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Processo n.º 1019/2008
Plenário
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
(Conselheira Carlos Fernandes Cadilha)
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. A. intentou contra o Instituto de Solidariedade e Segurança Social uma acção
ordinária pedindo que fosse declarado que é titular das prestações por morte de
um beneficiário do Centro Nacional de Pensões com quem vivia em união de facto.
A acção foi julgada improcedente por sentença de primeira instância, em
aplicação do disposto no artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro,
e 3.º do Decreto‑Regulamentar n.º 1/94, de 18 de Janeiro, com fundamento em que
não ficou provada por parte da autora a impossibilidade de obter alimentos dos
seus descendentes ou da herança aberta por óbito do beneficiário com quem vivia
em união de facto.
A decisão foi confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, e, em
recurso de revista, pelo Supremo Tribunal de Justiça, que, quanto à questão de
constitucionalidade suscitada em relação às referidas normas, se louvou na
orientação do Tribunal Constitucional firmada no Acórdão n.º 159/2005.
A recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional e, nas respectivas
alegações, concluiu no sentido de serem julgadas inconstitucionais as normas do
artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro, e 3.º do
Decreto‑Regulamentar n.º 1/94, de 18 de Janeiro, quando interpretadas no sentido
de que o requerente das prestações por morte da segurança social ligado ao
beneficiário falecido pela relação familiar de união de facto, deve, como
pressuposto do direito às correspondentes prestações, alegar e provar, não só a
necessidade de alimentos, como a impossibilidade de os obter das pessoas
enumeradas no elenco do artigo 2009.º do Código Civil, por violação dos
princípio da proporcionalidade, conjugado com o princípio do Estado de direito,
com o direito à protecção da família e às prestações da segurança social, e do
princípio constitucional da igualdade.
O Instituto de Solidariedade e Segurança Social contra-alegou, pronunciando-se
no sentido da improcedência do recurso.
2. Após determinação que o julgamento se fizesse com intervenção do Plenário,
nos termos do disposto no artigo 79.º-A da Lei do Tribunal Constitucional (Lei
n.º 28/82), foram os autos redistribuídos por vencimento do primitivo relator.
II
Fundamentos
3. É mais uma vez colocada ao Tribunal a questão de saber se será
inconstitucional a disciplina constante do nº 1 do artigo 8.º do Decreto-Lei nº
322/90, de 18 de Outubro, e do artigo 3º do Decreto-Regulamentar n.º 1/94, de 18
de Janeiro.
O Decreto-Lei n.º 322/90, que define as condições de protecção dos “familiares”
dos beneficiários do regime geral de segurança social por eventualidade da
morte, concede, precisamente no seu artigo 8.º, direito à pensão de
sobrevivência ao companheiro do beneficiário falecido, que com ele vivesse, em
união de facto, há mais de dois anos. No entanto – e de acordo com um regime que
é substancialmente homólogo ao que vale, também, para os companheiros sobrevivos
dos funcionários ou agentes da Administração Pública ou da Administração Local
ou Regional (artigos 40.º e 41.º do “Estatuto das Pensões de Sobrevivência”,
Decreto-Lei nº 142/73, de 31 de Março, na redacção do Decreto-Lei nº 191-B/79,
de 25 de Junho) – o acesso à pensão de sobrevivência depende de o companheiro do
beneficiário falecido demonstrar que tem direito de obter alimentos da herança
deste, por ter necessidade deles e não os poder obter das pessoas referidas no
artigo 2009.º, nº 1, alíneas a) a d) do Código Civil (cônjuge ou ex-cônjuge,
descendentes, ascendentes ou irmãos). Nos termos do artigo 3º do Decreto
Regulamentar nº 1/94, este direito a alimentos da herança do falecido – que é,
portanto, condição da atribuição da pensão de sobrevivência ao seu companheiro
de facto – deve ser reconhecido por sentença judicial.
Diversa é, no sistema normativo instituído pelo Decreto-Lei nº 322/90, a
situação do cônjuge do beneficiário falecido, que, para aceder à pensão de
sobrevivência, deve apenas provar a sua condição de cônjuge, sem qualquer
requisito adicional relativo à demonstração de carência ou de condições de
recursos económicos. Tal situação parece, aliás, coadunar-se com a própria
natureza que detém, no sistema de segurança social, a pensão de sobrevivência,
enquanto forma de tutela própria do sub-sistema previdencial.
