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Processo n.º 322/05
 
 2.ª Secção
 Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
 
  
 
  
 Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
 
  
 
  
 I. Relatório
 
 1.O representante do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de 
 Montemor-o-Novo interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora, ao abrigo 
 do disposto nos artigos 399.º, 406.º, n.º 1, 407.º, n.º 1, alínea a), e 408.º a 
 contrario sensu, todos do Código de Processo Penal, da decisão daquele tribunal, 
 de 17 de Dezembro de 2004, que recusou, com fundamento em inconstitucionalidade 
 orgânica, a aplicação da norma constante da Base XVIII, anexa ao Decreto-Lei n.º 
 
 294/97, de 24 de Outubro, e, consequentemente, recusou o recebimento da acusação 
 dirigida contra A., indiciado pela prática da contravenção prevista e punida por 
 aquele dispositivo legal. Encerrou as suas alegações de recurso com as seguintes 
 conclusões:
 
 «1 – A infracção prevista e punida pelos n.ºs 1 e 5 da Base XVIII, anexa ao 
 Decreto-Lei n.º 214/97, de 24/10 (a falta de pagamento de qualquer taxa de 
 portagem é punida com multa cujo montante será igual a 10 vezes o valor da 
 respectiva taxa de portagem, mas nunca inferior a 5.000$00 e o máximo o 
 quíntuplo do mínimo), tem natureza contravencional, uma vez que é punível com 
 uma pena de multa (e não com uma coima) e não previne factos que constituem 
 lesão ou perigo de lesão de bens jurídicos respeitantes à ordem constitucional 
 dos direitos, liberdades e garantias – cfr. Figueiredo Dias in “Para uma 
 dogmática do direito penal secundário”, Revista de Legislação e de 
 Jurisprudência, Ano 117.°, pág. 12 – mas, sim, factos que violam, simplesmente, 
 interesses/meios administrativos ou financeiros do Estado.
 
 2 – O art.º 168.°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (actual 165.°, 
 n.º 1), atribuindo à competência legislativa exclusiva da Assembleia da 
 República, salvo autorização ao Governo, a definição dos crimes, penas e medidas 
 de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal (al. c)) e o 
 regime geral de punição das infracções disciplinares, bem como dos actos 
 ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo (al. d)), omite toda 
 e qualquer referência a “contravenções”.
 
 3 – Particularmente sensibilizado para o programa de descriminalização encetado 
 pelo legislador ordinário (que reduzindo formalmente a competência do sistema 
 penal em relação a determinadas condutas, reduz, também, aos crimes e às 
 contra-ordenações, os tipos delituais a intervir no combate às condutas 
 socialmente intoleráveis, remetendo as contravenções à condição de espécie em 
 vias de extinção), o legislador constituinte da 2.ª Revisão, reconhecendo o 
 ilícito contra-ordenacional a par do criminal (stricto sensu) e evitando 
 qualquer referência expressa ao contravencional, quis, efectivamente, sancionar 
 aquele modelo descriminalizador e, consequentemente, a extinção a prazo das 
 contravenções.
 
 4 – Todavia, nos termos em que se traduz, o referido sancionamento tem, também 
 ele, um sentido eminentemente programático, não comportando, assim, o de 
 ilegitimar constitucionalmente a criação de novas contravenções.
 
 5 – Nesta ordem, entendemos como acertado afirmar que tudo postula a 
 interpretação de a alínea c) do n.º 1 do art.º 168.° do CRP (actual 165.º) 
 respeitar tão só a “crimes e penas” em sentido estrito, e, bem assim, a 
 interpretação de que em vista do estreito parentesco existente entre os ilícitos 
 contra-ordenacionais e contravencionais, a alínea d) do n.º 1 do art.º 168.° da 
 Constituição abrangerá eventualmente o ilícito contravencional.
 
