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Processo: n.º 490/92.
 Recorrente: Ministério Público.
 Relator: Conselheiro Vítor Nunes de Almeida.
 
  
 Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
 
  
 
  
 I — Relatório
 
  
 
 1 — O representante do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca 
 de Loures deduziu acusação, em processo comum e com intervenção do tribunal 
 colectivo, contra a firma «A., L.da», e contra B. alegando os seguintes 
 fundamentos de facto:
 
  
 
 —  No dia 8 de Novembro de 1991, uma brigada da Direcção-Geral de Inspecção 
 Económica, em acção de fiscalização levada a efeito nas instalações de fabrico e 
 de armazenagem de matérias primas e produtos acabados da «Confeitaria C., L.da», 
 deparou aí com os seguintes géneros alimentares que se destinavam a consumo 
 público: 60 000 kgs de polpa de marmelo; 2500 kgs de polpa de pêssego; 2460 kgs 
 de polpa de goiaba; 26 500 kgs de abóbora de salmoura; 38 800 kgs de fruta 
 diversa em calda; 540 kgs de maçã em calda; 2700 kgs de casca de laranja em 
 calda; 60 000 kgs de cereja em ácido sulfuroso; 250 kgs de tomate e castanha 
 
 (doce); 4550 kgs de batatada; 316 kgs de ananás em rodelas e 504 kgs de 
 marmelada e goiabada já confeccionada.
 
 —  Tais produtos foram submetidos a exame directo e microscópico, constando os 
 resultados de tais exames das alíneas a) a x) da mesma acusação, tendo-se 
 concluído que os produtos referidos não se encontravam num estado normal, 
 apresentando-se corruptos ou avariados, uns em situação de criar perigo para a 
 vida ou integridade física alheia e outros não susceptíveis de prejudicar a 
 saúde de eventuais consumidores;
 
 —  Os arguidos não fizeram qualquer comunicação a entidade fiscal, policial ou 
 administrativa (artigo 26.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro), não 
 existindo qualquer indicativo, sinal exterior, separação ou diferenciação ou 
 escrito elucidativo de como os produtos se destinavam a troca, devolução ou 
 inutilização;
 
 —  A quantidade total dos produtos inutilizados em consequência do seu estado 
 anómalo é de 18 903 kgs, no valor de 1 352 000$00 esc. (um milhão trezentos e 
 cinquenta e dois mil escudos);
 
 —  As barricas de plástico que continham matérias primas tinham colados rótulos 
 idênticos ao constante a fls. 61, indicando a data de 5 de Março de 1991, iodo 
 lime, produto irritante para os olhos, e ao constante de fls. 62, apelando à 
 manutenção hermética fechada;
 
 —  Na sequência da acção de fiscalização, a Administração Regional de Saúde de 
 Lisboa ordenou a suspensão imediata de toda e laboração pelo período de 10 dias, 
 ordenando a adopção de medidas de higiene no estabelecimento e equipamento que 
 garantissem a salubridade dos géneros alimentícios;
 
 —  A primeira arguida é uma sociedade por quotas com o capital social de trinta 
 milhões de escudos;
 
 —  O arguido é representante legal da primeira arguida, sendo responsável pelo 
 movimento de fabrico e comércio realizado nas instalações da mesma.
 
  
 Alegando que o arguido agiu voluntária, livre e conscientemente, pois «embora 
 tivesse perfeito conhecimento das condições em que se encontravam os referidos 
 produtos, das condições higio-sanitárias a que os mesmos se encontravam expostos 
 no estabelecimento, do tempo de permanência e exposição dos mesmos nas 
 instalações, de que as barricas de plástico apresentavam colados rótulos de 
 produtos químicos e, bem assim, de que os produtos alimentares se encontravam 
 impróprios para o consumo, criando perigo, uns, e não criando perigo, outros, 
 para a saúde de eventuais consumidores, não se absteve de os deter e manter 
 naquelas condições e instalações para serem lançados no consumo público, com 
 plena consciência de que tal conduta era proibida por lei».
 O Ministério Público incriminou, em consequência, o arguido B. pela prática, em 
 autoria material, concurso real e sob a forma consumada, pela prática dos 
 seguintes crimes:
 
  
 
 —  três crimes de corrupção de substâncias alimentares previstos e punidos no 
 artigo 273.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal;
 
 —  dois crimes de corrupção de substâncias alimentares, previstos e punidos no 
 artigo 273.º, n.º 3, do Código Penal;
 
 —  dois crimes contra a economia, previstos e punidos pelo artigo 24.º, n.º 1, 
 alínea b), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro;
 
 —  dezoito crimes contra a economia, previstos e punidos pelo artigo 24.º, n.º 
 
 1, alínea c), do mesmo diploma legal.
 
  
 
 2 — O juiz da comarca de Loures, por despacho de 23 de Junho de 1992, decidiu 
 não receber a acusação na parte relativa à firma «A., L.da», invocando para 
 tanto a inconstitucionalidade do artigo 3.º, do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de 
 Janeiro, que, na medida em que consagra a responsabilidade criminal das pessoas 
 colectivas, violaria o artigo 12.º, n.º 2, da Constituição.
 Foram os seguintes os fundamentos aduzidos para a recusa de aplicação, com base 
 na sua inconstitucionalidade, do n.º 1 do artigo 3.º referido:
 
  
 Pode uma pessoa colectiva, uma sociedade comercial, por exemplo, ser 
 responsabilizada criminalmente?
 
