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Processo n.º 562/2005
 
 2.ª Secção
 Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
 
  
 
  
 
  
 
  
 Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
 
  
 
  
 
  
 
 1.  Nos presentes autos foi proferida a seguinte Decisão Sumária:
 
  
 
 1.  Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos 
 do Supremo Tribunal de Justiça, em que figura como recorrente A. e como 
 recorrido o Ministério Público, o recorrente interpôs recurso de 
 constitucionalidade do acórdão de 25 de Maio de 2005 nos seguintes termos:
 
  
 Porque tem legitimidade e está em tempo, vem, nos termos do disposto no art. 
 
 70°, n° 1, alínea b), da LTC, interpor recurso para o Tribunal Constitucional, 
 do acórdão do STJ proferido nos presentes autos, para apreciação da 
 inconstitucionalidade da norma, aplicada pela decisão posta em crise, ínsita no 
 n° 2 do art. 30° do Código Penal, com a interpretação que dela é feita naquela 
 peça, por violação do disposto no art. 29° da Constituição da República 
 Portuguesa.
 O recurso deverá ser admitido com efeito suspensivo e a subir imediatamente nos 
 próprios autos.
 
  
 Notificado para explicitar, ao abrigo do artigo 75º‑A da Lei do Tribunal 
 Constitucional, o sentido normativo que considera inconstitucional, o recorrente 
 respondeu o seguinte:
 
  
 A., Recorrente nos autos de recurso em epígrafe, notificado do douto despacho 
 antecedente,
 Vem, em cumprimento do doutamente determinado e nos termos do disposto no art. 
 
 75°-A, n° 6, da LTC, informar que a questão da inconstitucionalidade que 
 pretende ver apreciada foi por si levantada na motivação do recurso apresentado 
 perante o Supremo Tribunal de Justiça, sintetizada na alínea F) das respectivas 
 conclusões.
 Mais esclarece que considera materialmente inconstitucional a norma contida no 
 art. 30°, n° 2, do Cód. Penal, com a interpretação que dela é feita na decisão 
 recorrida, por violação do disposto no art. 29° da Constituição da República 
 Portuguesa, na medida em que - considerando que a factualidade dada como provada 
 revela que o arguido agiu motivado por uma única resolução, surgindo as condutas 
 imputadas ao agente na sequência de uma mesma decisão, dadas as estreitíssimas 
 dependência temporal e interligação de tais condutas - condenar o recorrente 
 pela prática de um crime tipificado no n° 1 do art. 172° do CP e por um crime 
 previsto no n° 2 do mesmo art. 172°, em vez de o condenar pela prática de um 
 
 único crime continuado punível nos termos do n° 2 do mencionado art. 172°, faz 
 com que, quando estejam em causa os tipos legais em apreço, seja automática e 
 sistematicamente afastada a sua qualificação como crime continuado o que viola o 
 princípio da legalidade e faz com que o arguido seja julgado (e condenado) duas 
 vezes pela prática de um mesmo crime.
 
  
 A alínea f) das conclusões das alegações a que o recorrente alude na resposta 
 transcrita tem o seguinte teor:
 
  
 F) A interpretação do art. 30°, n° 2, do Cód. Penal nos termos em que é feita 
 pela decisão recorrida seria materialmente inconstitucional por violação do 
 disposto no art. 29° da Constituição da República Portuguesa.
 
  
 Cumpre apreciar.
 
  
 
 2.  O recorrente nos presentes autos insurge‑se contra a condenação em concurso 
 efectivo, pela prática de dois crimes de abuso sexual de criança (artigo 172º, 
 nºs 1 e 2, do Código Penal).
 Foi a seguinte a matéria de facto dada como provada:
 
  
 
 1. O arguido é vizinho dos pais de B., nascido a 2/3/1990, e deste. Foi o 
 arguido quem efectuou todo a instalação eléctrica da casa onde aqueles vivem.
 