 6 – Quer isto dizer que, embora o Governo possa livremente legislar sobre a 
 criação e extinção de contravenções não puníveis com penas privativas da 
 liberdade, já não poderá legislar, salvo autorização da Assembleia da República, 
 sobre o regime geral de punição das contravenções e do respectivo processo (cfr. 
 Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 56/84, DR – I, n.º 184, de 9/8/84, que 
 marca o início de uma orientação jurisprudencial uniforme e constante, bem como 
 os Acórdãos do mesmo Tribunal de 4/12/87 (DR – II, de 2/1/88), 447/91 (BMJ 411, 
 
 196) e 329/92 (DR – I A, de 14/11/92).
 
 7 – Temos, pois, por assente que o Governo, no que concerne à criação de novas 
 contravenções, apenas carece de autorização parlamentar relativamente às 
 puníveis com pena restritiva da liberdade.
 
 8 – De qualquer forma, sejam ou não puníveis com prisão, o Governo, ao criar 
 contravenções, tem de respeitar o regime geral de punição de uma infracção, o 
 conjunto de regras que definem a sua natureza e o tipo de sanções que lhe 
 correspondem, bem como os limites e termos da punição, o Governo tem de se 
 conter nos limites do regime fixado pelas normas do Código Penal de 1886 
 relativas a contravenções – art.ºs 3.°, 4.°, 11.°, n.º 4, 25.°, 33.°, 36.°, 
 
 125.º, § 2; 126.°, n.º 3, e 486.º § único – as quais ainda hoje se mantém em 
 vigor.
 
 9 – No caso concreto, o Governo criou, sem autorização legislativa, invocando a 
 competência que lhe é atribuída pelo art.º 201.°, n.º 1, al. a), da CRP, uma 
 contravenção punível, apenas, com multa.
 
 10 – Dado que, pelas razões expostas, do ponto de vista constitucional, lhe era 
 lícito fazê-lo, a Base XVIII, anexa ao Decreto-Lei n.º 294/97, de 24/10, não 
 está ferida de qualquer inconstitucionalidade.
 
 11 – A decisão recorrida faz incorrecta aplicação das disposições contidas nos 
 art.ºs 168.° (actual 165.º) e 201.° da Constituição da República Portuguesa, 
 devendo ser revogada e substituída por outra que ordene o consequente 
 prosseguimento dos autos, para o julgamento do arguido.»
 Sobre tal interposição foi proferido pela Juíza a quo, em 31 de Outubro de 2005, 
 despacho com o seguinte teor:
 
 «Fls. 25 a 29: Por se afigurar legal, tempestivo, motivado e apresentado por 
 quem tem legitimidade, admito o recurso interposto perante o Tribunal da Relação 
 de Évora pelo digno Magistrado do Ministério Público, o qual tem efeito 
 devolutivo, sobe imediatamente e nos próprios autos (art.º 14.º do Decreto-Lei 
 n.º 17/91, de 10-01, e art.ºs 414.º, n.º 1, 399.º, 401.º, n.º 1, alínea a), 
 
 406.º, n.º 1, 407.º, n.º 1, alínea a), 408.º a contrario sensu, 411.º, 412.º, 
 
 427.º e 432.º a contrario sensu, todos do Código de Processo Penal, aplicáveis 
 ex vi art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 17/91, de 10-01).
 Notifique nos termos e para os efeitos prescritos no art.º 413.º, n.º 1, do 
 Código de Processo Penal, aplicável ex vi art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 17/91, de 
 
 10-01.
 
 *
 Não obstante o despacho que antecede, consigna-se que o Digno Magistrado do 
 Ministério Público recorre de decisão que recusou a aplicação de norma constante 
 de acto legislativo, com base na sua inconstitucionalidade.
 Tal recusa fundamenta a interposição de recurso directo e obrigatório para o 
 Tribunal Constitucional (art.ºs 70.º, n.º 1, alínea a), e 72.º, n.º 1, alínea 
 a), e n.º 3, da Lei Orgânica Sobre a Organização, Funcionamento e Processo do 
 Tribunal Constitucional), com obediência ao formalismo prescrito no art.º 
 
