Imprimir acórdão   
			
Processo nº 873/2005.
 
 3ª Secção.
 Relator: Conselheiro Bravo Serra.
 
  
 
  
 
                1. A., na qualidade de detentora de uma quota na sociedade B., 
 Ldª, apresentou queixa criminal contra C., igualmente sócio daquela sociedade e 
 da mesma sócio gerente e director geral, imputando-lhe o cometimento de factos 
 que, na óptica da denunciante, o tornariam incurso na autoria de um crime de 
 infidelidade, previsto e punível pelo artº 224º do Código Penal.
 
  
 
                Por despacho proferido em 14 de Outubro de 2004 pela 
 Procuradora-Adjunta em funções junto do Tribunal de comarca de Ponta Delgada, 
 foi determinado o arquivamento do inquérito, já que, em síntese, foi entendido 
 que, a haver prejuízo – o que se não verificaria no caso concreto –, ele 
 incidiria sobre o património da B. e, sendo o denunciado ilícito um crime 
 semi-público, tão só a esta sociedade caberia legitimidade para deduzir a queixa 
 crime, além de que a conduta do denunciado não integrava a prática do crime em 
 causa.
 
  
 
                Vindo então a denunciante requerer a sua constituição como 
 assistente e requerer a abertura da instrução, o Juiz de instrução criminal 
 daquele Tribunal de comarca, por despacho de 7 de Janeiro de 2005, admitiu-a a 
 intervir nos autos como assistente e determinou a abertura da instrução.
 
  
 
                Desse despacho recorreu o denunciado para o Tribunal da Relação 
 de Lisboa.
 
  
 
                Na resposta à motivação, a denunciante, em dados passos, fez 
 escrever: –
 
  
 
 “(…)
 
 11. A ora recorrida, age enquanto sócia, ainda que minoritária, de uma entidade 
 jurídica que havia confiado a disposição de interesses alheios (para utilizarmos 
 a formulação legal) ao arguido, e que somente perante a passividade da 
 sociedade, entidade que no entender do recorrente, seria a única a ter interesse 
 directo, tem interesse directo.
 
 12. O entendimento perfilhado pelo recorrente, permite que tal como neste caso 
 concreto, os sócios maioritários, gozassem de imunidade perante este e se calhar 
 outros, tipos legais de crime, na medida em que a detenção da maioria do capital 
 permite-lhes determinar[ ] a vontade da sociedade, que no caso concreto seria a 
 de não apresentar queixa.
 
 13. parece-nos assim óbvio, que não obstante a formulação restritiva dos arestos 
 doutamente citados nas alegações de recurso, à recorrida cabe um interesse 
 directo ou ainda que reflexo ou indirecto, merecedor da tutela jurídica e em 
 concreto da tutela penal.
 
 14. Ao entender-se em sentido diverso, em nossa modesta mas firme opinião, está 
 o tribunal a violar o princípio do acesso ao direito e à justiça, plasmado na 
 primeira parte do nº 1 do artº 20º da C.R.P., ao impedir que os sócios 
 minoritários gozem de tutela jurídico-penal sobre os crimes praticados pelos 
 sócios maioritários,
 
 15. Sendo certo que de todo não se espera a revogação do despacho recorrido, 
 certo é que caso tal aconteça desde já se arg[ú]i a inconstitucionalidade 
 material do artº 68º nº 1 do CPP, na interpretação que nega o interesse dos 
 sócios nos crimes praticados contra a sociedade, por violação do disposto no 
 artº 20º nº 1 da C. R. P.
 Pelo que se formulam as seguintes CONCLUSÕES:
 
 (…)
 g) A recorrida tem por isso interesse directo em agir e é afectada no seu 
 património e na confiança que depositava no arguido, confiança esta que 
 constitui igualmente um bem jurídico tutelado pela norma do artº 224º do CP.
 h) Ao entender-se em sentido diverso, está a negar-se a tutela jurídico-penal 
 dos sócios minoritários em relação ao crime p. p. pelo artº 224º do CP.
 i) Pelo que o entendimento de que o artº 68º nº 1 al. a) do CP que negue o 
 acesso aos tribunais no caso concreto, viola o disposto na primeira parte do nº 
 
 1 do artº 20 da C.R.P., pelo que se arg[ú]i a inconstitucionalidade material 
 desta norma caso tal entendimento venha a ser perfilhado.
 