 2. O arguido era visita assídua desta casa e tinha um relacionamento próximo com 
 o pai do B., que conhecia há mais de 25 anos, dado que este visitava o seu pai 
 
 (de quem era sócio), pelo menos uma vez por semana, e tinha um relacionamento 
 muito próximo com a mãe do B., que conheceu através do marido, há mais de 15 
 anos.
 
 3.  O B. foi, desde sempre, visita da casa dos pais do arguido, aonde se 
 deslocava quase semanalmente na companhia do respectivo progenitor, e onde, com 
 muita frequência, se encontrava com o arguido.
 
 4. Em inícios de 2000, o B. foi a casa do arguido e aí, este, ciente do natural 
 interesse e curiosidade das crianças da idade daquele por assuntos do foro 
 sexual, perguntou-lhe se queria ver um filme, tendo-lhe este dito que sim.
 
 5. Então o arguido colocou no seu leitor de vídeo uma das várias cassetes que 
 possuía que era um filme em que se podiam visionar cenas de sexo explícito.
 
 6. Volvidos alguns instantes de visionamento do filme, o arguido disse ao B. que 
 fizessem o mesmo e que baixasse as suas calças e cuecas.
 
 7. Após ter tirado também as suas calças e cuecas, o arguido pegou no B. ao colo 
 e colocou-o no seu regaço.
 
 8. Acto contínuo, tentou introduzir o seu pénis erecto no ânus do B., fazendo 
 movimentos com o corpo para cima e para baixo, só parando alguns instantes 
 depois, não obstante o B. já lhe tivesse referido que lhe estava a doer.
 
 9. Ambos já vestidos e compostos, o arguido pediu então ao B. que não contasse 
 nada a ninguém, vindo este a abandonar de seguida a residência do arguido.
 
 10. No dia 5/10/2000, o B., sem que tivesse contado a ninguém o que lhe havia 
 acontecido, voltou a casa do arguido, a pedido do seu pai, a fim de o chamar 
 para ir arranjar um motor eléctrico que se tinha avariado e o arguido, com o 
 pretexto de estar ocupado com o arranjo de uma antena, afirmou não poder ir.
 
 11. Antevendo o que poderia voltar a acontecer e aproveitando a situação que 
 pensava ser de conivência por parte do B., gerada pelo silêncio deste 
 relativamente ao episódio atrás descrito, o arguido disse‑lhe que tinha um filme 
 de 'foda' para lhe mostrar.
 
 12. Depois, o arguido colocou no leitor de vídeo uma das várias cassetes que 
 possuía de cariz pornográfico e ambos começaram a ver vários cenas explícitas de 
 sexo, nomeadamente de sexo oral.
 
 13. Na altura em que se podia visionar na televisão uma mulher a praticar sexo 
 oral com um homem, o arguido, que se encontrava sentado ao lado no sofá, 
 desapertou, então, o fecho das suas calças, desceu-as, juntamente com as cuecas, 
 até ao joelho, e disse ao B. que lhe 'tocasse ao bicho'.
 
 14. O B. acabou por colocar a mão sobre o pénis erecto do arguido e passou a 
 fazer com a mão movimentos para baixo e para cima.
 
 15. Depois o arguido disse-lhe que lhe 'chupasse o pita', acabando por lhe meter 
 o seu pénis erecto na boca e começou a fazer, com a cabeça daquele, movimentos 
 descendentes e ascendentes.
 
 16. Uns momentos depois, o arguido mandou-o lavar a boca e deu‑lhe um iogurte 
 alegadamente para tirar o sabor e, com promessas de vária ordem, mais uma vez 
 lhe pediu que não contasse a ninguém.
 
 17. O arguido, no intuito de satisfazer os seus instintos sexuais com a prática 
 de relações sexuais com o menor, agiu sempre livre, voluntária e 
 conscientemente, estando perfeitamente ciente da idade daquele e que a sua 
 conduta era proibida e punida por lei.
 
 18. Na sequência dos factos de 5/10/2000 e do conhecimento, na família e no meio 
 onde vive, dos factos de inícios de 2000 e de 5/10/2000, o B. ficou perturbado, 
 com sintomas de ansiedade excessiva (sono agitado, pesadelos, disfagia) e 
 tendência aos acidentes.
 
 19. Numa avaliação feita em 19/9/2001 e 2/10/2001 apresentava um estado 
 neurótico em que predominava o sentimento de permanente ameaça associado ao 
 receio de rejeição/abandono, estado esse que denunciava já uma perturbação ao 
 nível da organização da personalidade e que tem geralmente continuidade na vida 
 adulta se não for devidamente tratada.
 
 20. Até a altura dos factos ocorridos em 5/10/2000, o B. era considerado uma 
 criança alegre, comunicativa e extrovertida.
 
 21. Depois, o B. mostrou alterações no seu comportamento, tanto na família como 
 na escola, tomando-se uma criança assustada, triste e com medo, pedindo 
 constantemente a protecção dos pais.
 
 22. O B. foi assistido por um psicólogo na escola, por falta de rendimento 
 escolar (já tinha chumbado de ano antes dos factos em causa nestes autos).
 
 23. Na sequência, o B. necessitou de acompanhamento psicológico.
 
 24. O B. sofreu angústia por saber que os factos chegaram ao conhecimento de 
 muita gente, pois vive num meio pequeno, e também porque teve de os descrever 
 várias vezes perante entidades diversas.
 
 25. Com o recurso à via judicial e deslocações da sua residência para o tribunal 
 e para o Hospital de Aveiro, os pais do menor tiveram despesas.
 
 26. O arguido não tem antecedentes criminais.
 
 27. É pessoa reputada de educada e equilibrada por alguns dos seus conhecidos e 
 amigos.
 
 28. Sempre manteve um comportamento cordato e respeitador com aqueles, sendo, 
 por isso, por eles considerado e respeitado.
 
  
 O Supremo Tribunal de Justiça considerou o seguinte:
 
  
 A. O crime continuado:
 Há, por conseguinte, que enquadrar jurídico-penalmente a actividade do 
 recorrente, e, designadamente, apurar da compatibilidade do número de crimes de 
 abuso sexual de crianças a ele imputados, face ao normativo do artigo 30º do CP.
 Que estabelece:
 
 1. O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente 
 cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela 
 conduta do agente.
 
 2. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime 
 ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, 
 executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma 
 mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
 A estruturação do crime continuado, como é sabido, encontra o seu fundamento 
 numa diminuição da culpa do agente, decorrente da facilidade criada, por certas 
 circunstâncias externas, para a prática de novos actos da mesma ou idêntica 
 natureza.
 Pelo que pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a 
 existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a 
 repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente 
 que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.
 Sempre recorrendo à ideia fundamental daquilo que legitima, em última instância, 
 o funcionamento deste instituto: a diminuição considerável do grau de cultura do 
 agente.
 Sintetizando, eis os pressupostos, cumulativos, do crime continuado:
 
 - realização plúrima do mesmo tipo de crime (ou de vários tipos que protejam 
 fundamentalmente o mesmo bem jurídico);
 
 - homogeneidade da forma de execução (unidade do injusto objectivo da acção);
 
 - unidade de dolo (unidade do injusto pessoal da acção ). As diversas resoluções 
 devem conservar-se dentro de uma 'linha psicológica continuada';
 
 - lesão do mesmo bem jurídico (unidade do injusto de resultado);
 
 - persistência de uma 'situação exterior' que facilite a execução e que diminua 
 consideravelmente a culpa do agente.
 A Doutrina indica algumas das situações exteriores que, diminuindo 
 consideravelmente a culpa do agente, poderão estar na base de uma continuação 
 criminosa:
 
 - ter-se criado, através da primeira actividade criminosa, uma certa relação ou 
 um certo acordo entre os sujeitos (como no adultério);
 
 - voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime, que já 
 foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa (como 
 na descoberta de um acesso utilizável à caixa-forte de um Banco);
 
 - perduração do meio apto para a realização de um crime – meio que se criou ou 
 adquiriu para executar a primeira conduta criminosa (como no fabrico de uma 
 chave falsa de um cofre);
 
 - a circunstância de o agente, depois de executar a resolução criminosa, 
 verificar que se lhe oferece a possibilidade de alargar o seu âmbito (o ladrão 
 furta a jóia que deseja e também o dinheiro que junto dela se encontrava e com 
 que não contava).
 O acórdão recorrido, a esta questão, que expressamente lhe foi colocada em sede 
 recursiva, limitou-se a confirmar a decisão da 1ª Instância.
 E nos seguintes termos:
 
 «A conduta do arguido, tal como resulta dos factos provados prolonga-se no 
 tempo, embora sequenciais, obedecendo às mesmas solicitações endógenas e 
 exógenas, e por tal, como faz a sentença, tipifica o crime continuado» .
 Por aqui se ficou.
 Como impressivamente se salientou, só há crime continuado quando se verifica uma 
 diminuição considerável da culpa do agente que deriva dum condicionalismo 
 exterior que propicia a repetição das várias acções criminosas, mediante um 
 procedimento que se reveste de uma certa uniformidade.
 O fundamento da diminuição da culpa encontra-se assim no circunstancialismo 
 exógeno que precipita e facilita as sucessivas condutas do agente, e o 
 pressuposto da continuação criminosa deverá ser encontrado numa relação que, de 
 modo considerável, e de fora, facilitou aquela repetição.
 Tudo conduzindo a que seja, a cada crime, menos exigível ao agente que se 
 comporte de maneira diversa.
 Sem diminuição de culpa e sem a correspondente envolvência externa ao agente não 
 existe crime continuado.
 Da matéria de facto transcrita não só não está directamente provada como não 
 resulta, por forma alguma, configurada, uma situação exterior ao agente que o 
 impeliu à repetição da conduta criminosa, nem a mencionada diminuição de culpa.
 Antes resulta uma agravação dessa culpa, agora face à inovação de uma diversa 
 conduta criminosa (o coito oral).
 A circunstância de se verificar a repetição (no coito oral), face ao outro 
 delito em confronto (actos de masturbação), do modus operandi utilizado, não 
 permite, só por si, configurar algum dos aludidos índices referidos pela 
 Doutrina, v.g., 'a perduração do meio apto para realizar o delito que se criou 
 ou adquiriu para executar a primeira conduta criminosa', como ensaia, ou parece 
 ensaiar, a 1ª Instância, com o aplauso da Relação recorrida, ao afirmar a 
 existência da continuação criminosa com base na contemporaneidade e continuidade 
 da prática dos dois crimes sub juditio, 'com as facilidades daí decorrentes' 
 para o arguido, face ao sucesso obtido na primeira acção, o que implicaria a 
 diminuição da sua culpa. 
 Efectivamente, a matéria de facto apurada não permite afirmar que foi a 
 perduração do meio apto, ou as facilidades encontradas, que levou ao cometimento 
 de novos crimes, assim diminuindo a culpa do agente.
 Bem pelo contrário no que toca à culpa do arguido que, face a uma diversa 
 actuação, esta com o perfil fáctico comprovado, se apresenta, in casu, 
 superiormente aumentada.
 Ademais, nestas circunstâncias, e sempre, só seria configurável a existência de 
 crime continuado, se a prática do coito oral tivesse sido determinada por uma 
 situação que fosse exterior ao arguido, facilitando-lhe a execução do crime e 
 diminuindo-lhe consideravelmente a culpa.
 Por outras palavras: dos factos provados não resulta que esta reiteração 
 criminosa tenha sido fruto mais de uma falada situação exterior (circunstâncias 
 exógenas) do que de motivos endógenos inerentes à personalidade do arguido.
 Resulta, ao invés, ter sido o próprio arguido a criar e a dominar o 
 condicionalismo favorável à concretização do seu propósito criminoso quanto ao 
 cometimento dos crimes em questão, não tendo surgido, assim, por acaso, tais 
 circunstâncias exógenas ou exteriores em ordem à facilitação do seu objectivo em 
 vista, de modo a conduzirem-no para a reiteração das descritas condutas, antes 
 estas apresentaram-se conscientemente procuradas por ele próprio para 
 concretizar a sua intenção - o que, obviamente, exclui uma persistente 
 solicitação exterior que o tenha arrastado para o crime, e traduz uma inequívoca 
 persistência delituosa com manifesta intensidade dolosa.
 O processo executivo, em qualquer dos dois meios agora previstos, pressupõe 
 motivação não coincidente e decisões autónomas, implicando para o ofendido uma 
 diferente intromissão e compressão da sua liberdade e autodeterminação sexual, 
 bem como da sua intimidade sexual.
 Concluindo: sendo a matéria de facto omissa de qualquer circunstancialismo 
 externo que se possa considerar como redutor da culpa, dentro dos parâmetros 
 expostos, inexiste lugar, in casu, para o crime continuado, excluída, ainda, e 
 sem margem para quaisquer dúvidas, a ideia‑chave de nos encontrarmos perante uma 
 
 única resolução criminosa, mais concretamente, numa linha psicológica 
 continuada, enquanto inexistente que se afirma o denominado 'dolo global', isto 
 
 é, a intenção que abarca o
 resultado total do facto nas suas linhas essenciais.
 E daí que o arguido, quanto aos factos ocorridos em 5 de Outubro de 2000, seja 
 autor de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punível no artigo 
 
 172°, n° 1 (actos de masturbação), em concurso real com um crime de abuso sexual 
 de crianças, previsto e punível pelo artigo 172°, n° 2 (coito oral), do CP.
 Nesta área, da qualificação jurídico-criminal, desde já, se revogando o acórdão 
 recorrido.
 
  
 O recorrente refere uma dada interpretação do artigo 30º, nº 1, do Código Penal. 
 No entanto, notificado para explicitar a interpretação que considera 
 inconstitucional, o recorrente limitou‑se a descrever a circunstância específica 
 do caso concreto, reportando‑se, desse modo, à própria decisão.
 Ora, o recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal 
 Constitucional, só pode ter por objecto normas jurídicas, ou seja, critérios de 
 decisão de casos concretos dotados de generalidade e de abstracção. O recorrente 
 apenas impugna a decisão. Não identifica um qualquer critério normativo.
 
 É particularmente elucidativa do que se deixa dito a parte da resposta ao 
 Despacho proferido ao abrigo do artigo 75º‑A da Lei do Tribunal Constitucional, 
 na qual o recorrente, procurando identificar a dimensão normativa que pretende 
 impugnar, refere “a norma contida no artigo 30º, nº 1, do Código Penal, (…) na 
 medida em que – considerando a factualidade dada como provada revela que o 
 arguido agiu motivado por uma única resolução, surgindo as condutas imputadas ao 
 agente na sequência de uma mesma decisão, dadas os estreitíssimos desperdício 
 temporal e interligação de tais condutas”.
 Trata‑se, manifestamente, de uma referência à decisão do caso.
 
 É verdade que o recorrente ainda refere aquilo que considera um efeito da 
 decisão: afirma o recorrente que, quando estão em causa os tipos legais em 
 apreço, será automática e sistematicamente afastada a sua qualificação como 
 crime continuado.
 No entanto, o tribunal recorrido jamais assumiu essa alegada autenticidade no 
 afastamento da figura do crime continuado nem os autos indiciam que tal 
 perspectiva fundamentou a decisão recorrida. Com efeito, na perspectiva do 
 Supremo Tribunal de Justiça, não existe crime continuado no caso em face de uma 
 interpretação das circunstâncias concretas dos autos e da não subsunção dessas 
 circunstâncias no nº 2 do artigo 30º do Código Penal. Não foi, pois, aplicada 
 uma qualquer regra de automaticidade no afastamento da figura do crime 
 continuado quando está em causa determinado tipo incriminador pela decisão 
 recorrida.
 Não se verificam, portanto, os pressupostos processuais do recurso interposto.
 Nessa medida, não se tomará conhecimento do objecto do presente recurso.
 
  
 
 3.  Em face do exposto, decide‑se não tomar conhecimento do objecto do presente 
 recurso.
 
  
 O reclamante vem agora reclamar nos seguintes termos:
 
  
 A.,
 Recorrente nos autos de recurso em epígrafe, notificado do douto despacho do 
 Juiz Relator que decidiu não tomar conhecimento do objecto do recurso, vem, ao 
 abrigo do disposto no artigo 78°-A, n° 3, da LTC, reclamar para a conferência, 
 com os seguintes fundamentos:
 A decisão de que aqui se reclama fundamenta-se na circunstância de, 
 alegadamente, não se verificarem os pressupostos processuais do recurso 
 interposto, por o recorrente se limitar a impugnar a decisão do STJ e não 
 identificar o critério normativo violado.
 Com toda a consideração, que é muita, pensamos que tal critério normativo foi 
 invocado (porventura sem o recurso às palavras mais adequadas), até porque, ao 
 contrário do que é referido no despacho em apreço, no acórdão do STJ recorrido, 
 o crime continuado não é afastado apenas em função das circunstâncias concretas 
 dos autos, mas por razões abstractas e gerais resultantes da sua subsunção ao n° 
 
 2 do artigo 30° do Cód. Penal relacionado com os tipos legais de crime previstos 
 nos nºs 1 e 2 do art. 172° do mesmo diploma.
 Na motivação do recurso interposto para o STJ, o recorrente alegou que as 
 circunstâncias em que se teriam verificado as condutas que lhe vêm imputadas, 
 dada a sua dependência temporal e interligação, não revelam resoluções autónomas 
 ou diferentes, antes evidenciando terem sido levadas a cabo na sequência de uma 
 mesma e única resolução.
 Mais alegou que, estando em causa, em ambos os referidos ilícitos, a protecção 
 dos mesmos bens jurídicos, no quadro de uma única resolução, a conduta 
 integradora do tipo previsto no n° 1 do art. 172° não tem autonomia criminal 
 relativamente ao comportamento previsto no n° 2 daquele normativo legal.
 Dos factos dados como provados resulta que o arguido adoptou um comportamento 
 composto de acções sequenciais e interligadas pela prossecução de um único 
 objectivo - a satisfação do instinto sexual do agente à custa de terceiros - 
 verificando-se uma única resolução criminosa a dominar toda a actuação, não 
 ocorrendo a violação de bens jurídicos distintos. Assim, os factos susceptíveis 
 de preencher o tipo do n° 1 do art. 172° não têm autonomia criminal 
 relativamente ao do n° 2 da mesma norma, pelo que não existe continuação 
 criminosa mas antes, o preenchimento de um único tipo legal de crime.
 O douto acórdão recorrido, não só não perfilhou a interpretação do recorrente, 
 como entendeu que, relativamente aos factos situados em 05.10.2000, não ocorreu 
 um crime continuado, mas o preenchimento dos dois tipos legais de crime 
 previstos nos n° 1 e 2 do citado art. 172°.
 Isto, não obstante referir que a Doutrina indica algumas das situações 
 exteriores que, diminuindo consideravelmente a culpa do agente, poderão estar na 
 base de uma continuação criminosa, como seja, ali se cita, 'a circunstância de o 
 agente, depois de executar a resolução criminosa, verificar que se lhe oferece a 
 possibilidade de alargar o seu âmbito', dando como exemplo o ladrão que furta a 
 jóia pretendida e o dinheiro que se encontrava perto dela.
 Ora os factos dados como provados, transmitem-nos uma situação que não deixa de 
 cair neste enquadramento. No entanto, é excluída a continuação criminosa por se 
 entender que o condicionalismo favorável à concretização do propósito do agente 
 se apresenta conscientemente procurado por ele próprio, e que o processo 
 executivo pressupõe motivação não coincidente e decisões autónomas.
 Quer isto dizer, que o acórdão posto em crise parte de um princípio, abstracto e 
 geral, de que, em crimes de foro sexual praticados com menores, todas as 
 condicionantes são determinadas pelo agente, em função da sua determinação 
 criminosa, e que a cada acto, ainda que preliminar e antecedente do outro, 
 corresponde uma autónoma decisão do agente.
 Este entendimento, parte dos factos dados como provados mas não se reduz a eles, 
 devido ao seu apontado carácter geral e abstracto. E deste entendimento resulta 
 que estejam em causa os tipos legais em apreço, será automática e 
 sistematicamente afastada a sua qualificação como crime continuado.
 E, embora o citado entendimento não seja explicitado enquanto tal pelo acórdão 
 recorrido, como se refere no douto despacho em apreço, a verdade é que o mesmo 
 não resulta do art. 30°, n° 1, do Cód. Penal, quando relacionado com os ilícitos 
 tipificados do artigo 172° do mesmo diploma.
 Pretende-se atacar com o recurso que não foi admitido, não singelamente o 
 acórdão em concreto, mas o critério geral e abstracto que o determinou, que 
 viola manifestamente a norma contida no art. 29° da CRP.
 Entende, por isso, o recorrente que se verificam in casu os pressupostos 
 estabelecidos na alínea b) do n° 1 do art. 70° da LTC, pelo que o recurso 
 interposto deveria ter sido admitido e apreciado.
 
  
 O Ministério Público pronunciou‑se do seguinte modo:
 
  
 
 1 - A presente reclamação é manifestamente infundada.
 
 2 - Na verdade - e como é óbvio - não se mostra suscitada, em termos adequados, 
 qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, limitando‑se o 
 arguido/recorrente a questionar a valoração da matéria de facto e o 
 enquadramento jurídico que, na ordem dos Tribunais Judiciais, lhe foi dado.
 
 3 - Não cabendo manifestamente no âmbito de um recurso de fiscalização concreta 
 a verificação casuística dos pressupostos da figura do crime continuado, a 
 existência ou inexistência de uma ou várias resoluções criminosas, bem como da 
 pretensa violação do 'princípio da legalidade' em tal subsunção do caso concreto 
 
 às normas penais incriminadoras.
 
  
 
  
 Cumpre apreciar.
 
  
 
  
 
 2.  O reclamante, procurando demonstrar que suscitou durante o processo uma 
 questão de constitucionalidade normativa, refere, mais uma vez, que as 
 circunstâncias em que se verificaram as condutas em causa evidenciam que houve 
 apenas uma única resolução criminosa, e que dos factos dados como provados 
 resulta que a conduta do arguido se enquadra no nº 1 do artigo 172º do Código 
 Penal. 
 O reclamante reitera as referências aos “factos dados como provados” para tecer 
 considerações sobre o crime continuado, referindo que considera inconstitucional 
 o entendimento segundo o qual sempre que estão em causa os crimes dos nºs 1 e 2 
 do artigo 172º do Código Penal “será automaticamente e sistematicamente afastada 
 a sua qualificação como crime continuado”.
 Ora, como se referiu e demonstrou na Decisão Sumária, o reclamante apenas 
 impugnou a decisão referida nos autos, nunca uma norma jurídica que tenha sido 
 aplicada.
 Quanto à alegada automaticidade do afastamento do crime continuado, quando estão 
 em causa os nºs 1 e 2 do artigo 172º do Código Penal, como se referiu na Decisão 
 Sumária, tal entendimento jamais foi assumido nos autos.
 
 É pois manifesta a improcedência da presente reclamação, remetendo‑se para o que 
 se disse na Decisão Sumária reclamada.
 
  
 
  
 
 3.  Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente 
 reclamação.
 
  
 
  
 Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em  20  UCs. 
 
  
 
  
 
                                    Lisboa, 9 de Novembro de 2005 
 
  
 Maria Fernanda Palma
 Benjamim Rodrigues
 Rui Manuel Moura Ramos