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Proc.Nº 294/93
 Sec. 1ª
 Rel. Cons.
 Vitor Nunes de Almeida
 
  
 
             Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
 
  
 I - RELATÓRIO:
 
  
 
                         1. - O Promotor de Justiça junto do Tribunal Militar 
 Territorial de Elvas deduziu libelo contra F..., soldado do Regimento de 
 Infantaria de Beja, identificado nos autos, imputando-lhe a prática, como autor 
 material, de um crime culposo de ofensas corporais, previsto e punido pelo 
 artigo 207º, nº 1, alínea b), do Código de Justiça Militar (CJM), e da 
 contravenção (causal) ao disposto no artigo 13º, nº 2, do Código da Estrada, 
 esta a punir disciplinarmente nos termos do artigo 208º do CJM.
 
  
 
                         O Juiz Auditor daquele Tribunal, por despacho de 29 de 
 Abril de 1993, entendeu que a norma constante do artigo 207º, nº 1, alínea b), 
 do CJM, não poderia ser aplicada por padecer de inconstitucionalidade material 
 por violação do artigo 215º, nº 1, da Constituição, na medida em que define como 
 crime essencialmente militar o crime de ofensas corporais involuntárias  nela 
 previsto e punido. Em consequência, declarou a incompetência material da 
 jurisdição militar e, em concreto, daquele Tribunal, e ordenou a remessa dos 
 autos à jurisdição comum, no caso à Delegação da Procuradoria da República da 
 Comarca de Beja.
 
  
 
                         Desta decisão veio o Promotor de Justiça interpor 
 recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, 
 nº 1, alínea a), da CRP e 70º, nº 1, alínea a) da Lei nº 28/82, de 15 de 
 Novembro.
 
  
 
                         2. -  Interessa ter presente a enunciação dos factos 
 imputados ao arguido no referido libelo:
 
  
 
 '1º
 
    Que, no dia 19AGO91, cerca das 15H45, conduzia a viatura militar, 
 auto-pesada, de matrícula ..‑..‑.., em serviço superiormente determinado, de 
 transporte de lixo para a lixeira da Câmara Municipal de Beja.
 
  
 
  
 
 2º
 
    Ao chegar à referida lixeira, o arguido, com o propósito de colocar a viatura 
 em posição adequada a descarregar o lixo, pela trazeira da viatura, iniciou a 
 manobra de marcha atrás, no sentido da lixeira, sem previamente se certificar de 
 que poderia efectuar tal manobra sem comprometer a segurança dos militares que 
 no local se encontravam e cuja presença era do conhecimento do arguido.
 
  
 
  
 
 3º
 
    De pé, encostado à parte lateral esquerda e trazeira de outra viatura 
 auto-pesada, também militar, ali imobilizada, encontrava-se o condutor desta, 
 soldado ... ...., L..., também do RIBE.
 
  
 
  
 
 4º
 
    Percorrido alguns metros, desatento, não utilizando os respectivos 
 conhecimentos técnicos que possui nem tomando as precauções que a manobra exige 
 para evitar a produção de acidente, podendo e devendo prever as consequências da 
 sua conduta, nomeadamente não se serviu dos retrovisores da viatura, o arguido 
 guinou brusca e inopinadamente o volante para a esquerda.
 
  
 
  
 
 5º
 
    Fez, assim, embater o suporte metálico do retrovisor colocado no lado direito 
 da cabine contra o referido soldado L... que, colhido de surpresa pela inopinada 
 e brusca guinada não pôde furtar-se ao embate, acabando por ser apertado contra 
 a parte da viatura a que estava encostado, o que lhe produziu as lesões 
 descritas a fls. 110 e ss. dos autos que lhe determinaram, como consequência 
 necessária e directa, 142 dias de doença com igual período de incapacidade para 
 o serviço, lesões essas de que resultou, como sequela de carácter permanente, 
 
 'pequena mutilação', consistente no aumento de volume relativo da hemiface 
 direita em relação à esquerda (fls.166)'
 
  
 
  
 
                         Foi com base neste enunciado que o Juiz Auditor entendeu 
 não aplicar a norma do artigo 207º, nº 1, alínea b), do CJM por ter considerado, 
 em síntese, que os elementos de conexão reunidos naquela factualidade, a saber, 
 a qualidade pessoal do agente e o 'acto ou local de serviço - artº.207º.nº1 
 CJM', não poderiam 'fundar validamente um crime essencialmente militar'. 
 
  
 
                         3. - Recebido o recurso, veio o Procurador-Geral Adjunto 
 oferecer alegações, que concluíu da forma seguinte:
 
  
 
 ...'1º - A norma do nº 1 do artigo 207º do Código de Justiça Militar, enquanto 
 aí, com referência ao artigo 1º do mesmo Código, se qualifica como 
 essencialmente militar o crime culposo de ofensas corporais cometido por militar 
 em acto de serviço, e que seja causado por desrespeito de norma de direito 
 estradal, é inconstitucional, por violação do disposto no artigo 215º, nº 1, da 
 Constituição;
 
  
 
 ...2º - Deve, em consequência, confirmar-se a decisão recorrida.'
 