Com efeito, o termo sobrevivência não é aqui denotativo de especiais
condições de carência, que pressupusessem que a correspondente pensão só fosse
atribuída naqueles casos em que se mostrasse necessária para a assistência a
familiares (do beneficiário falecido) destituídos de quaisquer recursos de
existência. De acordo com o artigo 4.º do Decreto-Lei nº 322/90, a finalidade
destas prestações sociais é apenas a de “compensar os familiares do beneficiário
da perda de rendimentos de trabalho determinado pela morte deste.” A lei
presume, portanto, que o beneficiário falecido contribuía, através dos proventos
resultantes do seu trabalho, para a economia do seu agregado familiar; e
pretende que a prestação da pensão – possibilitada pela lógica contributiva do
princípio previdencial – venha a compensar a diminuição de rendimentos daqueles
familiares que, sobrevivendo ao beneficiário, de algum modo dele economicamente
dependiam. Por isso mesmo, entende-se normalmente que a prestação desta pensão
tem natureza substitutiva da prestação de alimentos. O elenco dos familiares
sobrevivos que a ela têm direito, tanto no regime geral de segurança social
quanto no regime próprio do “funcionalismo público”, são justamente aqueles que
viviam, ou que a lei presume que viviam, a “cargo” do trabalhador falecido:
cônjuges, ex-cônjuges, descendentes, ascendentes. Em relação aos ex-cônjuges (ou
aos cônjuges separados judicialmente de pessoas e bens), tal como em relação aos
ascendentes e descendentes maiores de 18 anos, exige a lei que se faça prova da
existência de elos de dependência económica. Mas já não assim quanto ao cônjuge
ou aos descendentes com menores de 18 anos: nestes casos, parte-se do princípio
segundo o qual a morte do beneficiário terá, para os familiares em causa,
acarretado necessariamente uma perda de rendimentos que a pensão de
sobrevivência visa compensar.
Do mesmo modo se não passam as coisas relativamente ao companheiro
sobrevivo do beneficiário falecido, nos casos de união de facto. Aí, e como já
se viu, requer o legislador, como condição da atribuição da pensão, que se
reconheça em sentença judicial que o “unido de facto” detém direito a receber
alimentos da herança do falecido, por deles necessitar e por não os poder obter
das pessoas referidas no artigo 2009.º, nº 1, alíneas a) a d) do Código Civil.
Saber se este requisito adicional (imposto pelo legislador para as situações de
união de facto, e ausente do regime de atribuição das pensões ao cônjuge
sobrevivo) merece, ou não censura constitucional, eis a questão colocada pelo
presente recurso. Sobre ela tem o Tribunal proferido jurisprudência divergente.
4. No Acórdão nº 195/2003, em que estava em causa justamente a norma do artigo
8.º do Decreto-Lei nº 322/90, o Tribunal julgou, por maioria, que não era
inconstitucional o regime que “faz[ia] depender a atribuição da pensão de
sobrevivência por morte do beneficiário da segurança social, a quem com ele
convivia em união de facto, de todos os requisitos previstos no nº 1 do artigo
2020.º do Código Civil.” Fê-lo, fundamentalmente, por ter entendido que, sendo à
partida diferentes as situações de união de facto e de casamento, o legislador
ordinário não estaria, no caso, impedido constitucionalmente de atribuir a cada
uma dessas situações diferentes regimes jurídicos, não se mostrando também
desproporcionais as consequências decorrentes desses diferentes regimes, e
aplicáveis a cada um dos grupos de pessoas em questão.
Mas já no Acórdão nº 88/04, em que estava em causa o regime substancialmente
homólogo aplicável apenas ao funcionalismo público (artigos 40.ºe 41.º do
Estatuto de Pensões de Sobrevivência do Funcionalismo Público), entendeu o
Tribunal, também por maioria, que era inconstitucional “por violação do
princípio da proporcionalidade, tal como resulta das disposições conjugadas dos
artigos 2.º, 18.º, nº2, 36.º, nº 1, e 63.º, nºs 1 e 3, todos da Constituição da
República Portuguesa, a norma que se extrai dos artigos 40.º, nº1 e 41.º, nº 2,
do Estatuto…., quando interpretada no sentido de que a atribuição de pensão de
sobrevivência por morte do beneficiário da Caixa Geral de Aposentações, a quem
com ele convivia em união de facto, depende também da prova do direito do
companheiro sobrevivo a receber alimentos da herança do companheiro falecido,
direito esse a ser invocado e reclamado na herança do falecido, com o prévio
reconhecimento da impossibilidade da sua obtenção nos termos das alíneas a) a d)
do art. 2009.º do Código Civil.” O Tribunal manteve aqui o entendimento segundo
o qual da distinção constitucional entre o “direito a constituir família” e o
“direito a contrair casamento”, decorrente do nº 1 do artigo 36.º da CRP, bem
como da protecção devida à família “como elemento fundamental da sociedade”
(artigo 67.º, nº1), se não poderia retirar qualquer injunção geral, dirigida ao
legislador ordinário, de “proteger a união de facto estável e duradoura em
termos rigorosamente idênticos aos da família baseada no casamento” (§ 10.3 da
fundamentação). Acrescentou, no entanto e fundamentalmente, que, não sendo o
parâmetro da igualdade o único aplicável à resposta a dar à questão de
constitucionalidade, deveria ela ser resolvida em termos negativos, desde logo
por violação do princípio da proporcionalidade, em conjugação com o direito de
cada um à segurança social decorrente dos nºs 1 e 3 do artigo 63.º da CRP.
