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Processo: n.º 149/92.
 
 1ª Secção
 Relator: Conselheiro Monteiro Diniz.
 
 
 
  
 Acordam no Tribunal Constitucional:
 
  
 
  
 I — A questão
 
  
 
 1 — A. e mulher B.  interpuseram, perante o Tribunal Administrativo de Círculo 
 de Coimbra, recurso contencioso de anulação do despacho do Presidente da Câmara 
 Municipal de Pombal, de 15 de Dezembro de 1989, no qual foi determinado que no 
 prazo de trinta dias, com o mínimo de dilação, procedessem «ao arranque de 112 
 eucaliptos, implantados no seu prédio sito em …, freguesia de Almagreira, 
 concelho de Pombal, confinante com outro prédio propriedade de C., morador no 
 referido lugar de …, sob pena de, não o fazendo dentro desse prazo, a Câmara 
 Municipal ordenar o arranque desses eucaliptos, através de pessoal ao seu 
 serviço nos termos da lei».
 Para tanto, além do mais, alegaram a inconstitucionalidade do Decreto n.º 28 
 
 040, de 14 de Setembro de 1937, na medida em que a situação contemplada neste 
 diploma «não visa o interesse público antes tem a ver com interesse entre 
 particulares».
 
 2 — O Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra, por sentença de 28 de 
 Novembro de 1991, declarou nulo o acto recorrido porque viciado por usurpação de 
 poder derivada da inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 2.º e 
 
 3.º do Decreto-Lei n.º 28 039 (por manifesto lapso escreveu-se ali 28 040), de 
 
 14 de Setembro de 1937, e nos artigos 1.º, e seus §§ 1.º e 3.º, 2.º, 3.º, 4.º, 
 
 5.º, 7.º e 8.º do Decreto n.º 28 040, também de 14 de Setembro de 1937, na 
 medida em que violam o princípio da separação de poderes (artigos 113.º, n.º 2, 
 
 114.º, n.º 1, e 205.º, n.os 1 e 2, da Constituição).
 Para assim concluir aquela decisão ateve-se, no essencial, à fundamentação 
 seguinte:
 
  
 Do procedimento administrativo regulado pelo Decreto-Lei n.º 28 039 e Decreto 
 n.º 28 040 (…), não se apura que os órgãos (júri avindor e presidente da câmara) 
 actuem como se fossem eles próprios os titulares dos interesses enunciados, 
 agindo como partes e com vontade própria.
 Efectivamente, das respectivas actividades, não se alcança a parcialidade do 
 júri avindor e do presidente da câmara.  Quer dizer, estas entidades não detêm a 
 parcialidade e a iniciativa inerentes à via administrativa (Marcello Caetano, 
 Manual de Direito Administrativo, 10.ª ed., i, p. 13)
 A administração só intervem a solicitação dos interessados, cessando a sua 
 intervenção quando as partes se conciliam e decidindo com total vinculação à 
 lei.
 E se aqueles agentes não têm outro fim na sua actividade para além da composição 
 de conflitos concretos de interesses ajustando-lhe o direito aplicável, então, 
 sacrificam o núcleo essencial da função dos tribunais: a administração da 
 justiça (cfr. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 4.ª ed., p. 534).
 Na intervenção do júri e do presidente da câmara no regime dos diplomas em 
 interpretação, não se pesquisa outro objectivo para além da resolução de 
 conflitos entre os proprietários das árvores e os proprietários e usufrutuários 
 dos terrenos, nascentes, muros ou construções alegadamente afectados pelo 
 desrespeito da distância regulamentar: aqueles órgãos verificam os factos e 
 aplicam a lei.
 E a imparcialidade e passividade (Marcello Caetano, ibidem) dos agentes na 
 execução dos sobre aludidos diplomas, alcançando a resolução dos interesses 
 individuais, e, só por isso, satisfazendo a necessidade colectiva de preservar 
 as relações de boa vizinhança ou interesse público da manutenção da ordem (v. 
 Calamandrei, Istituzioni di diritto processuale civile, i, 2.ª ed., p. 34), são 
 típicas da função jurisdicional.
 
