.º 5/2005, de 8 de Setembro); cônjuges 
 ou equiparados, parentes ou afins, que vivam com os cidadãos atrás mencionados 
 
 (artigo 1.º‑A, n.º 2, da mesma Lei); e os cidadãos que não estejam ausentes do 
 território nacional para além de determinados limites temporais, consoante sejam 
 residentes nos Estados membros da União Europeia ou nos países de língua 
 oficial portuguesa ou nos demais Estados ou que se tenham deslocado a Portugal e 
 aqui permanecido durante determinado período de tempo em época recente (artigo 
 
 1.º‑B da mesma Lei).
 
                                  Por outro lado, a matéria em causa no 
 referendo, como o evidencia a intensidade do debate público que a tem rodeado 
 ao longo de um já dilatado período de tempo, está directamente ligada à 
 definição dos valores fundamentais estruturantes da comunidade nacional, 
 problemática que não pode deixar de afectar os portugueses que, apesar de 
 residentes no estrangeiro, têm manifestado laços de efectiva ligação à 
 comunidade nacional e revelado interesse actual na intervenção directa na vida 
 política nacional.
 
                                  Não se vislumbra motivo justificado para 
 excluir este grupo de cidadãos portugueses da participação num referendo que, 
 atenta a matéria sobre que versa, também lhes diz especificamente respeito, e no 
 qual, aliás, irão participar cidadãos estrangeiros residentes em Portugal – os 
 referidos no artigo 38.º da LORR.
 
  
 
  
 
                                  3. A inconstitucionalidade da solução 
 legislativa derivada de eventual resposta positiva vinculativa ao referendo.
 
                                  3.1. Apesar da notória divisão de posições 
 revelada pelos quatro acórdãos proferidos pelo Tribunal Constitucional sobre a 
 problemática do aborto (Acórdãos n.ºs 25/84, 85/85, 288/98 e o presente), num 
 aspecto crucial verificou‑se unanimidade por parte dos 31 juízes das diversas 
 formações que subscreveram esses acórdãos: todos eles, nemine discrepante, 
 assumiram que a vida intra‑uterina constitui um bem constitucionalmente 
 tutelado, donde deriva a obrigação do Estado de a defender.
 
                                  O reconhecimento da dignidade constitucional da 
 vida intra‑uterina (comum, aliás, à generalidade das pronúncias de diversos 
 Tribunais Constitucionais da nossa área civilizacional) – que é independente de 
 concepções filosóficas ou religiosas sobre o início da vida humana – não impede, 
 como é óbvio, a admissão de que a sua tutela seja menos forte do que a da vida 
 das pessoas humanas (desde sempre revelada na diferenciação das penas aplicáveis 
 aos crimes de aborto e de homicídio) e que possa conhecer gradações consoante a 
 fase de desenvolvimento do feto, designadamente em sede de ponderação da solução 
 do conflito entre esse valor e outros valores igualmente dignos de protecção 
 constitucional, relacionados com a mulher grávida.
 
                                  O que se me afigura constitucionalmente 
 inadmissível, por incompatível com o reconhecido dever do Estado de tutelar a 
 vida intra‑uterina – com consequente postergação da concepção primária do feto 
 como uma víscera da mulher, sobre a qual esta deteria total liberdade de 
 disposição – é admitir que, embora na fase inicial de desenvolvimento do feto, 
 se adopte solução legal que represente a sua total desprotecção, com absoluta 
 prevalência da “liberdade de opção” da mulher grávida, sem que o Estado faça o 
 mínimo esforço no sentido da salvaguarda da vida do feto, antes adoptando uma 
 posição de neutral indiferença ou, pior ainda, de activa promoção da destruição 
 dessa vida.
 
