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Processo nº 512/93
 
 2ª secção
 Relator: Cons. Messias Bento
 
 
 
  
 Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
 
  
 
  
 
                         I. Relatório:
 
  
 
                         1. M...foi condenado, no Tribunal de Polícia de Lisboa, 
 como autor material de um crime, previsto e punível pelo artigo 1º do 
 Decreto-Lei nº 123/90, de 14 de Abril (conjugado com o artigo 46º, nº 1, do 
 Código da Estrada), na pena de 60 dias de prisão, em virtude de, em 12 de 
 Novembro de 1992, andar a conduzir, na via pública, um veículo automóvel sem 
 possuir qualquer documento que a tanto o habilitasse.
 
  
 
  
 
                         2. Inconformado, recorreu da sentença para o Tribunal da 
 Relação de Lisboa, alegando, inter alia, a inconstitucionalidade daquele artigo 
 
 1º do Decreto-Lei nº 123‑90, de 14 de Abril, já que tal norma (em seu entender) 
 viola o artigo 18º, nº 2, da Constituição.
 
  
 
                         A Relação de Lisboa, por acórdão de 19 de Maio de 1993, 
 negou provimento ao recurso e confirmou a decisão recorrida.
 
  
 
  
 
                         3. O arguido recorreu, então, deste acórdão (de 19 de 
 Maio de 1993) para este Tribunal, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º 
 da Lei do Tribunal Constitucional, para que aqui seja decidida a questão da 
 constitucionalidade do mencionado artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90, de 14 de 
 Abril.
 
  
 
  
 
                         Neste Tribunal, o arguido concluiu as suas alegações do 
 modo que segue:
 
 1. A criação de ilícitos criminais não está no âmbito do livre arbítrio do 
 legislador.
 
 2. A consideração de que determinado ilícito assume a natureza jurídica de crime 
 tem importantes consequências, que foram pensadas e previstas, tendo em conta a 
 especial danosidade social dos ilícitos penais.
 
 3. O art. 18º, nº 2, da CRP obriga a que o interesse que se pretende 
 salvaguardar através da tutela penal tenha no texto constitucional suficiente e 
 adequada expressão.
 
 4. O art. 18º, nº 2, da CRP consagra o princípio da congruência ou da analogia 
 substancial entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens 
 jurídicos protegidos pelo Direito Penal.
 
 5. O ilícito de condução sem habilitação tutela unicamente a segurança 
 rodoviária.
 
 6. Esse bem jurídico não tem tutela constitucional, encontrando-se consagrado 
 apenas a nível legal e regulamentar.
 
 7. O ilícito de condução sem habilitação não é susceptível de ter dignidade 
 penal, não podendo por isso ser tutelado a nível criminal.
 
  
 Termos em que, com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser 
 declarada em concreto a inconstitucionalidade do artigo 1º do Decreto-Lei nº 
 
 123/90, de 14 de Abril, no sentido de que o ilícito aí previsto assume a 
 natureza jurídica de crime, por violação do art. 18º, nº 2, da Constituição da 
 República Portuguesa, devendo os autos ser depois remetidos ao Tribunal 
 recorrido de modo a que o Direito seja aplicado tendo em conta essa decisão.
 
  
 
  
 
                         O Procurador-Geral Adjunto, de sua parte, formulou as 
 seguintes conclusões:
 
 1ª - Situa-se na margem de livre conformação do  legislador a definição dos 
 comportamentos que, em cada momento e atentas as necessidades sociais, devem ser 
 tipificados como crimes, dependendo tal qualificação das opções, em sede de 
 política legislativa criminal, da Assembleia da República.
 
 2ª - A criminalização da condução de veículos sem carta, operada pelas normas 
 impugnadas no presente recurso, não implica qualquer violação dos princípios da 
 adequação, da proporcionalidade e da confiança, ínsitos no texto constitucional, 
 pelo que representa opção constitucionalmente legítima.
 Deve, pois, improceder o presente recurso, confirmando-se inteiramente a decisão 
 recorrida.
 
  
 
  
 
                         Corridos os vistos, cumpre decidir a questão de saber se 
 a norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90, de 14 de Abril, é (ou não) 
 inconstitucional.
 
  
 
  
 
                         II. Fundamentos:
 
  
 
                         5. A Assembleia da República autorizou o Governo, entre 
 o mais, a 'definir o tipo legal de crime de condução de veículos automóveis, 
 motociclos, ciclomotores e velocípedes, nas vias públicas ou equiparadas, por 
 quem não se encontre devidamente habilitado para o efeito' [cf. artigos 1º e 2º, 
 alínea c), da Lei nº 31/89, de 23 de Agosto].
 
