 Imprimir acórdão
 Imprimir acórdão   
			
Processo n.º 148/06
 
 2.ª Secção
 Relator: Conselheiro Mário Torres
 
  
 
  
 
         Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
 
  
 
  
 
                         1. A. vem reclamar para a conferência, ao abrigo do 
 disposto no n.º 3 do artigo 78.º‑A da Lei de Organização, Funcionamento e 
 Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de 
 Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro 
 
 (LTC), da decisão sumária do relator, de 20 de Fevereiro de 2006, que decidiu, 
 no uso da faculdade conferida pelo n.º 1 do mesmo preceito, não conhecer do 
 objecto do presente recurso.
 
  
 
                         1.1. A decisão sumária reclamada tem o seguinte teor:
 
  
 
 “1. A. interpôs, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de 
 Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada 
 pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 
 
 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), recurso do acórdão do Tribunal da Relação de 
 Lisboa, de 17 de Dezembro de 2005 – que, além do mais, indeferiu reclamação 
 contra despacho do Desembargador Relator, de 24 de Maio de 2005, que ordenara 
 o desentranhamento de documentos apresentados pela recorrente –, «porquanto, na 
 interpretação e aplicação concreta da norma contida no artigo 523.º, n.º 1, do 
 Código de Processo Civil, o douto aresto de que ora se pretende recorrer violou 
 o disposto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa», mais 
 referindo que a questão de inconstitucionalidade teria sido suscitada na 
 reclamação para a conferência deduzida contra o referido despacho.
 
             O recurso foi admitido por despacho do Desembargador Relator do 
 Tribunal da Relação de Lisboa, decisão que, como é sabido, não vincula o 
 Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da LTC), e, de facto, 
 entende‑se que, no caso, o recurso é inadmissível, o que permite a prolação de 
 decisão sumária, ao abrigo do disposto no artigo 78.º‑A, n.º 1, da LTC.
 
  
 
             2. No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a 
 competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da 
 inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade 
 constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas, 
 hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o 
 sentido da interpretação que reputa inconstitucional), e já não das questões de 
 inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si 
 mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a 
 inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é 
 imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é 
 discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual 
 depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, 
 por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda 
 hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por 
 relevantes às particularidades do caso concreto.
 
             Por outro lado, tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da 
 alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua 
 admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão 
 de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo 
 processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão 
 recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 
 
 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio 
 decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo 
 recorrente.
 
             Acresce que, quando o recorrente questiona a conformidade 
 constitucional de uma interpretação normativa, deve identificar essa 
 interpretação com o mínimo de precisão, não sendo idóneo, para esse efeito, o 
 uso de fórmulas como «na interpretação dada pela decisão recorrida» ou 
 similares. Com efeito, constitui orientação pacífica deste Tribunal a de que 
 
 (utilizando a formulação do Acórdão n.º 367/94) «ao suscitar‑se a questão de 
 inconstitucionalidade, pode questionar‑se todo um preceito legal, apenas parte 
 dele ou tão‑só uma interpretação que do mesmo se faça. (...) [E]sse sentido 
 
 (essa dimensão normativa) do preceito há‑de ser enunciado de forma que, no caso 
 de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua 
 decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os 
 operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido 
 com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, violar a 
 Constituição.»
 
  
 
             3. Recordados estes critérios, torna‑se patente que o presente 
 recurso é inadmissível, desde logo por não ter sido adequadamente suscitada, 
 pela recorrente, perante o tribunal recorrido, uma questão de 
 inconstitucionalidade normativa.
 
             Na verdade, na aludida reclamação para a conferência deduzida contra 
 o despacho do Desembargador Relator que determinou o desentranhamento de 
 documentos apresentados pela recorrente, esta limitou‑se a aduzir o seguinte 
 
 (cf. fls.122):
 
  
 
             «Desde já e por absoluta cautela argúi, face ao disposto no artigo 
 
 20.º da CRP, a inconstitucionalidade do disposto no artigo 523.º, n.º 1, do CPC 
 
 (…), na interpretação concreta e restritiva plasmada no douto despacho 
 sindicado, que, além disso, fere caso julgado formal já que por despachos 
 proferidos na 1.ª instância tais documentos foram tacitamente admitidos.»
 
  
 
             Esta não é, manifestamente, uma maneira adequada de suscitar uma 
 questão de inconstitucionalidade de interpretação normativa, já que nem sequer 
 
 é esboçada qualquer tentativa de identificação do sentido da interpretação 
 impugnada, por forma a habilitar o Tribunal Constitucional a, caso viesse a 
 julgá‑la inconstitucional, apresentá‑la na sua decisão «em termos de, tanto os 
 destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, 
 sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser 
 aplicado, por, deste modo, violar a Constituição».
 
             A isto acresce que, no requerimento de interposição do presente 
 recurso de constitucionalidade, a recorrente imputa a violação da Constituição 
 directamente à decisão recorrida, sendo sabido, como atrás se enunciou, que, no 
 sistema português de fiscalização da constitucionalidade, ao Tribunal 
 Constitucional compete apenas o controlo da inconstitucionalidade normativa e 
 não o controlo da inconstitucionalidade de decisões judiciais.
 
  
 
             4. Em face do exposto, decide‑se, ao abrigo do disposto no n.º 1 do 
 artigo 78.º‑A da LTC, não conhecer do objecto do presente recurso.”
 
  
 
                         1.2. A reclamação da recorrente apresenta a seguinte 
 fundamentação: 
 
  
 
 “1. A douta decisão sumária em apreço considerou inadmissível o recurso com os 
 seguintes fundamentos:
 
 (i) O recorrente não suscitou a questão da inconstitucionalidade normativa 
 durante o processo.
 
 (ii) O recorrente imputou a violação da Constituição directamente à decisão 
 recorrida e não, como devia, a normas.
 
 (iii) A formulação da reclamação em que suscitou a questão do desentranhamento 
 dos documentos não é «adequada».
 
 2. Com todo o respeito, afigura-se-nos que o Senhor Relator não tem razão.
 
 (i) Desde logo porque, como é apodíctico, não podia a recorrente suscitar a 
 questão do desentranhamento antes de este ter sido ordenado.
 A recorrente reagiu processualmente a um despacho proferido pelo Senhor 
 Desembargador Relator da Relação de Lisboa, assacando à interpretação normativa 
 que nele se fez do artigo 523.º, n.º 1, do Código de Processo Civil o vício de 
 inconstitucionalidade.
 E fê‑lo na primeira intervenção posterior à respectiva prolação.
 Nem se vê que o pudesse fazer antes, como é a todas as luzes evidente.
 
 (ii) Resulta com clareza do texto do requerimento de interposição do recurso que 
 a recorrente, ao contrário do que consta da decisão sumária, imputou à 
 interpretação normativa do artigo 523.º, n.º 1, constante do acórdão e não a 
 este, em si mesma considerado, a desconformidade constitucional.
 
 (iii) Admite‑se que o pudesse fazer de modo diferente, com argumentação mais 
 precisa e cuidada.
 Todavia, sempre salvaguardando o respeito devido por opinião diferente, o que 
 não lhe parece é que haja alguma obrigação legal de o fazer segundo uma qualquer 
 formulação ritual.
 
 3. É meridianamente claro que a recorrente defendeu a inconstitucionalidade da 
 interpretação do artigo 523.º, n.º l, do CPC substanciada na decisão, 
 interpretação essa que, no seu entender, feriu a norma ínsita no artigo 20.º da 
 Constituição:
 Na verdade, interpretar a norma no sentido de que esta permite o 
 desentranhamento de documentos anteriormente admitidos e que provam exactamente 
 o contrário do que da decisão consta é, permita‑se a expressão, virar costas à 
 realidade, deixando que a ficção se sobreponha à verdade.
 Se este entendimento – que substancia uma visão do acesso aos tribunais e à 
 tutela jurisdicional puramente formal – é ou não desconforme à Constituição é o 
 que a recorrente pretende que esse Tribunal afirme.
 A tutela jurisdicional efectiva compadece‑se com a interpretação concreta e 
 redutora do Senhor Desembargador Relator e da conferência que a confirmou? Se a 
 formulação constante do requerimento de interposição do recurso foi menos 
 precisa, menos exacta ou menos cuidada, esperava‑se e espera‑se que o Tribunal 
 ordene o aperfeiçoamento e não que, de imediato, vote ao malogro o recurso.
 Nestes termos e nos demais de Direito do douto suprimento de V. Exas., requer 
 que a reclamação seja atendida e, em consequência, revogada a douta decisão 
 sumária e ordenado o prosseguimento dos autos.”
 
  
 
                         A recorrida não apresentou resposta.
 
  
 
                         Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
 
  
 
                         2. Quanto à primeira crítica dirigida pela reclamante à 
 Decisão Sumária, basta registar que nesta não se defendeu que a questão de 
 inconstitucionalidade tinha de ser suscitada antes de proferido o despacho do 
 Desembargador Relator que determinou o desentranhamento dos documentos. O que 
 se entendeu – e se mantém – é que ela devia ter sido colocada na reclamação 
 para a conferência, decidida pelo acórdão de que se interpôs o presente recurso 
 de constitucionalidade. E nessa reclamação, a recorrente – podendo e devendo 
 fazê‑lo – não suscitou adequadamente qualquer questão de inconstitucionalidade 
 normativa.
 
                         No mais, é a própria reclamante que reconhece não ter 
 suscitado a questão da forma mais precisa e cuidada. No entanto, e contra o que 
 ela refere, não se trata, por parte do Tribunal Constitucional, de impor 
 formalismos destituídos de sentido útil ou formulações rituais. A exigência da 
 identificação, minimamente precisa, quando se questiona a constitucionalidade 
 de uma interpretação normativa, do sentido desta interpretação, é uma exigência 
 funcionalmente fundada, pois, como se referiu, só dessa forma o Tribunal 
 Constitucional fica habilitado a, na hipótese de provimento do recurso, enunciar 
 o sentido em que determinada norma não pode ser interpretada por dessa forma 
 violar a Constituição.
 
  
 
                         3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente 
 reclamação.
 
                         Custas pela recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em 
 
 20 (vinte) unidades de conta.
 Lisboa, 23 de Março de 2006.
 Mário José de Araújo Torres 
 Paulo Mota Pinto
 Rui Manuel Moura Ramos