                                  Não acompanho, assim, o argumento expendido no 
 n.º 48 do Acórdão n.º 288/98 e retomado no n.º 31 do precedente acórdão, que 
 vislumbra uma ponderação de interesses no “contexto global” da regulação da 
 matéria, como que “compensando” a desprotecção total da vida intra‑uterina nas 
 primeiras 10 semanas com a protecção total (ou quase total) nos últimos períodos 
 de gestação, argumento que se me afigura inaceitável face à inarredável 
 individualidade e infungibilidade de cada vida humana, mesmo que intra‑uterina. 
 Como se afirmou na declaração de voto do Cons. Tavares da Costa aposta àquele 
 acórdão, na vida intra‑uterina manifesta‑se “uma forma de vida que, desde logo, 
 contém um acabado programa genético, único e irrepetível, o qual, se entretanto 
 não conhecer destruição, culminará, inevitavelmente, com o nascimento de um ser 
 humano” (sublinhado acrescentado) – cf., ainda, sobre este ponto, Jorge Miranda 
 e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, pp. 
 
 230–232).
 
  
 
                                  3.2. Não excluo, porém, compartilhar da 
 convicção de Jorge de Figueiredo Dias (obra citada, p. 172) “de que mesmo um 
 sistema que combinasse equilibradamente o sistema das indicações com o sistema 
 dos prazos não mereceria censura constitucional se nele assentasse o legislador 
 ordinário; nomeadamente se um tal sistema se combinasse por sua vez, como deve, 
 com um consistente e adequado sistema de aconselhamento” (negrito no original, 
 sublinhado acrescentado).
 
                                   Isto é: admitiria considerar não 
 inconstitucional uma solução legislativa que, no período inicial da gestação, 
 acabasse por conceder prevalência à opção da mulher grávida, desde que fosse 
 associada à imposição de um sistema de aconselhamento, designadamente se este 
 aconselhamento não fosse um aconselhamento meramente informativo, mas antes um 
 aconselhamento orientado para a salvaguarda da vida.
 
                                  Como resulta dos elementos de direito comparado 
 largamente referidos no Acórdão n.º 288/98 (cf. também João Carlos Simões 
 Gonçalves Loureiro, “Aborto: algumas questões jurídico-constitucionais (A 
 propósito de uma reforma legislativa)”, Boletim da Faculdade de Direito, vol. 
 LXXIV, Coimbra, 1998, pp. 327‑403), há, na nossa área civilizacional, três 
 modelos fundamentais em matéria de criminalização do aborto.
 
                                  Um primeiro grupo engloba os países em que 
 vigora a proibição total: Irlanda e Malta.
 
                                  O segundo grupo é integrado pelos países que 
 reconhecem apenas o modelo das indicações, isto é, “o reconhecimento de 
 situações taxativamente indicadas e objectivamente controláveis (i. e., 
 controláveis por terceiro) perante as quais a lei permite o sacrifício da vida 
 intra‑uterina” (Figueiredo Dias, local citado, p. 171). É o caso, embora com 
 variações quanto ao tipo de “indicações” consideradas relevantes e a sua 
 relacionação com os períodos de gestação, da Itália, Reino Unido, Luxemburgo, 
 Suíça, Finlândia, Portugal e Espanha. [Em parêntesis refira‑se que, ao 
 contrário do que com frequência se refere no debate público, não vigora em 
 Espanha um sistema “liberal”, perante o qual seria chocantemente contrastante o 
 
 “limitado” sistema português. O sistema legal espanhol é estritamente um 
 sistema de indicações. O que ocorre é que, na prática, uma interpretação 
 latíssima da indicação relacionada com a “saúde psíquica” da mulher grávida 
 conduziu a uma permissividade na prática do aborto, sobretudo em “clínicas 
 privadas”, que têm como objecto exclusivo do sua actividade a prática abortiva 
 
 (segundo informa João Loureiro, estudo citado, p. 339, 98% dos abortos 
 realizados nas clínicas privadas apresentam como “indicação” o risco para a 
 saúde psíquica da mãe)].
 
