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Processo n.º 80/06
 
 2.ª Secção
 Relator: Conselheiro Mário Torres
 
  
 
   
 
                Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal 
 Constitucional,
 
  
 
  
 
                1. A. reclama para o Tribunal Constitucional, nos termos do 
 artigo 76.º, n.º 4, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do 
 Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e 
 alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra o 
 despacho do Desembargador Relator do Tribunal da Relação do Porto, de 10 de 
 Outubro de 2005, que não admitiu, “por manifestamente infundado”, recurso de 
 constitucionalidade por ele interposto do acórdão do mesmo Tribunal, de 30 de 
 Março de 2005, que negou provimento a recurso de despacho do Juiz do 3.º Juízo 
 Criminal da Comarca de Vila Nova de Gaia, de 23 de Junho de 2004, que indeferira 
 pedido de dispensa de pagamento de multa, formulado ao abrigo do n.º 7 do artigo 
 
 145.º do Código de Processo Civil (CPC).
 
                Na reclamação apresentada, aduz o reclamante:
 
  
 
    “A peça processual onde o recorrente suscitou a questão da 
 inconstitucionalidade e ilegalidade, pela interpretação que foi dada através da 
 decisão da 1.ª instância e pelo acórdão, que deturpa e invalida o disposto no 
 n.º 7 do artigo 145.º do Código de Processo Civil e o disposto no artigo 20.º da 
 Constituição da República Portuguesa, foi na sua 3.ª conclusão do recurso, e a 
 que o acórdão de que se recorre se refere e transcreve no início de fls. 3.
 
    Ora, o recurso interposto do tribunal da 1.ª instância para o Tribunal da 
 Relação do Porto, é um recurso extremamente simples, conforme se pode verificar 
 pela sua leitura, e onde, na sua 3.ª conclusão, o recorrente, diz o seguinte:
 
  
 
    «3.° A decisão de que se recorre violou o disposto no n.º 7 do artigo 145.º 
 do CPC, na parte que refere “dispensa da multa nos casos de manifesta carência 
 económica”, bem como o artigo 20.º da Lei Fundamental.» (sic)
 
  
 
    A Senhora Juíza da 1.ª instância foi confrontada com esta conclusão, e 
 poderia, antes de ordenar a sua remessa ao Tribunal da Relação, ter reparado a 
 sua decisão, ao abrigo do n.º 4 do artigo 414.º do CPP. O que não fez.
 
    Depois, ainda que tal não fosse admissível na 1.ª instância, na nossa modesta 
 opinião, sempre deveria o Tribunal da Relação se ter pronunciado sobre a 
 invocada violação do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa pela 
 interpretação que foi dada ao disposto no n.º 7 do artigo 145.º do CPC, na 
 conclusão 3.ª do recurso, o que este último tribunal também não fez.
 
    O ora reclamante entende que a interpretação que foi dada através da decisão 
 da 1.ª instância e pelo acórdão da Relação deturpa e invalida o disposto no n.º 
 
 7 do artigo 145.º do Código de Processo Civil e o disposto no artigo 20.º da 
 Constituição da República Portuguesa.
 
    O recurso para o Tribunal Constitucional reporta-se tanto a uma questão de 
 inconstitucionalidade, violação do artigo 20.º da Lei Fundamental através da 
 interpretação que foi dada ao n.º 7 do artigo 145.º do Código de Processo Civil, 
 na parte que refere «dispensa da multa nos casos de manifesta carência 
 económica».
 
    Bem como se reporta ainda a uma questão de ilegalidade desta norma na parte 
 atrás referida pela interpretação que lhe foi dada pela decisão de que se 
 recorre.
 
    Estamos assim perante um caso de ilegalidade, que foi suscitada, «3.º A 
 decisão de que se recorre violou o disposto no n.º 7 do artigo 145.º do CPC, na 
 parte que refere “dispensa da multa nos casos de manifesta carência económica” 
 
 (...)» (sic).
 
    Bem como de inconstitucionalidade, que também foi suscitada, conforme a 
 conclusão do recurso «3.º (…) bem como o artigo 20.º da Lei Fundamental» (sic).
 
    O tribunal a quo chega a entender (veja‑se a parte final, de II – 
 Fundamentação, do seu acórdão), que «pessoa pobre» não é sinónimo de pessoa com 
 
 «manifesta carência económica», o que é redondamente falso, conforme se pode 
 facilmente verificar por um qualquer dicionário da língua portuguesa.
 
    pobre – A. 1 que tem poucas posses; necessitado; que mostra pobreza; mísero; 
 miserável. B. 1 pessoa sem recursos; necessitado; 2 pessoa que vive da caridade 
 pública, pedinte; 3 desprotegido. sic – Ver Dicionário da Língua Portuguesa da 
 Porto Editora, 2003.
 
    Logo, pessoa pobre é sinónimo de pessoa com manifesta carência económica, já 
 devidamente provada e comprovada nos autos.
 
    O artigo 20.º da Lei Fundamental tem por epígrafe «Acesso ao direito e tutela 
 jurisdicional efectiva», o tribunal a quo, pela interpretação que deu, viola 
 frontalmente o acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva do ora 
 reclamante, que é manifestamente pessoa com carência económica.
 