 É conhecido o brocardo societas delinquere non potest — a sociedade não pode 
 delinquir.
 Tradicionalmente, a responsabilidade criminal tem sido apanágio da pessoa 
 singular.
 Não obstante isso, temos lei positiva (o artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 
 
 20 de Janeiro) que consagrou expressamente a «responsabilidade criminal das 
 pessoas colectivas e equiparadas».
 E ante a objectividade da lei parece que todas as considerações se devem calar, 
 nada mais havendo que fazer se não obedecer ao direito positivo legislado.
 Vale aqui a chamada «teoria pura do direito» de que Kelsen foi o impulsionador 
 
 (Kelsen — Teoria Pura do Direito — 4.ª ed., p. 4242): «Do ponto de vista de um 
 positivismo jurídico coerente o direito, precisamente como o Estado, não pode 
 ser concebido senão como uma ordem coerciva da conduta humana — com o que nada 
 se afirma sobre o seu valor moral ou de justiça».
 E mais incisivamente, a fls. 161: «A teoria pura do direito mantém o direito 
 positivo isento de qualquer confusão com o direito ‘ideal’ ou ‘justo’ — uma 
 teoria realista, do positivismo jurídico, que se recusa a valorar o direito 
 positivo».
 Quer dizer: — decisivo, decisivo, é que tenhamos uma norma positiva que atribua 
 responsabilidade criminal a um ente fictício como é uma sociedade comercial… 
 como a poderia atribuir a um fantasma … que nem por isso poderíamos deixar de 
 lhe obedecer.
 Só que este positivismo jurídico se defronta com tais escolhos ou insuficiências 
 que se anula ou se inviabiliza a si próprio.
 E o primeiro escolho é de ordem constitucional.
 Na hierarquia das fontes de direito, nenhuma lei ordinária se poderá manter 
 actuante se estiver em contradição ou litígio com a norma constitucional.  Ora, 
 sobre este tema dispõe o artigo 12.º, n.º 2, da Constituição:
 
  
 
 — As pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres 
 compatíveis com a sua natureza.
 
  
 Nesses deveres se compreendem evidentemente os de natureza criminal.
 
 É compatível com a natureza de um ente que é uma ficção jurídica — a 
 responsabilidade criminal?
 
 É obvio que não.
 Para se ser criminalmente responsável há um requisito básico que faz parte do 
 tipo: — «o dolo, ou, nos casos especialmente previstos na lei… a negligência» 
 
 (artigo 13.º do Código Penal).
 Não é concebível responsabilizar alguém criminalmente se esse alguém não tiver 
 actuado com dolo ou, pelo menos, com negligência.
 A arguida «A., L.da», só poderia ser condenada pelas infracções de que é acusada 
 se fosse possível concluir que actuou com dolo — ou, ao menos, com negligência.
 Mas isso mais não é do que formas de imputação eminentemente pessoais que, pelo 
 seu carácter psicológico, íntimo, só podem verificar-se na pessoa humana.
 
 É nesta ordem de ideias que o artigo 12.º do Código Penal — aliás dentro daquela 
 tradição humanística a que se fez referência — dispõe: «É punível quem age 
 voluntariamente como titular dos órgãos de uma pessoa colectiva…».
 O Decreto-Lei n.º 28/84 devia ter-se ficado dentro dos limites deste bom senso, 
 não enveredando por soluções espúrias, absurdas e violadoras da Lei Fundamental.
 
  
 E, mais adiante, escreve-se na decisão recorrida:
 
  
 Por isso, coerentemente, e não por acaso (as palavras da lei pesam como 
 diamantes…) o artigo 12.º, n.º 2, da Constituição limita os deveres das pessoas 
 colectivas — dentro de cuja área se situa a responsabilidade criminal — à 
 compatibilidade com a sua natureza.
 E como se disse, não é compatível com a natureza abstracta, fictícia, de uma 
 pessoa colectiva a concorrência de um requisito tão intimista como o da culpa ou 
 dolo.
 Mas à parte a sua evidente inconstitucionalidade, o artigo 3.º do Decreto-Lei 
 n.º 28/84 sofre ainda de uma outra incoerência.
 Ele consagra uma dupla responsabilização penal de certo modo aparentada com a 
 violação do princípio non bis in idem.
 Isto é:
 Segundo este princípio ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo facto.
 Ora, com tal lei, pelo facto objectivo de se comerciarem géneros avariados, por 
 exemplo — vão ser responsabilizados cumulativamente as pessoas colectivas e os 
 respectivos agentes.
 Não se trata de uma qualquer espécie de comparticipação (que nada tem de 
 anormal) — mas de um pedir de responsabilidades (por parte do Estado punidor), 
 em duplicado, pelo mesmo facto.
 Qualquer coisa como se o credor de uma sociedade pelo montante de 1000 — 
 quisesse cobrar esses mil, em duplicado, da sociedade e dos seus gerentes.
 Não pode ser.  Há que optar.
 O título de imputação de certo ilícito à sociedade e aos seus gerentes é a 
 culpa…
 Que a culpa sirva de base de imputação quanto aos gerentes (pessoas singulares) 
 porque a sua consciência ética lhes censura o terem agido desta forma, quando 
 poderiam e deviam ter agido de outra… é compreensível.
 Mas que essa base ética, a par da punição dos gerentes, fundamente a punição dos 
 geridos… é de todo incompreensível.
 De maneira que, aqui, haveria que escolher: — ou punir os gerentes, pelas 
 respectivas culpas individuais, em termos de direito penal — e tal como o artigo 
 
 12.º do Código Penal prevê… ou punir os geridos (ou seja, as sociedades), em 
 função da culpa dos gerentes — tal como acontece no direito civil, nomeadamente 
 no campo vasto da responsabilidade civil contratual ou extra-contratual.
 Optar por uma terceira via (punição criminal dos gerentes: artigo 12.º do Código 
 Penal) e punição de outra natureza (mas não a título de uma impossível 
 
 «responsabilidade criminal» da pessoa colectiva) é perfeitamente aceitável e é 
 isso que em grande medida acontece, por exemplo, com as penas acessórias 
 previstas no artigo 8.º — e que são típicas de um ente colectivo.
 Se o legislador tivesse reservado aos gerentes a responsabilidade criminal, nos 
 termos gerais (havendo culpa ou dolo) e sancionasse as sociedades com um tipo de 
 penas e de responsabilidade que não fossem de cariz criminal (as referidas penas 
 do artigo 8.º) — nada se poderia objectar.
 Enveredando por uma solução híbrida, e, mais do que isso, inconstitucional, pela 
 sujeição ilógica de um ente que é uma ficção jurídica a um tipo de 
 responsabilidade que é apanágio da pessoa humana, o artigo 3.º do Decreto-Lei 
 n.º 28/84 é violador do artigo 12.º, n.º 2, da Constituição e por isso não pode 
 ser aplicado pelos Tribunais:          — artigo 277.º, n.º 1, e artigo 207.º da 
 Constituição.
 
  
 
 3 — Desta decisão interpôs o representante do Ministério Público junto daquele 
 tribunal judicial recurso de constitucionalidade obrigatório.
 Neste Tribunal, o Procurador-Geral Adjunto em exercício apresentou as 
 competentes alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:
 
  
 
 1.º   A norma do artigo 3.º, n.º 1, conjugada com a do artigo 7.º, n.º 1, do 
 Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, enquanto prevê que as pessoas 
 colectivas são responsáveis pelas infracções previstas nesse diploma quando 
 cometida pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse 
 colectivo, sendo-lhes aplicáveis as penas principais de admoestação, multa e 
 dissolução, não são inconstitucionais, pois não violam nenhum princípio ou 
 preceito constitucional, designadamente os artigos 12.º, n.º 2, e 29.º, n.º 5, 
 da Constituição.
 
 2.º   Deve, em consequência, conceder-se provimento ao recurso, determinando-se 
 a reforma da decisão recorrida, na parte impugnada.
 
  
 Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
 
  
 
  
 II — Fundamentos
 
  
 
 4 — A questão que vem suscitada nos autos é a de saber se é constitucionalmente 
 legítimo imputar-se às pessoas colectivas responsabilidade criminal e 
 aplicar-lhes penas tais como as constantes do artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei 
 n.º 28/84, de 20 de Janeiro, em vigor na data dos factos.
 
 É o seguinte o teor dos preceitos em causa:
 
  
 Artigo 3.º
 
 (Responsabilidade criminal das pessoas colectivas e equiparadas)
 
  
 
 1 — As pessoas colectivas, sociedades e meras associações de facto são 
 responsáveis pelas infracções previstas no presente diploma quando cometidas 
 pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo.
 
 2 — A responsabilidade é excluída quando o agente tiver actuado contra ordens ou 
 instruções expressas de quem de direito.
 
 3 — A responsabilidade das entidades referidas no n.º 1 não exclui a 
 responsabilidade individual dos respectivos agentes, sendo aplicável com as 
 necessárias adaptações, o n.º 3 do artigo anterior.
 
  
 Pelo seu lado, o artigo 7.º, n.º 1, estabelece como penas principais aplicáveis 
 
 às pessoas colectivas e equiparadas as seguintes: admoestação, multa e a 
 dissolução, regulando-se nos números seguintes do preceito não só as 
 circunstâncias que condicionam a respectiva aplicação mas também o montante da 
 multa.
 Nos termos da decisão recorrida, a norma do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 28/84 
 viola o n.º 2 do artigo 12.º da Constituição da República Portuguesa, que 
 estabelece que «As pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos 
 deveres compatíveis com a sua natureza».
 Referida na decisão é também a norma do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição, que 
 determina que «ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do 
 mesmo crime».
 Importa, assim, apurar se uma responsabilidade penal do tipo da prevista nas 
 normas do diploma em análise é compatível com a natureza das pessoas colectivas 
 e, no caso de resposta positiva, se existe qualquer violação do princípio 
 constitucional do non bis in idem ou de qualquer outro.
 
  
 
 5 — A questão suscitada nos autos insere-se no âmbito da perseguição da 
 criminalidade económica que, entre nós se concretizou com o Decreto-Lei n.º 41 
 
 204, de 24 de Julho de 1957.
 O diploma em apreço, que veio substituir a regulamentação de 1957, foi editado 
 ao abrigo da Lei n.º 12/83, de 24 de Agosto, que concedeu ao Governo autorização 
 legislativa para «alterar os regimes em vigor, tipificando novos ilícitos 
 penais, definindo novas penas ou modificando as actuais, tomando como ponto de 
 referência a dosimetria do Código Penal, na matéria de infracções antieconómicas 
 e contra a saúde pública, entre outras».
 O sentido da lei autorizadora, no que se refere às infracções antieconómicas e 
 contra a saúde pública, é a «obtenção de maior celeridade e eficácia na 
 prevenção e repressão deste tipo de infracções».
 Visando a concretização destes princípios, o Decreto-Lei n.º 28/84 veio 
 eliminar, nesta matéria, a «distinção entre crimes e contravenções, 
 privilegiando-se a distinção entre crimes e contraordenações», tratando-se agora 
 vários comportamentos como contraordenações, em resultado da despenalização de 
 infracções consideradas contravenções, que passaram a ser objecto do direito de 
 mera ordenação social.
 Segundo o preâmbulo do diploma, houve «o particular cuidado de extremar 
 rigorosamente os campos dos dois ilícitos em presença, a fim de evitar 
 sobreposições ou confusões entre as previsões dos correspondentes tipos legais». 
 
  Assim, «relegaram-se para o capítulo das contra-ordenações apenas aqueles 
 comportamentos que não põem em causa interesses essenciais ou fundamentais da 
 colectividade e que, por isso, carecem de verdadeira dignidade penal».
 Ainda de acordo com o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 28/84, «importante novidade 
 neste diploma é a consagração aberta da responsabilidade penal das pessoas 
 colectivas e sociedades, a que algumas recomendações de instâncias 
 internacionais, como o Conselho da Europa, se referem com insistência.
 Tratando-se de um tema polémico em termos de dogmática jurídico-penal, nem por 
 isso devem ignorar-se as realidades práticas, pois se reconhece por toda a parte 
 que é no domínio da criminalidade económica que mais se tem defendido o abandono 
 do velho princípio societas delinquere non potest.
 Em todo o caso, o princípio da responsabilidade penal das pessoas colectivas é 
 consagrado com prudência: exige-se sempre uma conexão entre o comportamento do 
 agente — pessoa singular — e o ente colectivo, já que aquele deve actuar em 
 representação ou em nome deste e no interesse colectivo.  E tal responsabilidade 
 tem-se por excluída quando o agente tiver actuado contra ordens expressas da 
 pessoa colectiva».
 O legislador de 1984, ao assumir esta posição de aceitação da responsabilidade 
 penal das pessoas colectivas, sentiu necessidade de prever penas principais 
 especialmente adequadas.  Assim, a pena mais grave é a de dissolução, aplicável 
 a hipóteses muito restritas, em que a pessoa colectiva se tenha constituído, 
 exclusiva ou predominantemente para a prática de certos crimes previstos no 
 diploma ou se tenha desviado do seu objecto ou dos seus fins para os cometer, 
 sendo as outras sanções a admoestação e a multa.
 Nos presentes autos, a decisão recorrida recusou a aplicação do artigo 3.º do 
 Decreto-Lei n.º 28/84, por entender que tal disposição viola o n.º 2 do artigo 
 
 12.º da Constituição, atendendo a que a responsabilidade penal das pessoas 
 colectivas não e compatível com a respectiva natureza.
 
  
 
 6 — Assentou tal decisão, iniludivelmente, no princípio traduzido no brocardo 
 societas delinquere non potest, tradicionalmente concretizado na impossibilidade 
 de punir as sociedades e pessoas colectivas dentro dos parâmetros conceptuais do 
 direito criminal eticamente fundado.
 Efectivamente, a tese de quem defende a impossibilidade dogmática da 
 responsabilidade penal das pessoas colectivas parte, por um lado, da 
 consideração de que não há responsabilidade criminal sem culpa, pelo que, as 
 pessoas colectivas porque desprovidas de inteligência e de vontade próprias, 
 necessitam de pessoas singulares que actuem por si, e, por isso, seriam, desde 
 logo, insusceptíveis de um juízo de censura ética.
 Por outro lado, considerando o princípio da pessoalidade das penas, a condenação 
 de uma pessoa colectiva poderia atingir elementos do seu substractum colectivo 
 ou mesmo dos seus órgãos que porventura nada teriam tido com a actividade 
 desenvolvida e considerada delituosa.  Por último, considera-se que não sendo 
 susceptíveis de aplicação a pessoas colectivas as penas privativas de liberdade, 
 parece difícil alcançar a realização de qualquer dos fins tradicionalmente 
 atribuídos às penas criminais, através de aplicação de uma sanção desse tipo.
 Assim, o Código Penal de 1886 consagrava a ideia de que só a pessoa física, 
 individualmente considerada, pode ser sujeito activo de infracções criminais 
 
 (cfr. artigos 26.º e 28.º daquele Código), concepção esta tradicional no 
 ordenamento jurídico e na doutrina penalística portuguesa (v. Prof. Dr. Eduardo 
 Correia, Direito Criminal, vol. i, p. 234; Prof. Dr. Cavaleiro Ferreira, Direito 
 Penal Português, vol. i, p. 419, e Maia Gonçalves, Código Penal Português na 
 Doutrina e na Jurisprudência, 3.ª ed., p. 66).
 Mas, mesmo no domínio daquele Código, vários diplomas existiam contendo 
 preceitos que parecem contrariar os princípios nele vertidos.
 O artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 41 204, de 24 de Julho de 1957 — diploma 
 relativo às infracções contra a saúde pública e antieconómicas — estabelecia que 
 
 «as sociedades civis e comerciais são solidariamente responsáveis pelas multas e 
 indemnizações em que forem condenados os seus representantes ou empregados, 
 contanto que estes tenham agido nessa qualidade, ou no interesse da pessoa 
 colectiva, salva a prova de que procederam contra ordens da administração», 
 parecendo tratar-se aqui de uma responsabilidade de natureza civil (cfr. Castro 
 e Sousa, «As pessoas colectivas em face do Direito Criminal» e do chamado 
 
 «Direito de mera ordenação social», p. 168).  Pelo seu lado, o artigo 7.º do 
 mesmo diploma prevê a aplicação a pessoas colectivas de medidas de interdição do 
 exercício de profissão, com o consequente encerramento do estabelecimento 
 comercial, medida que parece ter a natureza de «medida de segurança» prevendo-se 
 o respectivo recurso para os tribunais administrativos.
 Castro e Sousa, depois de analisar disposições de vários outros diplomas em que 
 considera não se cominarem verdadeiras penas criminais às pessoas colectivas 
 pois apenas estatuem medidas de segurança ou impõem a responsabilização civil 
 das sociedades ou ainda cominam meras sanções ordenativas, refere como diplomas 
 consagradores de verdadeiras sanções criminais, os Decretos n.os 29 034, de 1 de 
 Outubro de 1938, e 31 280, de 22 de Maio de 1941, assim sacrificando o princípio 
 societas delinquere non potest.
 Porém, a necessidade de contrariar o desenvolvimento de actividades delituosas 
 actuando sob a forma de organizações societárias investidas na respectiva 
 personalidade colectiva, com uma multiplicidade de objectivos que abrangem a 
 vida económica e social e com uma dimensão tal que levou à conclusão da 
 inefectividade quase total do princípio da mera responsabilização individual dos 
 
 órgãos ou representantes da pessoa colectiva, levou à admissibilidade cada vez 
 mais generalizada da própria responsabilidade criminal das pessoas colectivas, 
 principalmente no domínio do direito penal económico ou social — usando-se, em 
 geral, a designação de direito penal secundário para o contrapor ao direito 
 penal tradicional ou direito penal de justiça (cfr. Prof. Dr. Figueiredo Dias, 
 
 «Para uma dogmática do direito penal secundário.  Um contributo para a reforma 
 do direito penal económico e social português», in Revista de Legislação e de 
 Jurisprudência, n.os 3716 a 3720).
 A responsabilidade criminal das pessoas colectivas é hoje admitida, entre nós, 
 pela generalidade dos autores (contra, Prof. Dr. Cavaleiro de Ferreira, Lições 
 de Direito Penal, I, 1988, pp. 191-192), designadamente, nos domínios da 
 criminalidade económica e social, da protecção do ambiente e do consumidor 
 
 [cfr., para além da obra de Figueiredo Dias, Prof. Dr. Eduardo Correia, 
 
 «Introdução ao Direito Penal Económico» (com a colaboração de José Faria e 
 Costa), in Revista de Direito e Economia, n.º 3 (1977), pp. 3 e segs.; Lopes 
 Rocha, «A responsabilidade penal das pessoas colectivas — Novas perspectivas», 
 in Direito Penal Económico, p. 162; Figueiredo Dias e Costa Andrade, 
 
 «Problemática geral das infracções antieconómicas», in Boletim do Ministério da 
 Justiça, n.º 262, pp. 5 e segs.; José Faria e Costa, «A responsabilidade 
 jurídico-penal da empresa e dos seus órgãos (ou uma reflexão sobre a alteridade 
 nas pessoas colectivas à luz do direito penal)», in Revista Portuguesa de 
 Ciência Criminal, ano 2.º, fascículo 4.º, Outubro-Dezembro 1992, p. 537].
 De todo alheia a esta admissibilidade não pode considerar-se a intervenção de 
 organizações internacionais, designadamente, do Conselho da Europa através da 
 Resolução n.º (77) 28, de 27 de Setembro de 1977, recomendando o reexame dos 
 princípios sobre a responsabilidade criminal, por forma a viabilizar, em certos 
 casos, a responsabilização das pessoas colectivas, e as Recomendações n.º 
 R(81)12, de 25 de Junho de 1981, R(88) 18, de 20 de Outubro de 1988 (sobre 
 criminalidade económica), e R(82)15, de 24 de Setembro de 1982 (direito penal na 
 protecção dos consumidores), estudando-se a possibilidade de instituir a 
 responsabilidade criminal das pessoas colectivas.
 Em sede legislativa, importa antes de mais considerar o artigo 11.º do Código 
 Penal de 1982, no qual, sob a epígrafe «carácter pessoal da responsabilidade», 
 se estabelece que «salvo disposição em contrário, só as pessoas singulares são 
 susceptíveis de responsabilidade criminal».
 Assim, a regra geral no domínio do direito criminal é a de que, em princípio, só 
 as pessoas físicas são susceptíveis de responsabilidade, mas, excepcionalmente, 
 razões pragmáticas ligadas a uma forte necessidade de repressão e prevenção de 
 certas práticas criminais podem levar a outra solução, em vista da qual se 
 considerou útil a ressalva expressa permitindo ao legislador optar pelo 
 sancionamento de pessoas colectivas.
 Com efeito, de acordo com Figueiredo Dias, «não se encontrando o princípio da 
 individualidade da responsabilidade criminal inscrito na natureza das coisas», a 
 ressalva da disposição em contrário «só se compreende quando se vê naquele 
 princípio uma pura opção normativa do legislador, que não um suposto ôntico a 
 ela previamente imposto; donde a viabilidade e adequação de as pessoas 
 colectivas serem capazes de acção e de culpa, a efectivar de acordo com as 
 opções político-criminais do legislador» («Pressupostos da punição e causas que 
 excluem a ilicitude e a culpa», em Jornadas de Direito Criminal — O novo Código 
 Penal Português e Legislação Complementar, pp. 50-51).
 
  
 
 7 — Com as normas que vêm questionadas nos presentes autos — artigos 3.º, 7.º e 
 
 8.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro — concretiza-se a abertura 
 legislativa constante do referido artigo 11.º do Código Penal, tal como 
 claramente resulta dos pontos 8 e 10 do respectivo preâmbulo.  O legislador 
 decidiu optar manifestamente pela responsabilização criminal das pessoas 
 colectivas, tendo também previsto penas adequadas a tal opção.  E alargou ainda 
 tal opção relativamente à responsabilidade por actuação em nome de outrem, quer 
 enquanto órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade, 
 mesmo se irregularmente constituída ou de mera associação de facto, quer em 
 representação legal ou voluntária de outrem (artigo 2.º).
 A recorrente sustenta a inconstitucionalidade das normas dos artigos 3.º, 7.º e 
 
 8.º por violação dos artigos 12.º, n.º 2, e 29.º, n.º 5, ambos da Constituição.
 