 75.º-A, n.º 1, da Lei Orgânica Sobre a Organização, Funcionamento e Processo do 
 Tribunal Constitucional.
 Conforme consta do requerimento de interposição de recurso, vem o mesmo 
 expressamente interposto perante o Tribunal da Relação de Évora (e não para o 
 Tribunal Constitucional), pelo que não tem aplicação o disposto no art.º 76.º, 
 n.º 1, da Lei Orgânica Sobre a Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal 
 Constitucional.
 Além do mais, este Tribunal é competente para receber o recurso interposto da 
 decisão final nos moldes supra exarados e não se verifica qualquer causa que 
 permita a rejeição do recurso – art.º 414.º, n.º 1 e n.º 2, do Código de 
 Processo Penal, aplicável ex vi art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 17/91, de 10-01.
 Por outro lado, embora seja notório que o Tribunal da Relação de Évora não é 
 competente para efeitos de apreciação e decisão do presente recurso, encontra-se 
 este Tribunal impedido de declarar a incompetência desse Venerando Tribunal e, 
 consequentemente, de remeter os autos para o Tribunal materialmente competente 
 
 (Tribunal Constitucional) – art.º 32.º, n.º 1, e 33.º, n.º 2, do Código de 
 Processo Penal, aplicável ex vi art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 17/91, de 10-01.
 Por fim, não se verificando no requerimento de interposição de recurso os 
 requisitos a que alude o art.º 75.º-A., n.º 1, da Lei Orgânica sobre a 
 Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, e vindo 
 eventualmente esse Venerando Tribunal a considerar-se incompetente, terá que 
 incumbir ao Exm.º Senhor Juiz Conselheiro Relator do Tribunal Constitucional dar 
 cumprimento ao preceituado no art.º 75.º-A, n.º 5 e n.º 6, da Lei Orgânica Sobre 
 a Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional.»
 Já no Tribunal da Relação de Évora, foram os autos com vista ao representante do 
 Ministério Público junto daquele tribunal que se pronunciou no sentido de que o 
 recurso interposto para aquela Relação deveria tê-lo sido directamente para o 
 Tribunal Constitucional, uma vez que “[n]ão estando a impugnada decisão sujeita 
 a recurso ordinário obrigatório, o recurso do Ministério Público deveria ter 
 sido directa e imediatamente interposto para o Tribunal Constitucional”.
 Em 8 de Abril de 2005, foi proferido pela Juíza Desembargadora despacho a 
 ordenar a remessa dos autos ao Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
 
 “Nos presentes autos de transgressão com o n.º 1176/04.3TBMMN, do 2.º Juízo do 
 Tribunal Judicial de Montemor-o-Novo, por despacho de 17.12.2004, a M.ma Juiz 
 recusou-se a receber a acusação dirigida contra o arguido A., por considerar 
 organicamente inconstitucional a norma prevista na Base XVIII, anexa ao 
 Decreto-Lei n.º 284/97, de 24 de Outubro, em causa, e daí recusou a sua 
 aplicação.
 Neste Tribunal da Relação de Évora o Ex.m.º Procurador-Geral Adjunto emitiu 
 parecer no sentido de que o recurso entretanto interposto pelo Ministério 
 Público para esta Relação de Évora deveria tê-lo sido para o Tribunal 
 Constitucional, porquanto não estando a impugnada decisão sujeita a recurso 
 ordinário obrigatório, tal recurso deveria ter sido interposto directamente para 
 o Tribunal Constitucional.
 Atento o preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 280.º, n.º 1, al. 
 a), e n.º 3, da Constituição, 70.º, n.º 1, al. c), e n.º 3, e 72.º, n.º 1, da 
 Lei do Tribunal Constitucional, por se entender que o recurso em causa pode ser 
 interposto directamente para o Tribunal Constitucional, dado só estar em causa a 
 apreciação da constitucionalidade da apontada norma, ordena-se que os autos 
 sejam remetidos ao Tribunal Constitucional para os fins aí tidos por 
 convenientes.»
 
