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Processo n.º 846/09
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é
recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso de
constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do
Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações
posteriores, adiante designada LTC), nos seguintes termos:
«A., recorrente nos presentes autos, não se conformando com o douto acórdão
proferido, vem dele interpor recurso para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, o que faz
nos termos da alínea b) do n.°1 do artigo 70.º da Lei n.° 28/82:
I
1
Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da norma ínsita na alínea f)
do n.°1 do art.º 400.° do CPP, na redacção introduzida pela Lei 48/2007 de 29 de
Agosto, na medida em que, ao contrario do que resultava da redacção anterior a
esta Lei , impede o arguido de exercer o seu direito de defesa, nomeadamente o
direito ao recurso, relativamente a um acórdão proferido pelo Tribunal da
Relação confirmativo da 1.ª instancia. É assim inconstitucional, por violação
das normas contidas nos artigos 18.°, 20.º e 32.° da Constituição da Republica
Portuguesa e ofensa dos princípios da igualdade e proporcionalidade.
Com efeito, na anterior redacção do art.º 400.°, n.° 1, alínea f), do CPP, a
admissibilidade do recurso era avaliada em função da pena abstractamente
aplicada ao crime que estivesse em causa, sendo que com a nova redacção a
admissibilidade do recurso é aferida em função da pena concretamente aplicada no
caso.
No caso concreto do arguido A., a pena aplicada foi inferior a 8 anos, mas a
aplicável era bem superior — art.º 21.° do DL 15/93 — sendo que no regime
processual penal anterior, o arguido tinha direito ao recurso para o STJ nas
mesmas condições.
Tal significa, no caso concreto, que a norma que agora se censura, afectou de
forma parcial, mas substancial, o sistema de recurso em matéria penal,
extinguindo o direito deste arguido recorrer para o STJ.
A decisão agora censurada discute esta questão no seu último parágrafo,
concluindo pela inexistência de qualquer ofensa ao art. 18.°, 20.º e 32.° da
C.R.P.
A alínea f) do n.°1 do art. 400.° do CPP, na redacção introduzida pela Lei
48/2007 de 29 de Agosto, com a interpretação dada pela decisão agora censurada,
viola os artigos 18.°, 20.° e 32.°, todos da C.R.P.
Tal parece resultar ainda do pensamento dos Professores Jorge Miranda e Rui
Medeiros, quando escrevem:
É possível, por isso, fundar constitucionalmente um genérico direito de recorrer
das decisões jurisdicionais. E, se é certo que cabe ao legislador ordinário
concretizar, com maior ou menor amplitude, o seu âmbito de aplicação e conteúdo,
está-lhe vedado abolir o sistema de recursos in totó ou afectá-lo
substancialmente através da consagração de soluções que restrinjam de tal modo o
direito de recorrer que, na prática, se traduzam na supressão tendencial dos
recursos (acórdãos n.ºs 489/95, 673/95, 377/96 e 490/9 7 — cfr. Ainda Jorge
Miranda, Manual..., IV cit. pág. 269 e 270).
2.
Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade das norma nos artigos 5.° n.°2
e 400.° n.°1 al. f) do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela
Lei 48/2007 de 29 de Agosto, com a interpretação com que foram aplicadas na
decisão agora recorrida, ou seja, de que não considera violador da Constituição,
a circunstancia de o regime aplicável ser aquele que vigorar no momento em que
for proferida a decisão da primeira instância — no caso, posterior a 15 de
Setembro de 2007 — e não quando da constituição de arguido — anterior a 15 de
Setembro de 2007.
Com efeito, a decisão recorrida interpretou e aplicou as normas dos artigos do
C.P.P. acima referidas, no seguinte quadro factual:
- O arguido foi constituído antes de 15 de Setembro de 2007;
- Em 10.2.2009 foi proferido acórdão condenatório em primeira
instância.