                                  O terceiro grupo compreende os países que 
 associam o modelo das indicações com o modelo dos prazos, segundo o qual o 
 aborto será permitido, sem necessidade de justificação por parte da grávida ou 
 do seu controlo por terceiro, dentro de certo prazo. Neste grupo, há ainda que 
 distinguir entre os que não associam (Áustria, Dinamarca, Suécia e Grécia) e os 
 que associam ao método dos prazos um sistema de aconselhamento obrigatório 
 meramente informativo (Bélgica, França, Luxemburgo) ou um aconselhamento 
 obrigatório orientado para a salvaguarda da vida (Holanda, Itália, Alemanha) e 
 um período de reflexão (Bélgica, França, Holanda, Itália, Luxemburgo).
 
                                  Na Holanda, estabeleceu‑se, no artigo 5.º da 
 
 Wet afbreking zwangerschap, de 1 de Maio de 1981, “um processo de aconselhamento 
 obrigatório visando analisar alternativas à interrupção voluntária da gravidez e 
 que o médico, se a mulher achar que a situação de emergência não poderá ser 
 resolvida de outro modo, se certifique que a mulher manifestou e manteve o seu 
 pedido de livre vontade após cuidadosa reflexão e na consciência da sua 
 responsabilidade pela vida pré‑natal e por si própria e pelos seus” (João 
 Loureiro, estudo citado, p. 366‑367).
 
                                  Em Itália, durante os primeiros 90 dias da 
 gravidez, a decisão de abortar cabe à mulher, mas sujeita a consulta em centro 
 de consulta familiar, que a deve esclarecer e ponderar em conjunto com ela e 
 com o autor da concepção (se a mulher assim consentir) todas as soluções 
 possíveis, com o objectivo de ajudar a mulher a ultrapassar as causas que 
 poderiam conduzi‑la a interromper a sua gravidez (cf. n.º 38 do Acórdão n.º 
 
 288/98).
 
                                   Finalmente, na Alemanha, na sequência directa 
 de pronunciamentos do respectivo Tribunal Constitucional, a possibilidade de 
 prática de aborto, nas primeiras 12 semanas, a pedido da mulher, está dependente 
 de aconselhamento obrigatório especificamente dirigido à protecção da vida 
 embrionária e fetal, dispondo o n.º 1 do § 219 do Código Penal alemão (cf. João 
 Loureiro, local citado, p. 389):
 
  
 
                  “O aconselhamento serve a protecção da vida que está por 
 nascer. Deve orientar‑se pelo esforço de encorajar a mulher a prosseguir a 
 gravidez e de lhe abrir perspectivas para uma vida com a criança. Deve ajudá‑la 
 a tomar uma decisão responsável e em consciência. A mulher deve ter a 
 consciência de que o feto, em cada uma das fases de gravidez, também tem o 
 direito próprio à vida e que, por isso, de acordo com o sistema legal, uma 
 interrupção da gravidez apenas pode ser considerada em situações de excepção, 
 quando a mulher fica sujeita a um sacrifício que pelo nascimento da criança é 
 agravado e se torna tão pesado e extraordinário que ultrapassa o limite do que 
 se lhe pode exigir.”
 
  
 
                                  A meu ver, atento o quadro constitucional 
 português vigente, não pode deixar‑se de considerar inconstitucional um sistema 
 que, na parte em que acolhe o método dos prazos, não o condicione a um sistema 
 de aconselhamento orientado para a salvaguarda da vida. Na verdade, após se 
 reconhecer que a vida intra‑uterina constitui um valor constitucionalmente 
 tutelado, cuja defesa incumbe ao Estado, é contraditório e incongruente 
 considerar constitucionalmente aceitável uma solução em que a vida do feto é 
 sacrificada, por mera opção da mulher, sem que o Estado tome qualquer iniciativa 
 nesse domínio, a mínima das quais seria condicionar o aborto à obrigatoriedade 
 de aconselhamento e de um período de reflexão. Aconselhamento este que, nos 
 sistemas legais que o acolhem, não surge como mecanismo estranho à solução penal 
 
 (como as consultas de planeamento familiar), mas antes se insere no estrito 
 domínio penal, como condição da não incriminação ou punição do aborto.
 