  
 
  
 
                         No uso de uma tal autorização legislativa, o Governo 
 editou o Decreto-Lei nº 123/90, de 14 de Abril.
 
                         Neste diploma legal, começa por pôr-se em relevo que 'os 
 elevados índices de sinistralidade com que se defronta o nosso País determinam a 
 adopção de medidas susceptíveis de desincentivarem a prática de infracções que, 
 pela sua gravidade, põem em causa a vida de todos os que circulam nas estradas 
 nacionais' (cf. o respectivo preâmbulo).
 
  
 
  
 
                         Uma das infracções que, pela sua gravidade, põe em causa 
 a segurança (e, assim, a vida) de quantos circulam nas vias públicas é, 
 justamente, a condução de veículos automóveis por quem não se encontra 
 legalmente habilitado a fazê-lo. A condução automóvel, sendo uma actividade 
 perigosa - para além de dever ficar reservada a quem saiba conduzir e conheça as 
 regras de trânsito - só há-de ser consentida àqueles que tenham prestado, com 
 
 êxito, as provas de capacidade previstas na lei.
 
  
 
                         Compreende-se, pois, que o artigo 1º do citado 
 Decreto-Lei nº 123/90, de 14 de Abril, disponha como segue:
 Quem conduzir veículos automóveis ligeiros ou pesados sem para tal estar 
 habilitado, nos termos do artigo 46º do Código da Estrada, será punido com 
 prisão até um ano ou multa até 120 dias.
 
  
 
  
 
                         A habilitação prevista no artigo 46º do Código da 
 Estrada é, basicamente, a titularidade de carta de condução e, em certos casos, 
 de boletim de condução, certificado de condução ou licença internacional de 
 condução.
 
  
 
  
 
                         6. Depois de um período de hesitações quanto à 
 qualificação da infracção prevista no mencionado artigo 1º, aqui sub iudicio, a 
 jurisprudência assentou em que ela reveste a natureza de crime.
 
                         De facto, o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 
 uniformização de 20 de Maio de 1992 (publicado no Diário da República, I 
 série-A, de 10 de Julho de 1992), fixou a seguinte doutrina, obrigatória para os 
 tribunais judiciais:
 Constitui crime, e não contravenção, a infracção  constante do artigo 1º do 
 Decreto-Lei nº 123/90, de 14 de Abril.
 
  
 
  
 
                         Também este Tribunal já decidiu que a condução de 
 veículos automóveis na via pública sem a licença legalmente exigida passou a 
 constituir crime, a partir da entrada em vigor do artigo 1º do Decreto-Lei nº 
 
 123/90 (cf. acórdãos nºs 121/90 e 382/93, publicados no Diário da República, II 
 série, de 8 de Abril de 1993 e de 2 de Outubro de 1993, respectivamente).
 
  
 
  
 
                         Pergunta-se: o referido artigo 1º do Decreto-Lei nº 
 
 123/90 (interpretado no sentido de que o ilícito nele previsto assume a natureza 
 de crime) violará, então, o 'princípio da congruência ou da analogia substancial 
 entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos 
 protegidos pelo Direito Penal'? - princípio que, no entender do recorrente, se 
 extrai do artigo 18º, nº 2, da Constituição?
 
  
 
  
 
                         Adianta-se já que a resposta é negativa.
 
  
 
  
 
                         O direito penal de um Estado de Direito tem de 
 edificar-se sobre o homem como ser pessoal e livre para se decidir pelo direito 
 ou contra o direito - de um homem, por isso mesmo, responsável pelos próprios 
 actos e responsável para estar com os outros. Há-de ser, assim, um direito penal 
 todo ele ancorado na dignidade da pessoa humana, tendo a culpa como fundamento, 
 limite ou legitimidade das penas (princípio da culpa) - o que, obviamente, não 
 significa que desdenhe dos fins de prevenção (geral e especial) destas.
 
  
 
  
 
                         Num sentido, que se crê não ser inteiramente 
 coincidente, mas ser bastante aproximado deste, FIGUEIREDO DIAS ('Os Novos Rumos 
 da Política Criminal', separata da Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, 1983, 
 página 27) escreve, a este propósito, o seguinte:
 
 [...] a culpa continua a constituir, não o fundamento, mas em todo o caso um dos 
 fundamentos irrenunciáveis da aplicação de qualquer pena.
 
  
 
  
 
                         E noutro escrito ('Direito Penal e 
 Estado‑Material‑de‑Direito', In Revista de Direito Penal, Forense, Rio de 
 Janeiro, 1982, página 48), diz o mesmo Autor:
 
 É o valor irrenunciável da garantia da iminente dignidade humana que constitui o 
 fundamento axiológico do princípio da culpabilidade; e é a delimitação da 
 responsabilidade do homem, dali decorrente, que define a função do princípio à 
 luz das exigências do Estado‑de‑Direito material.
 
  
 
  
 
                         E mais adiante:
 
 [...] não há alternativa à necessidade de medição da pena pela culpabilidade; e 
 por uma culpabilidade que contenha um elemento ético-pessoal limitador das 
 exigências que de outros pontos de vista se façam à responsabilidade do agente.
 
 
 
 
 
  
 
  
 
  
 
                         O direito penal é um direito de protecção. Ele só deve, 
 por isso, intervir para proteger bens jurídicos. E mais: a sua intervenção 
 apenas se justifica, se não for possível o recurso a outras medidas de política 
 social, igualmente eficazes, mas menos 'violentas', que as sanções criminais.
 
  
 
  
 
                         O direito penal tem, assim, um carácter fragmentário e 
 subsidiário, cumprindo uma função de ultima ratio.
 
  
 
  
 
                         Fala-se, a propósito, no princípio da fragmentariedade: 
 o direito penal há-de limitar-se à defesa das perturbações graves da ordem 
 social e à protecção das condições existenciais indispensáveis ao viver 
 comunitário. E fala-se, bem assim, no princípio da subsidariedade: dentro da 
 panóplia das medidas legislativas para a protecção e defesa dos bens jurídicos, 
 as sanções penais hão-de ser sempre o último recurso.
 
  
 
  
 
                         EDUARDO CORREIA ('Estudos sobre a reforma do Direito 
 Penal depois de 1974', in Revista da Legislação e Jurisprudência, ano 119º, 
 página 6) - depois de referir o princípio da necessidade, 'como limite do âmbito 
 do direito penal', adverte para que a danosidade social das condutas, capaz de 
 impor a sua punição, não deve, porém, ser vista num puro plano sociológico, mas 
 antes num plano ético-jurídico ou transpositivo. Diz, a seguir:
 Assim, para se considerar como necessária uma reacção criminal, é mister que os 
 bens jurídicos que com ela se afirmam tenham também ressonância ética, melhor, 
 dignidade penal [...]. A dignidade penal dos comportamentos puníveis é, assim, o 
 elemento essencial de um direito penal material.
 
  
 
  
 Acrescenta, depois:
 O ponto de referência de um conceito material de crime supõe sempre que o agente 
 seja merecedor da pena - ideia a conjugar com a sua necessidade.
 
  
 
  
 
                         E, citando SAX, a propósito da limitação das chamadas 
 zonas penais, diz ainda:
 Necessidade da pena como o caminho mais humano para proteger certos bens 
 jurídicos. Merecedor da pena como qualidade de alguém que a deva sofrer.
 
  
 
  
 
                         Também FIGUEIREDO DIAS ('O sistema sancionatório no 
 Direito Penal Português', in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Eduardo 
 Correia, I, Boletim da Faculdade de Direito, número especial, Coimbra, 1984, 
 página 807) faz apelo ao princípio da necessidade como limite à criminalização 
 das condutas. Escreve ele:
 
 [...] num Estado de Direito material, de raiz social e democrática, o direito 
 penal só pode intervir onde se verifiquem lesões insuportáveis das condições 
 comunitárias essenciais de livre desenvolvimento e realização da personalidade 
 de cada homem.
 
  
 
  
 
                         Mais adiante, depois de advertir que, 'mesmo quando uma 
 conduta viole um bem jurídico, os instrumentos jurídico‑penais devem ficar fora 
 de questão sempre que a violação possa ser suficientemente controlada ou 
 contrariada por meios não criminais de política social', FIGUEIREDO DIAS 
 acentua:
 
 [...] a 'necessidade social' torna-se assim um critério decisivo de intervenção 
 do direito penal, deste modo arvorado em ultima ou extrema ratio da política 
 social.
 
  
 
  
 
                         É ainda FIGUEIREDO DIAS (loc. cit., página 814) quem, 
 depois de referir que, por imperativo constitucional, toda a política criminal 
 se deve conformar com a ideia de Estado de Direito - o que vem a traduzir-se no 
 princípio da legalidade (cf. artigo 29º, nº 1, da Constituição) - chama a 
 atenção para um outro princípio, também ele de emanação jurídico‑constitucional, 
 que o legislador deve observar nesta matéria. É o princípio que designa por 
 
 'princípio de congruência ou de analogia substancial entre a ordem axiológica 
 constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos protegidos pelo direito penal' 
 
 (a que o recorrente faz apelo), do qual 'decorre, justamente, a exigência de 
 necessidade e subsidariedade da intervenção jurídico-penal'.
 
 
 
 
 
  
 
  
 
  
 
                         Também JOSÉ DE SOUSA E BRITO ('A Lei Penal na 
 Constituição', in Estudos sobre a Constituição, volume 2º, Lisboa, 1978, página 
 
 218) escreve:
 Entende-se que as sanções penais só se justificam quando forem necessárias, isto 
 
 é, indispensáveis, tanto na sua existência como na sua medida, à conservação e à 
 paz da sociedade civil. Uma vez que as sanções penais se traduzem numa limitação 
 mais ou menos grave dos direitos individuais, o princípio restritivo dirá que 
 essa limitação será a menor que as necessidades da conservação e da paz sociais 
 consentirem. Haverá que adquirir em cada caso a convicção de que, se a sanção 
 fosse suprimida ou reduzida, a ordem social poderia ser posta em causa.
 
  
 
  
 
                         7. O legislador - recorda-se - só deve decidir-se por 
 criminalizar condutas que violem bens jurídicos essenciais ao viver comunitário. 
 Só estes bens jurídicos têm dignidade penal.
 
                         Dizendo de outro modo: só os comportamentos, que se 
 traduzam em violações de direitos e interesses que, no contexto da ordem 
 axiológica jurídico-constitucional, tenham ou devam ter valor (e, por isso, 
 sejam valores elevados à dignidade de bens jurídicos), podem cair no âmbito do 
 direito penal.
 
  
 
  
 
                         A este propósito, afirma FIGUEIREDO DIAS (Para uma 
 Dogmática do Direito Penal Secundário, Coimbra, 1984, página 27):
 
 [...] entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal de bens jurídicos 
 tem de verificar-se uma qualquer relação de mútua referência que não é de 
 
 'identidade' ou de 'recíproca cobertura', mas de analogia material.
 
 
 
 
 
  
 
  
 
  
 
                         E o mesmo Autor (Os Novos Rumos da Política Criminal 
 cit., página 14) diz ainda que 'a ordem de valores jurídico‑constitucional 
 constitui o quadro de referência e, simultaneamente, o critério regulativo do 
 
 âmbito de uma aceitável e necessária actividade punitiva do Estado'.
 
  
 
  
 
                         8. Pois bem: a vida e a segurança das pessoas que 
 circulam nas estradas - que o legislador pretende proteger com a punição da 
 condução de veículos automóveis por quem não possua habilitação legal - são 
 seguramente bens que, à luz da ordem jurídico-constitucional de valores, o 
 direito penal pode assumir como seus (isto é, como bens jurídico-penais).
 
  
 
  
 
                         9. Com dizer isto, a questão de constitucionalidade não 
 fica ainda totalmente esclarecida.
 
  
 
  
 
                         O legislador, na sua decisão de criminalizar os 
 comportamentos lesivos de bens jurídico-penais, tem ainda que observar outros 
 princípios.
 
                         Alguns deles, sendo, embora, princípios metajurídicos, 
 acham-se precipitados, desde logo, na ideia de Estado de Direito. É o caso do 
 princípio da justiça, que impede que o legislador, quando decide punir uma 
 conduta, actue de forma voluntarista ou arbitrária: ele deve sentir-se, antes e 
 sempre, limitado (para usar o modo de dizer de BAPTISTA MACHADO) 'pelas 
 concepções de justiça que todo o concreto ordenamento jurídico pressupõe'. E é o 
 caso ainda do princípio de humanidade que reclama que as penas que o legislador 
 cominar (o que só deve fazer, se elas forem necessárias) sejam tão suaves quanto 
 possível (cf., a este propósito, o artigo 25º, nºs 1 e 2, da Constituição).
 
  
 
  
 
                         Mas mais: a liberdade de conformação do legislador, na 
 sua decisão de criminalizar comportamentos humanos, acha-se ainda limitada pelo 
 princípio da proporcionalidade (consagrado no artigo 18º, nº2, da Constituição; 
 cf. também o artigo 30º) - o qual (nos dizeres de GOMES CANOTILHO, 'Teoria da 
 Legislação Geral e Teoria da Legislação Penal', in Estudos em Homenagem ao 
 Professor Doutor Eduardo Correia, cit., página 855) 'aponta não só para a 
 observância dos princípios da necessidade e da adequação, por parte das medidas 
 penais, como da verificação do princípio da proporcionalidade, em sentido 
 restrito, de forma a assegurar a justa medida dos meios (penais) e dos fins (das 
 penas)', ou seja, de modo a garantir uma adequada proporção entre as penas e os 
 factos a que elas se aplicam.
 
 
 
 
 
  
 
  
 
  
 
                         A Constituição não contém qualquer proibição de 
 criminalização.
 
  
 
  
 
                         Por isso, observados os princípios que se deixam 
 apontados, o legislador goza de ampla liberdade na individualização dos bens 
 jurídicos carecidos de tutela penal (e, assim, na decisão de quais os 
 comportamentos lesivos de direitos ou interesses jurídico-constitucionalmente 
 protegidos que devem ser defendidos pelo recurso a sanções penais). Há, aí, que 
 confiar na sabedoria do legislador (cf. GOMES CANOTILHO, ob. e loc. cit.).
 
  
 
  
 
                         No seu acórdão nº 634/93 (DR, II,.31.de Março de 1994), 
 este Tribunal - depois de antes ter recordado, com NICOLAS GONZALEZ-CUELLAR 
 SERRANO (Proporcionalidad y Derechos Fundamentales en el Processo Penal, Colex, 
 página 225), que 'haverá que pesar os diversos bens e valores em causa para 
 efectuar uma 'ponderação de interesses segundo as circunstâncias do caso 
 concreto', para averiguar 'se o sacrifício dos interesses individuais que a 
 ingerência comporta mantém uma relação razoável ou proporcionada com a 
 importância do interesse estatal que se trata de salvaguardar', já que 'se o 
 sacrifício resulta excessivo a medida deverá ser considerada inadmissível, ainda 
 que satisfaça os restantes pressupostos e requisitos decorrentes do princípio da 
 proporcionalidade'' - afirmou:
 
 É evidente que o juízo sobre a necessidade do recurso aos meios penais cabe, em 
 primeira linha, ao legislador, ao qual se há-de reconhecer, também nesta 
 matéria, um largo âmbito de discricionariedade. A limitação da liberdade de 
 conformação legislativa, nestes casos, só pode, pois, ocorrer quando a punição 
 criminal se apresente como manifestamente excessiva.
 
  
 
  
 
                         10. No presente caso, a condução sem carta - que, antes 
 era punida, como contravenção, com multa e prisão até 1 mês (ou até 6 meses, em 
 caso de reincidência): cf. artigo 46º, nº 1, do Código da Estrada - com a norma 
 sub iudicio, passou a constituir crime, punível com prisão até 1 ano ou multa 
 até 120 dias.
 
  
 
  
 
                         Não se vê que a punição, como crime, de um comportamento 
 que já antes constituía infracção penal, embora sendo contravenção, seja 
 
 'manifestamente excessiva'. Tanto mais que - como se diz no preâmbulo do diploma 
 legal a que pertence a norma aqui em apreciação - o País se defronta com 
 
 'elevados índices de sinistralidade', devidos à 'prática de infracções que, pela 
 sua gravidade, põem em causa a vida de todos os que circulam nas estradas 
 nacionais'.
 
  
 
                         Uma das situações em que (segundo FIGEUEIREDO DIAS) é 
 admissível a neocriminalização é, justamente, aquela em que 'novos fenómenos 
 sociais, anteriormente inexistentes ou muito raros, desencadeiem consequências 
 comunitariamente insuportáveis e contra as quais se tenha de fazer intervir a 
 tutela penal em detrimento de um paulatino desenvolvimento de estratégias não 
 criminais de controlo social' (cf. O sistema sancionatório do Direito Penal 
 Português, cit., página 807).
 
  
 
  
 
                         11. Como, nesta matéria, este Tribunal só deve censurar 
 as soluções legislativas que forem manifestamente excessivas, há que concluir 
 que a norma sub iudicio não viola qualquer norma ou princípio constitucional, 
 designadamente aquele que o recorrente invoca.
 
  
 
                         III. Decisão:
 
  
 Pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso, 
 confirmando-se o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de 
 constitucionalidade que nele se contém.
 
  
 Lisboa, 21 de Fevereiro  de 1995
 Messias Bento
 Bravo Serra
 Guilherme da Fonseca
 Luis Nunes de Almeida