  
 
 7.1 — O artigo 12.º, n.º 2, na medida em que estabelece que «as pessoas 
 colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua 
 natureza» permite concluir que, se a responsabilização criminal das pessoas 
 colectivas não puder ser entendida como compatível com a sua natureza, então, 
 não seria possível adequar tal responsabilização com a Lei Fundamental.
 Desde logo, importa salientar que o princípio da individualidade da 
 responsabilidade criminal não tem consagração constitucional expressa, sendo 
 certo que o preceito que, em direito ordinário, estabelece tal princípio está 
 concebido por forma a admitir excepções (artigo 11.º do Código Penal).
 Por outro lado, a ideia de que se as pessoas colectivas, à semelhança das 
 pessoas físicas, podem cometer infracções devem em consequência ser penalmente 
 sancionadas não é ideia nova (cfr. A. Mestre, «Les personnes morales et le 
 problème de leur responsabilitè pénale», Thése, Paris, 1899, citado em «Les 
 conditions de fond de la résponsabilité pénale des personnes morales en droit du 
 travail», de Jean-Florian Eschyle — Droit Social, n.os 7-8, Juillet-Aout 1994, 
 p. 638).  Mas a sua afirmação sempre se defrontava com a impossibilidade de 
 conceber as pessoas colectivas como dotadas de capacidade de acção ou como 
 entidades susceptíveis de qualquer juízo de censura e também com a inadequação 
 das sanções cominadas pelo direito criminal (cfr., para maiores 
 desenvolvimentos, Lopes Rocha, «A responsabilidade penal das pessoas colectivas 
 
 — Novas perspectivas», in Direito Penal Económico, Centro de Estudos 
 Judiciários, Coimbra, 1985, pp. 119 e segs.).
 A responsabilidade criminal das pessoas colectivas admitida hoje, 
 essencialmente, ao nível do chamado direito penal secundário ou do direito penal 
 económico, no direito penal do trabalho ou enfim do direito penal do ambiente 
 assenta, como se referiu, na absoluta necessidade de usar os meios repressivos 
 próprios do direito criminal no combate das novas formas colectivas de 
 delinquência aliada à inoperância das sanções criminais usuais relativamente aos 
 entes colectivos.
 No que se refere ao direito penal secundário, escreveu Figueiredo Dias (in «Para 
 uma dogmática do Direito penal secundário.  Um contributo para a reforma do 
 direito penal económico e social português», Direito e Justiça, vol. iv, 
 
 1989-1990, p. 49):
 
  
 Se, em sede político-criminal, se conclui pela alta conveniência ou mesmo 
 imperiosa necessidade de responsabilização das pessoas colectivas em direito 
 penal secundário, não vejo razão dogmática de princípio a impedir que elas se 
 considerem agentes possíveis dos tipo-de-ilícito respectivos.  A tese contrária 
 só pode louvar-se numa ontologificação e autonomização inadmissíveis do conceito 
 de acção, a esquecer que a este conceito podem ser feitas pelo tipo-de-ilícito 
 exigências normativas que o conformem com uma certa unidade de sentido social.  
 E tão-pouco me parece impensável ver nas pessoas colectivas destinatárias 
 passíveis dos juízos de censura em que a culpa se traduz.  Certo que, na acção 
 como na culpa, tem-se em vista um «ser-livre» como centro ético-social de 
 imputação jurídico-penal e aquele é o homem individual.  Mas não deve 
 esquecer-se que as organizações humano-sociais são, tanto como o próprio homem 
 individual, «obras de liberdade» ou «realização do ser-livre»; pelo que parece 
 aceitável que em certos domínios especiais e bem delimitados — de acordo com o 
 que poderá chamar-se, seguindo Max Muller, o princípio de identidade da 
 liberdade — ao homem individual possam substituir-se, como centros ético-sociais 
 de imputação jurídico-penal, as suas obras ou realizações colectivas e, assim, 
 as pessoas colectivas, associações, agrupamentos ou corporações em que o 
 ser-livre se exprime.
 
  
 E mais adiante:
 
  
 Fica assim aberto, do ponto de vista dogmático, o indispensável caminho para se 
 admitir uma responsabilidade no direito penal secundário, ao lado da eventual 
 responsabilidade das pessoas individuais que agem como seus órgãos ou 
 representantes.  Não parece, com efeito, que proceda o argumento segundo o qual 
 a punibilidade por «actuação em nome de outrem» — e portanto de quem age como 
 titular dos órgãos de uma pessoa colectiva — tornaria dispensável, em 
 perspectiva político-criminal, a responsabilidade directa da pessoa colectiva.  
 Provindo hoje as mais graves e frequentes ofensas aos valores protegidos pelo 
 direito penal secundário, em muitos âmbitos, não de pessoas individuais mas 
 colectivas, a irresponsabilidade directa destas significaria sempre um seu 
 inexplicável tratamento privilegiado perante aquelas.
 
  
 Resulta, assim, com particular clareza do exposto que o dever de 
 responsabilidade criminal das pessoas colectivas é hoje entendido como um dever 
 perfeitamente compatível com a natureza própria daquelas entidades e, por isso, 
 a norma do artigo 3.º que no Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, consagra 
 tal responsabilização criminal não contraria o artigo 12.º da Constituição.
 No mesmo sentido Faria e Costa (modificando a sua anterior posição), mas 
 entendendo que a «legitimação da punição das pessoas colectivas se deve, em 
 
 última instância, encontrar na racionalidade material dos lugares inversos» 
 
 (cfr. «A responsabilidade jurídico-penal da empresa e dos seus órgãos», in 
 Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2.º, fascículo 4.º, p. 537).
 Dado que na decisão recorrida a norma questionada veio a ser desaplicada por se 
 ter entendido que não era possível compatibilizar a responsabilização das 
 pessoas colectivas com a sua específica natureza, pelo que a sua aplicação 
 violaria o preceito constitucional do artigo 12.º, n.º 2, chegando-se à 
 conclusão de que não ocorre aqui uma tal incompatibilidade estrutural, deve 
 proceder o presente recurso quanto a este fundamento invocado na decisão como 
 razão da inconstitucionalidade daquela norma.
 Um último aspecto importa mencionar.
 Se é certo que na decisão recorrida e quanto a este aspecto da responsabilização 
 penal das pessoas colectivas, apenas vem invocado o artigo 12.º, n.º 2, da 
 Constituição como parâmetro de constitucionalidade, não parece que não possa 
 procurar-se em outro preceito o verdadeiro parâmetro de aferição do fundamento 
 constitucional de tal responsabilização.
 Com efeito, a responsabilidade penal das pessoas colectivas, enquanto opção do 
 legislador, é uma questão que se insere no âmbito da delimitação do poder 
 punitivo do Estado, enquanto parte do sistema total do controlo social, ou seja, 
 tem a ver com a concepção e objectivos do Estado de direito democrático, tal 
 como está concretizado no artigo 2.º da Constituição da República.
 De acordo com esta norma, o Estado de direito democrático baseia-se na soberania 
 popular, no pluralismo de expressão e de organização, no respeito e garantia de 
 efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e tem por objectivo a 
 realização da democracia económica, social e cultural.
 A responsabilização penal tanto das pessoas singulares como das pessoas 
 colectivas — esta, tão-somente, a partir do momento em que é expressamente 
 assumida pelo legislador ordinário — visa a protecção das condições essenciais à 
 vida do homem em comunidade e, por isso, a plena realização e o máximo 
 desenvolvimento de cada pessoa, procurando o direito penal a realização dos 
 valores fundamentais da comunidade, através da protecção de determinados bens 
 jurídicos em que se concretizam aqueles valores.
 Efectivamente, refere Figueiredo Dias («Para uma dogmática…», cit., p. 35), «(…) 
 a função do direito penal — de todo o direito penal, inclusive do direito penal 
 administrativo — é a protecção de bens jurídicos considerados como interesses 
 socialmente relevantes cuja defesa é condição indispensável do livre 
 desenvolvimento da personalidade do homem».
 E mais adiante (p. 37) acrescenta:
 
  
 Se, como dispõe o artigo 3.º, n.º 2, da Constituição, toda a actividade do 
 estado (incluída a actividade penal administrativa) se subordina à Constituição 
 e se funda na legalidade democrática; e sobretudo se, como agora se afirma no 
 texto revisto do artigo 18.º, n.º 2, as restrições dos direitos, liberdades e 
 garantias (em que sempre se traduz uma criminalização) devem «limitar-se ao 
 necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente 
 protegidos; — torna-se então indiscutível a ideia (que de há muito venho 
 defendendo) segundo a qual entre a ordem axiológica constitucional e a ordem 
 legal dos bens jurídicos tem de verificar-se uma qualquer relação de mútua 
 referência.  Relação que não é de «identidade» ou sequer de «recíproca 
 cobertura», mas de analogia material, fundada numa essencial correspondência de 
 sentido; correspondência que deriva de a ordem axiológica constitucional 
 constituir o quadro abstracto de referência e, ao mesmo tempo, o critério 
 regulador da actividade punitiva do Estado.  É nesta acepção, e só nela, que os 
 bens jurídicos protegidos pelo direito penal de justiça se devem considerar 
 concretizações dos valores constitucionais ligados aos direitos, liberdades e 
 garantias, os protegidos pelo direito penal administrativo concretizações dos 
 ligados aos direitos sociais e à organização económica.
 
  
 Ora, na medida em que a Constituição (artigo 2.º) comete ao Estado de direito 
 democrático em que se consubstancia a República Portuguesa o respeito e a 
 garantia de efectivação dos direitos fundamentais e o objectivo de realizar a 
 democracia económica, terá de ser este preceito constitucional o verdadeiro 
 parâmetro de conformidade com a Lei Fundamental da responsabilização penal das 
 pessoas colectivas, uma vez mostrado que a preservação da confiança é um valor 
 fundamental da vida económica e que a perseguição da maior parte das infracções 
 ao direito económico passa pela necessidade de punir penalmente, ao lado das 
 pessoas individuais que agem como seus órgãos ou representantes, a própria 
 pessoa colectiva.
 Mas, por todas as razões já aduzidas, é manifesto que mesmo nesta perspectiva 
 não ocorre qualquer violação de preceito ou princípio constitucional pela norma 
 legal que estabelece aquela responsabilização penal.
 
  
 
 7.2 — Quanto ao outro fundamento de inconstitucionalidade do artigo 3.º em 
 análise e baseado na violação do princípio constitucional do non bis in idem, 
 constante do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição, o mesmo não parece também 
 poder resistir a uma análise minimamente aprofundada.
 O referido preceito da Constituição estabelece que «ninguém pode ser julgado 
 mais do que uma vez pela prática do mesmo crime», e acerca do mesmo escrevem 
 Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 
 
 3.ª ed., p. 194):
 
  
 O n.º 5 dá dignidade constitucional ao clássico princípio non bis in idem.  
 Também ele comporta duas dimensões: a) como direito subjectivo fundamental, 
 garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo 
 facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra 
 actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); b) como 
 princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), 
 obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à 
 definição do caso julgado material de modo a impedir a existência de vários 
 julgamentos pelo mesmo facto.
 