Como se refere nas declarações de voto dos Senhores Juízes
Conselheiros Santos Cabral e Oliveira Mendes no acórdão de fixação de
jurisprudência 4/20092 :
Porém, tal estatuto não pode assumir uma diferenciação cromática em função do
momento da prática do acto que consubstancia o seu exercício, ou seja,
entendemos que o acto que consubstancia o exercício do direito de defesa não é
mais do que a concretização de um direito que já está inscrito no estatuto do
arguido e que lhe assiste pelo simples facto de o ser. É da constituição como
arguido que geneticamente nascem os direitos que se irão conformar e exercitar
ao longo do processo.
Tentando explicitar o exposto na sua relação com a hipótese vertente dir-se-á
que o direito a recorrer não nasce pelo facto de, em concreto, se recorrer de
uma determinada decisão. Ele constava já do estatuto do arguido desde o momento
da sua constituição como tal e pelo simples facto de o ser. Daqui deriva que o
momento em relação ao qual se deve aferir da maior ou menor amplitude
qualitativa do direito de defesa com vista aplicar no processual artigo 5.º do
CPP- é aquele em que é formatado o estatuto do arguido em função da sua
constituição como tal.
Na outra declaração de voto:
O direito ao recurso, como direito fundamental de defesa que é, nasce, pois,
pelo menos, no momento em que o arguido é como tal constituído, e não no momento
em que é proferida a decisão condenatória em 1ª instância.
Aliás, como expressamente resulta do texto do n.° 2 do artigo 5° - (9)». , e
entramos agora na análise da letra da lei, o legislador foi ainda mais longe na
salvaguarda das garantias de defesa do arguido, de todas as suas garantias de
defesa, impondo que a lei (nova) não se aplique aos processos iniciados
anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata possa
resultar agravamento sensível da situação processual do arguido, nomeadamente
uma limitação do seu direito de defesa ou quebra da harmonia e unidade dos
vários actos do processo.
Certo é que a expressão concretamente utilizada pelo legislador “processos
iniciados” é unívoca, não suscitando a menor dúvida de interpretação.
Iniciar, quer para o jurista quer para o leigo, para quem quer que seja,
significa começar, principiar, inaugurar (10), o que relativamente ao processo
tem o sentido inequívoco de instaurado, pelo que é inquestionável que o texto
legal veda, nos casos expressam ente referidos nas alíneas a) e b) do n.° 2 do
artigo 50.º, a aplicação da lei processual a todos os processos que foram
instaurados antes da sua entrada em vigor.
Interpretar o inciso “processos iniciados” como o fez a orientação vencedora, ou
seja, fazer coincidir aquele momento ou fase processual com o da decisão
condenatória proferida em i” instância é, pois, subverter o direito, com grave
postergação do que a Constituição da República impõe em matéria de garantias de
defesa do arguido.
A decisão agora censurada discute esta questão no seu último parágrafo,
concluindo pela inexistência de qualquer ofensa ao art. 18.°, 20.º e 32.° da
C.R.P.
As norma dos artigos 5.° n.° 2 e 400.° n.°1 al. f) do Código de Processo Penal,
na redacção introduzida pela Lei 48/2007, com a interpretação dada pela decisão
agora censurada, estão inquinadas de inconstitucionalidade material, pois
diminuiu-se a extensão e alcance do conteúdo essencial da norma do artigo 32.°
n.°1 da Constituição da Republica, uma vez que se nega garantias de defesa e
afronta o principio da proporcionalidade.
II
As questões de inconstitucionalidade foram suscitadas na reclamação apresentada
nos termos do art.º 405.° do CPP para o presidente do Supremo Tribunal de
Justiça — alíneas b) e c).
III
O presente recurso tem subida imediata, nos próprios autos e com efeito
suspensivo.
Nestes termos se requer a V. Ex.ª que se digne admitir o presente recurso,
seguindo-se os demais termos legais.»
