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Processo n.º 409/04 
 1ª Secção Relator: Conselheiro Artur Maurício 
 
 
 
 
   Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional 
 
 
 
 1 - Nos presentes autos de recurso, em que é A., foi proferida a seguinte decisão sumária: 
 
 
 '1 - A., Juiz de Direito, foi acusado pela prática de um crime previsto e punido nos termos das disposições conjugadas dos artigos 367º n.º 2 do Código de Processo Penal e 371º n.º 1 do Código Penal. 
 
 Inconformado com esta acusação, requereu a abertura de instrução. 
 
 Realizado o debate instrutório, foi proferido despacho que pronunciou o arguido pelo crime por que vinha acusado. 
 
 Deste despacho recorreu o arguido para o Tribunal Constitucional, dizendo no respectivo requerimento, na parte que interessa: 
 
 'Recorribilidade: da decisão instrutória, nos termos em que ela foi proferida, não cabe recurso ordinário (artigo 310º n.º 1 do CPP), mas cabe recurso para o Tribunal Constitucional (artigo 70º n.º 2 da Lei n.º 28/82, de 
 15/11. 
 Fundamento do recurso: artigo 70º n.º 1 alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15/11. 
 Norma jurídica recorrida: artigo 367º n.º 1 do CPP, ao prever que 
 (i) na sentença se não fundamente o núcleo essencial de elementos de dúvida que foram vencidos para se lograr uma condenação penal (ii) e nomeadamente que nenhum dos membros do tribunal tem legitimidade constitucional para questionar a decisão colegial inquinando-a com a sua própria concepção, análise e interpretação pessoal dos factos, cuja fundamentação deve aparecer única e indivisível. 
 A primeira parte é a questão tal como foi prevenida pelo recorrente; a segunda parte é expressamente o acrescento por concretização ao caso, que lhe conferiu a decisão recorrida. 
 Normas da Constituição violadas: os artigos 32º n.º 1; 202º n.º 2; 
 204º e 205º n.º 1 da Lei Fundamental. 
 Prevenção da questão: a questão foi suscitada no requerimento de abertura de instrução. 
 
 .............................................................................................................. 
 Demonstração da sua aplicação: a norma em causa foi aplicada na decisão instrutória de pronúncia. 
 
 ..............................................................................................................' 
 
 O recurso foi admitido no tribunal 'a quo' e os autos remetidos a este Tribunal. 
 
 Cumpre apreciar se se verificam os pressupostos do recurso interposto. 
 
 2 - É pressuposto do recurso interposto a aplicação da norma (ou de uma sua interpretação), cuja apreciação de constitucionalidade se pretende, na decisão impugnada, como ratio decidendi. 
 
 Nos termos dos artigos 70º n.º 1 alínea b) e 72º n.º 2 da LTC, é ainda pressuposto do mesmo recurso, a suscitação pelo recorrente da questão de constitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, ressalvando-se os casos de decisão-surpresa ou em que o recorrente não teve oportunidade de tal suscitação prévia. 
 
 Come se deixou relatado, a acusação foi deduzida contra o ora recorrente pela prática de um crime previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 367º n.º 2 do Código de Processo Penal e 371º n.º 1 do Código Penal. 
 
 Dispõe o artigo 367º do CPP: 
 
    'Artigo 367º 
  (Segredo da deliberação e votação) 
 
 1 - Os participantes no acto de deliberação e votação referido nos artigos anteriores não podem revelar nada do que durante ela se tiver passado e se relacionar com a causa, nem exprimir a sua opinião sobre a deliberação tomada. 
 2 - A violação do disposto no número anterior é punível com a sanção prevista no artigo 371º do Código Penal, sem prejuízo da responsabilidade disciplinar a que possa dar lugar.' 
 A acusação deduzida contra o recorrente assentou, em síntese, no facto de o arguido, como juiz de direito a exercer funções na 3ª Vara Criminal do Porto, na redacção de acórdão final num processo em que eram arguidos B. e C., ter aproveitado o momento de indicação e exame crítico das provas para revelar que a decisão tinha sido tomada por maioria simples e para criticar a deliberação da maioria. 
 Diz-se, expressamente na acusação: 
 
 'Embora o arguido refira expressamente no texto que redigiu que 'a postura' que tomou tinha por objectivo 'a descoberta da verdade e em fazer a melhor justiça possível', 'garantir todas as oportunidades aos sujeitos processuais, com o máximo de transparência e honestidade intelectual, tanto mais que a prova não se encontra gravada' e 'fazer entender a coerência (ou incoerência) do discurso utilizado ao logo deste acórdão...' sabia que, por aquela forma, revelava aos sujeitos processuais e ao público em geral não só o sentido da sua deliberação sobre os factos relacionados com a imputação de detenção de droga à aludida B., mas também que dava a conhecer a sua opinião sobre a decisão tomada.' 
 Escreve-se ainda na mesma acusação. para justificar a afirmação de que 'o arguido aproveitou o momento da indicação e exame crítico das provas para criticar a deliberação da maioria': 
 
 'Na verdade, enquanto as razões da deliberação da maioria se apresentam apenas sumariamente enunciadas, de modo a prejudicar o controlo da racionalidade da motivação, as razões que determinariam que a convicção do tribunal se formasse em sentido oposto, de acordo com a sua própria convicção, mostram-se exaustivamente esclarecidas com o propósito de evidenciar que a convicção da maioria resultou de uma apreciação arbitrária da prova assente em meras impressões geradas pelos meios de prova.' 
 No despacho de pronúncia acolhe-se integralmente o que se escreveu na acusação, incluindo os trechos que acima se transcreveram. 
 A antecedê-lo o Ex.mo Desmbargador que subscreveu aquele despacho, teceu algumas considerações sobre o que o arguido alegara no requerimento de abertura de instrução. 
 Defendera este, com efeito, designadamente que: 
 
 'O artigo 367º n.º 1 do Código Penal quando interpretado e aplicado em termos de sua dimensão normativa implicar que na sentença se não fundamente o núcleo essencial de elementos de dúvida que foram vencidos, para se lograr uma condenação penal, é materialmente inconstitucional por violação dos artigos 32º n.º 1; 202º n.º 1 e n.º 2; 204º; 205º n.º 1 da Constituição'. 
 A isto se responde nas referidas 'considerações': 
 
 '(...) entendemos não colher a argumentação do arguido quanto à por si alegada colisão de deveres entre o dever de fundamentação da sentença, de cariz constitucional e o dever de reserva e segredo da deliberação e votação, bem como 
 à pretensa inconstitucionalidade da interpretação que, a não existir, esvaziaria de qualquer alcance e conteúdo tal proibição, esta sim de índole processual e sem atropelo do dever constitucional de fundamentação das decisões e coadjuvante desta, mesmo na controversa interpretação, na óptica do arguido.' 
 Do que se deixa dito, não pode deixar de se concluir que o arguido suscitou a 
 'primeira' questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada, sub specie constitutionis, por este Tribunal, no requerimento de abertura de instrução 
 Por outro lado, também não subsistem dúvidas que a interpretação em causa foi acolhida pelo despacho recorrido, entendendo-se que ela não era inconstitucional. 
 Mas será que esta mesma interpretação normativa foi aplicada como ratio decidendi no mesmo despacho ? 
 Entende-se que não e que o trecho citado se insere no despacho apenas como resposta ao argumentário do arguido. 
 Com efeito, o pressuposto de tal interpretação - o de que no acórdão relatado pelo arguido se fundamentou 'o núcleo essencial de elementos de dúvida que foram vencidos para se lograr uma condenação penal' (a razão essencial, segundo o arguido, do procedimento que adoptara) não é, de facto, aceite no despacho, no caso concreto. 
 
 É que, ao receber a acusação nos termos referidos, o que na pronúncia se diz é, diferentemente, que o arguido quis criticar a decisão do tribunal expondo de modo desigual as razões dessa decisão e as do próprio arguido com o fim de demonstrar que a primeira assentara numa apreciação arbitrária da prova. 
 
 Ora a verificação e confirmação dos indícios do crime - e é esta, fundamentalmente, a razão de ser do despacho recorrido - é de todo incompatível com uma ratio decidendi assente na interpretação normativa em causa. 
 
 Não se mostra, assim, preenchido um dos pressupostos processuais do recurso previsto no artigo 70º n.º 1 alínea b) da LTC. 
 
 3 - Mas, como se viu, no requerimento de interposição de recurso refere-se uma outra dimensão (ou interpretação) normativa do comando estabelecido no artigo 367º n.º 1 do CPP, a que o recorrente chama de 
 'acrescento [à primeira parte da interpretação] por concretização ao caso'. 
 
 Esse 'acrescento' é - recorde-se - o de que 'nenhum dos membros do tribunal tem legitimidade constitucional para questionar a decisão colegial inquinando-a com a sua própria análise e interpretação pessoal dos factos, cuja fundamentação deve aparecer única e indivisível'. 
 
 Ora, esta asserção nada tem de surpreendente. Ela resulta de uma leitura literal do preceito que veda aos participantes no acto de deliberação e votação (entre eles, e antes do mais, os juízes intervenientes) exprimir a sua opinião sobre a deliberação tomada - trata-se da definição do tipo legal do ilícito por que o recorrente vinha acusado. 
 
 Mas, sendo assim, tal como 'prevenira' uma outra interpretação, poderia e deveria o arguido, no requerimento de abertura da instrução, ter questionado a conformidade constitucional daquela proibição, nos termos em que agora o faz. 
 
 Não o tendo feito, não se verifica a suscitação prévia da questão de constitucionalidade, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida. 
 
 Soçobra, também aqui, um dos pressupostos processuais do recurso interposto. 
 
 4 - Decisão: 
 
 Pelo exposto e em conclusão, decide-se não conhecer do objecto do recurso. 
 
 Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 Ucs. ' 
 
 Notificado desta decisão vem o recorrente dela reclamar. 
 
 Sem adiantar qualquer argumento relevante, o recorrente limita-se a discordar da decisão, insistindo, particularmente, no facto de a decisão recorrida ter feito aplicação da norma do artigo 367º n.º 1 do Código de Processo Penal, na primeira interpretação que indicou no requerimento de interposição de recurso. 
 
 No que concerne à segunda interpretação, o reclamante parece aceitar o decidido quanto à sua não suscitação prévia, entendendo, no entanto, que sempre subsistirá aquela primeira. 
 
 Na sua resposta o Ex.mo Magistrado do Ministério Público, entende que a reclamação deve ser indeferida, embora considere que o fundamento aduzido na decisão reclamada para não conhecer do objecto do recurso deva conduzir à inutilidade do recurso. 
 
 Cumpre decidir. 
 
 2 - Na decisão reclamada, entendeu-se que a norma do artigo 367º n.º1 do Código de Processo Penal, na primeira interpretação que o recorrente indicava no requerimento de interposição de recurso, preenchia os pressupostos do recurso, ao abrigo do artigo 70º n.º 1 alínea b) da LTC, quanto à sua suscitação prévia. 
 
 Considerou-se, também, que a decisão recorrida 'aplicara' a norma, naquela interpretação, embora como resposta à argumentação do recorrente feita no requerimento de abertura de instrução; não, porém, como ratio decidendi, uma vez que, na pronúncia, se dizia que o arguido quis criticar a decisão do tribunal expondo de modo desigual as razões dessa decisão e as do próprio arguido, com o fim de demonstrar que a primeira assentara numa apreciação arbitrária da prova. 
 
 Ora, este facto - que acaba por traduzir o dolo do arguido, ora reclamante - é claramente incompatível com a interpretação normativa que se pretende sindicar, assente na consideração de um determinado objectivo que o procedimento do arguido teria visado. 
 
 A conferência sufraga este entendimento e entende, por isso, que, tal como se julgou na decisão reclamada, a ratio decidendi do despacho reclamado não consistiu na interpretação normativa que o recorrente pretende sindicar. 
 
 Como igualmente confirma, no que respeita à segunda interpretação, que esta não foi suscitada durante o processo, não se configurando o despacho de pronúncia, neste aspecto, como decisão-surpresa. 
  
 3 - Em requerimento autónomo, o reclamante pede, ainda, a dispensa do pagamento de custas, ao abrigo do disposto no artigo 17º n.º 1 alínea g) do Estatuto dos Magistrados Judiciais, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 
 143/77, de 31 de Agosto, uma vez que está em causa um acto praticado no exercício da função de juiz. 
 
 Mas sem razão. 
 
 Com efeito, não cabe no âmbito do citado preceito no EMJ a prática de actos que extravasam a função de julgar, como é o caso do acto que se valora, no despacho recorrido, como ilícito criminal. 
 
 4 - Decisão: 
 
 Pelo exposto e em conclusão decide-se indeferir a reclamação, bem como o pedido de isenção do pagamento de custas. 
 
 Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 Ucs. 
 Lisboa, 25 de Maio de 2004 
 Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Luís Nunes de Almeida