  
 No caso dos autos, parece manifesto que este princípio não vem posto em causa, 
 em qualquer das suas referidas dimensões, porquanto tal princípio não obsta a 
 que pelo mesmo facto objectivo venham a ser perseguidas penalmente duas pessoas 
 jurídicas diferentes, sendo também passíveis de sanções diferentes.
 Efectivamente, a punição penal de quem age em nome de outrem — entre nós, 
 expressamente prevista no artigo 12.º do Código Penal — não pode dispensar a 
 responsabilização directa da pessoa colectiva: as pessoas colectivas são, 
 actualmente, as entidades que cometem as maiores e mais graves violações dos 
 valores que o direito penal secundário deve proteger, pelo que a mera 
 responsabilização dos seus órgãos ou representantes sem a correspondente 
 penalização do próprio ente colectivo implicaria um tratamento privilegiado 
 destes em relação àqueles.
 Por outro lado, como afirma Figueiredo Dias («Para uma dogmática…», cit., p. 
 
 51):
 
  
 Acresce que a «transferência» da responsabilidade, que verdadeiramente caiba à 
 pessoa colectiva qua tale, para o nome individual de quem actue como seu órgão 
 ou representante conduziria muitas vezes — sobretudo nos delitos económicos de 
 grandes empresas, v. g., multinacionais, com diversificadas esferas de 
 administração, donde deriva uma acentuada repartição de tarefas e de 
 competências — à completa impunidade, por se tornar impossível a comprovação do 
 nexo causal entre a actuação de uma ou mais pessoas individuais e a agressão do 
 bem jurídico produzido ao nível da pessoa colectiva.
 
  
 Se estes argumentos servem para demonstrar a necessidade da responsabilização 
 das pessoas colectivas, mostram também que a consagração legal da 
 responsabilidade individual ao lado da responsabilidade do ente colectivo pelos 
 mesmos factos não viola o princípio do non bis in idem uma vez que não existe um 
 duplo julgamento da mesma pessoa pelo mesmo facto, não se verificando, assim, 
 qualquer violação do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição.
 Quanto aos artigos 7.º e 8.º do Decreto-Lei n.º 28/84, a recusa da sua aplicação 
 resulta apenas de se ter recusado a aplicação da norma principal (o artigo 3.º) 
 que estabelece a responsabilidade penal das pessoas colectivas, isto é, a sua 
 inconstitucionalidade seria meramente consequencial.
 Face ao que fica exposto, é manifesto que os fundamentos invocados na decisão 
 para recusa da aplicação do artigo 3.º e consequencialmente, dos artigos 7.º e 
 
 8.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, não se verificam, pelo que a 
 conclusão a que se chega vai no sentido da procedência do recurso.
 
  
 
 8 — Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, 
 ordena-se a reformulação do despacho recorrido, substituindo-o por outro em 
 conformidade com o que agora se decidiu em termos de constitucionalidade.
 Lisboa, 20 de Abril de 1995. — Vítor Nunes de Almeida — Alberto Tavares da Costa 
 
 — Armindo Ribeiro Mendes — Antero Alves Monteiro Diniz — Maria Fernanda Palma — 
 Maria da Assunção Esteves (com declaração de voto) — Luís Nunes de Almeida.
 
  
 
  
 DECLARAÇÃO  DE  VOTO
 
  
 Estamos perante um caso exemplificador de como um problema linguístico pode 
 induzir uma controvérsia dogmática.  A discussão sobre se a «natureza da coisa» 
 
 «pessoa colectiva» admite a responsabilização penal          — remetendo para as 
 categorias que fundamentam essa responsabilização («livre-arbítrio», 
 
 «censurabilidade», «desvalor da conduta», etc.) — decorre apenas do facto de o 
 legislador ter denominado de «pena» uma certa reacção jurídica, que afecta a 
 própria pessoa colectiva, em matéria de «crimes contra a economia e contra a 
 saúde pública».
 Trata-se de um problema de uso da linguagem.  É a dimensão «emocional» das 
 expressões «penas» e «responsabilidade penal» que veda ao intérprete o acesso a 
 uma interpretação jurídico-funcional das reacções aqui cominadas pelo 
 legislador.
 Não é pelo facto de o legislador haver qualificado como «responsabilidade penal» 
 aquela que se prevê no artigo 3.º, e como «penas», as reacções jurídicas do 
 artigo 7.º, do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, que a estrutura destas 
 reacções há-de ser conceitualizada nos quadros da teoria da acção penal.  
 Aquelas expressões são tão-somente meios para a afirmação de determinadas 
 consequências normativas.
 A discussão é aqui provocada por um «uso mágico» da linguagem [cfr. Alf Ross, 
 
 «Tü-Tü», in Uberto Scarpelli (ed.), Diritto e Analisi Del Linguaggio, Milão, 
 
 1976, pp. 165-181].  Afastando esse «uso mágico» da linguagem, temos que as 
 reacções atípicas que o legislador qualificou como «penas» e que afectam a 
 pessoa colectiva não são teorizáveis nos quadros do direito penal.  E porque o 
 não são, perde sentido a questão de constitucionalidade. — Maria da Assunção 
 Esteves.
 
  
 
 1 — Acórdão publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Junho de 1995