 3 — Sob invocação do disposto nos artigos 69.º, 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, 
 n.º 1, alínea a), 75.º e 78.º, n.º 4, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na 
 redacção dada pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, o Ministério Público trouxe 
 daquela decisão recurso obrigatório ao Tribunal Constitucional.
 Na alegação entretanto produzida pelo senhor Procurador-Geral Adjunto 
 formularam-se as conclusões seguintes:
 
  
 
 1.º   Não são inconstitucionais, pois não violam a reserva do exercício da 
 função jurisdicional pelos tribunais, estabelecida no artigo 205.º, n.º 1, da 
 Constituição, as normas dos artigos 2.º, 1.ª parte, e 3.º do Decreto-Lei n.º 28 
 
 039, de 14 de Setembro de 1937, e dos artigos 1.º e § 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 
 
 7.º e 8.º do Decreto n.º 28 040, também de 14 de Setembro de 1937, que regulam 
 as competências do júri avindor e do presidente da câmara no processo de 
 arrancamento de árvores plantadas ou semeadas contra o disposto naqueles 
 diplomas e na Lei n.º 1951, de 9 de Março de 1937.
 
 2.º   Termos em que deve ser concedido provimento ao recurso.
 
  
 Os recorridos não ofereceram contralegação.
 Passados que foram os vistos legais cabe agora apreciar e decidir.
 E decidir, concretamente, se as normas dos artigos 2.º, 1.ª parte e 3.º do 
 Decreto-Lei n.º 28 039, de 14 de Setembro de 1937, e dos artigos 1.º, e seus §§ 
 
 1.º e 2.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 7.º e 8.º do Decreto n.º 28 040, também de 14 de 
 Setembro de 1937, as únicas que foram efectivamente desaplicadas na decisão 
 recorrida, e como tal constituem o objecto do presente recurso, dispõem ou não 
 de legitimidade constitucional.
 
  
 
  
 II — A fundamentação
 
  
 
 1 — «Considerando que as florestas constituem uma riqueza nacional essencial, 
 que um país não pode dispensar sob o ponto de vista económico, visto elas 
 desempenharem uma influência bem definida sobre o regime das águas, sobre o 
 clima local e sobre a actividade geral; considerando que evitar a desarborização 
 e promover o aproveitamento racional do solo continental é missão patriótica que 
 se impõe, tanto mais que a arborização deve considerar-se como uma das operações 
 culturais das mais produtivas e na actualidade das mais frutuosas; considerando 
 finalmente que, se algumas obrigações se fixam para os proprietários das matas, 
 lhes são dadas compensações que garantem a propriedade e os arvoredos contra 
 incêndios, gados e epifítias e que pela criação de estações de experimentação 
 florestal e escola de resinagem se promove o ensino e racionalização das 
 ciências florestais, com o que muito vêm a aproveitar os proprietários das 
 matas» (cfr. o respectivo preâmbulo), foi publicado o Decreto n.º 13 658, de 20 
 de Maio de 1927, definindo um quadro legal de protecção da riqueza florestal do 
 País.
 Este diploma estabelecia no § único do seu artigo 5.º, a proibição de plantação 
 de eucaliptos a menos de 20 metros de campos agricultados, quando entre estes e 
 o local da plantação se não interpusessem estrada, rio, ribeiro, edifício, ou no 
 caso de os referidos terrenos de cultura se encontrarem a um nível superior em 4 
 metros ao da base da plantação.
 O Decreto n.º 16 953, de 8 de Junho de 1929 veio dar nova redacção àquele 
 preceito mantendo porém, no essencial, o regime de limitação ao plantio de 
 eucaliptos que nele se estabelecia.  O mesmo aliás pode dizer-se relativamente à 
 Lei n.º 1951, de 9 de Março de 1937, que, alargando embora aquele regime às 
 acácias, preservou a intenção do legislador de 1927, concedendo aos terrenos 
 cultivados protecção contra a proximidade daquelas espécies arbóreas.
 