 2.Admitidos os autos no Tribunal Constitucional, foram as partes notificadas 
 para alegar.
 O representante do Ministério Público apresentou as suas alegações, concluindo:
 
 «1 – As normas dos n.ºs 1 e 5 da Base XVIII, anexa ao Decreto-Lei n.º 294/97, de 
 
 24 de Outubro, reportando-se a matéria contravencional, devem ter um tratamento 
 correspondente ao que é conferido às contra-ordenações, relativamente às quais a 
 Constituição não exige a prévia definição do tipo e da punição concreta em lei 
 parlamentar.
 
 2 – Tais normas, que não introduzem, aliás, qualquer inovação na ordem jurídica, 
 não padecem do vício de inconstitucionalidade orgânica, uma vez que o Governo 
 não carecia de credencial parlamentar para as produzir, sob a forma de 
 Decreto-Lei.
 
 3 – Termos em que deverá o presente recurso proceder.»
 O recorrido não apresentou contra-alegações.
 Cumpre apreciar e decidir.
 II. Fundamentos
 
 3.Tal como no caso decidido pelo acórdão n.º 227/2006 (disponível em 
 
 www.tribunalconstitucional.pt), o presente recurso começou por ser endereçado, 
 pelo Ministério Público junto da 1.ª instância, para o Tribunal da Relação, num 
 caso em que seria devido o recurso imediato para o Tribunal Constitucional. 
 Todavia, tal como no caso decidido pelo referido acórdão n.º 227/2006, o 
 Tribunal da Relação procedeu à correcção do endereço do recurso. Aquele erro não 
 obsta, pois, ao conhecimento do presente recurso, que, como se referiu atrás, 
 seguiu tramitação semelhante.
 
 4.No referido acórdão n.º 227/2006, foi apreciada a conformidade constitucional 
 das normas dos n.ºs 1 e 5 da Base XVIII, anexa ao Decreto-Lei n.º 294/97, de 24 
 de Outubro, remetendo para um outro acórdão – o acórdão n.º 226/2006 (também 
 disponível em www.tribunalconstitucional.pt) – a fundamentação desse juízo, nos 
 seguintes termos:
 
 «Caso rigorosamente idêntico ao ora em causa foi decidido por esta Secção, nesta 
 data, no acórdão proferido no Processo n.º 998/2005, que concedeu provimento ao 
 recurso, com a seguinte fundamentação:
 
 “3. As normas que o tribunal a quo considerou inconstitucionais têm a seguinte 
 redacção:
 
             ‘1 – A falta de pagamento de qualquer taxa de portagem é punida com 
 multa, cujo montante mínimo será igual a 10 vezes o valor da respectiva taxa de 
 portagem, mas nunca inferior a 5000$, e o máximo o quíntuplo do mínimo.
 
             (…)
 
             5 – Além das entidades com competência para a fiscalização do 
 trânsito, podem levantar os autos referidos no número anterior os portageiros 
 da entidade concessionária, os quais se consideram, para esse efeito, 
 equiparados a funcionários públicos.
 
             (…).
 Tais normas foram aprovadas ao abrigo do artigo 198.º, n.º 1, alínea a), da 
 Constituição.
 O tribunal recorrido considerou que a matéria abrangida pelas normas integra a 
 reserva parlamentar referida nas alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 165.º da 
 Constituição, pelo que recusou a aplicação de tais normas por 
 inconstitucionalidade orgânica.
 Porém, tal juízo de inconstitucionalidade não procede pelas razões que seguem.
 