Recordou-se então que o princípio da proporcionalidade, enquanto princípio
decorrente da ideia mais vasta de Estado de direito (artigo 2.º da CRP), podia
operar como limite negativo das acções do legislador para além dos casos
previstos na parte final do nº 2 do artigo 18º, não sendo portanto só aplicável
a leis restritivas de direitos, liberdades e garantias; e que, surgindo o
direito à pensão de sobrevivência, reconhecido por lei, como corolário ao
direito à segurança social previsto no artigo 63.º, da Constituição – mais do
que como consequência da necessidade de protecção da família, nos termos do seu
artigo 67.º -, as exigências previstas pelo regime jurídico ordinário para a
concessão da atribuição da pensão ao companheiro sobrevivo, unido de facto, do
beneficiário falecido seriam de tal modo gravosas que não passariam nenhum dos
“testes” ínsitos no princípio da proibição do excesso – nem o “teste” da
adequação, nem o da necessidade, nem o da proporcionalidade em sentido estrito.
Entendimento contrário veio a ser adoptado pelo Acórdão nº 159/2005, tirado em
Secção e incidente sobre as mesmas normas constantes dos artigos 40º e 41º do
Estatuto das Pensões de Sobrevivência do Funcionalismo Público, e corroborado
posteriormente em Plenário no Acórdão nº 614/2005. Nestas duas últimas decisões,
subscritas sempre por maioria, o Tribunal reiterou basicamente os argumentos que
havia já aduzido no Acórdão nº 195/2003, a propósito das normas constantes do
artigo 8º do Decreto-Lei nº 32/90, relativo ao regime geral da segurança social.
Fazendo-se eco de todas estas divergências jurisprudenciais, vem agora o
recorrente sustentar de novo, e ainda a propósito das mesmas normas reportadas
ao regime geral da segurança social, a tese da inconstitucionalidade. Sustenta
para tanto que as normas sob juízo lesam o princípio da proporcionalidade,
enquanto princípio decorrente do princípio do Estado de direito; os direitos à
segurança social e à protecção da família inscritos, respectivamente, nos
artigos 63.º e 67.º da Constituição; e, finalmente, os princípio da igualdade e
da proibição de discriminação, contidos no artigo 13.º da CRP.
5. O princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, enquanto
princípio vinculativo das acções dos poderes públicos, tem referência expressa
no texto constitucional apenas em dois lugares: na parte final do nº 2 do artigo
18.º da Constituição, a propósito dos limites que devem ser observados pelas
leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, e no nº 2 do artigo 266.º,
a propósito dos princípios fundamentais que regem a actuação da Administração
Pública. No entanto, e como o tem afirmado o Tribunal (vejam-se, quanto a este
ponto e por exemplo, os Acórdãos nºs 205/2000 e 491/2002, disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt), o princípio decorre antes do mais das próprias
exigências do Estado de direito a que se refere o artigo 2º da Constituição, por
ser consequência dos valores de segurança nele inscritos.
Tendo assim a proibição do excesso uma sede material que se revela bem mais
vasta do que aquela que é coberta pelas suas referências textuais explícitas,
natural é que ela possa ser invocada como parâmetro constitucional em outras
situações, que não apenas as referentes, nomeadamente, às leis restritivas de
direitos, liberdades e garantias. É que o princípio vale, não apenas como limite
constitucional das acções do legislador, mas como limite das actuações de todos
os poderes públicos; e, quanto à função legislativa, não vinculará apenas aquela
que se cifrar em instituição de restrições aos direitos, liberdades e garantias.
Como os direitos fundamentais desempenham, no nosso ordenamento jurídico, também
uma importante função “valorativa” ou objectiva, por certo que o princípio
poderá ser invocado como instrumento de ponderação sempre que estiverem em causa
“valores” jusfundamentais que entre si, objectivamente, conflituem. Ponto é, no
entanto, que se tenha demonstrado previamente que, ainda nessas situações, o
legislador, não agindo no âmbito da sua liberdade de conformação política, se
encontrava constitucionalmente vinculado a decidir de um certo modo, e não de
outro, o “conflito” entre os bens ou valores em colisão.
Sustenta o recorrente que tal vinculação ocorre, no caso em juízo, por se
reportar desde logo a proibição do excesso, enquanto princípio inscrito no
artigo 2.º, à lesão do direito fundamental à segurança social, consagrado nos
nºs 1 e 3 do artigo 63.ºda CRP.
Não se nega que o direito à segurança social, embora inscrito sistematicamente
no grupo dos direitos e deveres económicos, sociais e culturais, apresente
dimensões imperativas que, impondo deveres certos ao legislador ordinário,
sejam, por parte deste, indisponíveis. As afirmações contidas no artigo 63.º não
se confundem com a mera enunciação de indicações genéricas destinadas a guiar,
sem força imediatamente vinculativa, as acções legislativas; mais do que isso,
nelas se contêm elementos essenciais do sistema que a conformação legislativa
não pode deixar de respeitar. Tais elementos configuram portanto o “núcleo
essencial” do direito que não é modificável por acção do legislador. É assim que
este último deve, desde logo, instituir um sistema público de segurança social
que, para além de deter as características estruturais (nomeadamente,
universalidade e descentralização) que são enunciadas nos nºs 1 e 2, integre
subsistemas previdenciais e assistenciais destinados a cumprir as finalidades
identificadas no nº 3. Para além disso – e como se disse, por exemplo, no
Acórdão nº 509/02 – o subsistema assistencial a que se reporta o nº 3 deve
pressupor a solidariedade inteira da comunidade, de modo a que esta não tolere
que no seu seio haja pessoas privadas do um mínimo vital, ou de um mínimo
necessário para uma existência condigna. No âmbito deste dever do legislador, de
não vanificar a tutela predisposta pela Constituição quanto ao núcleo essencial
do direito à segurança social, poderá contar-se ainda a proibição de atribuição
de benefícios que venham a revelar-se insignificantes ou irrisórios, por serem
demasiado gravosas as condições impostas pela lei ao seu acesso. Mas, fora
destes elementos, o legislador democrático dispõe de um poder próprio de
conformação para estabelecer a forma, a medida e o grau em que concretiza as
imposições constitucionais fixadas no artigo 63.º (assim, José Carlos Vieira de
Andrade, “O ‘direito ao mínimo de existência condigna’ como direito fundamental
a prestações estaduais positivas – uma decisão singular do Tribunal
Constitucional”, em Jurisprudência Constitucional, nº 1, p. 23).
Ao exigir que, nos casos de união de facto, o companheiro sobrevivo do
beneficiário falecido só possa aceder à pensão de sobrevivência se cumprir os
requisitos exigidos pelo nº 1 do artigo 2020º do Código Civil (demonstrando que
tem direito a receber alimentos da herança do falecido, por ter necessidade
deles e por os não poder obter das pessoas mencionadas nas alíneas a) a d) do
artigo 2009º do mesmo Código), o nº 1 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 322/90 não
está a contrariar nenhum daqueles elementos imperativos que, contidos no artigo
63.º da Constituição, integram o “núcleo essencial”, imodificável pelo
legislador, do direito de cada um à segurança social. A medida legislativa não é
contrária aos princípios estruturais do sistema; faz parte, como já se viu, do
sub-sistema previdencial; e, atenta a função que a pensão de sobrevivência
cumpre no âmbito desse mesmo sub-sistema – a de compensar o “familiar”
sobrevivente, “a cargo” do beneficiário falecido , da perda de rendimentos que a
morte deste último lhe terá trazido – as condições fixadas para a ela aceder não
se mostram de tal modo gravosas que tornem irrisória ou insignificante o
benefício concedido. A tudo isto acresce o facto de, como se disse no Acórdão nº
134/2007, se não tratar este do “único acesso possível pelo companheiro
sobrevivo ao sistema de protecção da segurança social: ainda que negado o acesso
à pensão de sobrevivência, este conservará sempre o “seu” direito à segurança
social, direito esse que poderá efectivar sempre e em última instância através
do acesso a prestações pelo regime não contributivo [da segurança social”].
Assim sendo, o legislador agiu aqui – e no que às imposições constitucionais do
artigo 63.º diz respeito – no âmbito da sua liberdade conformadora.
6. Tal liberdade conformadora não é coarctada pelo facto de a Constituição, no
artigo 67.º, colocar a família sob protecção da sociedade e do Estado.
É certo que a família que, nos termos do preceito constitucional, merece a
protecção do Estado, não é só aquela que se funda no matrimónio; é também aquela
outra que pressupõe uma comunidade auto-regulada de afectos, vivida estável e
duradouramente à margem da pluralidade de direitos e deveres que, nos termos da
lei civil, unem os cônjuges por força da celebração do casamento. O direito a
escolher viver em tal comunidade de afectos, modelada por vontade própria à
margem dos efeitos civis do casamento, tem por certo assento constitucional –
seja através da disjunção que o nº 1 do artigo 36.º da CRP estabelece entre o
“direito de constituir família” e o “direito de contrair casamento”, seja
através da cláusula de liberdade geral de actuação que vai inscrita no direito
ao desenvolvimento da personalidade, contido no nº 1 do artigo 26.º. E, tendo
tal direito (o de escolher viver em união de facto) assento constitucional, não
se vê como pode o mandato constitucional de protecção da família não incluir,
ainda, um dever de tutela das uniões estáveis e duradouras, análogas às dos
cônjuges, mas que se fundem, apenas, na dedicação recíproca dos seus membros.
Quer isto dizer que do artigo 67.º da Constituição – e, também, do nº 1 do seu
artigo 36.º, ou do nº 1 do seu artigo 26.º – decorrerá um dever do legislador de
não coarctar ou obstaculizar, de forma desrazoável, a liberdade de formação de
uniões de facto. Por isso mesmo, em determinadas circunstâncias, as diferenças
entre os regimes normativos aplicáveis aos cônjuges e os aplicáveis, apenas, aos
unidos de facto poderão merecer censura constitucional, se se demonstrar que
tais diferenças são, em si mesmas, produtoras de coacções, não justificadas, da
“liberdade de não casar”, ou se se demonstrar que elas ofendem outras normas ou
princípios constitucionais. Foi exactamente isso que o Tribunal concluiu nos
casos dos Acórdãos nºs 359/91 e 286/99, em que se formularam juízos de
inconstitucionalidade por violação da proibição de discriminação entre filhos
nascidos do casamento e filhos nascidos fora do casamento (artigo 36.º, nº 4 da
CRP); ou no caso do Acórdão nº 275/2002, em que se julgou inconstitucional, por
violação do artigo 36.º, nº 1 da Constituição, conjugado com o princípio da
proporcionalidade, a norma do nº 2 do artigo 496.º do Código Civil, na parte em
que, em caso de morte da vítima de crime doloso, excluía a atribuição de um
direito de “indemnização por danos não patrimoniais” pessoalmente sofridos pela
pessoa que convivia com a vítima em situação de união de facto, estável e
duradoura, em condições análogas às dos cônjuges.
Porém, e fora destas circunstâncias – em que se demonstra que a diferença de
regimes entre casamento e união de facto é produtora de uma desrazoável
restrição da liberdade de escolha de uma vida em comum more uxorio, ou é
autonomamente ofensiva de outros princípios constitucionais – a verdade é que,
do mandato de protecção da família, contido no artigo 67.º da CRP, se não pode
extrair um dever dos poderes públicos de dispensar igual amparo a todo o género
de unidades familiares, indiferenciadamente e sem matizes. Também neste campo
mantém, portanto, o legislador uma amplíssima margem de conformação, que apenas
tem como limite externo o princípio da igualdade e a proibição de discriminação
fixados no artigo 13º da Constituição.
7. Ora, como o Tribunal já disse (nos Acórdãos nºs 195/2003,
159/2005 e 614/2005, atrás referidos, e também, quanto a regime normativo
diverso do agora em juízo, no Acórdão nº 134/2007), a diferença estabelecida
pelo direito da segurança social entre o regime de acesso à pensão de
sobrevivência por parte do cônjuge sobrevivo de beneficiário falecido e o regime
de acesso à mesma pensão por parte do unido de facto não lesa, por si só, nem as
exigências decorrentes do princípio geral da igualdade (nº 1 do artigo 13.º da
CRP), nem as exigências decorrentes da proibição de discriminação, contidas no
nº 2 do mesmo artigo.
A diferença não lesa, por si só, as exigências decorrentes do
princípio geral da igualdade. Como já se viu (supra, ponto 3), a previsão, por
lei, deste tipo de prestação social prossegue, no sub-sistema contributivo e
previdencial de segurança, uma finalidade bem precisa: a de compensar aqueles
familiares que vivendo, real ou presumidamente, “a cargo” do beneficiário
falecido, acabam por sofrer com a sua morte acentuadas e inevitáveis perdas de
rendimentos. Em relação aos cônjuges (tal como em relação aos descendentes
menores de 18 anos) a lei presumiu, sem mais, que eram reais e efectivos os elos
de dependência económica que pressupunham a necessidade de compensação. Fê-lo
tendo em conta os deveres dos cônjuges previstos pela lei civil, entre os quais
se contam os deveres de assistência (artigo 1675.º do Código Civil) e o dever de
contribuir para os encargos familiares (artigo 1676.º) Em relação à união de
facto o legislador não podia naturalmente partir da mesma presunção; por isso,
exigiu um requisito adicional, tendente à obtenção da prova da existência do elo
de dependência económica que, no desenho do sistema normativo que concebeu, é
pressuposto da concessão da prestação social.
Por tudo quanto já se disse, é fácil concluir que não é este o único desenho
constitucionalmente possível: outra concepção de sistema poderá vir a ser
adoptada, dado o âmbito da liberdade que, neste domínio, é conferida pela
Constituição ao legislador ordinário. Contudo – e este é o ponto essencial a
salientar – no contexto do sistema hoje vigente a diferença instituída pela lei
(entre casados e unidos de facto) não é arbitrária: tem a justificá-la um
fundamento racionalmente inteligível e constitucionalmente legítimo; e baseia-se
num critério que se afigura relevante para a prossecução das finalidades
prosseguidas pelo sistema normativo em juízo, com ele se articulando, também, em
termos racionais e inteligíveis. Tanto basta para que a medida legislativa passe
o “teste” geral da igualdade, exigido no nº 1 do artigo 13.º.
