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Processo n.º 1171/07
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Central Administrativo Norte, em que
é recorrente A., Lda., e recorrida a Fazenda Pública, foi interposto recurso de
fiscalização concreta de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele
Tribunal, de 13.09.2007, para apreciação da norma contida no artigo 36.º, n.º 2,
do Regime Complementar do Procedimento da Inspecção Tributária (adiante
designado RCPIT, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 413/98, de 31 de Dezembro, com as
alterações posteriores).
2. Convidada a aperfeiçoar o requerimento de interposição do recurso, a
recorrente veio dizer, em síntese, o seguinte:
«A interpretação feita pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra e pelo
Tribunal Central Administrativo Norte da norma que se extrai do n.° 2 do art.°
36.° do RCPIT é, na economia do presente recurso, a de que a sua violação,
mediante a ultrapassagem do prazo para a conclusão do procedimento de inspecção:
- não determina a caducidade do procedimento de inspecção tributária, com a
consequente impossibilidade de serem praticados actos de liquidação fundados no
procedimento de inspecção cuja duração excedeu a legalmente fixada;
- não tem efeito invalidante dos actos de liquidação de impostos baseados no
procedimento de inspecção cuja duração excedeu o prazo legalmente fixado;
- no que respeita à esfera do contribuinte, tem como únicos efeitos fazer cessar
a suspensão do prazo de caducidade do direito à liquidação e conferir-lhe o
direito de se opor a posteriores actos de inspecção;
- no que respeita à Administração Tributária e seus agentes, tem efeitos
meramente disciplinares.
Por outro lado, pretende-se que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade
da indicada norma legal assim interpretada com os princípios constitucionais da
proporcionalidade, da igualdade, da protecção da confiança e do justo equilíbrio
entre a prossecução do interesse público e a protecção dos direitos e interesses
dos particulares.»
3. A recorrente apresentou alegações, onde conclui o seguinte:
«A) O douto acórdão recorrido interpreta a norma contida no art.° 36.°, n.° 2,
do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária (RCPIT), aprovado
pelo Decreto-Lei n.° 413/98, de 31 de Dezembro, no sentido de a ultrapassagem do
prazo aí estabelecido:
- não determinar a caducidade do procedimento de inspecção tributária, com a
consequente impossibilidade de serem praticados actos de liquidação fundados no
procedimento de inspecção cuja duração excedeu a legalmente fixada
- não ter efeito invalidante dos actos de liquidação de impostos baseados no
procedimento de inspecção cuja duração excedeu o prazo legalmente fixado
- no que respeita à esfera do contribuinte, ter como únicos efeitos fazer cessar
a suspensão do prazo de caducidade do direito à liquidação e conferir-lhe o
direito de se opor a posteriores actos de inspecção
- no que respeita à Administração Tributária e seus agentes, ter efeitos
meramente disciplinares.
B) Esta interpretação da indicada norma está em desconformidade com a
Constituição da República Portuguesa por violação dos princípios da
proporcionalidade, da igualdade, da protecção da confiança e do justo equilíbrio
entre a prossecução do interesse público e a protecção dos direitos e interesses
dos particulares.
C) Uma interpretação da sindicada norma conforme a Constituição impõe que a
ultrapassagem do prazo estabelecido para a conclusão do procedimento de
inspecção tributária determine a caducidade do procedimento inspectivo e a
invalidade dos actos de liquidação de impostos que se fundem nesse
procedimento.»
4. A recorrida Fazenda Pública contra-alegou, concluindo da forma seguinte:
«1. A natureza ordenadora do prazo previsto no art. 36.°, 2 do RCPIT decorre da
especificidade do procedimento inspectivo e dos concretos fins por ele visados.
2. Ele visa, com efeito, garantir a distribuição equitativa dos sacrifícios e
encargos tributários pelos contribuintes, ou seja, dar satisfação ao princípio
da igualdade e da capacidade contributiva, consagrado nos arts. 12.°, 13.° e
103.° da CRP.
3. O acórdão recorrido não violou, pois, qualquer preceito constitucional,
devendo ser mantido.»
5. O presente recurso emerge de impugnação judicial, intentada por A., Lda.,
pedindo a anulação das liquidações adicionais de IRC respeitantes aos anos de
1996, 1997 e 1998.
Por sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, a impugnação foi
julgada parcialmente procedente e, em consequência, anuladas, em parte, as
liquidações impugnadas.