 4. As normas transcritas supra correspondem, respectivamente, aos n.ºs 7 e 10 da 
 Base XVIII anexa ao Decreto‑Lei n.º 315/91, de 20 de Agosto, na redacção do 
 Decreto‑Lei n.º 193/92, de 8 de Setembro. O Tribunal Constitucional 
 pronunciou‑se sobre a conformidade à Constituição do referido n.º 7 que, tal 
 como o actual n.º 1 da Base XVIII. consagrava a punição da contravenção 
 consistente na passagem na portagem sem título. No Acórdão n.º 61/99 (DR, II 
 Série, de 31 de Março de 1999) considerou o Tribunal Constitucional o seguinte:
 
 «(…)
 
 3.1. Efectivamente, haverá, em primeira linha, que acentuar que, 
 independentemente da questão de saber se, após a Revisão Constitucional operada 
 pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de Setembro, é possível a criação, ex 
 novo, de contravenções, o que é certo é que a norma em apreço veio instituir (e 
 para se utilizarem algumas das palavras do artigo 3.º do Código Penal de 1886) 
 a previsão de um comportamento consubstanciado na prática de um ‘facto 
 voluntário’ ‘punível’ (in casu tão‑só com uma pena pecuniária) e que ‘consiste 
 unicamente na violação ou na falta de observância das disposições preventivas 
 das leis e regulamentos, independentemente de toda a intenção maléfica’ (cfr., 
 sobre o conceito de contravenção, Eduardo Correia, Direito Criminal, I, 218 a 
 
 221, e Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal, ed. da A.A.F.D.L., I, 168).
 De outro lado, atento o momento temporal em que a norma em apreço foi editada 
 
 (1992), a sanção pecuniária nela prevista  não podia ser convertível em prisão, 
 por se ter de haver por revogado, pela entrada em vigor do Código Penal aprovado 
 pelo Decreto‑Lei nº 400/82, de 23 de Setembro, o artigo 123.º do Código Penal 
 aprovado pelo Decreto de 16 de Setembro de 1886 (cfr., quanto a este último 
 aspecto, por entre outros, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 188/87 e 308/94, 
 publicados na 2.ª Série do Diário da República de, respectivamente, 5 de Agosto 
 de 1987 e 29 de Agosto de 1994).
 Ora, torna‑se inquestionável que o comportamento em causa (o não pagamento da 
 
 ‘taxa’ de portagem devida pela utilização das auto‑estradas) não pode ter uma 
 ressonância ética tal que o haja de o qualificar como um crime; e, se se 
 ponderar que esse comportamento foi, já em 1992, tido como integrando um ilícito 
 passível de ser publicamente sancionado com uma pena meramente pecuniária, 
 então (tal como se disse no referido Acórdão n.º 308/94, embora a propósito de 
 outra norma) há‑de concluir-se que ‘o tratamento que lhe deve ser conferido 
 há‑de ser o correspondente às contra‑ordenações, para as quais a Constituição 
 não exige a prévia definição do tipo e da punição concreta em lei parlamentar’.
 Neste particular, não se pode olvidar que a prática do facto punível pela norma 
 sub specie representa, sem que grandes dúvidas a esse respeito se possam 
 levantar, uma infracção no domínio estradal, cumprindo recordar que práticas 
 semelhantes foram sancionadas anteriormente, verbi gratia pelos Decretos‑Leis 
 n.ºs 43 705, de 22 de Maio de 1961 (punição, com pena pecuniária, pelo não 
 pagamento da taxa de portagem pela utilização do lanço de auto‑estrada 
 Lisboa/Vila Franca de Xira – cfr. artigo 6.º), e 47 107, de 19 de Julho de 1966 
 
 (punição, com pena pecuniária, pelo não pagamento da taxa de portagem pela 
 utilização da Ponte sobre o Tejo – hoje denominada Ponte 25 de Abril – cfr. 
 artigo 3.º, § 4.º –, e a que, por intermédio do Decreto‑Lei n.º 199/95, de 31 de 
 Julho, veio a ser dada a natureza de contra‑ordenação – cfr. artigo 1.º, alínea 
 c)).
 