 É neste contexto normativo que vieram a ser publicados o Decreto-Lei n.º 28 039 
 e o Decreto n.º 28 040, ambos de 14 de Setembro 1937, os quais procederam à 
 alteração do regime de proibição da plantação de eucaliptos e outras espécies 
 florestais, ao mesmo tempo que reformularam, no plano orgânico e processual, o 
 arrancamento das plantações ilegais que havia sido instituído a partir de 1929.
 Para uma melhor apreensão do conteúdo das normas cuja aplicação foi recusada na 
 sentença recorrida, importa delas deixar transcrição.
 O Decreto-Lei n.º 28 039, depois de no artigo 1.º proibir a plantação ou 
 sementeira de eucaliptos, acácias da espécie denominada dealbata, vulgarmente 
 conhecida por acácia mimosa, e de ailantos, a menos de 20 metros de terrenos 
 cultivados e a menos de 90 de nascentes, terras de cultura de regadio, muros e 
 prédios urbanos, dispunha assim nos artigos 2.º e 3.º:
 
  
 Artigo 2.º
 
  
 As plantações ou sementeiras feitas em contravenção do disposto no artigo 
 anterior e § único do artigo 5.º do Decreto n.º 13 658, de 20 de Maio de 1937, 
 poderão ser arrancadas a requerimento dos interessados, dirigido à câmara 
 municipal, que mandará executar o arrancamento, salvo se a obrigação for 
 impugnada com fundamento em questões de posse e propriedade, devendo, em tal 
 caso, os requerentes ser remetidos aos tribunais ordinários, que se pronunciarão 
 apenas sobre a matéria da impugnação.
 
  
 Artigo 3.º
 
  
 
 É instituído um júri avindor, composto de três homens bons da freguesia, ao qual 
 compete:
 
  
 
 1.º    Promover a conciliação dos interessados sobre a forma de cumprimento da 
 lei;
 
 2.º    Verificar se as árvores se encontram ou não dentro das faixas definidas 
 no artigo 1.º deste decreto e demais circunstâncias nele previstas;
 
 3.º    Fixar a indemnização justa nos casos em que for devida.
 
  
 Por seu turno, o Decreto n.º 28 040, nas normas que aqui importa considerar, 
 prescrevia assim:
 
  
 Artigo 1.º
 
  
 As plantações ou sementeiras feitas contra as disposições da Lei n.º 1951, de 9 
 de Março de 1937, alterada pelo Decreto n.º 28 039, de 14 de Setembro de 1937, 
 podem ser arrancadas a requerimento dos interessados, nos termos do referido 
 decreto e deste regulamento.
 
 § 1.º  Consideram-se interessados legítimos para efeito do disposto neste artigo 
 os proprietários e usufrutuários dos terrenos, nascentes, terras de regadio, 
 muros e prédios urbanos.
 
 § 2.º  Consideram-se excluídos da aplicação do disposto no Decreto n.º 28 039 os 
 terrenos de mato ou floresta, os muros de pedra solta que não sejam parte de 
 construção urbana, alpendrada, vedação de pátios e outros cómodos, suporte de 
 latadas e semelhantes.
 
 ............................................................
 
  
 Artigo 2.º
 
  
 Os interessados que pretenderem usar da faculdade que lhes é conferida no 
 Decreto n.º 28 039 deverão apresentar o respectivo requerimento na secretaria da 
 câmara municipal, indicando o fundamento legal do pedido, a espécie e o número 
 das árvores a que respeita, denominação, situação e limites da propriedade em 
 que estiverem radicadas, nome e residência do seu proprietário ou possuidor.
 
 § único.  A letra e a assinatura do requerente serão reconhecidas autenticamente 
 por notário.
 
  
 Artigo 3.º
 
  
 Recebido o requerimento, a câmara municipal, na sua primeira sessão, nomeará o 
 júri avindor, composto de um presidente e dois vogais escolhidos entre os homens 
 bons da freguesia, que prestarão juramento perante o presidente da câmara e 
 exercerão as suas funções por três anos.
 
 § 1.º  Constituem motivos de escusa e substituição a idade superior a sessenta 
 anos, a ausência ou a prática de qualquer facto ou delito que possa afectar a 
 sua autoridade.
 
 § 2.º  Após a nomeação do júri avindor, o secretário da câmara, procedendo 
 despacho do presidente, fará notificar o proprietário ou possuidor das árvores 
 para impugnar o pedido com fundamento na posse e propriedade dos terrenos ou 
 para alegar o que tiver por conveniente.
 
 § 3.º  Se for deduzida impugnação com aquele fundamento, serão os interessados 
 remetidos para o tribunal competente; se não houver impugnação, será o processo 
 imediatamente enviado ao presidente do júri avindor da respectiva freguesia.
 
  
 Artigo 4.º
 
  
 O júri reunirá por convocação do presidente na sede de qualquer instituição 
 pública da freguesia ou no próprio local da questão, sempre que seja possível, 
 sendo também convocados os interessados.
 
  
 Artigo 5.º
 
  
 Compete ao júri, de um modo especial, determinar:
 
  
 
 1.º    A espécie das árvores e a distância a que se encontram dos terrenos 
 cultivados do vizinho, das nascentes, terras de regadio, muros e prédios 
 urbanos;
 
 2.º    Se entre umas e outras medeia ou não estrada, via férrea e curso de água, 
 caminho público ou desnível de mais de 4 metros medidos pela forma estabelecida 
 no § 3.º do artigo 1.º;
 
 3.º    Se a forma mais conveniente do aproveitamento dos terrenos é ou não a da 
 arborização com essas árvores ou outras semelhantes desde que não prejudiquem as 
 nascentes, muros e prédios urbanos;
 
 4.º    A época em que foram plantadas ou semeadas, ouvindo, para isso, quando 
 for necessário, o testemunho dos vizinhos;
 
 5.º    O valor da indemnização a pagar pelo requerente ao dono das árvores 
 quando estas tenham sido plantadas ou semeadas em conformidade com as 
 disposições legais vigentes ao tempo da sementeira ou plantação.
 
  
 Artigo 7.º
 
  
 O júri procurará pelos meios ao seu alcance, dentro do espírito de equidade e 
 justiça, assegurar as relações de boa vizinhança, chamando sempre os 
 interessados à conciliação sobre o arrancamento, época em que deverá 
 efectuar-se, valor da indemnização, quando tiver lugar, e forma do seu 
 pagamento.
 
 § 1.º  A conciliação constará do respectivo auto; se não tiver sido possível a 
 conciliação ou no caso de os interessados não terem comparecido, será lavrado um 
 auto das diligências praticadas e da decisão do júri a respeito das questões 
 enunciadas no artigo 5.º ou outras que tenham sido suscitadas e dentro da 
 competência do júri.
 
 § 2.º  Os autos serão lavrados pelo vogal mais novo do júri, que servirá de 
 secretário, ou na secretaria da câmara, pelo respectivo chefe ou funcionário por 
 ele designado, na presença dos membros do júri.
 
 § 3.º  Para o efeito do disposto na primeira parte do parágrafo anterior a 
 câmara municipal fornecerá os respectivos modelos impressos.
 
 § 4.º  Todos os actos e diligências indicados neste artigo e no artigo anterior 
 deverão estar concluídos no prazo de um mês, a contar da data da remessa do 
 processo ao presidente do júri, salvo caso de força maior, como inundação, 
 impossibilidade de trânsito ou outro semelhante.
 
  
 Artigo 8.º
 
  
 Concluso o processo, o presidente da câmara fará notificar o requerido para 
 proceder ao arrancamento em prazo designado, segundo as decisões do júri, e, na 
 falta de cumprimento, ordenará que sejam arrancadas por pessoal da câmara.
 
 § 1.º  O presidente da câmara, antes de ordenar o arrancamento, poderá solicitar 
 do júri qualquer esclarecimento complementar.
 
 § 2.º  O dono ou possuidor das árvores é responsável pelo pagamento das despesas 
 a que tiver dado lugar o arrancamento.
 
  
 Verifica-se assim que o regime para a composição de conflitos a que se reportam 
 estes dois diplomas, prevê a intervenção de três entidades — júri avindor, 
 câmara municipal e presidente da câmara municipal — que entre si repartem as 
 diversas funções que integram e caracterizam o respectivo processo.
 Ao júri avindor, nomeado pela câmara municipal e composto por um presidente e 
 dois vogais escolhidos entre os homens bons da freguesia, compete 
 essencialmente: a) promover a conciliação dos interesses sobre a forma de 
 cumprimento da lei (artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 28 039 e artigo 7.º do 
 Decreto n.º 28 040); b) determinar as circunstâncias de facto relevantes para se 
 ordenar ou não o arrancamento das árvores em causa (artigo 3.º, n.º 2, do 
 Decreto-Lei n.º 28 039 e artigo 5.º, n.os 1 a 4, do Decreto n.º 28 040); c) 
 fixar a indemnização justa nos casos em que for devida (artigo 3.º, n.º 3, do 
 Decreto-Lei n.º 28 039 e artigo 5.º, n.º 5, do Decreto n.º 28 040).
 A intervenção que estes diplomas atribuem às autarquias locais resultou do facto 
 de se haver concluído que estas disporiam de melhores condições para assegurar o 
 
 êxito do regime ali proposto do que os serviços centralizados, concretamente, a 
 Direcção-Geral dos Serviços Florestais a quem a Lei n.º 1951 cometia intervenção 
 similar.
 
 À câmara municipal pertence a nomeação do júri avindor (artigo 3.º do Decreto 
 n.º 28 040), competindo ao presidente da câmara municipal receber o juramento 
 dos membros do júri (artigo 3.º do Decreto n.º 28 040) e, determinar o 
 cumprimento das decisões do júri, ordenando, quando for caso disso, o 
 arrancamento das árvores (artigo 8.º do Decreto n.º 28 040).
 
  
 
 2 — É muito antiga no direito português a existência de «medianeiros ou 
 avindores», pois que, como refere Manuel de Oliveira Chaves e Castro, A 
 Organização e Competência dos Tribunais de Justiça Portugueses, Coimbra, 1910, 
 pp. 195 e segs., citado na alegação do Ministério Público, já as Ordenações 
 Afonsinas recomendavam aos juízes «que nos feitos cíveis trabalhassem por trazer 
 
 à concórdia os litigantes no começo do litígio», havendo nas Cortes de Évora de 
 
 1481-1482, «os povos pedido a creação de medianeiros ou avindores que 
 concertassem os desavindos antes de começarem os litígios».
 E sobre o ponto, este Autor elucida:
 
  
 Parece que, apesar de o rei se ter recusado a deferir ao pedido, se   crearam 
 mais tarde avindores ou concertadores de demandas, como se infere do regimento 
 de 25 de Janeiro de 1519, que lhes mandava tractar de compor e concertar 
 quaesquer partes que estivessem para ter demandas ou questões, ou já as tivessem 
 ou entre si andassem em discórdias e inimisades, quando por algumas dellas 
 fossem requeridas ou disso soubessem por si.
 Logo acrescenta porém, que apesar de as Ordenações Manuelinas e Filipinas 
 reproduzirem aquele preceito da primeira Ordenação, não existe notícia «de que 
 se nomeassem taes avindores ou concertadores de demandas e de que funcionassem».
 Como quer que seja, séculos mais tarde, a Lei de 14 de Março de 1889, 
 complementada por decretos regulamentares de 19 de Março de 1891 (Regulamento 
 para o recenseamento e eleição nos collegios para constituição dos tribunais de 
 
 árbitros-avindores e Regulamento do processo perante os tribunaes de 
 
 árbitros-avindores) veio autorizar a criação de tribunais de árbitros-avindores 
 nas localidades em que existissem centros industriais importantes.
 Estes tribunais haveriam de ser constituídos, para além do presidente e de dois 
 vice-presidentes, de nomeação governamental, por vogais, sempre em número par, 
 nunca inferior a oito nem superior a dezasseis, cabendo a eleição de metade, a 
 um colégio de patrões e a eleição de outra metade, a um colégio de operários 
 
 (artigo 6.º).
 Não seria admitida perante estes tribunais a intervenção de advogados, devendo 
 as partes pleitear pessoalmente, e só por excepção, fundamentada em motivos 
 graves, e devidamente reconhecida pelo tribunal, poderiam ser representadas por 
 industriais ou operários, como procuradores (artigo 10.º).
 A Lei de 14 de Agosto de 1889 que instituiu a primeira jurisdição especializada 
 de trabalho em Portugal (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 190/92, 
 Diário da República, II Série, de 19 de Agosto de 1992), inspirou-se naqueles 
 antecedentes históricos procurando, como sua ideia central, fazer renascer a 
 função medianeira e conciliadora dos avindores, enquanto meio de prevenir e 
 atalhar a litigiosidade entre as partes.
 No primeiro dos seus diplomas regulamentares, escreveu-se, significativamente 
 
 «os tribunais de árbitros vão ganhando terreno.  O primeiro julgamento por 
 homens bons reage contra a sua proscripção.  O júri foi uma tentativa de 
 enxertia dos primitivos nos modernos tribunaes, mas os fructos não teem sido de 
 benção.  Quiz-se refundir n’um só todos os fóros especiaes (…).  Os tribunaes 
 avindores, organisados com a maxima simplicidade, se nos seus primeiros ensaios 
 procederem como d’elles se espera, serão principalmente salutares como exemplo e 
 modelo».
 Também o júri avindor instituído pelos diplomas que aqui se questionam radica 
 naqueles longíquos antecedentes e encontra justificação nas particulares 
 virtualidades que reúne enquanto instrumento de conciliação de interesses 
 divergentes.
 
  
 
 3 — Segundo a sentença recorrida, na intervenção do júri e do presidente da 
 câmara, não se divisa outro objectivo para além da resolução dos conflitos entre 
 os proprietários em litígio, e porque actuam no exclusivo interesse dos 
 particulares e na resolução das pendências entre eles desencadeadas, há-de ser 
 atribuída natureza jurisdicional às funções por eles exercidas.
 E isto porque, tais entidades não detêm em tal exercício a parcialidade e a 
 iniciativa inerentes à via administrativa.
 Será efectivamente assim?
 Vejamos.
 Em conformidade com o disposto no artigo 205.º, n.º 2, da Constituição, «na 
 administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e 
 interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade 
 democrática e dirimir os conceitos de interesses públicos e privados».
 Ensaia-se neste preceito uma definição da função jurisdicional, que na doutrina 
 
 é deveras controvertida.  São três as áreas especialmente mencionadas: a) a 
 defesa dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos (o que aponta 
 directamente para a justiça administrativa); b) a repressão das infracções da 
 legalidade democrática (o que aponta especialmente para a justiça criminal); c) 
 a resolução dos conflitos de interesses públicos e privados (o que abrange 
 principalmente a justiça cível).
 Reveste-se de alta complexidade a delimitação da reserva da competência 
 judicial, constituindo a distinção entre administração e jurisdição uma das 
 questões salientes das disputas doutrinais e da jurisprudência.  A linha de 
 fronteira terá de atender não apenas à densificação doutrinal adquirida da 
 função jurisdicional, aos casos constitucionais de reserva judicial — artigos 
 
 27.º, n.º 2, 28.º, n.º 1, 33.º, n.º 4, 34.º, n.º 2, 36.º, n.º 6, 46.º, n.º 2, e 
 
 116.º, n.º 7 — mas também ao apuramento neste campo de um entendimento exigente 
 do princípio do Estado de direito democrático (cfr. Gomes Canotilho e Vital 
 Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., pp. 792 e 793).
 No plano da jurisprudência administrativa (cfr. por todos o acórdão do Supremo 
 Tribunal Administrativo, de 13 de Novembro de 1980, Acórdãos Doutrinais, n.º 
 
 231, pp. 286 e segs.), tem-se entendido que existe um acto jurisdicional quando 
 a sua prática se destina a realizar o próprio interesse público da composição de 
 conflitos de interesses, tendo como fim específico, portanto, a realização do 
 direito e da justiça; e existe um acto administrativo quando a composição de 
 interesses em causa tem em vista a prossecução de qualquer outro dos interesses 
 públicos, que ao Estado incumbe realizar, representando aquela composição um 
 simples meio ou instrumento para a sua satisfação, — sendo certo que a distinção 
 entre as duas funções «reside no carácter de parcialidade ou imparcialidade que 
 assume a actividade do órgão que procede à composição do conflito de interesses, 
 aferida em função de uma situação de indiferença ou desinteresse perante o 
 conflito, pelo que há acto administrativo se esse órgão, ou, melhor dizendo, se 
 a pessoa a que o mesmo pertence é interessada ou ‘parte’ no conflito, e há acto 
 jurisdicional na hipótese contrária».
 Também o Tribunal de Conflitos, tem distinguido a função jurisdicional da função 
 administrativa, a partir de critérios ou índices similares aos que se deixaram 
 enunciados (cfr. acórdão de 22 de Maio de 1974, Acórdãos Doutrinais, n.º 154, 
 pp. 278 e segs.).
 Do mesmo modo, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem vindo a adoptar 
 um idêntico entendimento.  «A separação real entre a função jurisdicional e a 
 função administrativa passa pelo campo dos interesses em jogo: enquanto a 
 jurisdição resolve litígios em que os interesses em confronto são apenas os das 
 partes, a Administração, embora na presença de interesses alheios, realiza o 
 interesse público.  Na primeira hipótese a decisão situa-se num plano distinto 
 do dos interesses em conflito.  Na segunda hipótese verifica-se uma osmose entre 
 o caso resolvido e o interesse público» (cfr., por todos, o Acórdão n.º 104/85, 
 Diário da República, II Série, de 2 de Agosto de 1985).
 No campo doutrinal, esta «vexata questio» tem merecido da parte dos Autores 
 nacionais e estrangeiros um tratamento exaustivo, bastando acompanhar aqui o 
 pensamento de Afonso Queiró, Lições de Direito Administrativo, Coimbra, 1976, 
 pp. 13 e segs., que terá sido quem, entre nós, mais longa e aprofundadamente 
 debateu esta questão.
 E este Mestre, procurando alcançar o núcleo essencial que distingue as funções 
 jurisdicional e administrativa, escreveu assim:
 
  
 Ao cabo e ao resto, o quid specificum do acto jurisdicional reside em que ele 
 não apenas pressupõe mas é necessariamente praticado para resolver uma «questão 
 de direito».  Se, ao tomar-se uma decisão, a partir de uma situação de facto 
 traduzida numa «questão de direito» (na violação do direito objectivo ou na 
 ofensa de um direito subjectivo), se actua, por força da lei, para se conseguir 
 a produção de um resultado prático diferente da paz jurídica decorrente da 
 resolução dessa «questão de direito», então não estaremos perante um acto 
 jurisdicional; estaremos, sim, perante um acto administrativo.
 Não é, pois, como muito bem o acentua Duguit, pelo lado dos efeitos que 
 substancialmente se distinguem as duas espécies de actos jurídicos externos que 
 no seu conjunto respectivamente constituem o exercício da função jurisdicional e 
 da função administrativa.  Pelo lado dos efeitos (declarativos, condenatórios, 
 constitutivos ou executivos), as duas funções equivalem-se ou identificam-se.  A 
 distinção entre elas é de ordem teleológico-objectiva.  Em cada caso, há que 
 proceder a interpretação da lei, para se concluir qual é a finalidade objectiva 
 que, com o exercício de determinada competência legal, necessariamente se 
 realiza.
 
  
 No quadro desta caracterização conceitual, atingiu-se uma definição teleológica 
 da função jurisdicional que atende ao desígnio da intervenção dos órgãos do 
 poder político do Estado, desígnio que é, na função jurisdicional e não já na 
 função administrativa, estritamente jurídico, visando a realização do direito 
 objectivo pela composição de interesses conflituantes e não o da sua aplicação 
 ou concretização em função de outros interesses públicos, ainda que para o 
 efeito usando como meio a dirimição de conflitos ou litígios jurídicos.
 
  
 
 4 — À luz destes princípios não se sufraga o entendimento propugnado pelo senhor 
 Procurador-Geral Adjunto no sentido de que as normas desaplicadas se reportam a 
 
 «órgãos administrativos que, no prosseguimento de interesses públicos e 
 privados, desenvolvem uma actividade de natureza administrativa».
 
 É certo que a defesa dos espaços florestais e a protecção do ambiente se 
 inscrevem no âmbito do interesse público, desprendendo-se da historicidade dos 
 diplomas em apreço e dos objectivos por eles perseguidos, o propósito de, ao 
 lado dos interesses individuais e particulares dos cidadãos ali acautelados, se 
 intentar também proteger, ao menos indirectamente, interesses da própria 
 colectividade.
 Mas, tem-se por seguro, no respectivo contexto normativo global que aqueles 
 
 órgãos, enquanto tais, isto é, enquanto órgãos de composição de conflitos, não 
 se assumem como órgãos administrativos no desempenho de uma pura actividade 
 administrativa.
 O exercício da competência de tais órgãos não se dirige, específica e 
 directamente, à prossecução ou defesa de um interesse da colectividade, visando, 
 ao contrário, pois é essa a finalidade objectiva da lei, resolver uma questão de 
 direito através da composição de um conflito de interesses entre particulares.
 Dirimem um conflito jurídico decorrente da «plantação, ou sementeria de 
 eucaliptos, acácias da espécie denominada de albata, vulgarmente conhecida por 
 acácia mimosa, e de ailantos» efectuada «a menos de 20 metros de terrenos 
 cultivados e a menos de 30 de nascentes, terras de cultura de regadio, muros e 
 prédios urbanos», sendo que a sua intervenção carece do requerimento dos 
 interessados, concretamente, «os proprietários e usufrutuários» daqueles 
 terrenos, nascentes, terras de regadio, muros e prédios urbanos.
 Actuando no sentido de decidir uma controvérsia jurídica e em defesa do directo 
 interesse dos particulares donos dos prédios confinantes com as áreas de 
 plantação ou sementeira vedadas por lei, o júri avindor e o presidente da câmara 
 municipal assumem-se como órgãos jurisdicionais.
 Ora, independentemente de se saber se as normas desaplicadas ainda hoje vigoram 
 na ordem jurídica — pode sustentar-se a sua revogação na decorrência da Lei n.º 
 
 82/77, de 4 de Dezembro — tem-se por seguro ser constitucionalmente ilegítimo 
 atribuir a um órgão administrativo, por intervenção directa ou indirecta, o 
 exercício da função jurisdicional.
 E assim sendo, sempre haveriam elas de ser tidas por inconstitucionais por 
 violação dos artigos 113.º, n.º 2, 114.º, n.º 1, e 205.º, n.os 1 e 2, da 
 Constituição.
 
  
 
  
 III — A decisão
 
  
 Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar, no que à 
 questão de constitucionalidade respeita, a decisão impugnada.
 
  
 Lisboa, 8 de Novembro de 1995. — Antero Alves Monteiro Diniz — Maria Fernanda 
 Palma — Maria da Assunção Esteves — Alberto Tavares da Costa      — Armindo 
 Ribeiro Mendes — Vítor Nunes de Almeida (vencido, conforme declaração de voto, 
 que junta) — José Manuel Cardoso da Costa.
 
  
 
  
 DECLARAÇÃO  DE  VOTO
 
  
 Votei vencido quanto à conclusão a que chegou o acórdão a que respeita a 
 presente declaração, no sentido da inconstitucionalidade das normas dos artigos 
 
 2.º e 3.º do Decreto-Lei n.º 28 039, de 14 de Setembro de 1937, e dos artigos 
 
 1.º e seus §§ 1 e 3, 2.º, 4.º, 5.º, 7.º e 8.º do Decreto n.º 28 040, também de 
 
 14 de Setembro de 1937, pois continuo a entender que, na base da criação do 
 sistema de «árbitros avindores», a que se reportam tais normas, está em ultima 
 análise, a realização do interesse público da defesa da qualidade das terras, 
 ainda que tal interesse só possa realizar-se através da intervenção dos 
 particulares proprietários dos terrenos em que ocorram as plantações das 
 espécies nocivas, como as que são referidas nas mencionadas normas.
 Assim sendo, não posso concordar que a finalidade de tais normas seja 
 primordialmente a resolução de conflitos jurídicos individuais entre os 
 proprietários e que, por isso, os «árbitros avindores» desenvolvam aqui uma 
 verdadeira própria actividade jurisdicional.
 Também não concordo que a intervenção do Presidente da Câmara ao indicar o 
 terceiro árbitro, viole o preceituado nos artigos 113.º, n.º 2, e 114.º, n.º 1, 
 da CRP.  Trata-se apenas da indicação, por entidade imparcial e a quem compete 
 depois executar a decisão — qualquer que ela seja —, do terceiro elemento dos 
 
 «árbitros avindores», sendo certo que é a Câmara Municipal quem está mais perto 
 das ocorrências que se têm de decidir.  Não vejo aqui qualquer usurpação ou 
 violação do princípio da separação de poderes.
 Assim, votaria no sentido da não inconstitucionalidade das normas em causa e 
 pelo provimento do recurso. — Vítor Nunes de Almeida.
 
  
 
  
 
  
 
  
 
  
 
 (1)   Acórdão publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Abril de 
 
 1996.