  
 
                                  3.3. É certo que, quer o Acórdão n.º 288/98, 
 quer o precedente acórdão, acabem por reconhecer a relevância da introdução, na 
 lei que vier a ser aprovada na sequência de eventual resposta afirmativa 
 vinculativa ao referendo, da “obrigatoriedade de uma prévia consulta de 
 aconselhamento, em que possa ser dada à mulher a informação necessária sobre os 
 direitos sociais e os apoios de que poderia beneficiar no caso de levar a termo 
 a gravidez, bem como o estabelecimento de um período de reflexão entre essa 
 consulta e a intervenção abortiva, para assegurar que a mulher tomou a sua 
 decisão de forma livre, informada e não precipitada, evitando‑se a interrupção 
 da gravidez motivada por súbito desespero” (n.º 52 do Acórdão n.º 288/98, 
 retomado no n.º 34 do precedente acórdão).
 
                                   Acontece, porém, que, perante os termos em que 
 está formulada a pergunta do referendo, se a lei aprovada na sua sequência não 
 contemplar esse condicionamento (e, como veremos, é mesmo questionável que o 
 possa inserir), ela não poderá ser vetada pelo Presidente da República nem 
 sujeita a fiscalização preventiva do Tribunal Constitucional com o fundamento de 
 ser inconstitucional a não consagração do aconselhamento obrigatório como 
 condição de não punibilidade.
 
                                  É o que resulta, a meu ver, da força 
 vinculativa constitucionalmente atribuída à resposta afirmativa ao referendo, 
 com participação neste de mais de metade dos eleitores inscritos no 
 recenseamento.
 
                                  As diversas iniciativas legislativas surgidas, 
 neste domínio, na última década, na parte em que visavam a introdução do sistema 
 dos prazos (Projectos de Lei n.ºs 177/VII, 235/VII, 236/VII, 417/VII, 451/VII, 
 
 453/VII, 16/VIII, 64/VIII, 1/IX, 89/IX, 405/IX, 409/IX, 1/X, 6/X, 12/X, 19/X, 
 
 166/X, 308/X, 309/X e 317/X), previram o condicionamento da não punibilidade do 
 aborto, por opção da mulher, aos seguintes requisitos:
 
                                  1) ser a interrupção da gravidez efectuada por 
 médico ou sob a sua direcção;
 
                  2) ser feita em estabelecimento de saúde oficial ou 
 oficialmente reconhecido;
 
                  3) durante as primeiras 10 ou 12 semanas de gravidez;
 
                  4) com invocação de motivos relacionados com a preservação da 
 integridade moral e dignidade social da mulher e com uma maternidade consciente 
 e responsável; e
 
                  5) após consulta num centro de acolhimento familiar ou comissão 
 de apoio à maternidade.
 
                  A proposta de referendo apenas contempla, como condições de 
 
 “despenalização” (rectius, descriminalização), para além da opção da mulher, o 
 prazo de 10 semanas e a natureza do estabelecimento de saúde.
 
                                  Do carácter vinculativo do referendo (artigo 
 
 115.º, n.º 1, da CRP) resulta que o sentido da vontade popular soberana, por 
 esse meio directamente expressa, se impõe aos órgãos de soberania que sejam 
 chamados a intervir no subsequente processo legislativo. Impõe à Assembleia da 
 República e ao Governo a aprovação, em prazo certo, do acto legislativo de 
 sentido correspondente à resposta afirmativa (artigo 241.º da LORR) e proíbe ao 
 Presidente da República a recusa de promulgação do acto legislativo “por 
 discordância com o sentido apurado em referendo com eficácia vinculativa” 
 
 (artigo 242.º da LORR).
 