Por outro lado, a medida não é discriminatória. As consequências que dela
decorrem implicam, é certo, diferenças de tratamento entre os cônjuges e os
unidos de facto que não deixam de colocar estes últimos em situação relativa de
desvantagem face aos primeiros. No entanto, uma tal desvantagem relativa não
pode ser configurada como discriminação que, nos termos do nº 2 do artigo 13.º,
seja constitucionalmente proibida. Para além de, como acabámos de ver, ser a
diferença entre os dois regimes ainda explicável por razões inteligíveis,
congruentes com os fins do sistema que o legislador ordinário legitimamente
escolheu, a verdade é que ela se não funda naquele tipo de características
pessoais ou de critérios subjectivos que, pela sua estreita relação com a
dignidade das pessoas, a Constituição entendeu ser à partida insusceptível de
justificar, em qualquer caso, a existência de regimes jurídicos distintos. A
tudo isto acresce o que já se disse no Acórdão nº 195/2003: “(…) no presente
caso, não se está perante uma exclusão de plano, e em abstracto, do direito do
convivente, por contraposição ao direito do cônjuge, e antes a norma em questão
(…) o artigo 8.º, nº 1, do Decreto-Lei nº 322/90, de 18 de Outubro, visou
justamente, pelo contrário, conceder também protecção, pela extensão de
prestações na eventualidade da morte dos beneficiários do regime geral de
segurança social, ‘às pessoas que se encontrem na situação prevista no nº 1 do
artigo 2020.º do Código Civil’ [o que] representa, ainda, a prova, justamente,
da necessidade de protecção da pessoa em causa, por não a poder obter dos seus
familiares directos.”.
III
Decisão
Assim, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
a) Não julgar inconstitucional as normas do nº 1 do artigo 8.º do
Decreto-Lei nº 322/90 e do artigo 3.º do Decreto-Regulamentar nº1/94, de 18 de
Janeiro, quando interpretadas no sentido segundo o qual o direito à atribuição
da pensão de sobrevivência por morte do beneficiário, a quem com ele convivia em
união de facto, depende de o interessado estar nas condições do artigo 2020.º do
Código Civil, isto é, ter direito a obter alimentos da herança, por não os poder
obter das pessoas referidas no artigo 2009.º, nº 1, alíneas a) a d) do mesmo
Código.
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa da justiça em 25 unidades de conta,
sem prejuízo do benefício de apoio judiciário concedido.
Lisboa, 15 de Dezembro de 2009
Maria Lúcia Amaral
José Borges Soeiro
João Cura Mariano
Maria João Antunes
Benjamim Rodrigues
Carlos Pamplona de Oliveira
Vítor Gomes (Vencido. Julgaria
inconstitucional a norma em causa, pelas razões do acórdão n.º 88/2004, que
considero aplicáveis).
Carlos Fernandes Cadilha (vencido
pelos fundamentos constantes do acórdão n.º 88/2004)
Ana Maria Guerra Martins (Vencida,
no essencial, pelos fundamentos constantes do acórdão n.º 88/2004).
Gil Galvão (Vencido, no
essencial, pelas razões constantes do acórdão N.º 88/2004, de que fui relator)
Joaquim de Sousa Ribeiro
(vencido, pelas razões constantes da declaração anexa)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
O ponto de partida para a apreciação da questão de constitucionalidade suscitada
nos presentes autos deve ser o da determinação do estatuto constitucional da
união de facto.
Em tal matéria, é total a minha concordância com o acórdão, quando sustenta que
«tendo tal direito (o de escolher viver em união de facto) assento
constitucional, não se vê como pode o mandato constitucional de protecção da
família não incluir, ainda, um dever de tutela das uniões estáveis e duradouras,
análogas às dos cônjuges, mas que se fundem, apenas, na dedicação recíproca dos
seus membros.»
O reconhecimento constitucional da união de facto traduz-se, pois, numa garantia
de instituto, que coenvolve a garantia de um mínimo de protecção, através do
direito ordinário, da família assim constituída e dos membros que a integram.
De forma que a questão de constitucionalidade posta pode ser equacionada como a
de saber se as condições exigidas pelos artigos 8.º do Decreto-Lei n.º 332/90,
de 18 de Outubro, e 3.º do Decreto-Regulamentar n.º 1/94, de 18 de Janeiro,
traduzem ou não um défice de tutela do membro sobrevivo da união de facto
constitucionalmente desconforme.
A resposta a uma tal questão deve assumir como referencial normativo da
ponderação o regime em vigor para os que constituíram família através do
casamento. Não, evidentemente, porque a união de facto postule um grau de tutela
idêntico ao de que goza o casamento. Trata-se de uma situação familiar distinta
da que tem origem matrimonial, em que os sujeitos em relação se colocam por
opção livre (desde que esteja em causa uma união heterossexual), pelo que o
legislador ordinário está legitimado a consagrar tratamentos diferenciados das
duas situações. Mas o regime do casamento releva como termo comparativo, para
ajuizar se o legislador, ao estabelecer um diferencial de disciplinas jurídicas,
se conteve dentro da medida da diferença, em respeito pelos princípios da
igualdade e da proporcionalidade.