 (…)”
 
  
 
                O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 22 de Setembro de 
 
 2005, concedeu provimento ao recurso, determinando a revogação da decisão 
 impugnada por outra que não admitisse a denunciante a intervir nos autos como 
 assistente.
 
  
 
                A esse aresto foi carreada, no que ora releva, a seguinte 
 fundamentação: –
 
  
 
 “(…)
 
 2. – Em conformidade com o art. 68 nº 1 al. a) CPP podem constituir-se 
 assistentes em processo penal, além das pessoas a quem leis especiais conferirem 
 esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos 
 interesse[s] que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que 
 maiores de 16 anos.
 Tomando como ofendidos apenas os titulares dos interesses que a lei quis 
 proteger consagrou-se, ou melhor, manteve consagrado o conceito restrito de 
 ofendido que a doutrina e a jurisprudência formularam sem divergências de maior 
 no domínio do CPP de 1929 (cfr. v. g. na doutrina Beleza dos Santos, ‘Partes 
 Particularmente Ofendidas em Processo Criminal’, RLJ, ano 57, Figueiredo Dias, 
 
 ‘Direito Processual Penal’, 1º vol., p. 505-506 e 512-513; Cavaleiro de 
 Ferreira, ‘Curso de Processo Penal’, I, p. 129; com significado, na 
 jurisprudência, o Ac. do STJ de 66.1.5. BMJ 153-133).
 Neste conceito de ofendido não cabem, por isso, o titular de interesses mediata 
 ou indirectamente protegidos, o titular de uma ofensa indirecta ou o titular de 
 interesses morais. Podem estes ser lesados e nessa qualidade sujeitos 
 processuais como partes civis mas não constituir-se assistentes.
 Ora, esta circunstância desde logo afasta a possibilidade de a queixosa vir a 
 constituir-se assistente.
 Ainda que nos ocupássemos do interesse jurídico-penal a que a aplicação daquele 
 conceito de ofendido poderia levar no caso concreto, mesmo que procurássemos 
 precisar qual o bem jurídico que as normas invocadas protegem o certo é que 
 sempre depararíamos com a questão da titularidade desse bem. Ainda que não 
 pública ou não exclusivamente p[ú]blica ela não seria decerto pertença da 
 queixosa mas sim da sociedade de que era sócia.
 Admitindo, que o interesse protegido nos crimes de infidelidade não é só o 
 património do titular afectado directamente com a conduta do arguido mas também 
 a ‘confiança no tráfico jurídico’ (José Ant[ó]nio Barreiros, Crimes Contra o 
 Património, U.L., 1996, 211), sempre haveria de concluir-se que, no caso 
 concreto, o património que está em causa, aquele que merece a protecção da norma 
 
 é evidentemente o da sociedade ‘B., Lda.’ da qual era gerente a queixosa e não, 
 claro está, de uma forma directa o património desta na qualidade de sócio. 
 Lesada seria, por conseguinte, a sociedade e não, directamente, qualquer dos 
 seus sócios. O direito aos ganhos da sociedade, bem como o direito ao seu 
 bom-nome e à sua valorização, enquanto factores de valorização da quota são 
 decerto respeitáveis e atendíveis mas são apenas interesses mediatos ou 
 indirectos dos sócios.
 Neste sentido, decidiu v. g. o Ac. Rel. de Coimbra de 90.5.23, CJ 3/90-73 
 
