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Processo nº 826/2007
 
 3ª Secção
 Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
 
  
 Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
 
  
 I Relatório
 
 1.  A 19 de Outubro de 2006 foi A. condenado, por acórdão do Tribunal Colectivo 
 do Círculo Judicial de Oeiras, na pena de 9 meses de prisão pela prática de um 
 crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 
 
 149º do Código Penal; na pena de 18 anos de prisão pela prática de um crime de 
 homicídio qualificado, previsto e punido pelo artigo 132º do Código Penal; na 
 pena de 1 ano e 6 meses de prisão pela prática de outro crime de ofensa à 
 integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 143º do Código 
 Penal; na pena de 4 anos de prisão pela prática de um crime de incêndio, 
 previsto e punido pelo artigo 272º do Código Penal; e a 7 meses de prisão pela 
 prática de um crime de violação de domicílio, previsto e punido pelo artigo 190º 
 do Código Penal.
 Procedendo ao cúmulo jurídico das penas dos crimes em concurso, o tribunal 
 condenou o arguido na pena única de 20 anos de prisão.
 
  
 Desta sentença recorreu o mesmo para o Tribunal da Relação de Lisboa, pedindo 
 que se averiguasse se o Colectivo não teria errado na apreciação da matéria de 
 facto e na aplicação do direito, quer por se terem “dado como provados factos 
 que não resultam dos depoimentos prestados em audiência”, quer por se ter 
 considerado o arguido como imputável, quando o mesmo padecia de anomalia 
 psíquica grave que o tornaria “incapaz, no momento da prática dos factos, de 
 avaliar a ilicitude dos mesmos e de se determinar de acordo com essa avaliação” 
 
 (fls. 814 dos autos).
 
  
 Na sequência deste recurso, acordou o Tribunal da Relação de Lisboa em “anular o 
 acórdão recorrido, nos termos do art. 379º, nº 1, al. b) do Código de Processo 
 Penal, e também a Audiência de Julgamento, e determinar o reenvio do processo 
 para novo julgamento, nos termos dos arts. 426º, nº 1, e 426º‑A do Código de 
 Processo Penal, relativamente à sua totalidade” (fls. 864 dos autos).
 
  
 A 25 de Junho de 2007 decidiu o tribunal de reenvio – neste caso, o Tribunal 
 Colectivo do 1º Juízo Criminal de Oeiras – condenar o arguido na pena de 9 meses 
 de prisão, pela prática de um crime de ofensa à integridade física; na pena de 
 
 18 anos de prisão, pela prática de um crime de homicídio qualificado; na pena de 
 
 5 anos de prisão, pela prática de um crime de homicídio qualificado na forma 
 tentada, e na pena de 4 anos de prisão, pela prática de um crime de incêndio. Em 
 cúmulo jurídico, foi desta vez A. condenado na pena única de 22 anos de prisão.
 
  
 
 É desta última sentença que recorre, para o Tribunal Constitucional, o 
 Ministério Público. O recurso é interposto ao abrigo do nº 5 do artigo 280º da 
 Constituição e da alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal 
 Constitucional, por ter – no entendimento do Ministério Público – o Tribunal 
 Colectivo do 1º Juízo Criminal de Oeiras aplicado norma já anteriormente julgada 
 inconstitucional pelo Tribunal Constitucional.
 Por último, alegou o representante do Ministério Público neste Tribunal que, 
 ainda que não citada expressamente, a norma já julgada inconstitucional pelo 
 Tribunal – a contida no artigo 409º, nº 1, do Código de Processo Penal – fora 
 efectivamente aplicada pela sentença recorrida; e que, sendo por isso de 
 conhecer do recurso, se lhe deveria dar provimento, por incidir ele sobre 
 objecto idêntico ao do anterior juízo de inconstitucionalidade.
 
  
 II
 Fundamentos
 
  
 A – Da admissibilidade do recurso
 
  
 
 2.  O Ministério Público interpõe o presente recurso de constitucionalidade ao 
 abrigo do nº 5 do artigo 280º da Constituição e da alínea g) do nº 1 do artigo 
 
 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
 No caso, em juízo está a proibição de reformatio in pejus, fixada pelo artigo 
 
 409º, nº 1, do Código de Processo Penal:
 Interposto recurso de decisão final somente pelo arguido, pelo Ministério 
 Público, no exclusivo interesse daquele, ou pelo arguido e pelo Ministério 
 Público no exclusivo interesse do primeiro, o tribunal superior não pode 
 modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, 
 em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes.
 