 3.1.2. E, a este propósito, convém respigar alguns passos que se podem ler no 
 citado Acórdão n.º 308/94.
 Assim, disse‑se nesse aresto, a propósito da questão de saber se era possível, 
 no caso ali apreciado, a criação de um novo tipo contravencional:
 
 ‘(...)
 Ou seja: o Governo poderia criar aqui esta nova infracção contravencional, uma 
 vez que não lhe corresponde sanção restritiva de liberdade, isto a admitir que a 
 figura das contravenções ainda tem cobertura constitucional (…).
 Tradicionalmente, quer a definição de cada concreto ilícito contravencional, 
 quer a fixação da respectiva pena, sempre puderam ser efectuadas por 
 regulamento, inclusivamente por regulamentos locais, como expressamente 
 resultava do preceituado no artigo 486.º do velho Código Penal de 1886. E o 
 mesmo entendimento se manteve na generalidade da doutrina e na jurisprudência, 
 após a entrada em vigor da Constituição de 1976.
 Com a revisão constitucional de 1982, suscitou‑se o problema de saber qual o 
 destino, em geral, da figura das contravenções. A este propósito, escrevem J. 
 J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa 
 Anotada, 3.ª ed., anotação X ao artigo 168.º, pág. 673):
 
 “Ao referir o ilícito de mera ordenação social, omitindo toda a referência à 
 figura das contravenções (que era tradicional no direito português até ao 
 Código Penal de 1982), a Constituição deixa entender claramente que ela 
 desapareceu como tipo sancionatório autónomo, pelo que as contravenções que 
 subsistirem (ou que forem ex novo criadas) têm de ser tratadas de acordo com a 
 natureza que no caso tiverem (criminal ou de mera ordenação social).”
 Ora, dúvidas não restam que, no caso vertente, não deparamos com uma infracção 
 com a ressonância ética suficiente para poder ser qualificada como de natureza 
 criminal. E, assim sendo, e também porque lhe não corresponde qualquer sanção 
 privativa ou restritiva da liberdade, o tratamento que lhe deve ser conferido 
 há‑de ser o correspondente às contra‑ordenações, para as quais a Constituição 
 não exige a prévia definição do tipo e da punição concreta em lei parlamentar.
 
 É bem verdade que, estabelecendo‑se na Lei Fundamental que cabe à Assembleia 
 da República – ou ao Governo, quando por ela devidamente autorizado – legislar 
 sobre o regime geral dos actos ilícitos de mera ordenação social (artigo 168.º, 
 n.º 1, alínea d)) e constando do Decreto‑Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, que 
 veio fixar esse regime geral, que “só será punido como contra‑ordenação o facto 
 descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua 
 prática” (artigo 2.º), bem se poderia perguntar se não é hoje exigível a 
 intervenção legislativa para a definição e a punição em concreto de cada 
 contra‑ordenação.
 Tal solução, contudo, não se impõe, para além de se afigurar manifestamente 
 contrária a todas as opções do legislador nesta matéria – assinale‑se que se 
 privaria o Governo, no exercício do poder regulamentar, e as autarquias locais, 
 estas em qualquer caso, do poder de definir contra‑ordenações. Trata‑se, no 
 fundo, de aqui reeditar, e com reforçados motivos, as razões que já 
 anteriormente valiam para justificar a intervenção regulamentar em matéria 
 contravencional.
 Neste sentido, assinalam, em anotação ao artigo 2.º do Decreto‑Lei n.º 433/82, 
 Manuel Lopes Rocha, Mário Gomes Dias e Manuel C. Ataíde Ferreira 
 
 (Contra‑Ordenações, Escola Superior de Polícia, pág. 17):
 
 “Parece não haver dúvidas de que o preceito não exclui a possibilidade de os 
 regulamentos da administração central e local criarem contra‑ordenações e 
 preverem as correspondentes coimas, desde que dentro dos limites da lei.
 
 É esta, aliás, a opinião da doutrina quanto às contravenções (cf. J. de Sousa e 
 Brito, ‘A lei penal na Constituição’, nos Estudos sobre a Constituição, 2.º 
 vol., pp. 238 e seguintes; de Maia Gonçalves, Código Penal Português na Doutrina 
 e na Jurisprudência, 6.ª ed., pág. 826; e, especificamente quanto às 
 contra‑ordenações, o Parecer n.º 4/81, da Comissão Constitucional, nos 
 Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 14º, págs. 240 e seguintes.). Uma 
 achega para esta doutrina poderá hoje ver‑se no artigo 168.º, n.º 1, alínea d), 
 da Lei Fundamental, embora o argumento que daí pode tirar‑se não seja, só por 
 si, decisivo.
 Historicamente, aliás, e entre nós, as coimas eram as sanções cominadas para 
 as transgressões a posturas e regulamentos municipais (cf. Código Penal de 
 
 1886, artigo 485.º; Luís Osório, Notas ao Código Penal, vol. 4.º, notas ao 
 artigo 485.)
 O que o artigo 2.º do Decreto‑Lei n.º 433/82 verdadeiramente quer dizer não é 
 coisa diferente do que diz o correspondente artigo 1.º, n.º 1, do Código Penal, 
 isto é, tornar claro que, também no domínio do ilícito de mera ordenação social, 
 vigora o princípio da legalidade, num dos seus aspectos mais significativos, o 
 da não retroactividade da lei sancionadora.
 
 (...).”
 
 (…).»
 As considerações desenvolvidas pelo Tribunal Constitucional no aresto transcrito 
 são aplicáveis nos presentes autos. Com efeito, também agora a norma em 
 apreciação consagra a punição de uma infracção que não tem a ressonância ética 
 bastante para que lhe possa ser atribuída natureza criminal, e a punição 
 prevista não se traduz na privação da liberdade. Desse modo, o regime aplicável 
 será o das contra‑ordenações, não sendo exigível, na perspectiva constitucional, 
 a emissão de lei parlamentar.
 
 5. O tribunal a quo julgou igualmente inconstitucional a norma que permite o 
 levantamento do auto de notícia pelo portageiro, e que equipara este agente a 
 funcionário (n.º 5 da Base VIII, transcrito supra). Considerou o tribunal que 
 está em causa matéria também abrangida pela reserva parlamentar.
 Da argumentação desenvolvida na decisão recorrida resulta que o fundamento do 
 juízo de inconstitucionalidade orgânica assenta na circunstância de tais autos 
 de notícia fazerem fé em juízo.
 Ora, o Tribunal Constitucional já afirmou mais de uma vez que a fé em juízo 
 
 (nomeadamente dos autos de notícia) não acarreta qualquer presunção de 
 culpabilidade, nem envolve, necessariamente, qualquer manifestação arbitrária do 
 princípio in dubio pro reo (Acórdãos n.ºs 87/87 e 118/87 – DR, II Série, de 16 
 de Abril e de 2 de Junho de 1987, respectivamente).
 E, decisivamente, tratando‑se de uma infracção que, nesta matéria, segue o 
 regime das contra‑ordenações, como se demonstrou anteriormente, carece de 
 fundamento a inclusão da questão da competência para lavrar o auto de notícia no 
 
 âmbito da reserva parlamentar.
 Não se trata, pois, de matéria abrangida pela reserva parlamentar. Improcede, 
 portanto, o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.”
 
 5.Nos presentes autos, não se suscitando nenhuma questão nova, há apenas que 
 reiterar estes fundamentos, concluindo também, por conseguinte, pela 
 inexistência de inconstitucionalidade nas normas dos n.ºs 1 e 5 da Base XVIII, 
 anexa ao Decreto-Lei n.º 294/97, de 24 de Outubro, e, por conseguinte, conceder 
 provimento ao recurso.
 III. Decisão
 Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
 
  
 a)        Não julgar inconstitucionais as normas dos n.ºs 1 e 5 da Base XVIII, 
 anexa ao Decreto-Lei n.º 294/97, de 24 de Outubro;
 b)        Conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação da decisão 
 recorrida em conformidade com o precedente juízo de inconstitucionalidade.
 
  
 
  
 Lisboa, 2 de Maio de 2006
 Paulo Mota Pinto
 Benjamim Rodrigues
 Mário José de Araújo Torres
 Maria Fernanda Palma
 Rui Manuel Moura Ramos