2. O recorrente apresentou alegações, onde conclui o seguinte:
«1. Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da norma ínsita na alínea
f) do n.°1 do art. 400.° do CPP, na redacção introduzida pela Lei 48/2007 de 29
de Agosto, na medida em que, ao contrario do que resultava da redacção anterior
a esta Lei, impede o arguido de exercer o seu direito de defesa, nomeadamente o
direito ao recurso, relativamente a um acórdão proferido pelo Tribunal da
Relação confirmativo da 1.ª instancia.
2. A pena aplicada ao arguido foi inferior a 8 anos, mas a aplicável era bem
superior — art.º 21.º do DL 15/93 — sendo que no regime processual penal
anterior, o arguido tinha direito ao recurso para o STJ nas mesmas condições.
3. Tal significa, no caso concreto, que a norma que agora se censura, afectou de
forma parcial, mas substancial, o direito do arguido aceder ao Supremo Tribunal
de Justiça.
4. Assim, a alínea f) do n.°1 do art. 400.° do CPP, na redacção introduzida pela
Lei 48/2007 de 29 de Agosto, com a interpretação dada pela decisão agora
censurada, viola os artigos 18.° , 20.° e 32.°, todos da C.R.P.
5. Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade das norma nos artigos 5.°
n.°2 e 400.° n.°1 al. f) do Código de Processo Penal, na redacção introduzida
pela Lei 48/2007 de 29 de Agosto, com a interpretação com que foram aplicadas na
decisão agora recorrida, ou seja, de que não considera violador da Constituição,
a circunstancia de o regime aplicável ser aquele que vigorar no momento em que
for proferida a decisão da primeira instância.
6. O arguido foi assim constituído antes de 15 de Setembro de 2007 e só em
10.2.2009 foi proferido acórdão condenatório em primeira instância.
7. O acórdão recorrido defendeu que o momento em que se definiram os limites do
direito de recurso do arguido foi com a prolação do acórdão de 1a instancia, e
não com a constituição de arguido.
8. Interpretar o inciso “processos iniciados” como o fez a orientação vencedor
ou seja, fazer coincidir aquele momento ou fase processual com o da decisão
condenatória proferida em 1.ª instância é, pois, subverter o direito, com grave
postergação do que a Constituição da República impõe em matéria de garantias de
defesa do arguido.
9. Pelo que, em conclusão, estão as normas dos artigos 5.° n.º 2 e 400.° n.°1
al. f) do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei 48/2007,
com a interpretação dada pela decisão agora censurada, inquinadas de
inconstitucionalidade material, pois diminuiu-se a extensão e alcance do
conteúdo essencial da norma do artigo 32.° n.°1 da Constituição da Republica,
uma vez que se nega garantias de defesa e afronta o principio
Nestes termos e demais de direito, deverá o presente recurso obter provimento e
declararem-se inconstitucionais as normas supra referidas quando assim
interpretadas.»
3. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional
contra-alegou, concluindo o seguinte:
«1- Tem sido jurisprudência unânime e uniforme do Tribunal Constitucional que o
direito constitucional ao recurso em processo penal, por parte do arguido, se
basta com a existência de um duplo grau de jurisdição.
2- Assim, a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do CPP, na redacção dada
pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, enquanto faz defender a admissibilidade
do recurso do acórdão da relação para o Supremo Tribunal de Justiça, de a pena
de prisão aplicada ser superior a oito anos, não é inconstitucional.
3- A norma do artigo 5.º, n.º 2, em conjugação com a do artigo 400.º, n.º 1,
alínea f) do CPP, esta na redacção da lei n.º 48/2007, interpretada no sentido
de que aos processos pendentes quando da entrada em vigor daquela Lei, se aplica
a versão daquele artigo vigente à data de decisão de 1.ª instância, não é
inconstitucional, não violando o artigo 32.º, n.º 1, nem qualquer outro preceito
ou princípio constitucional.
4- Termos em que deverá negar-se provimento ao recurso.»
4. Dos autos emergem os seguintes elementos, relevantes para a presente decisão:
Por sentença do Tribunal do Circulo Judicial de Loulé, o ora recorrente, A. foi
condenado, entre outros arguidos, como co-autor material de um crime de tráfico
de estupefacientes, na pena de 6 anos e 6 meses de prisão.