  
 Em momento algum invoca o acórdão do Tribunal Colectivo do 1º Juízo Criminal de 
 Oeiras – de que interpõe recurso o Ministério Público – o instituto de proibição 
 da reformatio in pejus, contido no nº 1 do artigo 409º do CPP.
 A decisão que nele é tomada fundamenta‑se numa certa interpretação da norma 
 
 ínsita no referido preceito do Código de Processo Penal: posto que o Tribunal 
 Colectivo condenou o arguido em pena mais severa do que aquela que lhe fora 
 aplicada por julgamento anterior – anulado em sequência de recurso interposto 
 apenas no interesse da defesa – subjacente à sua decisão está o princípio 
 segundo o qual o âmbito da proibição de reformatio in pejus não abrange as 
 situações da chamada reformatio indirecta: não abrange aqueles casos em que se 
 proceda a novo julgamento, cuja realização tenha sido ordenada em virtude de 
 anulação de julgamento anterior decidida em recurso exclusivamente interposto 
 pelo arguido ou exclusivamente interposto no seu interesse.
 Porém, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem admitido recursos 
 interpostos de sentenças de aplicação implícita de normas (vejam‑se, entre 
 outros, os Acórdãos nºs 187/98, 69/92 e 513/97). Assim sendo, é essa mesma 
 jurisprudência que deve valer para o presente recurso.
 Por outro lado, exige o nº 5 do artigo 280º da Constituição – replicado na 
 alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – que haja, 
 neste tipo de recursos, identidade de conteúdos entre a norma que o tribunal a 
 quo aplicou e aquela outra sobre a qual já incidiu um juízo de 
 inconstitucionalidade (emitido, como já se disse, pelo Tribunal Constitucional 
 em decisão concreta ou em declaração com força obrigatória geral).
 No Acórdão nº 236/2007 – proferido no âmbito de outro recurso de 
 constitucionalidade – decidiu o Tribunal “julgar inconstitucional, por violação 
 do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma do 
 artigo 409.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de 
 não proibir o agravamento da condenação em novo julgamento a que se procedeu por 
 o primeiro ter sido anulado na sequência de recurso unicamente interposto pelo 
 arguido”.
 Como se viu, foi esta a norma que o Tribunal Colectivo do 1º Juízo Criminal de 
 Oeiras implicitamente aplicou.
 Resta, por isso, analisar se se manterão ou não as razões que fundamentam o 
 juízo de inconstitucionalidade que sobre ela já incidiu.
 
  
 
  
 B – Do juízo de constitucionalidade 
 
  
 
 3.  Pela sua formulação literal e inserção sistemática, o instituto da proibição 
 de reformatio in pejus – tal como vem delineado no nº 1 do artigo 409º do Código 
 de Processo Penal – vale inquestionavelmente para os casos de recurso 
 propriamente dito, em que um tribunal superior reaprecia decisão proferida por 
 tribunal inferior. É claro que, nestes casos, não é permitido ao tribunal de 
 recurso a agravação da pena, sempre que o referido recurso tenha sido interposto 
 no exclusivo interesse da defesa.
 O problema de constitucionalidade que o presente caso coloca pode ser 
 equacionado do seguinte modo. Tudo está em saber se – não obstante a sua 
 inserção sistemática e a sua formulação literal – a norma contida no nº 1 do 
 artigo 409º do CPP deve ser interpretada de modo a incluir também, como 
 destinatários da proibição, os tribunais de reenvio, desde que se verifiquem as 
 mesmas condições: desde que o reenvio (para novo julgamento) tenha sido ordenado 
 por efeito de recurso interposto apenas pelo arguido ou em sua defesa.
 Como é evidente, aqui, interpretação devida significa interpretação 
 constitucionalmente imposta. Tudo está em saber, portanto, se decorre da 
 Constituição a obrigatoriedade da indiferenciação, nestas circunstâncias, da 
 condição de tribunal de recurso e da condição de tribunal de reenvio, de modo 
 que se entenda que também ao segundo é vedada a agravação da pena quando 
 decidida em novo julgamento a que se tenha procedido por anulação de julgamento 
 anterior, em consequência de recurso apenas interposto pelo arguido (ou 
 interposto, exclusivamente, no seu interesse).
 
  
 
  
 
 4.  A esta questão já respondeu afirmativamente o Tribunal Constitucional.
 Com efeito, no Acórdão nº 236/2007, o Tribunal disse que a única interpretação 
 possível da norma contida no nº 1 do artigo 409º – e única interpretação 
 possível, evidentemente, face à Constituição – era aquela que sustentava a 
 indiferenciação de condições entre tribunal de recurso e tribunal de reenvio, 
 uma vez verificadas as circunstâncias atrás descritas.
 O Acórdão baseou‑se, essencialmente, em dois argumentos claros. O primeiro 
 incidiu sobre os fundamentos constitucionais da reformatio in pejus; o segundo, 
 sobre a inevitável extensão desses fundamentos aos casos da chamada “reformatio 
 indirecta”.
 