É por isso que nada adianta, em termos de percurso argumentativamente
fundamentador, vir lembrar, como faz o acórdão, que o legislador, ao estabelecer
que o companheiro sobrevivo do beneficiário só pode aceder à pensão de
sobrevivência se demonstrar que tem direito a receber alimentos da herança do
falecido, por ter necessidade deles e por não os poder obter das pessoas
mencionadas nas alíneas a) a d) do artigo 2009.º do Código Civil, «não está a
contrariar nenhum daqueles elementos imperativos que, contidos no artigo 63.º da
Constituição, integram o “núcleo essencial”, imodificável pelo legislador, do
direito de cada um à segurança social». A questão não é essa. O que importa
saber é se, tendo o legislador consagrado o direito do cônjuge sobrevivo à
pensão de sobrevivência, sem requisitos adicionais atinentes a uma situação de
carência, os pode estabelecer, com o alcance acima referido, quando está em
causa uma união de facto. O juízo a emitir é, por natureza, um juízo
comparativo, em termos relativos.
Para esse juízo, há que sublinhar, em primeiro lugar, que o direito a uma pensão
de sobrevivência se integra destacadamente na “zona de protecção” da união de
facto, na área de incidência privilegiada das medidas de tutela. A pensão de
sobrevivência é um direito em face de terceiros, coloca-se no domínio das
relações externas, digamos assim, e não no do relacionamento entre os unidos de
facto. Aqui, no plano das “relações internas”, atendendo à opção feita pelos
próprios de não se vincularem a formas de conduta convivial, é que se justifica,
à partida, o retraimento em tutelar através do reconhecimento de direitos de um,
já que tal se vem necessariamente a traduzir na imposição de deveres ao outro.
Ao invés, a tutela directa de qualquer dos membros da união de facto, através da
concessão de direitos perante sujeitos exteriores à relação, em nada contende
com a natureza livre desta. Pelo contrário, uma excessiva e injustificada
restrição desses direitos é que pode actuar como uma “constrição” no sentido de
uma, de outro modo indesejada, união matrimonial.
O direito à pensão de alimentos, pelas suas específicas fonte, natureza e
finalidade, é, à partida, um fortíssimo candidato positivo a integrar essa
potencial zona de protecção da união de facto.
A teleologia própria da pensão de sobrevivência vem apontada no artigo 4.º do
Decreto-Lei n.º 322/90, como sendo a de “compensar os familiares do beneficiário
da perda de rendimentos de trabalho determinada pela morte deste”.
Esta finalidade é traduzida no acórdão como sendo a de compensar os familiares
em situação de “dependência económica” do falecido, por viverem “a cargo” deste.
Indevidamente, a meu ver. O legislador, ao traçar aquele objectivo, basta-se com
a ideia de que a perda de rendimentos de trabalho auferidos pelo falecido tem
uma incidência patrimonial negativa na esfera do sobrevivo, afecta a
consistência dos meios anteriormente disponíveis pela comunidade familiar, no
seu conjunto.
Ora, recaindo sobre o legislador ordinário “o dever de não desproteger, sem
justificação razoável, a família que se não fundar no casamento”, como o
Tribunal afirmou no Acórdão n.º 275/2002, uma pronúncia no sentido da não
cobertura da união de facto por essa finalidade (e o correspondente regime)
postula a satisfação de um ónus argumentativo, com indicação de fundamentos
sólidos contrários a uma similitude de disciplinas jurídicas.
Procurando cumprir esses ónus, o Acórdão aponta, como elemento diferenciador das
duas situações, os deveres dos cônjuges de assistência e de contribuição para os
encargos familiares, deveres inexistentes na esfera da união de facto. Como tal,
deixaria de ter cabimento, nesta esfera, a presunção de partilha de recursos,
pressuposto indispensável para que se possa imputar à morte de um a presumida
perda de rendimentos do outro, que justifica a pensão de sobrevivência.
Ainda que recorrente, o argumento não convence. A não vinculação jurídica dos
parceiros de uma união de facto a formas de comportamento recíproco é um dado,
um elemento essencial da configuração do instituto, sempre presente em todas as
suas dimensões operativas. Ela não pode, pois, ser invocada para, sem mais e de
plano, afastar instrumentos de tutela da situação conjugal, com base na
inexistência de um estatuto vinculativo. Tal importaria a denegação, pura e
simples, de qualquer protecção, não obstante ela ser intencionada por um
legislador constituinte perfeitamente consciente daquela diferença específica da
união de facto.