 (precisamente em relação a um crime de infidelidade), seguindo aliás o 
 ensinamento de Figueiredo Dias, no domínio do CPP de 1929, ensinamento esse que, 
 como já se deixou dito continua inteiramente válido. Partindo do conceito de 
 ofendido a que já se aludiu conclui aquele Autor (‘Direito Processual Penal, I, 
 p. 513) que: ‘Não podem deste modo intervir no processo penal como assistentes, 
 v. g. o mero detentor ou possuidor da coisa furtada ou desencaminhada, uma vez 
 que o interesse protegido pela incriminação do furto ou do abuso de confiança é 
 só o do proprietário; o enganado, se não for simultaneamente o patrimonialmente 
 lesado por um crime de burla; o processualmente lesado por falso testemunho, por 
 isso que a incriminação protege só o interesse da administração da justiça; o 
 sócio de uma sociedade por quotas por crime patrimonial cometido contra a 
 sociedade como tal;’. Neste sentido cfr. Ac. da RL de 10/04/91, Base de Dados da 
 DGSI, nº JTRL00017901 ‘(…) Se o titular do interesse assim definido é uma 
 sociedade o sócio não pode constituir-se assistente’.
 Aliás, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, tem-se orientado no 
 sentido de negar aos sócios legitimidade para se constituírem assistentes nos 
 processos em que a ofendida é a sociedade – Ac. STJ, de 20 de Janeiro de 1998, 
 Col. Jur., Ano VI, Tomo I – 1998, pag. 164.
 De facto, sendo a sociedade pessoa jurídica distinta dos sócios, os seus 
 interesses, designadamente patrimoniais são diferentes dos interesses dos sócios 
 individualmente considerados de forma que a afectação daqueles só de forma 
 mediata e indirecta poderão constituir prejuízo para estes.
 Ora, estando em causa um alegado crime [d]e infidelidade administrativa 
 relativamente a interesses patrimoniais de sociedade, é o património desta o bem 
 jurídico tutelado pela incriminação e, como tal, será esta a titular do 
 interesse imediata e directamente tutelado pela norma incriminadora.
 
 É certo que no caso de infidelidade administrativa relativamente a sociedade, 
 qualquer dos sócios da sociedade em causa poderá ter sofrido danos da actuação 
 do arguido, podendo defender-se que a confiança depositada no agente pelos 
 sujeitos passivos do crime é também tutelada pela norma incriminadora, na medida 
 em que esta valora expressamente esta situação ao acrescentar ao tipo a quebra 
 dessa confiança depositada naquele que, por lei ou por acto jurídico, ficou 
 encarregue de dispor dos interesses patrimoniais alheios causando[-]lhes 
 intencionalmente prejuízo importante com grave violação dos seus deveres.
 Só que esses prejuízos serão uma consequência indirecta ou reflexa da mesma 
 actuação, tal como poderão ter tido prejuízos por exemplo os trabalhadores que 
 eventualmente poderiam ter perdido o posto de trabalho, em consequência da 
 actuação do arguido, pelo que aceitar-se o entendimento de que os sócios da 
 sociedade seriam protegidos de modo particular pela incriminação, constituindo a 
 violação daquela relação de confiança um dos objectos imediatos deste crime, 
 acarretaria, necessariamente, uma ampliação do conceito de ofendido, para 
 efeitos de direito penal, podendo, no caso concreto, abranger todos os titulares 
 de direitos que assentaram os seus interesses e expectativas naquela relação de 
 confiança, como por exemplo, os credores da sociedade, não se vislumbrando 
 qualquer inconstitucionalidade material do artº 68º, nº 1 al. a) do CPP, 
 nomeadamente a invocada pela queixosa, por violação da primeira parte do nº 1 do 
 artº 20º da C.R.P.
 Assim sendo, imputando-se ao arguido o crime de infidelidade administrativa pela 
 administração da sociedade B., L.da, era esta e não os sócios a única titular do 
 interesse directa e imediatamente protegido pela incriminação: o seu património.
 Por isso, só esta podia constituir-se assistente, por só ela preencher a 
 previsão do artigo 68º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal.
 Assim, em virtude de a queixosa A. não intervir nos autos na qualidade de legal 
 representante da sociedade ofendida, não tem legitimidade para participar 
 criminalmente contra o arguido pela prática do crime de infidelidade, nem tem, 
 na invocada qualidade de sócia da sociedade pretensamente ofendida, legitimidade 
 para se constituir assistente, estado-lhe, por isso, igualmente vedada a 
 possibilidade de requerer a abertura de instrução.
 
 (…)”
 
  
 
                Notificada do aresto cuja fundamentação acima se encontra 
 extractada, veio a denunciante juntar aos autos requerimento por via do qual 
 manifestou a sua vontade de recorrer para o Tribunal Constitucional ao abrigo da 
 alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, e intentando a 
 apreciação da “inconstitucionalidade material do artº 68º nº 1 al. a) do CPP, na 
 interpretação de que não admite um sócio de sociedade comercial por quotas como 
 assistente perante a prática de um crime de infidelidade administrativa p.p. 
 pelo artº 224º do CP”.
 
  
 
                O recurso foi admitido por despacho lavrado em 13 de Outubro de 
 
 2005 pelo Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Lisboa, vindo os autos 
 a ser remetidos ao Tribunal Constitucional em 25 seguinte.
 