Inconformada, a impugnante recorreu para o Tribunal Central Administrativo
Norte, alegando, além do mais, que o prazo consignado no artigo 36.º, n.º 2, do
RCPIT, é um prazo de caducidade do procedimento inspectivo, pelo que o seu
incumprimento pela Administração Tributária acarreta a impossibilidade, de, com
base nele, serem praticados quaisquer actos em matéria tributária desvantajosos
para o contribuinte inspeccionado.
Por acórdão de 13.09.2007, ora recorrido, o TCAN negou provimento ao recurso.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II − Fundamentação
6. O n.º 2 do artigo 36.º do RCPIT estabelece que «[o] procedimento de inspecção
é contínuo e deve ser concluído no prazo máximo de seis meses a contar da
notificação do seu início.»
O acórdão recorrido considerou que o prazo de seis meses aqui previsto não é um
prazo de caducidade do processo de inspecção, mas antes tem natureza meramente
disciplinadora, visando a celeridade deste procedimento. E que o desrespeito
deste prazo não invalida os actos de liquidação, mas antes tem como
consequência, por um lado, fazer cessar a suspensão do prazo de caducidade do
direito de liquidação (consagrado no artigo 45.º da Lei Geral Tributária),
contando-se o prazo do seu início, nos termos do previsto no n.º 1 do artigo
46.º da LGT; e, por outro, permitir ao contribuinte opor-se aos actos
subsequentes de inspecção que a administração fiscal pretenda levar a cabo sem
prévia autorização da sua prorrogação (artigo 47.º do RCPIT).
A recorrente sustenta que esta interpretação do artigo 36.º, n.º 2, do RCPIT,
viola os princípios constitucionais da proporcionalidade, da igualdade, da
protecção da confiança e do justo equilíbrio entre a prossecução do interesse
público e a protecção dos direitos e interesses do cidadão. E defende que o
desrespeito do prazo de seis meses, ali definido para a realização da inspecção
tributária, deve determinar a caducidade do procedimento de inspecção externa e
a invalidade da própria liquidação.
7. A questão a decidir no presente recurso − limitado que está à apreciação da
constitucionalidade do artigo 36.º, n.º 2, do RCPIT − é, assim, a de saber se é
conforme à Constituição o entendimento de que a ultrapassagem do prazo de seis
meses aí previsto não determina a caducidade do procedimento de inspecção
tributária nem a invalidade dos actos de liquidação fundados em procedimento
cuja duração excedeu a legalmente fixada. Ou seja, saber se é
constitucionalmente imposto que a previsão de um prazo máximo para a realização
do procedimento de inspecção tributária tenha como consequência, em caso de
desrespeito do mesmo, a caducidade do procedimento inspectivo e a consequente
invalidade dos actos de liquidação que nele se baseiem.
Esta questão, embora com contornos não exactamente coincidentes, foi já objecto
de apreciação pelo Tribunal Constitucional, nos Acórdãos n.ºs 457/2008 e
514/2008.
No Acórdão n.º 457/2008 julgou-se não inconstitucional a interpretação conjugada
dos artigos 14.º e 36.º, n.ºs 1 e 2, do RCPIT (na redacção anterior à Lei n.º
50/2005, de 30 de Agosto), e do artigo 46.º, n.º 1, da LGT, segundo a qual os
prazos definidos na lei para a inspecção apenas relevam no âmbito do instituto
da caducidade, não determinando a invalidade da própria liquidação.
Entendendo-se, neste aresto, na parte que agora releva, que a interpretação
normativa questionada não viola os princípios constitucionais da
proporcionalidade ou da necessidade, pelas razões seguintes:
«(…) é manifesto que a opção legislativa por que, na interpretação da lei que
faz a decisão recorrida, optou o legislador − i.e., fixar um prazo regra de seis
meses para a realização da inspecção tributária e sancionar o seu incumprimento
com a cessação da suspensão do prazo de caducidade, em vez de fulminar esse
incumprimento com a nulidade da liquidação − não pode entender-se como
manifestamente desproporcionada do ponto de vista dos interesses em jogo em
termos de permitir um juízo de censura por parte deste Tribunal. Quer porque
essa solução visa assegurar que o Estado arrecada a receita fiscal que lhe é
devida, quer porque ela não desprotege o contribuinte na medida em que
precisamente sanciona o incumprimento daquele prazo com a cessação da suspensão
do prazo de caducidade.»
Também no Acórdão n.º 514/2008, o Tribunal não julgou inconstitucional a norma
do artigo 36.º, n.º 2, do RCPIT, interpretada no sentido de a ultrapassagem do
prazo aí estabelecido não determinar a caducidade do procedimento de inspecção
tributária, com a consequente impossibilidade de serem praticados actos de
liquidação fundados no procedimento de inspecção cuja duração excedeu a
legalmente fixada, e não ter efeito invalidante dos actos de liquidação de
impostos baseados no procedimento de inspecção cuja duração excedeu o prazo
legalmente fixado.
Neste último aresto considerou-se que a interpretação questionada não afrontava
os princípios da proporcionalidade, da igualdade, da protecção da confiança e do
justo equilíbrio entre a prossecução do interesse público e a protecção dos
direitos e interesses dos particulares, pelas razões assim sumariadas:
I - A norma contida no n.º 2 do artigo 36.º do RCIPT, interpretada no sentido de
que a ultrapassagem do prazo meramente ordenador não implica a automática
caducidade do procedimento inspectivo, mas apenas a perda do benefício da
suspensão do prazo de caducidade do direito de liquidação do imposto devido, não
contende com o princípio da proporcionalidade, em qualquer uma das suas
vertentes (de necessidade, adequação e de justa medida); pelo contrário,
afigura-se como necessária à obtenção das receitas públicas destinadas à
cobertura dos custos com as prestações sociais exigidas a um Estado Social de
Direito, além de que a própria Constituição impõe que a cobrança de impostos
tenha em conta a efectiva capacidade contributiva de cada cidadão, de modo a
assegurar uma 'repartição justa dos rendimentos e da riqueza'.
II - Acresce que a interpretação normativa sub judicio revela-se ainda como
adequada a promover a salvaguarda de outros valores e direitos constitucionais,
na medida em que permite que o procedimento de inspecção possa ser mantido, em
casos em que a complexidade dos factos tributários a inspeccionar exija uma
ultrapassagem do prazo fixado no n.º 2 do artigo 36.º do RCIPT; por outro lado,
ainda que permita uma restrição dos direitos do contribuinte a um procedimento
inspectivo célere, a interpretação normativa aplicada pela decisão recorrida -
ainda assim - apenas os restringe na justa medida, configurando-se como a medida
menos lesiva entre as possíveis, já que faz recair sobre a própria administração
tributária alguns ónus e encargos.
III - O relevante interesse público, expressamente decorrente da Constituição,
na obtenção de receitas fiscais, em respeito pela efectiva capacidade
contributiva dos cidadãos permite ao legislador, dentro da sua margem de
liberdade conformativa, estabelecer um regime de prazos mais favorável à
administração tributária, precisamente de modo a que a igualdade horizontal -
desta feita entre os vários contribuintes - possa ser devidamente respeitada; em
situações de especial complexidade, pode revelar-se necessária a ultrapassagem
dos prazos de tramitação legalmente previstos, prevalecendo o interesse público
da obtenção de receitas destinadas a suportar as prestações sociais do Estado
sobre o interesse individual dos contribuintes a uma célere definição da sua
situação jurídico-tributária.
IV - Se é verdade que os contribuintes gozam de um direito a que a sua situação
jurídico-tributária fique definida num prazo razoável, não se vislumbra que a
qualificação do prazo de 6 meses fixado pelo n.º 2 do artigo 36.º do RCPIT como
meramente ordenador seja susceptível de abalar esse mesmo direito, já que a
recorrente manteve sempre o seu direito a uma definição em prazo razoável da sua
situação jurídico-tributária, que é garantida quer pelo regime de caducidade do
direito do Estado à liquidação do imposto, quer ainda pelo regime de prescrição
das dívidas tributárias; a interpretação normativa objecto de recurso nos
presentes autos não padece assim, igualmente, de inconstitucionalidade material,
por violação do princípio da confiança e da segurança jurídica.
Na linha da jurisprudência citada, em especial, pelos fundamentos do Acórdão n.º
514/2008, inteiramente transponíveis para o caso em apreço e não contrariados
pela alegação da recorrente, conclui-se pela não inconstitucionalidade da
interpretação normativa questionada.
III − Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 36.º, n.º 2, do Regime
Complementar do Procedimento da Inspecção Tributária, (aprovado pelo Decreto-Lei
n.º 413/98, de 31 de Dezembro, com as alterações posteriores), quando
interpretada no sentido de que a ultrapassagem do prazo aí fixado não determina
a caducidade do procedimento de inspecção tributária nem a invalidade dos actos
de liquidação fundados em procedimento cuja duração excedeu a legalmente fixada;
b) Em consequência, negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco)
unidades de conta.
Lisboa, 25 de Novembro de 2008
Joaquim de Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos