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Processo: n.º 90/92.
 Recorrente: Ministério Público.
 Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma.
 
  
 
  
 Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
 
  
 
  
 I — Relatório
 
  
 
 1 — Em processo de contra-ordenação da Câmara Municipal de Lisboa, foi aplicada 
 ao Partido Comunista Português e ao Partido Ecologista Os Verdes, enquanto 
 integrantes da Coligação Democrática Unitária (C.D.U.), uma coima total de 240 
 
 000$00, repartida por ambos em partes iguais, além de adicionais e custas do 
 processo, por infracção ao disposto no artigo 3.º, n.º 2, da Lei n.º 97/88, de 
 
 17 de Agosto (afixação de cartazes de propaganda política em edifício, sem 
 consentimento do proprietário), sancionada nos termos do artigo 10.º dessa Lei, 
 com referência ao artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.
 
  
 
 2 — Dessa decisão administrativa recorreram o Partido Comunista Português e o 
 Partido Ecologista Os Verdes para o Tribunal de Polícia de Lisboa, sustentando, 
 além do mais, a inconstitucionalidade da Lei n.º 97/88, por violação do artigo 
 
 37.º, n.º 3, da Constituição.
 Argumentaram que esse diploma tipificou como contra-ordenações as violações dos 
 seus comandos, respeitantes ao exercício da liberdade de expressão (artigo 37.º 
 da Constituição), e conferiu poderes de aplicação de coimas relativas a esses 
 ilícitos a autoridades administrativas (designadamente, presidentes de câmaras 
 municipais), contrariando, assim, a imposição constitucional, que entendem 
 decorrer do n.º 3 do artigo 37.º da Constituição, de que tais ilícitos devam 
 considerar-se de natureza criminal e de que a competência para o seu julgamento 
 caiba aos tribunais judiciais.
 Nas respectivas alegações de recurso, concluíram, quanto a essa matéria, nestes 
 termos:
 
  
 A Lei n.º 97/88 é inconstitucional por degradar em contra-ordenacionais ilícitos 
 que a CRP prevê como criminais, e por entregar a sua apreciação a autoridades 
 administrativas, quando a CRP a confia aos tribunais judiciais. 
 
 3 — O Tribunal de Polícia de Lisboa concedeu provimento aos recursos do Partido 
 Comunista Português e do Partido Ecologista Os Verdes, revogando a decisão 
 recorrida, por se entender serem inconstitucionais os artigos 3.º, n.º 2, e 
 
 10.º, n.º 1, da Lei n.º 97/88, de 17 de Agosto, por violação do artigo 37.º, n.º 
 
 3, com referência ao n.º 1, da Constituição.  Na fundamentação, argumentou-se do 
 seguinte modo:
 
  
 Suscitam os recorrentes a questão da constitucionalidade dos artigos 3.º, n.º 2, 
 e 10.º, n.º 1, da Lei n.º 97/88.
 Estas normas estão em violação com o artigo 37.º, n.º 3, da Constituição da 
 República, na medida em que aqui se afirma que estes ilícitos têm que ser 
 criminais, entregando a sua competência, para julgamento, aos Tribunais 
 Judiciais.  Logo, o ilícito não pode ter a natureza de contra-ordenação como 
 sucede com as normas em questão. (…)
 Logo, qualquer infracção cometida no exercício do direito de exprimir e divulgar 
 livremente o pensamento tem que ser apreciada pelos Tribunais Judiciais.  Para 
 ser apreciada pelos Tribunais Judiciais não pode ter a natureza de 
 contra-ordenação, pois estas são apreciadas por autoridades administrativas e só 
 são julgadas pelos Tribunais em sede de recurso.  Deste modo essas infracções só 
 podem ter a natureza de crime. (…)
 A razão de ser da exigência do artigo 37.º, n.º 3, da Constituição da República 
 quanto à apreciação das infracções em causa por parte dos Tribunais Judiciais é 
 evidente.  A liberdade de expressão é o primeiro dos direitos das sociedades 
 democráticas.  Não há democracia sem liberdade de expressão.  Dada esta 
 importância singular deste direito, entendeu o legislador constitucional que as 
 infracções cometidas no exercício desse direito tinham que ser apreciadas pelos 
 Tribunais como órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em 
 nome do povo.  Não podiam essas infracções ser confiadas às autoridades 
 administrativas por estas não terem a característica primeira e fundamental que 
 têm os Tribunais: a independência. (…)
 Ora, os recorrentes ao afixarem cartazes de propaganda eleitoral estão, 
 inequivocamente, a exercer o direito de liberdade de expressão a que se refere o 
 artigo 37.º, n.º 1, da Constituição da República.
 Por isso, a infracção em questão, artigos 3.º, n.º 2, e 10.º, n.º 1, da Lei n.º 
 
 97/88, é cometida no exercício daquele direito e a sua apreciação só pode ser 
 
 «da competência dos Tribunais Judiciais», artigo 37.º, n.º 3, da Constituição da 
 República.  Mas não é isso que estipula o artigo 10.º, n.º 1, com referência ao 
 artigo 3.º, n.º 2, da Lei n.º 97/88, pois aqui tipifica-se o ilícito como 
 contra-ordenação, atribuindo-se a competência para apreciar esses ilícitos a 
 autoridades administrativas.
 Logo os artigos 3.º, n.º 2, e 10.º, n.º 1, da Lei n.º 97/88 estão, 
 irremediavelmente, feridos de inconstitucionalidade material, por violação do 
 artigo 37.º, n.os 1 e 3, da Constituição da República, na medida em que a 
 apreciação daquele ilícito é confiada a autoridades administrativas e não aos 
 Tribunais Judiciais.
 
  
 
 4 — Desta decisão vem interposto pelo Ministério Público o presente recurso 
 
 (obrigatório) para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 280.º, n.os 
 
 1, alínea a), e 3, da Constituição da República Portuguesa e dos artigos 70.º, 
 n.º 1, alínea a), e 72.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, em virtude 
 de o tribunal a quo ter recusado a aplicação dos artigos 3.º, n.º 2, e 10.º, n.º 
 
 1, da Lei n.º 97/88, com fundamento em inconstitucionalidade.
 Neste Tribunal, o Magistrado do Ministério Público apresentou alegações, de que 
 se destacam os seguintes argumentos:
 
  
 A afixação de propaganda de natureza política, maxime no decurso de campanhas 
 eleitorais, faz manifestamente parte da liberdade de expressão; isto é, o 
 direito de expressão inclui no seu âmbito de protecção a afixação mural de 
 propaganda de natureza política. (…)
 O direito de expressão, como outros direitos fundamentais, não é um direito 
 absoluto, antes admite restrições derivadas da necessidade de «salvaguardar 
 outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos» — artigo 18.º, n.º 
 
 2, da Constituição. (…)
 O processo formativo da Lei n.º 97/88, de 17 de Agosto, respeita os requisitos 
 formais constitucionalmente exigidos para as leis restritivas de direitos, 
 liberdades e garantias — é uma lei formal, geral, abstracta, não retroactiva e 
 respeitadora dos princípios da proibição do excesso e da salvaguarda do núcleo 
 essencial do direito restringido. (…)
 Aliás, a sentença recorrida coloca a questão da inconstitucionalidade não ao 
 nível formal, mas ao nível material: as normas dos artigos 3.º, n.º 2, e 10.º, 
 n.º 1, violam o n.º 3 do artigo 37.º da Constituição, porque qualificam como 
 contra-ordenações infracções ao direito de expressão e atribuem a competência 
 para as apreciar a autoridades administrativas, quando daquele normativo 
 constitucional resultaria que «qualquer infracção cometida no exercício do 
 direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento tem que ser apreciada 
 pelos Tribunais Judiciais» e para tal «não pode ter a natureza de 
 contra-ordenação, pois estas são apreciadas por autoridades administrativas e só 
 são julgadas pelos Tribunais em sede de recurso.  Deste modo, essas infracções 
 só podem ter a natureza de crime». (…)
 Pensamos que são questões distintas, a da qualificação de certos factos como 
 contra-ordenação, por um lado, e a da atribuição de competência para desta tomar 
 conhecimento, por outro.
 O chamado movimento da descriminalização (entendida esta como «redução formal da 
 competência do sistema penal em relação a determinadas condutas» Figueiredo 
 Dias, «O Movimento da Descriminalização e o Ilícito de Mera Ordenação Social», 
 em Jornadas de Direito Criminal — O Novo Código Penal Português e Legislação 
 Complementar, p. 322) começou a ter consagração legal em Portugal com o 
 Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho, mais tarde revogado e substituído pelo 
 Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, ainda em vigor e para que remete o 
 artigo 10.º, n.º 3, da Lei n.º 97/88.
 O propósito, iniciado com o Decreto-Lei n.º 232/79, de acabar com a figura 
 jurídica das contravenções não veio a ter sequência (o n.º 3 do seu artigo 1.º 
 equiparava às contra-ordenações as contravenções puníveis com sanções 
 pecuniárias, mas foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 411-A/79, de 1 de Outubro), 
 coexistindo, neste momento, ao nível do direito sancionatório público, as 
 figuras de crime, contravenção e contra-ordenação. (…)
 Ora, não nos parece que seja inerente à natureza das contra-ordenações a 
 atribuição a uma autoridade administrativa de competência para delas tomar 
 conhecimento.  Descriminalização não significa necessariamente 
 desjurisdicionalização.
 Sem sair do regime actual das contra-ordenações, importa referir que a 
 intervenção jurisdicional está prevista, quer ao nível da impugnação das 
 decisões das autoridades administrativas (artigos 59.º e seguintes do 
 Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro), quer ao nível da apreciação 
 originária de contra-ordenações (artigos 38.º e 39.º do mesmo diploma).  Por 
 outro lado, «deverá sublinhar-se que se transportam para o direito das 
 contra-ordenações as garantias constitucionalmente atribuídas ao direito penal, 
 nomeadamente as resultantes dos princípios da legalidade e da aplicabilidade da 
 lei mais favorável» (Figueiredo Dias, obra citada, p. 330), do mesmo modo que, 
 mesmo na sua «fase administrativa», há um evidente paralelismo entre o processo 
 penal e o processo contra-ordenacional, sendo este conformado por princípios 
 básicos daquele (cfr. artigos 41.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 
 de Outubro, e Lopes Rocha, Gomes Dias e Ataíde Ferreira, Contra-Ordenações, pp. 
 
 55 e segs. e 133 e segs.).  Estas circunstâncias não impediram que Cavaleiro de 
 Ferreira (ao que cremos sem eco jurisprudencial) tenha defendido a 
 inconstitucionalidade, não das contra-ordenações em si, mas do seu julgamento 
 pela administração (Lições de Direito Criminal, vol. i, 1988, p. 54); porém, ao 
 contrário do que acontece no regime geral das contra-ordenações, o conhecimento 
 das infracções cometidas no exercício do direito de expressão, qualquer que seja 
 a sua natureza, é expressamente atribuído apenas aos tribunais judiciais.
 A cindibilidade entre o momento do enquadramento contra-ordenacional de uma 
 conduta e o da sua apreciação por um órgão institucional de controlo acaba, no 
 caso presente, por centrar neste segundo momento a questão da 
 inconstitucionalidade.  A Lei n.º 97/88 preenche, com os seus processos de 
 formação e características, os requisitos indispensáveis à sua validade formal e 
 
 à validade material da norma dos seus artigos 3.º, n.º 2, e 10.º, n.º 1, de que 
 resulta a qualificação como contra-ordenação punível com coima da afixação de 
 mensagens de propaganda política em lugares de propriedade particular não 
 consentida pelo respectivo proprietário.  Entendemos, portanto, não haver 
 obstáculo constitucional à qualificação desta conduta como contra-ordenação.
 O mesmo não sucede com a norma do n.º 4 do artigo 10.º da Lei n.º 97/88, no 
 segmento em que atribui ao presidente da câmara a competência para aplicação das 
 coimas correspondentes àquele tipo de contra-ordenações.  Aqui, parece-nos que a 
 
 2.ª parte do n.º 3 do artigo 37.º da Constituição não deixa margem para dúvidas: 
 ao afirmar-se que a apreciação das infracções cometidas no exercício do direito 
 de expressão é «da competência dos tribunais judiciais», está-se a afastar a 
 intervenção da administração e a afirmar a competência jurisdicional para 
 apreciar qualquer tipo de ilícito que venha a ser praticado no exercício da 
 liberdade de expressão.  E o objectivo do legislador constitucional foi 
 exactamente o de evitar a criação de um regime penal de excepção e a 
 administrativização desta área dos direitos fundamentais, remetendo para os 
 tribunais judiciais a exclusividade da apreciação das infracções praticadas no 
 exercício do direito de expressão. (…)
 
  
 E conclui:
 
  
 
 1.º   Não é inconstitucional a norma dos artigos 3.º, n.º 2, e 10.º, n.º 1, da 
 Lei n.º 97/88, de 17 de Agosto, na interpretação de que constitui 
 contra-ordenação a afixação de mensagens de propaganda política em lugares de 
 propriedade particular não consentida pelo respectivo proprietário;
 
 2.º   É materialmente inconstitucional, por violação do n.º 3 do artigo 37.º da 
 Constituição, a norma dos artigos 3.º, n.º 2, e 10.º, n.º 4, da mesma Lei n.º 
 
 97/88, no segmento em que atribui ao presidente da câmara da área em que se 
 verificar a contra-ordenação referida na conclusão anterior a competência para a 
 aplicação da coima.
 
 3.º   Deve, em consequência, determinar-se a reforma da decisão recorrida em 
 conformidade com o precedente juízo de inconstitucionalidade meramente parcial.
 
  
 Não foram apresentadas contra-alegações.
 
  
 
 5 — Entretanto, na pendência do recurso, foi publicada a Lei n.º 15/94, de 11 de 
 Maio, e, perante a eventual aplicabilidade desse diploma ao caso dos autos, foi 
 o processo remetido, a título devolutivo, e mediante promoção do Ministério 
 Público, ao tribunal a quo, para decisão sobre a matéria.  Porém, esse tribunal, 
 por despacho de fls. 170 v, entendeu não ser amnistiável a contra-ordenação em 
 causa, pelo que deve prosseguir-se com a apreciação do objecto do recurso.
 
  
 
 6 — Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
 
  
 
  
 II — Fundamentação
 
  
 
 7 — As normas que o Tribunal de Polícia de Lisboa «desaplicou» com fundamento em 
 inconstitucionalidade material — artigos 3.º, n.º 2, e 10.º, n.º 1, da Lei n.º 
 
 97/88 — dispõem o seguinte:
 
  
 Artigo 3.º
 
 (Mensagens de propaganda)
 
  
 
      ............................................................
 
  
 
 2 — A afixação ou inscrição de mensagens de propaganda nos lugares ou espaços de 
 propriedade particular depende do consentimento do respectivo proprietário ou 
 possuidor e deve respeitar as normas em vigor sobre protecção do património 
 arquitectónico e do meio urbanístico, ambiental e paisagístico.
 
  
 Artigo 10.º
 
 (Contra-ordenações)
 
  
 
 1 — Constitui contra-ordenação punível com coima a violação do disposto nos 
 artigos 1.º, 3.º, n.º 2, 4.º e 6.º da presente lei.
 
      
 
 ............................................................
 
  
 A norma constitucional violada, segundo o entendimento do tribunal recorrido, é 
 a constante do n.º 3 do artigo 37.º da Constituição, na sua redacção actual:
 
  
 As infracções cometidas no exercício destes direitos (de exprimir e divulgar 
 livremente o pensamento) ficam submetidas aos princípios gerais de direito 
 criminal, sendo a sua apreciação da competência dos tribunais judiciais.
 
  
 A redacção actual desta norma foi introduzida na primeira revisão 
 constitucional.  Originariamente, o teor do n.º 3 do artigo 37.º era o seguinte:
 
  
 As infracções cometidas no exercício destes direitos ficarão submetidas ao 
 regime de punição da lei geral, sendo a sua apreciação da competência dos 
 tribunais judiciais.
 
  
 
 8 — Identificando como fontes do artigo 37.º, n.º 3, da Constituição (na versão 
 originária), o artigo 5-II da Constituição alemã e o artigo 21.º, n.º 3, do 
 projecto de Constituição do P.P.D. — que conformavam, justamente, os direitos de 
 exprimir e divulgar livremente o pensamento através dos limites das leis gerais 
 
 (ou lei geral, no segundo caso) —, a Comissão Constitucional interpretou assim a 
 referência ao regime de punição da lei geral:
 
  
 
        a)   a lei geral deveria ser lei formal e estar dotada de características 
 de generalidade;
 
        b)   a lei geral não poderia ser discriminatória quanto a quaisquer 
 opiniões;
 
        c)   a lei geral deveria proceder a uma ponderação de interesses 
 conflituantes ao restringir os direitos de exprimir e divulgar livremente o 
 pensamento;
 
        d)   por fim — e é isto o que agora interessa fundamentalmente —, a lei 
 geral deveria respeitar «os princípios gerais do direito penal — entendendo-se 
 por tais não só os princípios jurídico-constitucionais penais, mas aqueles que 
 presidem à teoria geral das infracções e das penas que consta do Código Penal» 
 
 (Acórdão da Comissão Constitucional de 8 de Janeiro de 1980, n.º 175, Boletim do 
 Ministério da Justiça, n.º 294, pp. 160-1; em sentido idêntico, Parecer n.º 
 
 20/82, Pareceres da Comissão Constitucional, 20.º vol., pp. 80 e segs.).
 
  
 
 É claro, por conseguinte, que a alteração introduzida pela Lei Constitucional 
 n.º 1/82 — a expressa menção aos «princípios gerais de direito criminal» — 
 correspondeu à interpretação que a Comissão Constitucional já vinha perfilhando 
 do artigo 37.º, n.º 3.  Interpretação segundo a qual as infracções aos direitos 
 de exprimir e divulgar livremente o pensamento haveriam de estar sujeitas aos 
 princípios constitucionais de direito penal e aos princípios da teoria geral do 
 crime e da pena consagrados no Código Penal (por exemplo: regras sobre dolo e 
 negligência; sobre tentativa e comparticipação; sobre omissão; sobre erro; sobre 
 os limites das penas e das medidas de segurança).  Mas já não seria exigível, 
 evidentemente, a inclusão formal das infracções em causa no Código Penal, nada 
 obstando a que estivessem previstas em legislação avulsa.
 
  
 
 9 — A questão de constitucionalidade agora suscitada resume-se a esta 
 interrogação: impõe o artigo 37.º, n.º 3, da Constituição que todas as 
 infracções cometidas no exercício dos direitos de exprimir e divulgar livremente 
 o pensamento sejam crimes e devam ser julgadas pelos tribunais judiciais?
 Uma resposta absolutamente afirmativa pressupõe que a função garantística do 
 preceito constitucional — que manda aplicar os princípios gerais de direito 
 criminal e, por conseguinte, atribui aos agentes das infracções as respectivas 
 garantias — arrasta consigo a natureza material do ilícito.  Assim, mesmo 
 infracções de pouca importância, consubstanciadas numa diminuta lesão de bens 
 jurídicos, passariam a ser crimes para que, em contrapartida, pudessem usufruir 
 da plenitude das garantias decorrentes dos princípios de direito penal.
 Chegar-se-ia, deste modo, ao absurdo de ser a necessidade de conceder garantias 
 
 (materiais e processuais) o factor determinante da qualificação do ilícito.  E 
 inverter-se-ia o sentido (lógico e valorativo) da relação entre a natureza do 
 ilícito e os princípios a que ele se deve subordinar.
 
  
 
 10 — Tal perspectiva não é defensável.  É certo que as maiores garantias 
 concedidas na regulamentação de certas infracções derivam, em regra, da 
 gravidade das sanções cominadas para essas infracções.  Porém, um comportamento 
 não pode ser criminalizado apenas porque a delimitação da sua antijuridicidade é 
 susceptível de «abusos de poder» ou de qualquer forma de «unilateralismo não 
 democrático».
 Uma tal criminalização «funcional» conduziria, aliás, em muitos casos, à 
 violação da adequação e proporcionalidade das penas ao ilícito e contrariaria o 
 princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição) e o próprio princípio da 
 necessidade das penas e das medidas de segurança (artigo 18.º, n.º 2, da 
 Constituição).
 A resposta absolutamente afirmativa à questão proposta, que a desaplicação das 
 normas sub judicio pelo Tribunal de Polícia de Lisboa pressupõe, resulta de uma 
 interpretação do artigo 37.º, n.º 3, da Constituição que excede, manifestamente, 
 a sua ratio essendi.  Ao determinar a aplicabilidade dos princípios gerais de 
 direito criminal às infracções cometidas no exercício (ilegítimo) dos direitos 
 de exprimir e divulgar livremente o pensamento, o legislador constitucional 
 visou assegurar o exercício (legítimo) destes direitos.  Pretendeu, sem dúvida, 
 excluir a arbitrariedade na definição das infracções — para assegurar a precisa 
 determinação do conteúdo desses direitos.
 A pretensa qualificação das infracções como crimes, que, alegadamente, 
 resultaria do disposto no n.º 3 do artigo 37.º da Constituição, acabaria por 
 contrariar os próprios princípios gerais de direito criminal — da igualdade e da 
 necessidade das penas e das medidas de segurança, como já se viu.
 
  
 
 11 — Não são, pois, inconstitucionais as normas constantes dos artigos 3.º, n.º 
 
 2, e 10.º, n.º 1, da Lei n.º 97/88, na medida em que qualificam como 
 contra-ordenação passível de coima «a afixação de cartazes de propaganda 
 política em edifício, sem consentimento do proprietário».
 A argumentação que fundamenta este juízo de inconstitucionalidade é, repete-se, 
 inaceitável, pois postula que condutas que consubstanciam lesões pouco graves do 
 direito de propriedade, em conflito com a liberdade de expressão e divulgação do 
 pensamento, sejam constantemente definidas como crimes.
 
  
 
 12 — Recusada a inconstitucionalidade das normas sub judicio naquela dimensão 
 anteriormente explicitada estará definitivamente salvaguardada a sua 
 conformidade com as exigências contidas no artigo 37.º, n.º 3, da Constituição?
 Nas suas alegações no Tribunal Constitucional, o Ministério Público sustenta que 
 as normas em causa ainda violam a prescrição constitucional na medida em que, 
 referindo-se a infracções cometidas no exercício do direito de livre divulgação 
 do pensamento, não atribuem competência aos tribunais judiciais.
 Assim, segundo as citadas alegações, seria materialmente inconstitucional, por 
 violação do disposto no n.º 3 do artigo 37.º da Constituição, a norma dos 
 artigos 3.º, n.º 2, e 10.º, n.º 4, da Lei n.º 97/88 «no segmento em que atribui 
 ao presidente da câmara da área em que se verificar a contra-ordenação (…) a 
 competência para a aplicação da coima».
 De acordo com este entendimento, deverão ser sancionadas como contra-ordenações 
 as condutas referidas, competindo, todavia, aos tribunais judiciais o respectivo 
 julgamento.  A qualificação do ilícito e a atribuição de competência para a sua 
 apreciação estarão, pois, dissociadas.  Para justificar esta tese, sustenta o 
 Ministério Público que a descriminalização de infracções não significa, 
 necessariamente, a sua desjurisdicionalização.
 
 13 — Esta tese merece a concordância do Tribunal.  Não seria correcto entender 
 que o artigo 37.º, n.º 3, da Constituição, ao exigir a jurisdicionalização, se 
 refere a infracções criminais propriamente ditas, não abrangendo o ilícito de 
 mera ordenação social.  Na verdade, essa conclusão corresponderia a uma pura 
 tautologia.  O princípio da jurisdicionalidade é um princípio constitucional de 
 direito penal, segundo o qual a aplicação de normas penais reclama um processo 
 jurisdicionalizado (artigo 32.º da Constituição).  E resulta da Constituição que 
 a matéria criminal é da competência dos tribunais judiciais (artigo 213.º, n.º 
 
 1, da Constituição).
 Mas, mesmo que se entendesse que a intenção legislativa subjacente ao artigo 
 
 37.º, n.º 3, seria antes garantir que as infracções cometidas no exercício da 
 liberdade de informação não fossem descriminalizadas ou sujeitas a uma 
 legislação excepcional, para assim se evitar que aos respectivos autores fosse 
 recusada a plenitude das garantias de defesa do processo penal, não se 
 compreenderia como é que essa intenção legislativa (porventura justificada 
 historicamente — cfr. Acórdão da Comissão Constitucional n.º 75, de 8 de Janeiro 
 de 1980, Diário da República, II Série, de 3 de Julho de 1980) poderia 
 restringir o alcance do artigo 37.º, n.º 3, excluindo do seu âmbito ilícitos 
 qualificados como contra-ordenações.  O referido preceito não indica ao 
 intérprete qualquer critério distintivo quanto à natureza das infracções, 
 atribuindo a todas, em geral, idênticas garantias.
 Muito menos seria juridicamente sustentável uma distinção entre tipos de 
 infracções, cometidas no exercício da liberdade de expressão, que excluísse do 
 seu âmbito infracções não atinentes ao conteúdo da liberdade de expressão, isto 
 
 é, relativas apenas às condições exteriores do exercício da liberdade de 
 expressão do pensamento (meios, locais, etc.).  Se tal discriminação não procede 
 para o efeito de distinguir o grau ou a natureza da garantia da liberdade de 
 expressão, também não poderá ditar uma diferença radical quanto às garantias de 
 defesa dos autores das infracções cometidas no exercício daqueles direitos.
 Deve observar-se ainda que o artigo 32.º, n.º 8, da Constituição, não fornece 
 nenhum argumento a favor ou contra o entendimento que se acabou de sustentar.  O 
 n.º 8 do artigo 32.º, introduzido na segunda revisão constitucional, veio 
 estender algumas garantias de defesa aos processos de contra-ordenação: direitos 
 de audiência e de defesa.  Porém, esta norma assegura um mínimo de garantias de 
 defesa, não obstando a que outras sejam extensivas àqueles processos nem impondo 
 a sua desjurisdicionalização.  Assim, na conjugação desta norma com o artigo 
 
 37.º, n.º 3, da Constituição, deve concluir-se que, em processos de 
 contra-ordenação que beneficiem de uma tutela reforçada (como sucede na hipótese 
 do artigo 37.º, n.º 3), a garantia geral (artigo 32.º, n.º 8) é derrogada pelo 
 regime especial.
 
 14 — Mas incluir-se-á o n.º 4 do artigo 10.º da Lei n.º 97/88 no objecto do 
 presente recurso?
 Como se viu, o tribunal a quo identificou, explicitamente, os artigos 3.º, n.º 
 
 2, e 10.º, n.º 1, da Lei n.º 97/88 como normas inconstitucionais.  Porém, o 
 juízo de inconstitucionalidade que proferiu abrange também, implicitamente, o 
 n.º 4 do artigo 10.º da mesma Lei:
 
  
 
      ............................................................
 
  
 Logo os artigos 3.º, n.º 2, e 10.º, n.º 1, da Lei n.º 97/88 estão, 
 irremediavelmente, feridos de inconstitucionalidade material, por violação do 
 artigo 37.º, n.os 1 e 3, da Constituição da República, na medida em que a 
 apreciação daquele ilícito é confiada a autoridades administrativas e não aos 
 Tribunais Judiciais.
 
  
 O que daqui resulta é que o tribunal recorrido também se recusou a aplicar com 
 fundamento em inconstitucionalidade material, o n.º 4 do artigo 10.º da Lei n.º 
 
 97/88 — que atribui, justamente, ao presidente de câmara municipal competência 
 para aplicar, as coimas. E essa efectiva «desaplicação» — que se concretizou no 
 deferimento do recurso interposto da aplicação de coima pelo Partido Comunista 
 Português e pelo Partido Ecologista Os Verdes — fundamenta a inclusão daquela 
 norma no objecto do presente recurso.
 
  
 
 15 — Será a atribuição de competência aos tribunais judiciais — que só é 
 compreensível como «imediata» jurisdicionalização e não apenas 
 jurisdicionalização em sede de recurso — solução suficiente para cumprir o 
 desígnio do legislador constitucional?
 Deverá concluir-se pela negativa, já que, para além de atribuir competência aos 
 tribunais judiciais, o artigo 37.º, n.º 3, da Constituição determina a 
 aplicabilidade dos princípios gerais de direito criminal, não exceptuando nenhum 
 deles.
 
  
 
 16 — Ao nível material, a subordinação aos princípios gerais de direito criminal 
 implica uma estrita vinculação aos princípios da legalidade [artigos 29.º e 
 
 168.º, alínea e), da Constituição], da culpa (artigos 1.º e 27.º da 
 Constituição) da necessidade (artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da Constituição) e da 
 igualdade (artigo 13.º da Constituição), princípios que vigoram tanto na 
 definição do ilícito pelo legislador como na determinação judicial da 
 responsabilidade.  Por outro lado, a alusão aos «princípios gerais de direito 
 criminal» permite concluir que o legislador constitucional pretende também 
 aplicar às referidas infracções os princípios (gerais) consagrados pela 
 legislação penal comum (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da 
 República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., 1993, p. 227).
 No plano processual, a submissão aos princípios gerais de direito criminal 
 implica a aplicabilidade de todas as garantias de processo criminal, consagradas 
 no artigo 32.º da Constituição.  Para além da expressa exigência de 
 jurisdicionalidade (e consequente exclusão da competência das autoridades 
 administrativas na apreciação das infracções) e da garantia dos direitos de 
 audiência e defesa (que resultaria já da classificação das infracções como 
 contra-ordenações, nos termos do disposto no n.º 8 do artigo 32.º da 
 Constituição), todas as garantias de defesa deverão ser asseguradas ao arguido.
 
  
 
 17 — A ausência de mecanismos que permitam aos tribunais judiciais julgarem, em 
 primeira instância, estas contra-ordenações e que contemplem o exercício das 
 garantias de processo criminal inviabilizará a aplicação das correspondentes 
 coimas.
 Se os presidentes das câmaras aplicarem estas coimas, os tribunais para que 
 forem interpostos os respectivos recursos deverão conceder-lhes provimento    — 
 não porque a qualificação das infracções como contra-ordenações seja 
 inconstitucional, mas sim porque a aplicação das coimas, nestes casos, está 
 reservada aos tribunais judiciais e deve observar as garantias de processo 
 criminal.
 
  
 
 18 — Ante o exposto, conclui-se que as normas constantes dos artigos 3.º, n.º 2, 
 e 10.º, n.º 1, da Lei n.º 97/88 não são inconstitucionais na medida em que 
 qualificam como contra-ordenação sancionada com coima a afixação de mensagens de 
 propaganda política em lugares de propriedade particular não consentida pelo 
 respectivo proprietário.
 Todavia, conclui-se que a norma contida no n.º 4 do artigo 10.º em conexão com a 
 do artigo 10.º, n.º 1, da Lei n.º 97/88 é materialmente inconstitucional, 
 violando o artigo 37.º, n.º 3, da Constituição, numa dupla medida:
 
  
 
        a)   por subtraírem aos tribunais judiciais a apreciação das infracções;
 
        b)   por subtraírem, implicitamente, aos princípios gerais do direito 
 criminal (incluindo todas as garantias do processo criminal) a apreciação das 
 infracções.
 
  
 
  
 III — Decisão
 
  
 
 19 — Nestes termos, decide-se:
 
  
 
        a)   Julgar não inconstitucionais as normas constantes dos artigos 3.º, 
 n.º 2, e 10.º, n.º 1, da Lei n.º 97/88, de 17 de Agosto, na parte em que 
 qualificam como contra-ordenação, sancionada com coima, a afixação de mensagens 
 de propaganda política em lugares de propriedade particular não consentida pelo 
 respectivo proprietário;
 
        b)   Julgar inconstitucional a norma contida no artigo 10.º, n.º 4, em 
 conexão com o artigo 10.º, n.º 1, e enquanto remete para o artigo 3.º, n.º 2, da 
 Lei n.º 97/88, de 17 de Agosto, na parte em que atribui ao presidente da câmara 
 da área onde a contra-ordenação for praticada a competência para aplicar a 
 correspondente coima e em que se subtrai, implicitamente, aos princípios gerais 
 de direito criminal a apreciação da responsabilidade do agente, por violar o 
 disposto no n.º 3 do artigo 37.º da Constituição;
 
        c)   Negar provimento ao recurso mantendo-se a decisão recorrida embora 
 com outros fundamentos.
 
  
 Lisboa, 8 de Novembro de 1995.— Maria Fernanda Palma — Alberto Tavares da Costa 
 
 — Armindo Ribeiro Mendes — Antero Alves Monteiro Diniz — Vítor Nunes de Almeida 
 
 — Maria da Assunção Esteves (com declaração de voto) — José Manuel Cardoso da 
 Costa [votei o acórdão, quanto à matéria da alínea b) da decisão, apenas a 
 benefício de melhor estudo, e para não protelar o julgamento do Tribunal.  Com 
 efeito, sobram-me consideráveis dúvidas, seja quanto ao exacto recorte do tipo 
 de situações contempladas no artigo 37.º, n.º 3, da Constituição, seja, nesse 
 contexto problemático, ao alcance que se deve atribuir à sua estatuição final].
 
  
 
  
 DECLARAÇÃO  DE VOTO
 
  
 A norma do artigo 37.º, n.º 3, da Constituição determina que «as infracções 
 cometidas no exercício destes direitos (de liberdade de expressão) ficam 
 submetidas aos princípios gerais de direito criminal, sendo a sua apreciação da 
 competência dos tribunais judiciais».  A norma concorre para o asseguramento da 
 optimização do direito de liberdade de expressão já ordenada nos primeiros 
 enunciados do artigo 37.º  Acrescenta, afinal, à proibição de censura 
 estabelecida no n.º 2 uma garantia de defesa sobre o uso do direito» que, em meu 
 entender, só faz sentido nos limites da sua dimensão de conteúdo: é como se a 
 proibição de censura afirmada no n.º 2 ainda se prolongasse nas garantias a 
 posteriori do n.º 3.
 As valorações que se entrecruzam na norma do artigo 37.º, n.º 3 assentam no 
 domínio vital do direito de liberdade de expressão e dos direitos que com ele 
 são por natureza colidentes.  A ratio da norma é impedir um direito penal de 
 excepção e é nesta ratio que devem assentar os critérios que o acórdão diz que a 
 Constituição não tem.
 Afigura-se-me, assim, que o alargamento de todas as garantias de processo penal 
 
 às infracções ligadas ao ordenamento externo do exercício do direito e apenas 
 detendo relevância no direito das contra-ordenações cai fora da intenção 
 normativa do artigo 37.º, n.º 3, da Constituição. — Maria da Assunção Esteves.
 
  
 
  
 
  
 
  
 
  
 
 (1) Acórdão publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Abril de 1996.