    E aquilo que pode não parecer muito dinheiro para uns já o é para outros.
 
    E sendo [cada] caso um caso, só nos colocando, por momentos, no lugar dos 
 outros, poderemos ter a verdadeira percepção do que atrás se diz e decidir em 
 conformidade, ou seja, com acerto.
 
    O artigo 20.º da Lei Fundamental não é nem pode ser letra morta, e tem de ser 
 lembrada, considerada e respeitada, por consideração e respeito a todos os 
 cidadãos, incluindo, na nossa modesta opinião, os mais ricos.
 
    Nestes termos, e nos melhores de direito que V.ª Ex.a superiormente suprirá, 
 deverá a presente reclamação ser considerada procedente, com todas as 
 consequências legais, como acto de inteira justiça.”
 
  
 
                No Tribunal Constitucional, o representante do Ministério Público 
 emitiu o seguinte parecer:
 
  
 
    “A presente reclamação é manifestamente improcedente. Na verdade, o ora 
 reclamante não suscitou, durante o processo e em termos processualmente 
 adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para 
 servir de base ao recurso interposto, especificando e indicando qual a concreta 
 dimensão normativa do preceito legal questionado que considerava violadora dos 
 princípios constitucionais.”
 
  
 
                Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
 
  
 
                2. No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a 
 competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da 
 inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade 
 constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas, 
 hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o 
 sentido da interpretação que reputa inconstitucional), e já não das questões de 
 inconstitucionalidade imputada directamente a decisões judiciais, em si mesmas 
 consideradas, ou a condutas ou omissões processuais. A distinção entre os casos 
 em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles 
 em que é imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira 
 hipótese é discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo 
 
 (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de 
 generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações, 
 enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios 
 normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
 
                Por outro lado, tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da 
 alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua 
 admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de 
 inconstitucionalidade haver sido suscitada “durante o processo”, “de modo 
 processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, 
 em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), 
 e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das 
 dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
 
                Acresce que, quando o recorrente questiona a conformidade 
 constitucional de uma interpretação normativa, deve identificar essa 
 interpretação com o mínimo de precisão, não sendo idóneo, para esse efeito, o 
 uso de fórmulas como “na interpretação dada pela decisão recorrida” ou 
 similares. Com efeito, constitui orientação pacífica deste Tribunal que, para 
 usar a formulação do Acórdão n.º 367/94: “Ao suscitar‑se a questão de 
 inconstitucionalidade, pode questionar‑se todo um preceito legal, apenas parte 
 dele ou tão‑só uma interpretação que do mesmo se faça. (...) [E]sse sentido 
 
 (essa dimensão normativa) do preceito há‑de ser enunciado de forma que, no caso 
 de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua 
 decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os 
 operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido 
 com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, violar a 
 Constituição.”
 
  
 
                3. Recordados estes critérios, é patente a inadmissibilidade do 
 recurso de constitucionalidade que se pretendeu interpor.
 
                Na verdade, notificado do despacho que indeferiu pedido de 
 dispensa de pagamento da multa devida por apresentação tardia de peça 
 processual – por, no caso concreto, atento o montante da multa (€ 133,50) e as 
 condições económicas e financeiras do arguido, não se verificar a situação 
 excepcional prevista no n.º 7 do artigo 145.º do CPC –, o recorrente, na 
 motivação do recurso dele interposto, limitou‑se a aduzir, com relevância para a 
 presente reclamação, na conclusão 3.ª, que “A decisão de que se recorre violou 
 o disposto no n.º 7 do artigo 145.º do CPC, na parte que refere «dispensa de 
 multa nos casos de manifesta carência económica», bem como o artigo 20.º da Lei 
 Fundamental”.
 
                Esta não é, manifestamente, uma forma processualmente adequada de 
 suscitar uma questão de inconstitucionalidade normativa (ou de ilegalidade 
 normativa, sendo certo que só cabe recurso para o Tribunal Constitucional em 
 casos de ilegalidade “agravada”, por violação, por parte de certas normas, de 
 leis com valor reforçado ou dos estatutos das regiões autónomas – alíneas c), d) 
 e e) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – e que o recorrente, no requerimento de 
 interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, apenas invocou a alínea 
 b) desse preceito), pois a arguição do recorrente limita‑se a acusar a própria 
 decisão judicial então recorrida, em si mesma considerada, de violar uma norma 
 de direito ordinário “comum” e um preceito da Constituição, sem sequer esboçar a 
 identificação da interpretação normativa que reputava inconstitucional, como lhe 
 cumpria.
 
                Não tendo o recorrente suscitado, perante o tribunal recorrido, 
 em termos processualmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade 
 
 (ou de ilegalidade) normativa, o recurso que intentou interpor surge como 
 inadmissível.
 
                
 
                4. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente 
 reclamação.
 
                Custas pelo reclamante, fixando‑se a taxa de justiça em 20 
 
 (vinte) unidades de conta.
 
  
 Lisboa, 21 de Fevereiro de 2006.
 Mário José de Araújo Torres 
 Paulo Mota Pinto
 Rui Manuel Moura Ramos