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Proc. nº 479/93          
 
 1ª Secção
 Rel. Cons. Monteiro Diniz
 
  
 Acordam no Tribunal Constitucional:
 
  
 
  
 I  A questão
 
  
 
             1 - No Tribunal Judicial da comarca de Caminha, o Ministério Público 
 deduziu acusação, em processo comum e para julgamento em tribunal colectivo, 
 contra (1) J...; (2) L...; (3) Município de Caminha; (4) Associação A ..., 
 imputando-lhes a prática dos seguintes crimes:
 
  
 
    - aos dois primeiros arguidos, em co-autoria, um crime consumado de fraude na 
 obtenção de subsídio previsto e punido pelo artigo 36º, nºs 1, alíneas a), b) e 
 c), 2, 3 e 5, alínea a) do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, um crime 
 consumado de desvio de subsídio previsto e punido pelo artigo 37º, nºs 1 e 3, do 
 mesmo diploma e três crimes tentados de fraude na obtenção de subsídio previsto 
 e punido pelos artigos 22º, 23º, nºs 1 e 2, 74º, nº 1, alínea d) do Código Penal 
 e 36º, nºs 1, alínea a), b) e c), 2, 3 e 5, alínea a) do citado Decreto-Lei nº 
 
 28/84.
 
  
 
   - aos dois últimos arguidos, a autoria de um crime consumado de fraude na 
 obtenção de subsídio e de um crime consumado de desvio de subsídio previstos e 
 punidos pelas disposições legais já referidas.
 
  
 
   - ao terceiro arguido, dois crimes tentados de fraude na obtenção de subsídio, 
 previstos e punidos pelas disposições legais citadas, com referência aos artigos 
 
 2º, nºs 1 e 3, 3º, nº 1 e 7º, nºs 1 e 4 do Decreto-Lei nº 28/84.
 
  
 
   - à quarta arguida, um crime tentado de fraude na obtenção de subsídios 
 previstos e punidos pelas disposições legais citadas também com referência aos 
 artigos 2º, nºs 1 e 3, 3º, nº 1 e 7º, nºs 1 e 4 do Decreto-Lei nº 28/84.
 
  
 
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             2 - A requerimento dos arguidos foi aberta a instrução, 
 suscitando-se no seu decurso, além do mais, diversas questões de 
 constitucionalidade.
 
  
 
             Para os primeiro, segundo e quarto arguidos, o Decreto-Lei nº 28/84, 
 maxime, os seus artigos 36º e 37º, padeceria de inconstitucionalidade orgânica 
 pois que, versando matéria inscrita no âmbito da competência exclusiva da 
 Assembleia da República [artigo 168º, nº 1, alínea c) da Constituição] e tendo 
 sido editado ao abrigo da autorização legislativa concedida pela Lei nº 12/83, 
 de 24 de Agosto, foi promulgado já depois de expirado o prazo de 120 dias dado 
 pelo artigo 5º desta Lei, para o Governo legislar.
 
  
 
             Para o terceiro arguido, além da inconstitucionalidade orgânica do 
 Decreto-Lei nº 28/84 baseada em razões similares às aduzidas pelos outros 
 arguidos (promulgação e referenda já depois de decorrido o prazo fixado na 
 autorização parlamentar), acresceria a inconstitucionalidade dos artigos 1º, 
 alínea a) e 4º, alínea a) da Lei nº 12/83, por não definirem suficientemente o 
 objecto, o sentido e a extensão da delegação legislativa ali contida em 
 contravenção ao disposto no artigo 168º, nº 2, da Constituição, e outrossim a 
 inconstitucionalidade dos artigos 3º e 7º do Decreto-Lei nº 28/84, já que ao 
 estenderem a punibilidade da ilicitude neles definida às pessoas colectivas, 
 sociedades e meras associações de facto, o Governo extravasou os limites da 
 autorização legislativa, afrontando assim os artigos 168º, nºs 1, alínea c) e 2 
 e 201º, nº 1, alínea b), da Constituição.
 
  
 
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             3 - Encerrada a instrução, por despacho de 14 de Junho de 1994, o 
 senhor Juiz desatendeu as questões de constitucionalidade suscitadas pelos 
 arguidos, pronunciando-os depois, pela prática dos crimes por que vinham 
 acusados pelo Ministério Público.
 
  
 
             No essencial, para afastar a impugnação constitucional levantada 
 pelos arguidos, suportou-se na fundamentação seguinte:
 
  
 
             A - Quanto à caducidade da autorização legislativa
 concedida na Lei nº 12/83
 
  
 
     'É inegável que os artºs 36º e 37º daquele diploma contêm matéria da 
 exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo 
 
 (reserva relativa) - artº 168º nº 1 al. c) da Constituição da República 
 Portuguesa.
 
      O Governo legislou ao abrigo de autorização legislativa conferida pela Lei 
 nº 12/83, de 24 de Agosto, autorização que caducaria se não fosse utilizada no 
 prazo de 120 dias.
 
      Como é sabido, a formação de um diploma legal emanado do Governo comporta 
 várias e sucessivas fases, que decorrem perante órgãos ou entidades diversas, 
 podendo designadamente apontar-se como datas marcantes as da aprovação em 
 Conselho de Ministros, a da promulgação pelo Presidente da República e a da 
 publicação no Diário da República, datas que poderão ser mais ou menos afastadas 
 entre si e assim, facilmente, algumas delas poderão já ser posteriores ao termo 
 do prazo de validade de autorização legislativa.
 
      Assim a questão que se suscita é a de saber a qual destes momentos se deve 
 dar relevância para se concluir se a autorização legislativa foi ou não 
 tempestivamente utilizada.
 
      Como é entendimento que se tem vindo a acentuar (cfr. os Ac. Tribunal 
 Constitucional nº 150/92 e 121/93 publicados no D.R. II série, de 28/7/1992 e de 
 
 8/4/1993, respectivamente), crê-se seguro que esse momento apenas pode ser o da 
 aprovação em Conselho de Ministros.
 
 .................................................................. 
 
      No caso, como se alcança do doc. de fls 1278 emitido pela Presidência da 
 República, o diploma em questão foi aprovado em Conselho de Ministros em 
 
 6/12/1983 e deu entrada na Presidência da República em 23/12/1983, tendo sido, 
 pois, respeitado, mesmo no entendimento mais exigente, o prazo fixado na Lei 
 
 12/83 para autorização legislativa aí concedida.'
 
  
 B - Quanto à insuficiente definição do objecto, do sentido
 e extensão da autorização legislativa contida na Lei nº 12/83
 
  
 
     'O Município de Caminha suscita ainda a questão da inconstitucionalidade da 
 própria Lei nº 12/83, por não definir com clareza e nitidez o objecto, o sentido 
 e a extensão das modificações que vão produzir-se na ordem jurídica.
 