O que releva é que, embora não estando sujeitos a deveres nesse sentido, os
unidos de facto adoptaram espontaneamente um modo de relacionamento que os faz
cair numa situação “análoga à dos cônjuges”. Analogia que não se verifica apenas
no plano sexual, mas se estende a todas aquelas esferas (ai compreendida a
patrimonial) que são denotadas quando a relação, tanto a conjugal como a de
união de facto, é qualificada como de “vida em comum”. A união de facto não é
uma pura e imaterializada “comunidade de afecto”. Ela corporiza-se em laços
reais entretecidos por uma constante e duradoura entreajuda e comunhão de
interesses, sem as quais não há união. O ser esta de facto não a diferencia, no
plano da realidade relacional, de uma união juridicamente vinculada, pelo
casamento. Daí que, estando em vigor à data da morte do beneficiário uma relação
com um conteúdo material análogo ao da relação conjugal, nada justifica afastar,
para a união de facto, a presunção de perda de rendimentos afirmada, quanto ao
casamento. Para este efeito, não importa o que era devido, mas sim o que era
efectivamente praticado. E não pode, com base na inexigibilidade, ao parceiro em
união, de prestações contributivas (que, presuntivamente, estavam a ser por ele
efectivamente realizadas), afirmar-se, sem mais, idêntica inexigibilidade (ou
uma exigibilidade em condições muito restritivas) perante terceiros. Tal
operaria uma indevida transposição de planos, sem ter em conta a especificidade
de cada um.
Mas, se dúvidas houvesse quanto à não justificação da denegação ao membro
sobrevivo de uma união de facto de pensão de sobrevivência, em condições
análogas à sua concessão ao cônjuge, elas seriam desfeitas pela consideração da
génese e da natureza desse direito.
Trata-se de um direito integrado no subsistema contributivo da segurança social,
o que significa que ele decorre, em parte não despicienda, de deduções aos
rendimentos de trabalho do titular inscrito. A pensão de sobrevivência é uma
contrapartida de prestações efectuadas pelo beneficiário, é ainda, sob as vestes
de um seguro social, uma componente do crédito adquirido pelo trabalhador com o
cumprimento da actividade laboral a que esteve vinculado.
Ora, a esta posição creditória é de reconhecer a força jurídica do direito de
propriedade privada, nos termos amplos em que este direito é concebido, em sede
constitucional. A pensão de sobrevivência constitui uma situação de conteúdo
patrimonial coberta pela garantia constitucional da propriedade privada, como é
consensualmente admitido na doutrina e na jurisprudência germânicas – cfr., por
todos, OTTO DEPENHAUER, anotação ao art. 14.º da GG, in MANGOLDT/KLEIN/STARCK,
Das Bonner Grundgesetz. Kommentar, München, 1999, 1668 s., e PAPIER, anotação ao
art. 14.º da GG, in MAUNZ/DÜRIG, Grundgesetz. Kommentar, München, 2002, 86 s.
Não se descortina justificação para que um direito desta natureza seja
fortemente restringido, com base unicamente na forma pela qual o sujeito titular
dos rendimentos à custa dos quais ele se formou constituiu família. Na verdade,
a tese que fez vencimento conduz a que prestações contributivas idênticas possam
ter, para este efeito, contrapartidas muito distintas, com fundamento numa
conduta do trabalhador em nada relacionada com o domínio laboral, conduta não só
legítima como reconhecida digna de tutela enquanto modo de criação de uma
família. E não pode olvidar-se que a atribuição de uma pensão ao companheiro do
trabalhador cuja actividade gerou a sua aquisição é ainda uma forma de
retribuição dessa actividade, representa ainda um benefício de que ele próprio
goza, desde logo pela desoneração de eventuais iniciativas aforradoras (com o
concomitante decréscimo de rendimento disponível), com vista a assegurar, por
vias privadas, a sobrevivência do parceiro da união de facto.
É certo que não estamos perante a denegação, pura e simples, da pensão de
sobrevivência, mas do seu condicionamento à verificação de pressupostos
específicos, não exigidos quando o sobrevivo é o cônjuge. Simplesmente, esses
pressupostos são tão apertados que se traduzem numa muito significativa
restrição de exercício, que contende com o princípio da proporcionalidade. Mais
ainda. Ela importa uma verdadeira mutação de natureza, transformando uma posição
que, para o cônjuge, representa um firme direito jurídico-público, perante o
Instituto de Solidariedade e Segurança Social, numa pretensão de cunho
assistencialista, de carácter subsidiário, dependente da prévia invocação e
prova de uma situação de necessidade, de satisfação inviável por um património
privado – pretensão a exercitar, aliás, por forma pouco condizente com a
preservação da coesão da família que, enquanto instituto, e independentemente da
sua forma de criação, é objecto directo da tutela constitucional (artigo 67.º da
CRP).
É, decisivamente, na medida em que contraria a natureza própria do específico
direito em causa que o regime objecto de recurso não se pode abonar numa
justificação constitucionalmente validante da disparidade de tratamento da união
de facto, que nele se exprime. Pronunciei-me, nessa convicção, pela sua
inconstitucionalidade.
Joaquim de Sousa Ribeiro