Inconformado, o arguido A., conjuntamente com outro dos arguidos, interpôs
recurso para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão de 2.6.2009, julgou
o recurso parcialmente procedente, na parte respeitante à factualidade dada como
provada sob os n.ºs 23 e 24 e, quanto ao demais, julgou o recurso improcedente,
mantendo a condenação.
Ainda inconformados, o arguido A. e outro arguido interpuseram recurso para o
Supremo Tribunal de Justiça.
Por despacho do relator no Tribunal da Relação de Évora, de 10.8.2009, o recurso
interposto pelo arguido A. foi rejeitado, ao abrigo do disposto no artigo 414.º,
n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), com fundamento no disposto no artigo
400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, por aquele ter sido condenado em pena de prisão
não superior a oito anos, tendo o acórdão recorrido confirmado decisão da 1.ª
Instância.
Ainda inconformado, o arguido A. reclamou deste despacho para o Presidente do
Supremo Tribunal de Justiça.
A reclamação foi indeferida por despacho de 17.9.2009, onde se lê, na parte que
agora releva:
«(…) Para efeitos da conjugação do regime dos recursos com o artigo 5.º, n.º 2,
alínea a), do CPP, o regime aplicável será o que vigorar no momento em que ficam
definidas as condições e os pressupostos processuais do próprio direito ao
recurso, isto é, no momento em que for primeiramente proferida uma decisão sobre
a matéria em causa, ou seja, a decisão da primeira instância.
No caso, a decisão primeiramente proferida teve lugar, como se referiu, já na
vigência do novo regime de recursos resultante das alterações introduzidas pela
Lei nº 48/2007, donde ser este o regime aplicável. Aliás, esta solução resulta
também da argumentação e decisão do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do
Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2009 (…).
(…)
Deste modo, nos termos da mencionada alínea f) [do n.º 1 do artigo 400.º do
CPP], o acórdão questionado ao ter confirmado a decisão condenatória da 1.ª
instância é insusceptível de recurso, tendo em conta a pena aplicada ao arguido
que, no caso, não foi superior a 8 anos.
E a redacção actual do art. 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, não é
inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais referidos pelo
reclamante.
Com efeito, não pode considerar-se infringido o art. 20.º da CRP tendo em conta
que o princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva se
concretiza, em regra, através da instância única. Também não se mostra
desrespeitado o art. 18.º da CRP, porquanto o direito que o reclamante considera
restringido seria o do recurso, especificamente previsto no n.º 1 do artigo 32.º
da Constituição como garantia de defesa. No entanto, a garantia do direito ao
recurso tem a dimensão constitucional de exigência de único grau, que foi
garantido através do recurso interposto para a Relação pelo reclamante (cf.,
v.g. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 189/01 e 377/2003 de 3 de Maio de
2001 e de 15 de Julho de 2003, respectivamente). (…). »
Novamente inconformado, o arguido A. interpôs o presente recurso de
constitucionalidade.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
5. O recorrente pretende a apreciação da constitucionalidade das seguintes
normas:
(i) norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na redacção introduzida
pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, «na medida em que, ao contrário do que
resultava da redacção anterior a esta Lei, impede o arguido de exercer o seu
direito de defesa, nomeadamente, o direito ao recurso, relativamente a um
acórdão proferido pelo Tribunal da Relação confirmativo da 1.ª instância»;
(ii) norma resultante da conjugação dos artigos 5.º, n.º 2, e 400.º, n.º 1,
alínea f), do CPP, na redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007, quando
interpretados no sentido de considerar que regime aplicável é aquele que vigorar
no momento em que for proferida a decisão da primeira instância (no caso,
posterior a 15.09.2007) e não o que vigorar à data da constituição de arguido
(no caso, anterior a 15.09.2007).
Segundo o recorrente, as normas referidas seriam inconstitucionais por violação
dos artigos 18.º, 20.º e 32.º da Constituição e ofensa dos princípios da
igualdade e proporcionalidade.