      Se bem se entende a argumentação expendida, o vício residiria no facto de 
 aquela lei permitir ao Governo `definir, sem limitações de qualquer natureza, 
 novos tipos de ilícito criminal e novas penas, não determinadas na sua espécie 
 nem na sua gravidade'.
 
 .................................................................. 
 
      No caso vertente, a situação é diversa porque na lei de autorização se 
 balizam, com referência à dosimetria do Cód. Penal, as penas a fixar.
 
      E não se crê que, na definição de novos tipos de ilicitude criminal, a 
 autorização legislativa não estabeleça quaisquer limites, já que, desde logo, 
 ela é referida à matéria de `infracções antieconómicas e contra a saúde 
 pública', conceitos que são naturalmente genéricos e amplos, mas cujos contornos 
 são definíveis e concretizáveis com o recurso a outras disciplinas.
 
      Exigir que a Assembleia da República detalhasse mais a sua autorização 
 seria, afinal, exigir-lhe pouco menos que a definição prévia dos tipos legais de 
 crime a criar.
 
      Entende-se deste modo que a arguição improcede'.
 
  
 C -A responsabilidade criminal das pessoas colectivas
 e equiparadas e o excesso de autorização
 do Decreto-Lei nº 28/84
 
  
 
     'Entende ainda o Município de Caminha que, na elaboração do Dec.Lei nº 
 
 28/84, o Governo extravasou a autorização legislativa recebida, estendendo a 
 punibilidade da ilicitude por si definida às pessoas colectivas, sociedades e 
 meras associações.
 
      Crê-se que também aqui carece de razão.
 
 .................................................................. 
 
      A Lei nº 12/83, de 24 de Agosto, definiu o sentido da autorização que 
 concedia ao Governo como sendo, quanto às infracções antieconómicas e contra a 
 saúde pública `a obtenção de maior celeridade e eficácia na prevenção e 
 repressão deste tipo de infracções, nomeadamente actualizando o regime em 
 vigor'.
 
      No domínio da criminalidade económica a eficácia na prevenção e repressão e 
 a actualização do regime em vigor passa necessariamente pela responsabilização 
 penal das pessoas colectivas e sociedades que, cada vez mais, são as 
 protagonistas da vida social económica em detrimento das pessoas singulares que 
 se vão esbatendo como seus agentes apenas.
 
      Assim, a responsabilização criminal das pessoas colectivas e sociedades, 
 expressamente consagrada no Dec.Lei 28/84, mais não é que a natural consequência 
 de toda essa evolução, sendo com naturalidade abarcada pelo sentido da 
 autorização legislativa, definidora de uma política criminal económica mais 
 eficaz e actual.
 
      Se norma houvesse que limitasse a responsabilidade criminal às pessoas 
 singulares ou, por outra via, que vedasse a responsabilidade criminal das 
 pessoas colectivas ou sociedades, o diploma em apreço, seria obviamente 
 inconstitucional.
 
      Não havendo tal norma e sendo, em tese geral, admitida tal responsabilidade 
 no nosso sistema penal, não se vê motivo para que o legislador do Dec.Lei nº 
 
 28/84 devesse estar limitado às pessoas singulares'.
 
  
 
 *///*
 
  
 
             4 - Desta decisão, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea 
 b) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, interpuseram os arguidos recurso de 
 constitucionalidade para este Tribunal.
 
  
 
             Nas alegações depois oferecidas, os primeiro, segundo e quarto 
 arguidos, formularam as seguintes conclusões:
 
  
 
     'I. O DL 28/84 (em cujos arts 36º e 37º a pronúncia enquadra a actuação dos 
 Arguidos ora Recorrentes), foi publicado no uso de uma autorização legislativa 
 concedida ao Governo pela Lei 12/83, de 24 de Agosto, e versa matéria da reserva 
 relativa de competência legislativa da Assembleia da República;
 
  
 
      II. e foi promulgado no dia 9 de Janeiro de 1984, referendado a 11 do mesmo 
 mês e publicado no dia 20, também de Janeiro de 1984.
 
  
 
      III. A citada autorização foi concedida pelo prazo de cento e vinte dias e 
 caducava no dia 23 de Dezembro de 1983,
 
  
 
      IV. pelo que o diploma governamental foi promulgado, referendado e 
 publicado quando já havia caducado a autorização legislativa.
 
  
 
      V. A promulgação é elemento constitutivo do acto governamental de legislar 
 e a sua falta implica a inexistência jurídica do diploma . artº 140º CRP.
 
  
 
      VI. Por ter sido promulgado - e referendado e publicado - depois de, por 
 caducidade, se ter extinguido a respectiva e indispensável autorização 
 legislativa, o DL 28/84, de 20 de Janeiro, ofende o disposto na al. c) do nº 1 e 
 no nº 2 do artº 168º CRP e padece de inconstitucionalidade orgânica'.
 
  
 
             Por seu turno, a recorrente Câmara Municipal de Caminha rematou o 
 seu arrazoado com este quadro conclusivo:
 
  
 
     '1ª - O Decreto-Lei nº 28/84 foi publicado ao abrigo da Lei de Autorização 
 Legislativa nº 12/83.
 
  
 
      2ª - Lei que foi aprovada pela Assembleia da República em 13/7/83, 
 promulgada em 8/8/83, referendada em 9/8/83 e foi publicada no DR I série nº 
 
 194, de 24 de Agosto.
 
  
 
      3ª - Por sua vez, o citado Decreto-Lei foi aprovado em Conselho de 
 Ministros com data de 6 de Dezembro de 1983, foi promulgado, referendado, 
 publicado e entrou em vigor respectivamente em 9, 11 e 20 de Janeiro e 1 de 
 Março de 1984.
 
  
 
      4ª - Sendo que a Lei de Autorização concedia ao governo o prazo de 120 dias 
 para introduzir a nova disciplina normativa na ordem jurídica.
 
  
 
      5ª - Prazo que se iniciou em 14/7/93 e terminou em 10/11/93.
 
  
 
      6ª - Donde resulta que a autorização legislativa caducou antes de ter sido 
 utilizada pelo Governo, seja porque
 
           a) As autorizações legislativas só se consideram utilizadas com a 
 entrada em vigor do Decreto-Lei delegado ou pelo menos com a publicação deste no 
 Diário da República ou, quando ainda assim se não entenda, mas sem prescindir, 
 com a sua promulgação e referenda, cuja falta, aliás, é geradora de inexistência 
 jurídica.
 
           b) De qualquer modo, nem mesmo a aprovação em Conselho de Ministros 
 teve lugar dentro do prazo de 120 dias, já que o seu termo inicial deve 
 contar-se da data da aprovação da autorização pelo Parlamento.
 