                                  Desta última proibição de veto presidencial 
 
 (sem distinção entre veto político e veto por inconstitucionalidade) resulta a 
 impossibilidade de fiscalização preventiva, pelo Tribunal Constitucional, da 
 constitucionalidade do acto legislativo concretizador da pronúncia referendária, 
 desde que o sentido desse acto caiba dentro do alcance de tal pronúncia. Isto é, 
 tal como Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo II, 
 Coimbra, 2006, p. 309), entendo que só será admissível o Presidente da República 
 requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da lei 
 concretizadora da pronúncia referendária “apenas naquilo em que ela estiver 
 para além do conteúdo da proposta referendada, ou no tocante a 
 inconstitucionalidade orgânica ou formal”. Trata‑se de entendimento também 
 subscrito por Maria Benedita Urbano (O Referendo – Perfil Histórico‑Evolutivo do 
 Instituto. Configuração Jurídica do Referendo em Portugal, Coimbra, 1998, p. 
 
 287: “(...) isto equivale à impossibilidade de o PR utilizar o seu veto político 
 e de pedir a fiscalização preventiva das normas concretizadoras da consulta 
 referendária, pelo menos na parte em que elas se limitem a traduzir 
 correctamente a vontade popular”), por Luís Barbosa Rodrigues (O Referendo 
 Português a Nível Nacional, Coimbra, 1994, pp. 230‑231, onde após, referir estar 
 vedado ao Presidente da República recusar a promulgação da lei que concretize o 
 resultado do referendo, acrescenta: “No que se refere ao Tribunal Constitucional 
 
 (...) parece líquido que este não deverá pronunciar‑se preventivamente acerca da 
 concretização normativa do resultado do referendo, mesmo se instado pelo 
 Presidente da República a fazê-lo”), e mesmo por Vitalino Canas (Referendo 
 Nacional – Introdução e Regime, Lisboa, 1998, pp. 23 e 35 e nota 37), que, 
 apesar de admitir que o Presidente da República peça “a fiscalização preventiva 
 da constitucionalidade de quaisquer normas constantes de um acto executor da 
 decisão dos cidadãos expressa em referendo, tenham elas ligação directa com essa 
 execução ou não e seja o referendo vinculativo ou não”, reconhece que, “quando o 
 Tribunal Constitucional tenha efectuado aquilo que se designou por fiscalização 
 pré‑preventiva das normas, a sua jurisdição se reduza à averiguação sobre se a 
 norma produzida na sequência do referendo coincide com a norma pré‑avaliada”.
 
                                  No caso concreto, se, face a resposta 
 afirmativa vinculativa ao referendo, a Assembleia da República aprovar uma lei 
 em que condicione a “despenalização” do aborto às três condições expressas na 
 pergunta (opção da mulher, período de 10 semanas e estabelecimento de saúde 
 legalmente autorizado) – hipótese em que não vejo como se poderá sustentar que a 
 lei desrespeite o sentido da resposta –, a questão da inconstitucionalidade 
 dessa solução legislativa, por se entender que seria indispensável a imposição 
 de uma consulta de aconselhamento e/ou de um período de reflexão, não poderá 
 ser colocada ao Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização preventiva, 
 contrariamente ao que pressupõem o Acórdão n.º 288/98 e o precedente acórdão, 
 sendo mesmo questionável a constitucionalidade da imposição, pelo legislador, 
 de outras condições de “despenalização” para além das que constam da pergunta, 
 tal como seria inconstitucional, por exemplo, a fixação do período de gravidez 
 em 8 semanas, em vez das 10 semanas que da mesma constam.
 
                                  A solução para evitar o aparecimento 
 irremediável de soluções legislativas inconstitucionais consiste no particular 
 rigor que o Tribunal Constitucional deve colocar na apreciação da 
 constitucionalidade das soluções legislativas emergentes das respostas (positiva 
 ou negativa). Não basta, contrariamente à decisão que no presente acórdão obteve 
 maioria, que nenhuma das respostas implique necessariamente uma solução jurídica 
 incompatível com a Constituição. O que importa assegurar é que nenhuma das 
 possíveis soluções jurídicas que caibam no sentido da resposta (relativamente às 
 quais o Tribunal Constitucional, pelas razões expostas, não terá oportunidade de 
 se voltar a pronunciar em sede de fiscalização preventiva) viole a Constituição.
 
                                  No presente caso, a meu ver, não apenas uma das 
 soluções possíveis, mas até a solução que directamente resultará da resposta 
 afirmativa, se se converter a formulação literal desta em artigo de lei, é 
 inconstitucional, atenta a completa falta de intervenção do Estado na tutela da 
 vida intra‑uterina, bem constitucionalmente protegido, que exigiria, no mínimo, 
 a imposição da obrigatoriedade de uma consulta de aconselhamento e de um período 
 de reflexão antes da consumação do aborto. Ora, em vez dessa intervenção para 
 salvaguarda da vida, de tal solução resultará, nem sequer uma posição de 
 neutralidade ou de indiferença do Estado (que já seria criticável), mas 
 inclusivamente uma posição de promoção do aborto, através da facilitação da sua 
 prática, por mera opção da mulher grávida, sem invocação de motivos, nos 
 serviços públicos de saúde, tendencialmente gratuitos.
 
                                  Mário José de Araújo Torres
 
  
 
  
 
  
 DECLARAÇÃO DE VOTO
 
  
 
 1.            Coincidem, no presente aresto, duas matérias de difícil resolução. 
 A primeira tem a ver com a os requisitos formais e substantivos da convocação de 
 referendo, e a segunda diz respeito à natureza da questão especificamente 
 tratada: a descriminalização do crime de aborto quando voluntariamente praticado 
 
 'nas primeiras 10 semanas em estabelecimento de saúde legalmente autorizado'.
 
 2.            Votei em sentido contrário à solução encontrada pelo Tribunal em 
 resposta a estas duas questões, pois entendo, essencialmente, que a pergunta 
 formulada não espelha com clareza, precisão e objectividade – como a 
 Constituição impõe – a matéria que é colocada à consideração dos cidadãos, e 
 também porque entendo que uma resposta positiva à pergunta determina violação do 
 n.º 1 do artigo 24º da Constituição.
 
 3.            As cautelas com que a lei rodeia a convocação de referendo 
 explicam-se pelo peso que, nas democracias ocidentais, é conferido à opinião 
 pública expressa em sufrágio universal, fora dos momentos eleitorais 
 determinados pelos ciclos políticos previstos na Constituição. É, assim, 
 essencial – ao fim e ao cabo para garantir a genuinidade da resposta dos 
 cidadãos –,  que a pergunta seja absolutamente clara e objectiva, não só na sua 
 locução gramatical, mas também no seu conteúdo, expondo a questão por forma a 
 permitir a sua completa apreensão. Não é, a meu ver, o caso em presença, pois a 
 pergunta não esclarece, nem deixa espaço para que se perceba, que, actualmente, 
 a lei já não penaliza sempre a interrupção voluntária da gravidez  (artigo 142º 
 do Código Penal). Em suma, a pergunta pode falsamente fazer concluir que o 
 tratamento jurídico do aborto se desenvolve na dicotomia 
 crime/descriminalização, sem ocorrência de situações justificativas de não 
 punibilidade já previstas no actual sistema legal. Ao colocar deficientemente os 
 dados da questão, a pergunta não é, a meu ver, precisa nem objectiva.
 
 4.            Quanto à segunda questão, entendo muito simplesmente que se a 
 Constituição, no aludido preceito, protege, sem excepção, a vida humana, é 
 necessário que se conclua que esse dever de protecção legal se estende a todas 
 as formas de vida humana e, portanto, à vida intra-uterina. O que não significa 
 que se imponha um grau de intensidade necessariamente igual na protecção de 
 todas as formas de vida. Significa, isso sim, que se me afigura 
 constitucionalmente desconforme que se retirem completamente todos os obstáculos 
 legais à morte da vida intra-uterina, nesse período de 10 semanas.
 
 5.            Para além disto, acompanho, embora com dúvidas, a solução 
 perfilhada nas alíneas b), c), d), g) e h) da decisão.
 
  
 Carlos Pamplona de Oliveira