  
 Antes do mais, o Tribunal identificou os fundamentos constitucionais da 
 proibição de reformatio in pejus. E disse – invocando jurisprudência sua 
 anterior, nomeadamente a decorrente dos Acórdãos nºs 499/97, 498/98, 291/2000, 
 
 135/99, 522/99, 324/99 e 187/98 – que, face à Constituição, o instituto não 
 tinha nem podia ter uma configuração absoluta: relevando ele de uma “tensão 
 existente entre dois valores: o direito punitivo do Estado, de que decorre o 
 poder dos juízes aplicarem livremente as sanções adequadas, e as garantias de 
 defesa dos arguidos” (assim mesmo, Acórdão nº 324/99), a proibição 
 justificar‑se‑ia constitucionalmente só quando referida ao princípio da 
 plenitude das garantias de defesa e ao direito ao recurso, consagradas no artigo 
 
 32º, nº 1, da CRP. Significa isto que a proibição de agravação das penas por 
 nova decisão judicial seria assim constitucionalmente justificada – ou, melhor 
 dito, constitucionalmente imposta – sempre que, e apenas quando, a nova decisão 
 resultasse exclusivamente do exercício de um direito da defesa. Sempre que: é 
 que consagrando a CRP o princípio da plenitude das garantias da defesa 
 
 (incluindo o direito ao recurso), mal se compreenderia que a lei ordinária 
 permitisse que o exercício de um direito de defesa viesse a redundar em dano 
 para a própria defesa. Apenas quando: se se entendesse de outro modo – isto é, 
 se se entendesse que a Constituição impunha uma proibição de agravação das penas 
 fora destas circunstâncias, configurando‑se assim uma raiz constitucional para a 
 proibição absoluta de reformatio in pejus – tal entendimento “seria conflituante 
 com o direito ao recurso da acusação e com a realização da justiça” (Acórdão nº 
 
 499/97).
 
  
 Encontrado deste modo o fundamento constitucional do instituto, o tribunal não 
 teve dificuldade em estendê‑lo para além dos casos literalmente previstos no nº 
 
 1 do artigo 409º do Código de Processo Penal. E por isso disse, no Acórdão nº 
 
 236/2007, que a proibição de reformatio in pejus devia ser entendida não apenas 
 como sendo dirigida aos tribunais de recurso (o que corresponde ao enunciado do 
 nº 1 do artigo 409º do CPP) mas também aos tribunais de reenvio, em casos de 
 novos julgamentos a que se procedesse em virtude de anulação de julgamentos 
 anteriores, decidida em sequência de recurso apenas interposto pelo arguido. “Na 
 verdade” – escreveu‑se então – “é igualmente inibidora do exercício do direito 
 de recurso a possibilidade de, embora por via indirecta (na sequência de 
 anulação do primeiro julgamento), o arguido, em situações em que é o único 
 recorrente (ou na situação equiparada de o Ministério Público interpor recurso 
 no exclusivo interesse da defesa), ver, a final, a sua posição agravada com uma 
 condenação mais pesada do que a inicialmente infligida, apesar de o Ministério 
 Público se haver conformado com esta”.
 
  
 Não se vêem razões para alterar semelhante jurisprudência. Com efeito, também no 
 presente caso ocorreu o que – parece evidente – a Constituição não tolera que 
 ocorra: o exercício de um direito de defesa redundou em dano da própria defesa. 
 Tal sucedeu porque a sentença de que, no caso, interpôs recurso o Ministério 
 Público aplicou o artigo 409º, nº 1, do Código de Processo Penal de acordo com 
 uma interpretação constitucionalmente proibida: a interpretação segundo a qual a 
 proibição de reformatio in pejus se dirige apenas aos tribunais de recurso e não 
 aos tribunais de reenvio, quando estes procedam a novos julgamentos em virtude 
 de anulação de julgamentos anteriores, anulação obtida por efeito de recurso 
 apenas interposto pelo arguido
 
  
 III Decisão
 Por estes fundamentos, decide‑se:
 a)  Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição 
 da República Portuguesa, a norma do artigo 409º, nº 1, do Código de Processo 
 Penal, interpretada no sentido de não proibir o agravamento da condenação em 
 novo julgamento a que se procedeu por o primeiro ter sido anulado na sequência 
 de recurso unicamente interposto pelo arguido; e
 b)  Conceder provimento ao recurso, determinando‑se a reformulação da decisão 
 recorrida, em conformidade com o precedente juízo de inconstitucionalidade.
 
  
 Sem custas.
 
  
 Lisboa, 10 de Outubro de 2007 
 Maria Lúcia Amaral
 Carlos Fernandes Cadilha
 Ana Maria Guerra Martins
 Gil Galvão