  
 
      7ª - Quer porque não foi aprovado pelo Governo dentro do prazo de 120 dias 
 contadas da data da aprovação pela Assembleia da República da Lei nº 12/83, quer 
 porque (mesmo quando se entenda dever aquele prazo contar-se do dia imediato ao 
 da publicação da lei nº 12/83 no Diário da República) tanto a sua entrada em 
 vigor, como a sua publicação, como até a sua promulgação e referenda, ocorreram 
 posteriormente,
 
         - O Decreto-Lei nº 28/84 na sua generalidade e especificamente os seus 
 artigos 3º, nº 1, 7º, nºs 1 e 4, 36º e 37º envolvem inconstitucionalidade 
 orgânica por violação do disposto no artº 168º. nº 2, da CRP.
 
            Mas não só, pois que,
 
  
 
      8ª - O Governo extravasou dos limites normativos fixados na autorização 
 legislativa, mormente na parte em que definiu novos tipos de ilicitude, fixou 
 novas penas e estendeu aqueles e estas às pessoas colectivas, sociedades e meras 
 associações de facto.
 
  
 
      9ª - Na medida em que excedeu o âmbito da autorização concedida pela 
 Assembleia da República, o Decreto-Lei nº 28/84 é orgânicamente inconstitucional 
 por violar o disposto no artº 168º, nº 1, al. c) da CRP.
 
  
 
      10ª - Por último, ao delegar no Governo a competência para simplesmente 
 
 `... alterar os regimes em vigor, tipificando novos ilícitos penais (...) 
 definindo novas penas ou modificando as actuais, tomando para o efeito, como 
 ponto de referência, a dosimetria do Código Penal ...' e em ordem a obter '... 
 maior celeridade e eficácia na prevenção e repressão deste tipo de infracções 
 
 ...' - cfr. corpo e al. a) do artº 1º e al. a) do artº 4º - a Lei de Autorização 
 nº 12/83 não define suficientemente (nem sequer minimamente) o sentido e a 
 extensão da autorização, configurando-se, pelo contrário, como um 'cheque em 
 branco' pois permite ao Governo criar 'ad libitum' novos tipos de ilícito e 
 novas penas.
 
  
 
      11ª - Pelo que a Lei nº 12/83 enferma de inconstitucionalidade material e 
 viola o disposto no artº 168º, nº 2, da CRP'.
 
  
 
             Contralegando os recursos, o senhor Procurador-Geral Adjunto 
 desenvolveu larga argumentação dissentindo das razões aduzidas pelos 
 recorrentes, concluindo depois do modo seguinte:
 
  
 
     '1º - Os artigos 36º, nºs 1, alíneas a), b) e c), 2, 3 e 5, alínea a), 37º, 
 nºs 1 e 3, 3º, nº 1, 7º, nºs 1 e 4, do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, 
 ao definirem crimes e fixarem penas, e ao estabelecerem a responsabilidade 
 criminal das pessoas colectivas, versam matéria da exclusiva competência 
 legislativa da Assembleia da República (artigo 168º, nº 1, alínea c), da 
 Constituição), tendo o Governo legislado, ao abrigo da autorização legislativa 
 constante do artigo 1º, corpo e alínea a), 4º, alínea a) e 5º da Lei nº 12/83, 
 de 24 de Agosto.
 
  
 
      2º - Para que uma autorização legislativa seja validamente utilizada basta 
 que, antes de expirar o prazo da sua duração, o Governo haja aprovado, em 
 Conselho de Ministros, o correspondente Decreto-Lei, sendo irrelevante que este 
 só venha a ser promulgado, referendado e publicado para além daquele termo, e 
 iniciando-se a contagem do prazo da autorização apenas com a publicação da lei 
 de autorização.
 
  
 
      3º - Assim, o Decreto-Lei nº 28/84, aprovado em Conselho de Ministros em 6 
 de Dezembro de 1983 foi-o antes de expirado o prazo de autorização legislativa, 
 não sendo, por isso, inconstitucionais as normas já referidas.
 
  
 
      4º - A Lei nº 12/83, na parte já mencionada, define com suficiente clareza 
 o objecto, a extensão e o sentido da autorização, cumprindo, assim, os 
 requisitos exigidos pelo artigo 168º, nº 2, da Constituição.
 
  
 
      5º - Ao definir novos crimes e ao estender a responsabilidade criminal às 
 pessoas colectivas e equiparadas, o Governo manteve-se dentro dos limites 
 fixados pela lei de autorização legislativa, não tendo legislado a descoberto de 
 autorização, pelo que as normas objecto do recurso não são organicamente 
 inconstitucionais por violação do disposto no artigo 168º, nº 1, alínea c), da 
 Constituição.
 
  
 
      6º - Termos em que deve negar-se provimento ao recurso, confirmando-se a 
 decisão recorrida na parte impugnada'.
 
  
 
             Os autos correram os vistos legais, mostrando-se agora concluídos 
 para apreciar e decidir.
 
  
 
             E decidir, concretamente, por um lado, se as normas dos artigos 36º, 
 nºs 1, alíneas a), b) e c), 2, 3 e 5,  alínea a); 37º, nºs 1 e 3; 3º, nº 1 e 7º, 
 nºs 1 e 4, do Decreto-Lei nº 28/84, e por outro, se a Lei nº 12/83 - artigos 1º, 
 alínea a) e 4º, alínea a) -, que serviu de suporte, como credencial parlamentar 
 
 à aprovação daquele primeiro diploma, dispõem de todos os requisitos 
 constitucionalmente exigidos.
 
  
 
             Embora os arguidos tenham questionado nas peças instrutórias dos 
 recursos outras normas para além das antes referidas, o certo é que, por força 
 da delimitação do objecto do recurso, delas não cabe conhecer por não terem sido 
 utilizadas como fundamento normativo da decisão recorrida.
 
  
 
             Vejamos então.
 
  
 
 *///*
 
  
 II - A fundamentação
 
  
 
  
 A - A alegada caducidade da autorização legislativa
 concedida pela Lei nº 12/83
 
  
 
             A Lei nº 12/83, de 24 de Agosto, ao abrigo da qual foi aprovado o 
 Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, entrou em vigor no dia imediato ao da 
 sua publicação (artigo 6º), valendo a autorização legislativa que  comportava, 
 pelo prazo de 120 dias (artigo 5º).
 
  
 
             Ora, porque o diploma delegado só veio a ser publicado no Diário da 
 República em 20 de Janeiro de 1984, quando haviam transcorrido já, mais de 120 
 dias sobre a autorização contida na lei delegante, sustentam os recorrentes 
 ter-se assim verificado violação do artigo 168º, nº 2 da Constituição, com 
 decorrência da inconstitucionalidade das normas dos artigos 36º e 37º daquele 
 decreto-lei.
 
  
 
             Não lhes assiste razão.
 
  
 
             Assinale-se, liminarmente, que as normas questionadas, dada a 
 matéria a que se reportam - definição de crimes e penas - se inscrevem no âmbito 
 da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, 
 sendo por isso vedado ao Governo proceder à sua aprovação a descoberto de 
 autorização parlamanter.
 
  
 
             E, na verdade, ao editar o Decreto-Lei nº 28/84, nele se fez 
 invocação da delegação legislativa contida na Lei nº 12/83.
 
  
 
             A questão está pois em saber, se na data da sua utilização, 
 semelhante credencial não havia já caducado, importando para tanto averiguar 
 como se devem contar o início e o termo do prazo de duração fixado nas 
 autorizações legislativas.
 
  
 
             Se quanto ao seu início - dies a quo - não se suscitam dúvidas 
 relevantes, pois que o prazo da autorização há-de começar a correr a partir da 
 entrada em vigor da lei que a concede, desde logo porque só a partir dessa data 
 pode ela ser invocada pelo Governo, já o mesmo não se dirá quanto ao seu termo - 
 dies ad quem, - quanto ao momento do processo de formação do acto legislativo em 
 que a autorização se considera utilizada, e portanto, quanto ao momento que 
 deve ter-se por relevante para saber se a autorização foi ou não invocada em 
 tempo útil.
 
  
 
             Sobre esta matéria existe já uma reiterada e uniforme jurisprudência 
 do Tribunal Constitucional no sentido de as autorizações legislativas serem 
 tempestivamente utilizadas quando o Governo tiver aprovado o diploma delegado 
 antes de expirar o prazo da sua duração, sendo irrelevante que as fases 
 ulteriores - promulgação, referenda e publicação - venham a ocorrer para além do 
 termo daquele prazo (cfr. além de outros os acórdãos nº 150/92 e 651/93, Diário 
 da República, II série, de, respectivamente, 28 de Julho de 1992 e 31 de Março 
 de 1994).
 
  
 
             Naquele primeiro acórdão definiram-se os fundamentos que têm 
 suportado semelhante orientação jurisprudencial, nos termos seguintes:
 
  
 
     'Por um lado, não constituindo a promulgação um acto da competência do 
 Governo, não é de exigir que ela ocorra dentro do prazo concedido ao Governo 
 para legislar em determinada matéria.
 
      Por outro lado, e quanto à possibilidade de o Governo antedatar os 
 diplomas, sempre se poderia estabelecer a presunção de que a sua aprovação 
 ocorreu na data que deles consta (com admissão de prova em contrário).
 
      Finalmente, deve entender-se que o decreto-lei aprovado dentro do prazo de 
 autorização legislativa `existe' para o efeito de se considerar respeitado esse 
 prazo, como `existe' qualquer decreto do Governo enviado ao Presidente da 
 República para promulgação e que este resolve enviar ao Tribunal Constitucional 
 para efeito de apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer das 
 suas normas'.
 
  
 
             Também a doutrina, de um modo geral, tem seguido idêntica 
 orientação (cfr. por todos Jorge Miranda, Funções, órgãos e Actos do Estado, 
 Lisboa, 1990, p. 476 e 477 e 'Autorizações Legislativas', Revista de Direito 
 Público, ano I, nº 2, 1980, p. 18; António Vitorino, As Autorizações 
 Legislativas na Constituição Portuguesa, versão policopiada, Lisboa, 1985, pp. 
 
 252 e ss.).
 
  
 
             Este último autor (ob. loc. cit.) argumentou assim em defesa desta 
 solução:
 
  
 
     'Fica-nos, pois, como mais aceitável a tese da utilização com a aprovação em 
 Conselho de Ministros. Não só pelo paralelo que se pode estabelecer com a 
 aprovação parlamentar (a lei considera-se definitivamente aprovada quando o 
 Parlamento vota o seu texto final em termos globais) mas também porque, sendo a 
 autorização legislativa um instituto que assenta no relacionamento directo e 
 especialmente vinculante entre o Parlamento e o Governo, um dado e concreto 
 Governo, este cumpre o ónus que para ele decorre da lei de autorização com a 
 aprovação do acto delegado, desonerando-se assim da incumbência que se lhe 
 encontra cometida pelo lei de delegação, cessando aí, nessa aprovação, a sua 
 responsabilidade quanto à efectiva utilização da autorização conferida'.
 
  
 
             Também agora se perfilha igual entendimento, em termos de se 
 concluir que o acto relevante do iter legislativo para o efeito de avaliar do 
 uso atempado de uma autorização parlamentar há-de ser a data da aprovação do 
 respectivo decreto-lei e não o da sua promulgação, referenda ou publicação.
 
  
 
             E assim sendo, terá de concluir-se que as normas dos artigos 36º e 
 
 37º do Decreto-Lei nº 28/84, aplicadas no despacho que pronunciou os arguidos, 
 não sofrem de inconstitucionalidade orgânica por débito de competência 
 legislativa do Governo no momento da sua aprovação. Cfr. a propósito da eventual 
 inconstitucionalidade orgânica deste mesmo diploma o acórdão nº 651/93, Diário 
 da República, II série, de 31 de Março de 1994.
 
  
 B - A alegada insuficiência na definição do sentido e
 extensão da autorização legislativa concedida pela
 Lei nº 12/83, maxime, no que respeita aos artigos
 
 1º, alínea a) e 4º, alínea a)
 
  
 
             1 - A Lei nº 12/83, na parte que aqui importa reter, dispunha assim:
 Artigo 1º
 
  
 
  
 
     É concedida ao Governo autorização legislativa para alterar os regimes em 
 vigor, tipificando novos ilícitos penais e contravencionais, definindo novas 
 penas, ou modificando as actuais, tomando para o efeito, como ponto de 
 referência, a dosimetria do Código Penal, nas seguintes áreas:
 
  
 
    a) Em matéria de infracções antieconómicas e contra a 
 
       saúde pública;
 
  
 
    .....................................................
 
  
 
  
 
  
 
  
 
  
 Artigo 4º
 
  
 
  
 
     O sentido das autorizações constantes dos artigos anteriores é:
 
  
 
     a)     Quanto às infracções antieconómicas e contra a saúde pública, a 
 obtenção de maior celeridade e eficácia na prevenção e repressão deste tipo de 
 infracções, nomeadamente actualizando o regime em vigor;
 
  
 
 .................................................
 
  
 
  
 
             Sustenta o recorrente Município de Caminha que estas normas não 
 definem 'suficientemente (nem sequer minimamente) o sentido e a extensão da 
 autorização, configurando-se, pelo contrário, como um `cheque em branco' pois 
 permite ao Governo criar `ad libitum' novos tipos de ilícito e novas penas'.
 
  
 
             Será efectivamente assim?
 
  
 
 *///*
 
  
 
             2 - Em conformidade com o disposto no artigo 168º, nº 2 da 
 Constituição, 'as leis de autorização legislativa devem definir o objecto, o 
 sentido, a extensão e a duração da autorização, a qual pode ser revogada'.
 
  
 
             A versão originária da Constituição no seu artigo 168º, nº 1, no 
 quadro dos limites materiais, apenas se referia ao objecto e extensão, vindo a 
 exigência do sentido da autorização a ser aditada na revisão da 1982, com o que 
 se sublinhou a autonomia deste elemento substancial face ao significado dos 
 demais, reforçando-se também o grau de rigor na determinação dos respectivos 
 limites.
 
  
 
             Acolheu-se assim a experiência de outros ordenamentos 
 constitucionais onde tinha assento, já há muito, o princípio da especialidade 
 das delegações legislativas (cfr. Lei Fundamental de Bona, artigo 80º e 
 Constituição Italiana, artigo 7º).
 
  
 
             Este Tribunal, ao longo de uma reiterada e uniforme jurisprudência - 
 coincidente aliás com a doutrina mais autorizada - tem vindo a definir os 
 contornos de delimitação e condicionamento do âmbito das leis de autorização, 
 cabendo agora recordar, tão somente, a linha argumentativa ali utilizada, que 
 por inteiro aqui se perfilha e mantém.
 
  
 
             Seguindo tal orientação, dir-se-á que o objecto constitui o elemento 
 enunciador da matéria sobre que versa a autorização, a extensão especifica qual 
 a amplitude das leis autorizadas e através do sentido são fixados os princípios 
 base, as directivas gerais, os critérios rectores que hão-de orientar o Governo 
 na elaboração da lei delegada.
 
  
 
             Este último elemento de condicionamento substancial constitui já, 
 não um limite externo, definidor dos contornos da autorização, mas um verdadeiro 
 limite interno à própria autorização, pois que é essencial para a determinação 
 das linhas gerais das alterações a introduzir numa dada matéria legislativa.
 
  
 
             Assim sendo, a autorização há-de conter os princípios, as normas 
 fundamentais que concedem unidade lógico-política à disciplina a editar pelo 
 Governo, e há-de estabelecer também as directivas, reconduzíveis à determinação 
 das finalidades a que aquela disciplina tem de adequar-se.
 
  
 
             E deve sublinhar-se com especial destaque, que se o sentido da 
 autorização não tem de exprimir-se em abundantes princípios ou critérios 
 directivos (que levados às últimas consequências poderiam até condicionar por 
 inteiro em termos de conteúdo o exercício dos poderes delegados), deverá, no 
 mínimo, como condição da sua própria verificação, ser suficientemente 
 inteligível a fim de poder operar como parâmetro de aferição dos actos delegados 
 e, consequentemente, como padrão de medida por parte do legislador delegado do 
 essencial dos ditames do legislador delegante (cfr. por todos, os acórdãos nºs 
 
 107/88 e 70/92, Diário da República, respectivamente, I série, de 21 de Junho de 
 
 1988 e II série, de 18 de Agosto de 1992).
 
  
 
             Ora, à luz do entendimento jurisprudencial que vem sendo afirmado 
 por este Tribunal, haverá de dizer-se que a Lei nº 12/83, nas normas sob 
 sindicância, não colide com o texto constitucional.
 
  
 
             Com efeito, tanto os elementos enunciadores da matéria sobre que 
 versa a autorização, como a amplitude a revestir pelas leis delegadas, isto é, o 
 objecto e a extensão da autorização, se mostram suficientemente explicitadas no 
 artigo 1º, alínea a) da respectiva lei, quando ali se habilita o Governo, no 
 domínio da 'matéria de infracções antieconómicas e contra a saúde pública' a 
 
 'alterar os regimes em vigor, tipificando novos ilícitos penais e 
 contravencionais, definindo novas penas, ou modificando as actuais, tomando para 
 ao efeito, como ponto de referência, a dosimetria do Código Penal'.
 
  
 
             E o mesmo deverá afirmar-se relativamente aos princípios gerais, aos 
 critérios rectores a que a legislação autorizada havia de se conformar e 
 obedecer.
 
  
 
             Ao definir o sentido da autorização relativa às infracções 
 antieconómicas e contra a saúde pública em termos de aquele se traduzir na 
 
 'obtenção de maior celeridade e eficácia na prevenção e repressão deste tipo de 
 infracções, nomeadamente actualizando o regime em vigor' a Assembleia da 
 República instruiu o Governo com uma directiva suficientemente perceptível 
 quanto à 'orientação política da medida legislativa a adoptar', e quanto aos 
 valores, os bens jurídicos e os interesses que o legislador delegado deverá 
 tutelar com a criminalização daquelas condutas.
 
  
 
             Ao contrário do que vem sustentado pelo recorrente Município de 
 Caminha, as indicações constantes da lei delegante, não constituindo 
 propriamente um exemplo paradigmático do modo como deve ser traduzido o sentido 
 das autorizações legislativas, fornecem todavia ao Governo os critérios de 
 delimitação substancial indispensáveis à respectiva concretização legislativa, 
 como aliás foi implicitamente reconhecido no debate parlamentar que antecedeu a 
 aprovação da Lei nº 12/83, muito em particular nas intervenções dos senhores 
 deputados António Vitorino, Costa Andrade e Magalhães Mota (cfr. Diário da 
 Assembleia da República, I série, nº 21, de 14 de Julho de 1983, pp. 884, 888 a 
 
 890 e 892 e 893).
 
  
 C - Quanto ao alegado excesso de autorização do Decreto-Lei
 nº 28/84, na parte respeitante à definição dos crimes e à
 fixação das penas a que se reportam as normas dos artigos
 
 36º e 37º, bem como a sua extensão às pessoas
 colectivas e equiparadas por força
 dos artigos 3º, nº 1 e 7º, nºs 1 e 4 do mesmo diploma
 
  
 
             1 - O Decreto-Lei nº 28/84, nos artigos 36º e 37º definiu, 
 respectivamente, os crimes de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção e 
 desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado, e fixou as respectivas 
 penas.
 
  
 
             A propósito da criação destes dois novos tipos legais de crime, na 
 exposição preambular daquele diploma, escreveu-se assim:
 
  
 
     'Entre os novos tipos de crimes incluídos neste diploma destacam-se a fraude 
 na obtenção de subsídios ou subvenções, o desvio ilícito dos mesmos e a fraude 
 na obtenção de créditos, conhecidos de outras legislações, como a da República 
 Federal da Alemanha, os quais, pela gravidade dos seus efeitos e pela 
 necessidade de proteger o interesse da correcta aplicação de dinheiros públicos 
 nas actividades produtivas, não poderiam continuar a ser ignoradas pela nossa 
 ordem jurídica'.
 
  
 
             Ora, quando a Assembleia da República autorizou o Governo, em 
 matéria de infracções económicas e contra a saúde pública a 'alterar os regimes 
 em vigor' e a tipificar 'novos ilícitos penais e contravencionais, definindo 
 novas penas ou modificando as actuais', com o objectivo de se alcançar 'maior 
 celeridade e eficácia na prevenção e repressão deste tipo de infracções' 
 facultou-lhe os instrumentos de política legislativa necessários 'a uma rápida 
 revisão dos tipos e penas em matéria de criminalidade nos domínios económicos, 
 financeiro e de defesa do consumidor, de modo a adequá-los a novas modalidades 
 de delinquência e à gravidade das infracções praticadas' (cfr. Exposição de 
 motivos da Proposta de Lei nº 20/III, Diário da Assembleia da República, II 
 série, nº 18, de 9 de Julho de 1983).
 
  
 
             E assim sendo, ao definir os novos tipos legais de crime que se 
 contêm nas normas dos artigos 36º e 37º do Decreto-Lei nº 28/83, o Governo não 
 
 'extravasou os limites normativos fixados na autorização legislativa', nem 
 desrespeitou o seu sentido, limitando-se a concretizar uma directiva que nesta 
 seguramente se continha.
 
  
 
 *///*
 
  
 
             2 - Os artigos 3º, nº 1 e 7º, nº 1 e 4, do Decreto-Lei nº 28/83, que 
 dispõem sobre a responsabilidade criminal das pessoas colectivas e equiparadas e 
 sobre as penas que lhe são aplicáveis, rezam assim:
 
  
 Artigo 3º
 
 (Responsabilidade criminal das pessoas colectivas
 e equiparadas)
 
  
 
  
 
   1 - As pessoas colectivas, sociedades e meras associações de facto são 
 responsáveis pelas infracções previstas no presente diploma quando cometidas 
 pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo.
 
  
 
 ........................................................ 
 
  
 
  
 
  
 
  
 
  
 Artigo 7º
 
 (Penas aplicáveis às pessoas colectivas e equiparadas)
 
  
 
  
 
   1 - Pelos crimes previstos neste diploma são aplicáveis às pessoas colectivas 
 e equiparadas as seguintes penas principais:
 
  
 
       a) Admoestação;
 
       b) Multa;
 
       c) Dissolução
 
  
 
 ........................................................ 
 
  
 
   4 - Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 1 000$ e 100.000$, que o 
 tribunal fixará em função da situação económica e financeira da pessoa colectiva 
 ou equiparada e dos seus encargos.
 
  
 
 ........................................................ .
 
  
 
  
 
             Instituiu-se, deste modo, a responsabilização criminal das pessoas 
 colectivas e equiparadas pelas infracções anti-económicas e contra a saúde 
 pública previstas naquele diploma, nomeadamente, pelos crimes a que se reportam 
 os artigos 36º e 37º.
 
  
 
             Sustentam os recorrentes que ao assim se disciplinar esta matéria se 
 incorreu no vício de excesso no uso da autorização legislativa, pois que, não se 
 fazendo referência expressa na lei delegante à responsabilidade criminal das 
 pessoas colectivas, estava vedado ao Governo proceder à sua criminalização.
 
  
 
             Todavia, não se tem por verificado qualquer desbordamento das normas 
 em causa relativamente ao quadro de directivas parlamentares que as delimitam, 
 nem tão pouco se julga verificado um outro vício não explicitamente invocado 
 pelos recorrentes, qual seja o de um eventual impedimento constitucional à 
 responsabilização criminal das pessoas colectivas.
 
  
 
             Vejamos ambas as questões.
 
  
 
 *///*
 
  
 
             3 - Contrariamente ao que, décadas atrás, dispunha de um 
 generalizado beneplácito doutrinal, hoje em dia a responsabilidade criminal das 
 pessoas colectivas é admitida por grande parte dos autores nacionais e 
 estrangeiros dispondo também de consagração no nosso ordenamento.
 
  
 
             Ainda no domínio da vigência do Código Penal de 1886, no qual 
 vigorava o princípio de que só a pessoa física, individualmente considerada, 
 podia ser sujeito activo de infracções criminais (artigos 26º e 28º), tiveram 
 afloramento diversas excepções ao velho princípio societas delinquere non 
 potest, como bem se alcança do artigo 3º do Decreto-Lei nº 41204, de 24 de Julho 
 de 1957 (diploma que no domínio das infracções contra a economia antecedeu o 
 Decreto-Lei nº 28/84, vindo por este a ser expressamente revogado) onde se 
 prescrevia que 'as sociedades civis e comerciais são solidariamente responsáveis 
 pelas multas e indemnizações em que forem condenados os seus representantes ou 
 empregados, contanto que estes tenham agido nessa qualidade ou no interesse da 
 sociedade, salvo a prova de que procederam contra ordem da administração'. 
 Embora não se previsse, autonomamente, a responsabilidade criminal das pessoas 
 colectivas, sujeitavam-se estas, dentro de certos condicionalismos, a uma 
 responsabilidade solidária com os seus representantes ou agentes pelo pagamento 
 das multas e indemnizações impostas a estes últimos pelo cometimento de 
 infracções contra a economia nacional.
 
  
 
             O Código Penal de 1982, veio entretanto trazer, relativamente ao 
 quadro normativo antecedente, uma manifesta alteração de perspectiva.
 
  
 
             No artigo 11º, subordinado à epígrafe - carácter pessoal da 
 responsabilidade - dispõe-se no seu nº 2 que 'salvo disposição em contrário, só 
 as pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade criminal'.
 
  
 
             Afirma-se assim o princípio da individualidade da responsabilidade 
 criminal, mas admite-se a existência de excepções, pensadas precisamente para o 
 alargamento da responsabilidade criminal das pessoas colectivas.
 
  
 
             Como se pode verificar dos trabalhos preparatórios do Código Penal, 
 aquando da discussão do artigo 8º do Projecto (correspondente ao artigo 11º do 
 Código), depois de acentuar que a punição tem uma base ética assente numa ideia 
 individual, Eduardo Correia reconheceu que 'em homenagem a razões particulares 
 e, em todo o caso, excepcionais -, pode admitir-se que haja lugar à aplicação de 
 certas reacções a sociedades ou outras pessoas colectivas, reacções que podem 
 ter a natureza de penas ou medidas de segurança' (Actas das Sessões da Comissão 
 Revisora do Código Penal, parte geral, pág. 110).
 
  
 
             Em sentido similar se pronunciou Figueiredo Dias quando, a propósito 
 da ilicitude do facto, comentou aquele preceito do Código Penal nos termos 
 seguintes:
 
  
 
     'Trata-se, à primeira vista, da consagração do princípio, antigo e 
 respeitável, da individualidade (ou individualização) da responsabilidade 
 criminal; princípio que  aliás se considerava já contido no artigo 28º do velho 
 código a que a doutrina ainda hoje dominante continua a ver fundado na 
 incapacidade jurídico-penal, ou só de acção ou também de culpa, das pessoas 
 colectivas. Mas não pode ser esse seguramente nem o sentido, nem a justificação 
 do preceito. Se o fosse, se o princípio da individualização da responsabilidade 
 se encontrasse inscrito na natureza das coisas, não teria sentido a ressalva de 
 disposição em contrário. Esta só se compreende quando se vê naquele princípio 
 uma pura opção normativa do legislador, que não um suposto ôntico a ele 
 previamente imposto. Por isso, se me á permitido dizê-lo, vejo eu neste artigo 
 
 11º, a confirmação da minha ideia já antiga e segundo a qual é viável e adequado 
 considerar as pessoas colectivas - através de um processo de pensamento 
 filosófico analógico - capazes de acção e de culpa jurídico-penais' 
 
 (Pressupostos da punição e causas que excluem a ilicitude e a culpa', Jornadas 
 de Direito Criminal  O novo Código Penal Português e Legislação Complementar, 
 Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1983, pp. 50 e 51).
 
  
 
             Este mesmo autor, em um outro estudo, depois de recordar que o 
 princípio da individualidade da responsabilidade penal, tornado praticamente em 
 dogma na transição do século XVIII para o século XIX - à luz, sobretudo, das 
 chamadas 'teorias da ficção' sobre a essência das pessoas morais - passou a ser 
 discutido a partir do Congresso Internacional de Direito Penal de Bucareste 
 
 (1929), em nome da convicção de que as exigências programáticas da política 
 criminal devem passar à frente dos preconceitos filosóficos, sustenta que 'se, 
 em sede político-criminal, se conclui pela alta conveniência ou mesmo imperiosa 
 necessidade de responsabilização das pessoas colectivas em direito penal 
 secundário' não se vê então 'razão dogmática de princípio a impedir que elas se 
 considerem agentes possíveis dos tipos-de-ilícito respectivos'.
 
  
 
             E logo se acrescenta não ser 'impensável ver nas pessoas colectivas 
 destinatárias passíveis do juízo de censura em que a culpa se traduz. Certo que, 
 na acção como na culpa, tem-se em vista um `ser livre' como centro ético-social 
 de imputação jurídico-penal e aquele é o homem individual. Mas não deve 
 esquecer-se que as organizações humano-sociais são, tanto como o próprio homem 
 individual, `obras da liberdade' ou `realizações do ser-livre'; pelo que parece 
 aceitável que em certos domínios especiais e bem delimitados - de acordo com o 
 que poderá chamar-se, segundo Max Müller, o princípio da identidade da liberdade 
 
 - ao homem individual possam substituir-se, como centros ético-sociais de 
 imputação jurídico-penal, as suas obras ou realizações colectivas e, assim, as 
 pessoas colectivas, associações, agrupamentos ou corporações em que o ser-livre 
 se exprime' (cfr. 'Para uma dogmática do direito penal secundário', Direito e 
 Justiça, vol. IV, 1989/1990, pp. 7 e ss.).
 
  
 
             Entre nós, na actualidade, o princípio da responsabilidade penal das 
 pessoas colectivas não é gerador de particular disputa doutrinal, merecendo um 
 quase generalizado consenso entre os autores (cfr. entre outros, Lopes Rocha, 'A 
 responsabilidade penal das pessoas colectivas - Novas perspectivas', Direito 
 Penal Económico, p. 162; José de Faria Costa, A responsabilidade jurídico-penal 
 da empresa e dos seus órgãos (ou uma reflexão sobre a autoridade nas pessoas 
 colectivas à luz do direito penal), Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 
 
 2º, 4º, Outubro-Dezembro, 1992, pp. 537 e ss. e O Perigo em Direito Penal, 
 Coimbra, 1991, pp. 447 e ss.).
 
  
 
             E no plano legislativo, no seguimento da evolução doutrinal iniciada 
 antes ainda da aprovação do Código Penal mas que conheceu então assinalada 
 expressão, foram publicados diversos diplomas que criminalizam determinadas 
 condutas dos seus órgãos ou representantes.
 
  
 
             Assim sucedeu, nomeadamente, nos seguintes casos: artigo 7º do 
 Decreto-Lei nº 630/76, de 28 de Julho (ilícitos no domínio das operações 
 cambiais); artigos 21º do Decreto-Lei nº 187/83, de 13 de Maio, 32º e 33º do 
 Decreto-Lei nº 424/86, de 27 de Dezembro e 7º do Decreto-Lei nº 37-A/89, de 25 
 de Dezembro (todas referentes a infracções fiscais aduaneiras).
 
  
 
             A consagração da responsabilidade penal das pessoas colectivas 
 operada pelo Decreto-Lei nº 28/84, não constitui qualquer inovação 'fora do 
 sistema', traduzindo-se, ao contrário, em mera aplicação de um princípio vigente 
 no âmbito da matéria a que aquele diploma se reporta.
 
  
 
             A autorização legislativa concedida pela Assembleia da República 
 através da Lei nº 12/83, em matéria de infracções antieconómicas e contra a 
 saúde pública, credenciava o Governo a alterar os regimes em vigor, e a 
 tipificar novos ilícitos penais, com o objectivo de se alcançar maior celeridade 
 e eficácia no combate a esta específica criminalidade.
 
  
 
             Ora, 'provindo hoje as mais graves e  frequentes ofensas aos valores 
 protegidos pelo direito penal secundário, em muitos âmbitos, não de pessoas 
 individuais mas colectivas, a irresponsabilidade directa destas significaria 
 sempre um seu inexplicável tratamento privilegiado perante aquelas' (Figueiredo 
 Dias, Revista de Legislação e Jurisprudência nºs 3716 a 3720), por certo que se 
 o decreto-lei delegado não consagrasse, como consagrou, a responsabilidade 
 criminal das pessoas colectivas e equiparadas, não teria utilizado 
 integralmente, em todo o alcance do seu sentido, aquela autorização legislativa.
 
  
 
             E assim sendo, há-de concluir-se que o Governo, ao estender às 
 pessoas colectivas e equiparadas a responsabilidade criminal dos crimes 
 definidos no Decreto-Lei nº 28/84, nomeadamente nos artigos 36º e 37º, não 
 ultrapassou os limites contidos na lei de autorização.
 
  
 
 *///*
 
  
 
             4 - Afirmou-se em passo anterior não existir obstáculo 
 constitucional na atribuição às pessoas colectivas de responsabilidade criminal.
 
  
 
             Cabe agora justificar as razões deste entendimento.
 
  
 
             Acompanhando o pensamento dos autores citados, particularmente de 
 Figueiredo Dias (cfr. Jornadas, cit.) dir-se-á que no artigo 11º do actual 
 Código Penal não se consagrou o princípio da individualização da 
 responsabilidade criminal em termos de dele derivar a incapacidade 
 jurídico-penal, ou só de acção ou também de culpa, das pessoas colectivas. E não 
 pode ser esse seguramente nem o sentido nem a justificação do preceito, pois 
 que, a ser assim, a achar-se aquele princípio inscrito na natureza das coisas, 
 não teria explicação a ressalva da locução 'salvo disposição em contrário' que 
 ali se contém por forma a proibir a conclusão de que só as pessoas singulares 
 são susceptíveis de responsabilidade criminal. O excepcionamento da 'disposição 
 em contrário' só se poderá compreender quando se vê no princípio da 
 individualização uma pura opção normativa do legislador e não já um suposto 
 
 ôntico a ele previamente imposto.
 
  
 
             Ora, quando se conclua, em sede político-criminal, pela conveniência 
 ou imperiosa necessidade de responsabilização das pessoas colectivas em direito 
 penal secundário, não se vê razão dogmática de princípio a impedir que elas se 
 considerem agentes possíveis dos tipos-de-ilícitos respectivos. A tese contrária 
 
 'só pode louvar-se numa ontologificação e autonomização inadmissíveis do 
 conceito de acção, a esquecer que a este conceito podem ser feitas pelo 
 tipo-de-ilícito exigências normativas que o conformem com 'uma certa unidade de 
 sentido social'. Tão pouco 'parece impensável ver nas pessoas colectivas 
 destinatárias possíveis do juízo de censura em que a culpa se traduz'.
 
  
 
             E isto porque, em certos domínios especiais e bem delimitados, 
 parece aceitável que ao homem individual possam substituir-se, como 'centros 
 
 ético-sociais de imputação jurídico-penal', as suas obras ou realizações 
 colectivas e, assim, as pessoas colectivas em que o ser livre se exprime.
 
  
 
             E há-de dizer-se que a toda esta retórica argumentativa não se opõe 
 a Constituição, pois que não existe norma ou princípio constitucional a impedir 
 o legislador de prever, no domínio dos crimes antieconómicos e contra a saúde 
 pública (os que aqui importa considerar), a responsabilidade criminal das 
 pessoas colectivas ou equiparadas.
 
  
 
             E as razões invocadas em defesa da responsabilização criminal das 
 pessoas colectivas em direito penal secundário valém também, no essencial, para 
 demonstrar a sua conformidade constitucional.
 
  
 
             Hoje em dia, as mais graves e frequentes ofensas aos valores 
 protegidos pelo direito penal secundário provêm de pessoas colectivas existindo 
 uma imperiosa necessidade, em sede político-criminal, de criminalizar 
 determinadas condutas imputadas aos seus representantes.
 
  
 
             E esta criminalização não encontra impedimento irremomível ditado 
 pela dogmática do direito penal e dos princípios que o inspiram, quando se 
 afastar uma 'ontologificação e autonomização inadmissíveis do direito de acção' 
 e quando se tiver presente que em certos domínios especiais e bem delimitados ao 
 homem individual podem 'substituir-se como centros ético-sociais de imputação 
 juridico-penal' as pessoas colectivas.
 
  
 
             O artigo 12º, nº 2, da Constituição, reconhece expressamente às 
 pessoas colectivas capacidade de gozo de direitos e submissão aos deveres 
 
 'compatíveis com a sua natureza', superando assim uma concepção de direitos 
 fundamentais exclusivamente centrada nos indivíduos.
 
  
 
             Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República 
 Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, pp. 122 a 124, a determinação de 
 quais sejam esses direitos e deveres 'só pode resolver-se casuísticamente', 
 sendo porém claro que 'o ser ou não ser compatível com a natureza das pessoas 
 colectivas depende normalmente da própria natureza de cada um dos direitos 
 fundamentais, sendo incompatíveis aqueles direitos que não são concebíveis a não 
 ser em conexão com as pessoas físicas, com os indivíduos'.
 
  
 
             Ora, nada obsta a que o Estado de direito democrático ao qual 
 incumbe não apenas 'respeitar' os direitos e liberdades fundamentais mas também 
 
 'garantir a sua efectivação' possa num quadro jurídico-penal bem delimitado no 
 seu âmbito e na sua génese motivadora, alargar a responsabilidade criminal às 
 pessoas colectivas em ordem à protecção de bens jurídicos socialmente relevantes 
 e cuja defesa é condição indispensável do livre desenvolvimento da personalidade 
 do homem.
 
  
 
             Assim sendo, não se tem por verificado qualquer impedimento 
 constitucional à criminalização das pessoas colectivas ao nível do direito penal 
 secundário.
 
  
 
 *///*
 
  
 III - A decisão
 
  
 
             Nestes termos, decide-se negar provimento aos recursos e confirmar o 
 despacho impugnado.
 
             Lisboa, 20 de Abril de 1995
 
             Ass) Antero Alves Monteiro Dinis
 Alberto Tavares da Costa
 Vitor Nunes de Almeida
 Armindo Ribeiro Mendes
 Maria Fernanda Palma
 Maria da Assunção Esteves (com declaração de voto)
 Luis Nunes de Almeida
 Proc. nº 479/93
 
 1ª Secção
 
  
 
   
 Declaração de Voto
 
  
 
  
 
             Estamos perante um caso exemplificador de como um problema 
 linguístico pode induzir uma controvérsia dogmática. A discussão sobre se a 
 
 'natureza da coisa' 'pessoa colectiva' admite a responsabilização penal -  
 remetendo   para as  categorias que fundamentam essa responsabilização 
 
 ('livre-arbítrio', 'censurabilidade', 'desvalor da conduta', etc.) - decorre 
 apenas do facto de o legislador ter denominado de 'pena' uma certa reacção 
 jurídica, que afecta a própria pessoa colectiva, em matéria de 'crimes contra a 
 economia e contra a saúde pública'.
 
  
 
             Trata-se de um problema de uso da linguagem. É a dimensão 
 
 'emocional' das expressões 'penas' e 'responsabilidade penal' que veda ao 
 intérprete o acesso a uma interpretação jurídico‑funcional das reacções aqui 
 cominadas pelo legislador.
 
  
 
             Não é pelo facto de o legislador haver qualificado como 
 
 'responsabilidade penal' aquela que se prevê no artigo 3º, e como 'penas', as 
 reacções jurídicas do artigo 7º,  do   Decreto-Lei   nº 28/84, de 20 de Janeiro, 
 que a estrutura destas reacções há-de ser conceitualizada nos quadros da teoria 
 da acção penal. Aquelas expressões são tão-somente meios para a afirmação de 
 determinadas consequências normativas.
 
  
 
             A discussão é aqui provocada por um 'uso mágico' da linguagem [cf. 
 Alf Ross, 'Tü-Tü', in Uberto Scarpelli (ed.), Diritto e Analisi Del Linguaggio, 
 Milão, 1976, págs. 165-181]. Afastando esse 'uso mágico' da linguagem, temos  
 que as reacções atípicas que o legislador qualificou como 'penas' e que afectam 
 a pessoa colectiva não são teorizáveis nos quadros do direito penal. E porque o 
 não são, perde sentido a questão de constitucionalidade. 
 
  
 
 (Maria da Assunção Esteves)