  
 
  
 
                2. Determinada a feitura de alegações, veio a recorrente 
 apresentar a que elaborou, nos seguintes termos: –
 
  
 
 “(…)
 Do objecto
 
 1.            O presente recurso, interposto ao abrigo do artº 70º nº 1 al. b) 
 da LTC, constante da Lei nº 28/82, de 1 5 de Novembro, com a redacção dada pela 
 Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, tem por objecto a decisão do Venerando Tribunal 
 da Relação de Lisboa, na parte em que não considerou a inconstitucionalidade do 
 artº 68º nº al. a) do CPP conjugada com o artº 224º do CP, por violação do 
 disposto no artº 20º nº 1 da C.R.P. 
 
 2. Ou seja, a interpretação que considera que a queixosa não pode constituir-se 
 assistente pelo crime de infidelidade administrativa p.p. pelo artº 224º do CP, 
 na medida em que o bem jurídico protegido seria o património da própria 
 sociedade, pelo que só esta poderá constituir-se assistente. 
 Das alegações
 
 3. Salvo o devido respeito e melhor opinião, continuamos a sufragar a tese de 
 que tal entendimento contraria o princípio de que a todos é garantido o acesso 
 aos tribunais para tutela dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, 
 conforme dispõe o artº 20º nº 1 da C.R.P. 
 
 4. Não questionamos que o bem jurídico protegido em primeira linha pelo preceito 
 incriminador do artº 224º do CP seja o património da sociedade enquanto pessoa 
 jurídica. 
 
 5. O que questionamos, e aqui o reiteramos, é que tal entendimento deixa 
 desprotegidos os sócios minoritários que reflexamente são atingidos também no 
 seu património. Senão vejamos, 
 
 6. no caso concreto, a queixosa é titular de uma quota minoritária, sendo que os 
 sócios maioritários são o arguido e sua esposa, que jamais aprovariam qualquer 
 deliberação no sentido  de participar criminalmente contra si próprio. 
 
 7. Por outro lado, a provarem-se os factos constantes da queixa, o arguido 
 ter-se-á locupletado em prejuízo dos interesses da sociedade, da qual ele e a 
 esposa são sócios maioritários, empobrecendo a sociedade, mas enriquecendo o seu 
 património pessoal. 
 
 8. O mesmo já não se poderá dizer da queixosa, que tendo investido o capital e 
 depositado no arguido a sua confiança, vê diminuído o seu património, bem como a 
 confiança naqueles que tinham a seu cargo a gestão da sociedade. 
 
 9. Mais grave do que isso, vê-se impossibilitada da tutela do seu direito, 
 porquanto os meios processuais à sua disposição, quer de natureza cível, quer de 
 natureza criminal, a manter-se o entendimento em causa, esbarram na necessidade 
 de maioria dos votos. 
 
 10. O, aliás douto, acórdão da Relação de Lisboa, referindo as posições 
 doutrinais divergentes a propósito do conceito de ofendido na vigência do CPP de 
 
 1929, (por um lado: José António Barreiros in Crimes Contra o Património, U.L., 
 
 1996 P. 211 que defende um conceito amplo de ofendido e sentido inverso: Beleza 
 dos Santos, ‘Partes Particularmente Ofendidas em Processo Criminal’, RLJ, ano 
 
 57), perfilhando o conceito restrito de ofendido para efeitos do disposto no 
 artº 68º nº 1 al. a) do CPP, refere que este conceito não fere o disposto no 
 artº 20º nº 1 da C.R.P., deixando porém em aberto a questão da tutela dos 
 direitos dos sócios minoritários. 
 
 11. Ou seja, o próprio acórdão reconhece que a posição da queixosa será 
 merecedora de tutela judicial, mas que não esta não poderá ser obtida por via do 
 conceito restrito de ofendido, que no caso concreto caberia em primeira linha à 
 sociedade. 
 
 12. Mais referindo que esta posição não fere o princípio de que todos têm o 
 direito ao recurso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses 
 legalmente protegidos previsto no artº 20º nº 1 da C.R.P. 
 