6. A primeira questão é a da constitucionalidade da norma da alínea f) do n.º 1
do artigo 400.º do CPP, na redacção da Lei n.º 48/2007, na medida em que
condiciona a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça aos
“acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem
decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”.
No que respeita à primeira questão, importa lembrar que a norma da alínea f) do
n.º 1 do artigo 400.º do CPP, mesmo na redacção anterior à Lei n.º 48/2007, de
29 de Agosto, foi diversas vezes sujeita ao escrutínio de constitucionalidade na
perspectiva da violação do direito ao recurso, tendo o Tribunal Constitucional
decidido reiteradamente no sentido da não inconstitucionalidade de dimensões
normativas em que igualmente estava em causa a restrição do direito ao recurso,
traduzida na limitação do acesso a um duplo grau de recurso ou triplo grau de
jurisdição.
O fundamento de não inconstitucionalidade é comum às várias pronúncias do
Tribunal sobre esta matéria, e pode resumir-se no seguinte entendimento,
expresso no Acórdão n.º 64/2006, tirado em Plenário, que julgou não
inconstitucional a norma constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 400º do
Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que não é admissível
recurso interposto apenas pelo arguido para o Supremo Tribunal de Justiça de um
acórdão da Relação que, confirmando a decisão da 1ª Instância, o tenha condenado
numa pena não superior a oito anos de prisão, pela prática de um crime a que
seja aplicável pena superior a esse limite:
«(…) como repetidamente o Tribunal tem afirmado, a Constituição não impõe um
triplo grau de jurisdição ou um duplo grau de recurso, mesmo em Processo Penal.
Não se pode, portanto, tratar a questão de constitucionalidade agora em causa na
perspectiva de procurar justificação para uma limitação introduzida pelo direito
ordinário a um direito de recurso constitucionalmente tutelado.
A norma que constitui o objecto do presente recurso, e que define, nos termos
expostos, a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça,
releva, assim, do âmbito da liberdade de conformação do legislador.
Como se afirmou no acórdão n.º 640/2004, não é arbitrário nem manifestamente
infundado reservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, por via de
recurso, aos casos mais graves, aferindo a gravidade relevante pela pena que, no
caso, possa ser aplicada.
A norma em apreciação não viola, pois, qualquer direito constitucional ao
recurso ou qualquer regra de proporcionalidade.
7. Também não ocorre uma eventual violação do princípio da igualdade,
considerado isolada ou conjugadamente com o direito ao recurso.
Com efeito, e para além do que se disse já, o critério utilizado para definir a
admissibilidade de intervenção do Supremo Tribunal de Justiça – a possibilidade
de ser aplicada uma pena mais grave do que um determinado limite – torna
irrelevante saber quem pode ou não tomar a iniciativa de a provocar (o arguido,
o Ministério Público, ou o assistente).
Acresce que, interposto recurso com o objectivo do agravamento da pena aplicada
em 2ª instância, o arguido, como recorrido, tem as mesmas possibilidades de
pugnar pela redução da pena ou pela absolvição de que disporia se fosse ele o
recorrente.
8. Finalmente, e também pelas razões já apontadas, também não procede o
argumento de que seria constitucionalmente imposto que o arguido soubesse, no
momento em que é notificado do acórdão da 2ª instância, se tem ou não direito de
recorrer e em que condições o pode exercer. Note-se, aliás, que se não vê como a
norma em apreciação o impeça.
O mesmo se diga, aliás, da hipótese de se considerar constitucionalmente exigido
esse conhecimento em momento ainda anterior. (…)»
Como salienta o Ministério Público, as declarações de voto contra a solução da
não inconstitucionalidade, constantes deste Acórdão n.º 64/2006, expressam o
entendimento de que a norma, na redacção anterior, não permitiria a
interpretação que estava em causa. Ora, precisamente, a actual redacção da
alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, introduzida pela Lei n.º 48/2007, de
29 de Agosto, veio consagrar na letra da lei a limitação do direito ao recurso
que resultava da interpretação questionada, pois passou a condicionar a
admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça à aplicação de
pena de prisão superior a oito anos, enquanto que a redacção anterior se referia
à aplicabilidade de tal pena.
O Tribunal Constitucional também já se pronunciou sobre esta norma, na sua
actual redacção, no Acórdão n.º 263/2009, que julgou não inconstitucional a
norma dos artigos 432.º, n.º 1, alínea b), e 400.º, n.º 1, alínea f), do Código
de Processo Penal, na redacção da Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto, em conjugação
com o disposto no artigo 5.º, n.º 1, e n.º 2, alínea a), do mesmo Código,
interpretada no sentido de que, em processos iniciados anteriormente à vigência
da Lei n.º 48/2007, não é admissível recurso de acórdãos condenatórios
proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância,
proferida após a entrada em vigor da referida lei, e apliquem pena de prisão não
superior a 8 anos.
Os fundamentos deste Acórdão n.º 263/2009, na parte agora relevante, podem ser
assim sumariados:
«I - Não obstante a interpretação normativa em questão no presente recurso não
coincidir exactamente com nenhuma das que foi objecto de anteriores Acórdãos do
Tribunal Constitucional a propósito da norma do artigo 400.º n.º 1 alínea f) do
Código do Processo Penal, na redacção anterior à Lei n.º 48/2007 de 29 de
Agosto, a razão de ser da norma, mesmo após a redacção que lhe foi dada pela Lei
n.º 48/2007, continua a ser a necessidade de limitar a intervenção do Supremo
Tribunal de Justiça aos casos de maior gravidade, pelo que nada impede que as
razões aduzidas nos anteriores arestos, designadamente no Acórdão n.º 189/01,
sejam transponíveis para o caso.
II - Na verdade, é no confronto da norma com as garantias de defesa do arguido
em processo penal, designadamente o direito ao recurso, e com garantia de acesso
ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, que a questão de
inconstitucionalidade se coloca, decorrendo a solução, uma vez mais, dos limites
com que a Constituição vincula o legislador ordinário em matéria de processo
penal, e do reconhecimento de que, nesta área, lhe conferiu liberdade de
conformação, não impondo o estabelecimento de um triplo grau de jurisdição; a
restrição ao recurso é, em suma, constitucionalmente admissível, desde que não
se configure como desrazoável, arbitrária ou desproporcionada, pelo que haverá
que concluir no sentido de que a interpretação normativa sindicada não viola as
garantias de defesa do arguido em processo criminal, incluindo o direito ao
recurso, nem o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.»
Esta jurisprudência, a que aderimos integralmente − como já tivemos ocasião de
expressar no Acórdão n.º 599/2007, a propósito de outra dimensão normativa do
mesmo preceito legal, que colocava problema idêntico − é inteiramente aplicável
ao caso em apreço, devendo aqui ser reiterada.
Conclui-se, por isso, pela não inconstitucionalidade da norma da alínea f) do
n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto.
5. A segunda questão colocada pelo recorrente é a da inconstitucionalidade da
norma resultante da conjugação dos artigos 5.º, n.º 2, e 400.º, n.º 1, alínea
f), do CPP (na redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007), quando interpretados
no sentido de considerar que regime aplicável é aquele que vigorar no momento em
que for proferida a decisão da primeira instância (no caso, posterior a
15.09.2007) e não o que vigorar à data da constituição de arguido (no caso,
anterior a 15.09.2007), por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
Ou seja, está em causa a constitucionalidade da interpretação que considera
aplicável ao presente caso a versão do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), conferida
pela Lei n.º 48/2007, por ser essa a que vigorava à data em que foi proferida a
decisão de 1.ª instância, não obstante o processo ter início em inquérito
anterior à vigência da referida lei.
Também sobre esta questão se pronunciou o citado Acórdão n.º 263/2009,
igualmente no sentido da não inconstitucionalidade de interpretação normativa
que entendeu ser aplicável a nova redacção conferida à alínea f) do n.º 1 do
artigo 400.º do CPP nos processos iniciados anteriormente à vigência da Lei n.º
48/2007, em que a sentença de 1.ª instância foi proferida após a entrada em
vigor dessa lei.
Escreveu-se aí:
«Deve entender-se o critério fixado no aludido artigo 29º da Constituição,
quanto à aplicação da lei de processo penal no tempo, em sintonia com o que se
dispõe no artigo 5º do Código de Processo Penal: a lei nova não se aplica aos
processos iniciados anteriormente à sua vigência, quando possa resultar, dessa
aplicação, uma limitação dos direitos de defesa do arguido. Todavia, o Tribunal
também tem entendido, como já se fez notar, que a garantia consagrada no n.º 1
do artigo 32º da Constituição, quanto ao recurso, não implica, obrigatoriamente,
um duplo grau de recurso, designadamente perante acórdãos condenatórios
proferidos em recurso pelas relações, confirmativos de decisão da 1ª instância
na qual o arguido foi condenado em pena de prisão não superior a 8 anos.
Deste modo, do aludido artigo 29º da Constituição não é possível retirar uma
proibição absoluta de aplicação imediata de lei 'nova', em matéria de recursos
em processo penal, da qual resulte a referida limitação, impedindo o acesso ao
Supremo Tribunal de Justiça de recursos de acórdãos condenatórios proferidos
pelas relações nas aludidas circunstâncias.
É certo que o aludido princípio constitucional proíbe que da aplicação da lei
nova possa resultar uma inesperada e imprevisível alteração do regime de
recursos, em processos pendentes, que afecte o exercício do direito de defesa do
arguido; mas o certo é que o momento relevante para o exercício do direito de
defesa do arguido, designadamente no que respeita à estratégia processual a
adoptar, coincide com a prolação da sentença condenatória em primeira instância
e a sua notificação ao arguido, pois só então se estabilizam os elementos
essenciais a atender no exercício do aludido direito de defesa. Mostra-se, por
isso, preservado, no essencial, o exercício do direito de defesa do arguido
quanto à oportunidade da estratégia processual a adoptar.
Não pode, por isso, afirmar-se que, a norma constitui uma desproporcionada
limitação das garantias de defesa do arguido, restringindo de forma inadmissível
o seu direito ao recurso e, nessa medida, o direito de acesso à justiça.»
Esta orientação foi confirmada e desenvolvida no Acórdão n.º 551/2009, de
27.10.09, pelo qual se julgou não inconstitucional a norma extraída do n.º 1 e
da alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º, em conjugação com a alínea f) do n.º 1 do
artigo 400.º do Processo Penal, na redacção da Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto,
interpretada no sentido de que não é admissível recurso de acórdão proferido em
recurso pelas relações que confirme decisão de 1.ª instância proferida após a
entrada em vigor da referida lei e que aplique pena de prisão não superior a 8
anos, quando por aplicação do regime vigente à data da instauração do processo
esse recurso seria admissível.
Nesta última decisão afirma-se, além do mais, o seguinte:
«Essa norma elege como critério de determinação da lei aplicável em matéria de
admissibilidade de recurso de acórdão das relações para o Supremo o momento em
que tenha sido proferida a sentença de 1ª instância que seja confirmada pelo
acórdão de que se pretende recorrer. Foi este, aliás, o critério adoptado no
acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/2009, do Supremo Tribunal de Justiça,
publicado no Diário da República, I Série, de 19 de Março de 2009, embora
aplicado a uma situação inversa daquela que agora está em consideração (a
decisão de 1ª instância era anterior à entrada em vigor da Lei n.º 48/2007).
Este critério não pode ser censurado por abrir a porta aos riscos que levam a
estender as consequências do princípio constitucional da legalidade penal a
certas normas de processo penal respeitantes à situação processual do arguido.