  
 
  
 
                         O recorrido, por sua vez, contralegou, corroborando o 
 sentido da decisão do Juiz Auditor e sublinhando, em síntese, a 
 inconstitucionalidade material da norma questionada, dado que da Constituição 
 resulta que a qualificação pelo legislador de um ilícito como crime 
 essencialmente militar deverá observar critérios materiais não podendo bastar 
 para o efeito o critério subjectivo.
 
  
 
                         Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
 
  
 
                                                II - FUNDAMENTOS:
 
  
 
                         4. - O acórdão recorrido recusou a aplicação da norma 
 constante do artigo 207º, nº 1, alínea b), do Código de Justiça Militar que, na 
 redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 319‑A/77, de 5 de Agosto, tem o 
 seguinte teor:
 
  
 Artigo 207º
 
 (Homicídio ou ofensas corporais culposas)
 
  
 
                        1 - Os crimes culposos de homicídio e ofensas corporais 
 cometidas por militares em acto ou local de serviço serão punidos:
 
 ...................................................
 
  
 
                        b) As ofensas corporais, com a pena de prisão militar.
 
  
 
                         De acordo com o artigo 1º, nºs 1 e 2, daquele Código, 
 trata-se de um crime essencialmente militar. Assim, tendo em conta a previsão 
 normativa e os factos que, no presente caso, pela mesma estão abrangidos, e que 
 caracterizam um típico acidente de viação, tem razão o Procurador-Geral Adjunto 
 quando refere em que termos, em sua opinião, deverá ser delimitado o objecto do 
 recurso. 
 
  
 
                         É questionada, com efeito, a constitucionalidade da 
 norma do corpo do nº 1 do artigo 207º do CJM, conjugada com a alínea b) do mesmo 
 número, na redacção do Decreto-Lei nº 319‑A/77, de 5 de Agosto, enquanto aí, com 
 referência ao artigo 1º do mesmo Código, se qualifica como essencialmente 
 militar o crime culposo de ofensas corporais cometido por militar em acto de 
 serviço e que seja causado pelo desrespeito por norma de direito estradal.
 
  
 
                         5. - A questão de constitucionalidade assim delimitada 
 não é nova na jurisprudência deste Tribunal, que sobre ela proferiu, pela I 
 Secção, recentemente, os acórdãos nºs 679/94 e 680/94, publicados no Diário da 
 República, II Série, de 25 de Fevereiro de 1995, incidindo o segundo 
 precisamente sobre a mesma norma. E como não vêm aduzidos elementos novos nem se 
 prefiguram razões para agora se divergir da orientação aí seguida, 
 compreender-se-á que se proceda a uma exposição sucinta dos fundamentos pelos 
 quais se entende que deve ser confirmada a decisão recorrida.
 
  
 
                         A norma constitucional alegadamente violada, que é a do 
 nº 1 do artigo 215º, ao estabelecer que 'compete aos tribunais militares o 
 julgamento dos crimes essencialmente militares', lida na respectiva inserção 
 sistemática, que faz dela uma excepção em face do princípio geral de que não 
 haverá tribunais com competência exclusiva para o julgamento de certas 
 categorias de crimes (artigo 214º, nº 4, da CRP), e que, por sua vez, consente 
 uma excepção a ela própria no nº 2 do artigo 215º,  aponta para a adopção, pelo 
 legislador, de critérios qualificativos do conceito de crimes essencialmente 
 militares que tenham por base uma conexão objectiva com a instituição castrense. 
 
 
 
  
 
                         Excluído está que o foro militar seja não mais do que um 
 foro pessoal, no sentido de se tornar relevante para a determinação da 
 competência dos tribunais militares apenas a qualidade pessoal do agente da 
 infracção. Mas, do requisito constitucional da essencialidade do crime do ponto 
 de vista militar, resulta para o legislador também uma vinculação positiva no 
 preenchimento do conceito, que não é de forma nenhuma indefinidamente aberto. 
 Decisiva se torna a natureza dos valores que se pretendem proteger, no que ainda 
 poderá continuar a relevar a qualidade do agente, desde que, não seja ela o 
 
 único critério de qualificação da infracção. Nesse campo, interessará saber se 
 estão em causa valores ligados à defesa nacional ou à organização militar no que 
 tenham de próprio ou pelo menos de específico e que, consequentemente, venham a 
 justificar a autonomização de uma ordem jurisdicional. 
 
  
 
                         Deste ponto de vista, as ofensas corporais culposas 
 cometidas por militares em consequência de negligência na condução automóvel não 
 apresentam uma conexão com a instituição militar com a consistência substancial 
 bastante para justificar a qualificação da infracção como crime essencialmente 
 militar. 
 
  
 
                         Nestes termos, deve julgar-se inconstitucional a norma 
 do nº 1 do artigo 207º do CJM, conjugadamente com a sua alínea b), enquanto aí, 
 com referência ao artigo 1º do mesmo Código, se qualifica como essencialmente 
 militar o crime de ofensas corporais culposas cometido por militares em acto de 
 serviço e que sejam causadas por desrespeito de norma de direito estradal. 
 
  
 III - DECISÃO:
 
  
 
                         Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso, 
 confirmando-se a decisão recorrida no tocante à questão de constitucionalidade.
 
  
 Lisboa,1995.05.16
 Ass) Vitor Nunes de Almeida
 Armindo Ribeiro Mendes
 Antero Alves Monteiro Dinis
 Alberto Tavares da Costa
 Maria Fernanda Palma
 José Manuel Cardoso da Costa