 13. Mais uma vez, salvo o devido respeito, enveredou-se por um caminho fácil que 
 não deu resposta [à]s legitimas pretensões da queixosa. Isto é, por um lado 
 diz-se que os direitos da queixosa são merecedores de tutela judicial, mas por 
 outro fecha-se a porta pela via da legitimidade para se constituir assistente no 
 crime de infidelidade administrativa p.p. pelo artº 224º do CP. 
 
 14. Ora, assim sendo cumpre questionar em que medida o direito penal tutela o 
 património dos sócios minoritários e a confiança que estes depositaram naqueles 
 que gerem os seus interesses e (parte) do seu património. 
 
 15. É justamente essa falta de tutela que gera, por um lado, a certeza de 
 desprotecção judicial, e por outro, a sensação de impunidade daqueles que, sendo 
 detentores da maioria do capital, podem praticar crimes contra a sociedade e 
 reflexamente contra o património dos seus sócios. 
 
 16. Pelo que, não nos restam dúvidas que o entendimento perfilhado, do artº 68º 
 nº 1 al. a) do CPP conjugado com o artº 224º do CP viola o princípio plasmado no 
 artº 20º nº 1 da C.R.P. 
 
 17. Os sócios maioritários não podem praticar ilícitos criminais e ficarem 
 protegidos pela força da sua participação social. O direito penal não tutela só 
 interesses particulares estando igualmente subjacente os interesses da 
 comunidade, na vertente da prevenção geral positiva                     
 Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, 
 deverá o presente recurso ser julgado procedente e por via dele ser julgado 
 inconstitucional o entendimento perfilhado na primeira instância e mantido pelo 
 Venerando Tribunal da Relação de Lisboa do artº 68º nº 1 al. a) do CPP conjugado 
 com o artº 224º do CP, por violação do princípio constitucional vertido no artº 
 
 20º nº 1 da C.R.P.”
 
       
 
  
 
                Por seu turno, o Ex.mo Representante do Ministério Público junto 
 deste Tribunal, concluiu do seguinte jeito a sua resposta à alegação da 
 recorrente: –
 
  
 
 “1 – A norma do artigo 68º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal, 
 interpretada como não conferindo legitimidade para se constituir assistente, em 
 processo penal por crime de infidelidade previsto e punido pelo artigo 224º do 
 Código Penal, a quem simplesmente seja titular de uma quota de uma sociedade, 
 mas que não representa esta, cujo património foi lesado, não é inconstitucional.
 
 2 - Termos em que não deverá proceder o presente recurso”  
 
  
 
                De sua vez, o denunciado não apresentou resposta à alegação.
 
  
 
                Cumpre decidir.
 
  
 
  
 
                  3. Como deflui do requerimento de interposição do vertente 
 recurso e da alegação produzida pela recorrente, esgrime a mesma no sentido de o 
 artº 68º, nº 1, alínea a), do Código Penal – na dimensão interpretativa de 
 harmonia com a qual não tem legitimidade para ser admitido como assistente um 
 sócio de uma sociedade comercial por quotas em processo criminal em que se 
 indicia o cometimento de um crime de infidelidade administrativa previsto no 
 artº 224º do mesmo corpo de leis – é incompatível com o disposto no nº 1 do 
 artigo 20º da Lei Fundamental.
 
  
 
                De acordo com a decisão impugnada, o não reconhecimento de 
 legitimidade ao sócio, nas ditas condições, advirá da circunstância de este não 
 ser titular dos interesses imediata e directamente tutelado pela norma 
 incriminadora, já que tais interesses radicam, isso sim, na própria sociedade.
 
  
 
                Não incumbindo a este Tribunal censurar a interpretação do 
 direito infra-constitucional neste particular (isto é, e mais concretamente, 
 aferir da bondade do raciocínio levado a efeito pela decisão recorrida no 
 sentido de entender que o ilícito em questão se perspectiva como visando a 
 tutela dos interesses directos da sociedade indiciariamente vítima desse 
 ilícito), a questão que se coloca residirá, assim, em saber se, perante o 
 desenho dos interesses que levaram o legislador a instituir o mencionado 
 ilícito, é afrontadora do nº 1 do artigo 20º da Constituição a não conferência 
 de legitimidade ao sócio da sociedade para se constituir assistente.
 
  
 
                Aquele normativo constitucional, como sabido é, reconhece aos 
 cidadãos dois direitos fundamentais conexos, mas distintos: o direito de acesso 
 ao direito e o direito de acesso aos tribunais. 
 
  
 
                Todavia, a estatuição destes dois direitos não implica, global e 
 incondicionadamente, que “a todo e qualquer interessado seja sempre conferida 
 legitimidade para agir em juízo, desencadeando autonomamente os meios 
 processuais adequados à protecção jurisdicional do seu interesse”, tal como se 
 expressou o Acórdão deste Tribunal nº 258/88 (publicado in Acórdãos do Tribunal 
 Constitucional, vol. XII, pág. 725).
 
                
 
                Por isso, é de entender cabe na liberdade de conformação do 
 legislador ordinário a indicação dos precisos requisitos da legitimidade da 
 intervenção das «partes» nas várias espécies processuais. Ponto é, contudo, que 
 o ordenamento preveja formas de defesa dos direitos e interesses legalmente 
 protegidos, ainda que algumas delas, por visaram a protecção de interesses 
 tutelados de forma mais directa do que outros (verbi gratia, cuja lesão se não 
 apresenta como imediata mas tão só indirecta ou reflexa), inculquem uma mais 
 actuante intervenção perante as específicas características de cada sorte de 
 processo.
 
  
 
                Daí que não se vislumbre como censurável que o legislador 
 processual criminal, ponderando os interesses tidos em mente pelo legislador 
 substantivo penal ao proceder à criminalização de dada actuação, venha confinar 
 a intervenção de quem é directamente lesado nos interesses que o tipo visou 
 especialmente proteger, para poder actuar, na qualidade de assistente, no 
 processo criminal. E, consequentemente, não se afigura como passível de um juízo 
 de enfermidade constitucional a definição contida no artº 68º, nº 1, alínea a), 
 do Código Penal e que comporte a interpretação tal como foi levada a efeito pela 
 decisão recorrida.
 
  
 
  
 
                3.1. É evidente que, como realçam Leal Henriques e Simas Santos, 
 in Código de Processo Penal Anotado, I Vol. 1996, pág. 318, “saber quais são 
 esses interesses é o que constitui aqui o principal problema, pois o legislador 
 não se comprometeu com qualquer definição ou indício caracterizador da figura. 
 Segundo alguma doutrina, um primeiro indício resultará da própria sistematização 
 da parte especial do Cód. Penal, que está efectivamente organizada de acordo com 
 um critério que tem a ver com os interesses especialmente protegidos. Portanto, 
 
 é pela norma incriminadora que se vê qual o interesse que a lei quis proteger ao 
 tipificar determinado comportamento humano como criminoso. Definido o interesse 
 há que identificar o titular desse interesse”.
 
  
 
                Efectivamente, como tem sido sustentado pela doutrina (cfr. v. 
 g., Beleza dos Santos, Revista de Legislação e de Jurisprudência, nº 57, 2, 19 e 
 segs.  e 70;  Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal I, 126 a 131; 
 Figueiredo Dias, Direito Processual Penal I, 512 e 513; e Germano Marques da 
 Silva, Curso de Processo Penal I, 307 a 316) o ofendido com legitimidade para se 
 constituir assistente não é qualquer pessoa prejudicada com a perpetração da 
 infracção, mas somente o titular do interesse que constitui o objecto jurídico 
 imediato da infracção, pelo que, em tal sustentação, não se integram no âmbito 
 do conceito de ofendido  –para efeitos de se aferir essa legitimidade – os 
 titulares de interesses cuja protecção é puramente mediata ou indirecta, ou 
 vítimas de ataques que põem em causa uma generalidade de interesses e não os 
 próprios e específicos daquele que requer a sua constituição como assistente. 
 
  
 
                Neste particular, salienta Damião da Cunha, in Revista Portuguesa 
 de Ciência Criminal, Ano 8, Fasc. 4.º, Out-Dez., A Participação dos Particulares 
 no Exercício da Acção Penal, pág. 630, que esta especificação “refere-se a um 
 problema de legitimidade material – ou seja, a necessidade de se afirmar que a 
 pessoa que se constitui como assistente seja o titular do interesse que a lei 
 especialmente quis proteger com a incriminação”.
 
  
 
  
 
                3.2. De outro lado, este Tribunal teve já oportunidade de se 
 pronunciar, por mais de uma vez, sobre a compatibilidade com a Constituição da 
 interpretação normativa do artigo 68º, nº 1, alínea a), do diploma adjectivo 
 criminal, interpretação essa que, tendo em atenção determinados tipos de 
 ilícitos – e considerando os interesses que presidiram à respectiva instituição 
 
 –, vinha a não permitir, quanto a eles, a intervenção de determinados 
 interessados, não directamente afectados pela incriminação, como assistentes. 
 
 (cfr. Acórdãos números 672/95, publicado na II Série do Diário da República de 
 
 20 de Março de 1996, 647/98, idem, idem, de 3 de Março de 1999, 579/2001, idem, 
 idem, de 15 de Fevereiro de 2002, 76/2002, idem, idem, de 5 de Abril de 2002, e 
 
 162/2002, idem, idem, de 31 de Maio de 2002).
 
  
 
                É certo que em nenhum dos exemplificativamente citados arestos se 
 postava um ilícito tal como o agora em apreciação.
 
  
 
                Todavia, a corte argumentativa que neles foi carreada para fundar 
 o juízo de não desconformidade constitucional servirá, também ela, para o caso 
 em presença.
 
  
 
                Na verdade, o acórdão ora sob censura descortinou como interesse 
 ou bem jurídico directamente protegido pelo tipo do artº 224º do Código Penal, o 
 património da sociedade. E fê-lo, certamente, tendo em conta, não só a própria 
 letra do preceito, como os ensinamentos da doutrina que, quer directamente a 
 propósito do aludido preceito, quer a propósito da legitimidade para 
 constituição como assistente, são sustentados.
 
  
 
                Neste ponto, não se deixará de citar de novo Leal Henriques e 
 Simas Santos ( in obra referida, 946), que se expressam no sentido de ser 
 
 “necessário que se tenha verificado um prejuízo patrimonial para o titular dos 
 interesses confiados” ao agente, sendo o património relevante o pertença da 
 sociedade e não o dos seus sócios que a integram.
 
  
 
                Esta ideia – de atribuição de «titularidade de interesses» – é, 
 aliás, a que mais recentemente se colhe de Figueiredo Dias e Anabela Miranda 
 Rodrigues, A sociedade portuguesa de autores em Processo Penal, in “Temas de 
 direito de autor III”, 1989, e segs., para quem ela é relacionada “com a 
 susceptibilidade do bem jurídico poder ser corporizado num concreto portador” e, 
 também – conquanto dirigida às incriminações que se surpreendem no Código das 
 Sociedades Comerciais – por Susana Aires de Sousa [Direito Penal das Sociedades 
 Comerciais, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 12, Tomo I, 2002, que 
 diz que “neste sentido aponta também o bem jurídico, objecto de protecção das 
 normas previstas naqueles artigos do CSS. Estamos (…) perante um bem jurídico 
 supra-individual, comum a todas as incriminações. Esse bem é a sociedade 
 comercial enquanto instrumento económico. (…) Só indirecta ou mediatamente se 
 previnem determinados interesses individuais tais como os interesses dos 
 credores, dos sócios, dos accionistas, de terceiros e da própria economia 
 pública. Bem jurídico cujo reflexo constitucional se pode encontrar no art. 86.º 
 da nossa Constituição ao definir ‘o estatuto da empresa provada enquanto 
 instituto da organização económica”].
 
  
 
                Por outro lado, reforçando a ideia de que os próprios bens 
 jurídicos a salvaguardar pelo direito penal não o são em todas as frentes, 
 convém não deixar passar em claro a advertência feita por Jackobs, apud Costa 
 Andrade in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Uma perspectiva 
 jurídico-criminal, Coimbra Editora, 1996, pág. 179, de harmonia com a qual  “as 
 normas não podem proteger um bem jurídico contra todos os riscos, mas apenas 
 contra os que não são consequência necessária do contacto social permitido” 
 
 (negrito acrescentado).
 
  
 
                A asserção, resultante da citação que se fez em último lugar, tem 
 aqui cabimento de oportunidade em face da postura da recorrente, que sustenta a 
 enfermidade constitucional da dimensão interpretativa sufragada pela decisão 
 impugnada, já que questiona em que medida, a acolher-se essa dimensão, poderia o 
 direito penal tutelar o património dos sócios minoritários.
 
  
 
                Na verdade, é realidade assente que o direito penal só é (ou só 
 deve ser) chamado a intervir enquanto ultima ratio ou, se se quiser, ele só faz 
 sentido, de um ponto de vista de adequação e proporcionalidade, se outros meios 
 ou instrumentos ínsitos no ordenamento jurídico se não mostrarem suficientemente 
 capazes de prover à defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos.
 
  
 
                Uma determinada conduta só terá, pois, dignidade penal quando 
 ofenda a dignidade do bem jurídico que se quer proteger com determinada norma 
 penal e quando essa conduta se revista de danosidade social. Ora, se o bem 
 jurídico protegido no Capítulo e Título do Código Penal onde está inserido o 
 tipo de crime de infidelidade de que curamos, é o bem jurídico do acervo 
 patrimonial da sociedade, há que concluir que, com o eventual preenchimento do 
 tipo de crime em questão, o que se lesa directamente, no caso, é aquele 
 património e não, também directamente, o património de todos os sócios dela. 
 Esses patrimónios, a serem lesados, sê-lo-ão, mas de modo reflexo ou indirecto.
 
  
 
                E, mais importante, o que é certo é que o ordenamento jurídico 
 não deixa desprotegidos esses patrimónios dos sócios, que poderão socorrer-se de 
 outros instrumentos processuais para alcançar a defesa dos respectivos 
 interesses.
 
  
 
                O que, com a dimensão interpretativa em causa, unicamente se veda 
 
 é que, em sede de processo crime e mediante o recurso a uma figura de auxiliar 
 da entidade a quem, constitucional e legalmente, impende a obrigação de exercer 
 a acção punitiva do Estado, haja actuação dos detentores desses interesses que, 
 reflexamente, poderão ter sido «tocados» pela actuação do indiciário agente do 
 ilícito a que se reporta o artº 224º do Código Penal.
 
  
 
                A corroborar a dicotomia entre interesses directa e 
 indirectamente (ou reflexamente) postos em causa pela incriminação como conditio 
 da legitimidade para intervenção como assistente nos processos criminais, 
 recordem-se as palavras utilizadas no já mencionado Acórdão nº 579/2001, segundo 
 as quais “a lesão dos bens jurídicos particulares que se pode surpreender pela 
 tipificação consagrada (…) apenas mediata ou indirectamente constitui a ratio 
 daquele preceito”, e que, nessa “senda, é de considerar como não feridente da 
 Lei Fundamental uma norma que unicamente atenda, para efeitos de permissão na 
 constituição do ofendido como assistente, à circunstância de aqueles direitos ou 
 interesses serem a razão directa e imediata (ou seja, o leit motiv situado em 
 primeira linha) que levou o legislador à tipificação da infracção criminal”.
 
  
 
                A mesma linha de raciocínio, aliás, foi seguida no também citado  
 Acórdão nº 162/2002, em que se colocava uma situação em que se não negava que 
 tivesse havido lesão nos interesses da então recorrente, mas em que os 
 interesses visados proteger directamente pela norma incriminadora eram, em 
 primeira linha, interesses de outrem. 
 
  
 
  
 
                3.3. É certo que, de entre as garantias de defesa postuladas pela 
 Constituição como devendo ser asseguradas pelo legislador ordinário, se conta 
 
 (cfr. nº 7 do artigo 32º) a de o ofendido ter o direito de intervir no processo, 
 nos termos da lei.
 
  
 
                Simplesmente, da literalidade daquele preceito constitucional 
 retira-se, desde logo, que a intervenção do ofendido foi relegada para a lei 
 ordinária.
 
  
 
                E, de outra banda, o que se não pode deixar de considerar é que, 
 como facilmente se extrai da mencionada literalidade, também a Lei Fundamental 
 não define o que deve ser perspectivado como ofendido, não se antevendo, sem 
 mais, que, com tal expressão, desejou ela abarcar todos os lesados pela 
 actividade delituosa (aqui se compreendendo, pois, aqueles cujos interesses tão 
 só fossem indirecta, mediata ou reflexamente postos em causa com aquela 
 actividade) e, maxime, quando pertençam a outrem os interesses ou direitos que, 
 com a criminalização de tal actividade, se desejaram tutelar. 
 
  
 
  
 
                4. Em face do que se deixa dito, nega-se provimento ao recurso, 
 condenando-se a impugnante nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça 
 em vinte unidades de conta.
 
  
 Lisboa, 22 de Fevereiro de 2006
 Bravo Serra
 Gil Galvão
 Vítor Gomes
 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
 Artur Maurício