Na verdade, só com a sentença fica definida a resposta judicial à pretensão
punitiva do Estado. O direito de recorrer, nos termos da lei, das decisões que
lhe forem desfavoráveis que passa a integrar o estatuto do arguido (alínea i) do
n.º 1 do artigo 61.º do CPP) só se define perante uma concreta decisão que lhe
seja desfavorável. É perante o conteúdo desta que se fixam os elementos
determinantes para a formulação do juízo de interessado sobre o exercício do
direito de recorrer, os pressupostos e o âmbito possível do recurso. Até aí o
direito de recorrer, o âmbito do recurso e a sua extensão possível na hierarquia
dos tribunais constituem uma mera potencialidade no estatuto do sujeito
processual, que se ignora se virá a concretizar-se e em que termos. Perante essa
situação de incógnita – para o arguido, para os restantes sujeitos processuais,
para o poder legislativo –, não se verificam as razões que levam a proibir
soluções legislativas que comportem o risco de um possível arbítrio ou excesso
do poder estatal, diminuindo o legislador (ou gerando objectivamente a suspeita
de diminuir), de forma direccionada e intencional, o nível de protecção da
liberdade e dos direitos fundamentais de defesa dos arguidos em processos
concretos já iniciados.
Por outro lado, a eleição do momento em que é proferida a sentença condenatória
como factor de determinação do regime de admissibilidade dos recursos para o
Supremo acautela suficientemente os direitos de defesa, também na perspectiva de
que o arguido é livre de escolher e adequar a sua estratégia processual aos
meios legais existentes no momento em que exerce determinado direito. Só perante
a sentença o arguido saberá se dela discorda e em que termos pode ou lhe convém
atacá-la. Se a lei vigente nesse momento lhe permitir levar o recurso até ao
Supremo Tribunal, é legítimo que opte por reservar a discussão de algum aspecto
da questão ou a apresentação de determinados argumentos para a fase de recurso
perante o Supremo. Ora, a fixação da extensão admissível dos recursos de acordo
com a lei vigente no momento da sentença de 1ª instância preserva integralmente
essa liberdade e a tutela da confiança no seu exercício, que a escolha da lei
vigente em momento posterior, designadamente o do acórdão da relação, poderia
vulnerar.
Mas só isso pode reclamar-se em nome da preservação dos direitos de defesa, não
sendo legítimo que o arguido confie em que o sistema de recursos vigente no
momento em que o processo é instaurado se mantenha inalterado. Não se concebe a
existência de estratégia processual que venha a ser comprometida pela alteração
do regime de recursos antes de ter sido proferida a decisão que se pretende
atacar, porque só perante esta surge, em concreto, o interesse em recorrer e se
define o seu âmbito possível.»
A fundamentação destes arestos, que subscrevemos na íntegra, é inteiramente
aplicável ao caso em apreço, devendo aqui ser reiterada.
De facto, a interpretação em causa – no sentido de considerar momento
processualmente relevante para aferir dos pressupostos da recorribilidade para o
Supremo Tribunal de Justiça aquele em que foi proferida a sentença condenatória
da 1.ª instância – não atenta contra as garantias de defesa do arguido,
constitucionalmente consagradas, uma vez que estas não envolvem a existência
obrigatória de um duplo grau de recurso e o momento processualmente relevante
para a fixação dos pressupostos do direito ao recurso coincide com a prolação da
sentença condenatória em 1.ª instância.
III − Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f),
do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto, na
medida em que condiciona a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de
Justiça aos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que
confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8
anos.
b) Não julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação do artigo
400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.º
48/2007 de 29 de Agosto, e artigo 5.º, n.º 2, do mesmo Código, interpretada no
sentido de que, em processos iniciados anteriormente à vigência da Lei n.º
48/2007, não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em
recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância, proferida após
a entrada em vigor da referida lei, e apliquem pena de prisão não superior a 8
anos.
c) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco)
unidades de conta.
Lisboa, 15 de Dezembro de 2009
Joaquim de Sousa Ribeiro
João Cura Mariano
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos