 Imprimir acórdão
 Imprimir acórdão   
			
Processo n.º 916/09
 
 3ª Secção
 Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
 
 
 Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
 
  
 
  
 I – Relatório
 
  
 
  
 
 1. A. instaurou execução para entrega de coisa certa contra B., com base em 
 sentença judicial que, julgando procedentes os embargos de executado por si 
 deduzidos em execução antes instaurada por esta, reconheceu a validade e 
 vigência de um contrato de arrendamento para habitação, onde um e outro figuram, 
 respectivamente, como inquilino e senhoria.
 
  
 B. deduziu oposição à execução, invocando, em síntese, ter denunciado, para sua 
 habitação própria, mediante instauração da competente acção declarativa, ainda 
 pendente, o referido contrato de arrendamento para habitação.
 
  
 Conclui, pedindo, além do mais, se declare prejudicada a «obrigação de entrega 
 do imóvel decorrente do reconhecimento judicial da vigência do aludido contrato 
 de arrendamento (…) suspendendo-se para já os termos da execução».
 
  
 Contestada a petição de oposição, pelo exequente-arrendatário, foi proferido 
 saneador-sentença, que julgou improcedente a oposição à execução, por considerar 
 que «o facto de a oponente ter proposto a sobredita acção judicial não constitui 
 facto extintivo ou modificativo da obrigação, por não existir no momento em que 
 foi invocado, ou seja, com a dedução da oposição, podendo apenas vir a sê-lo com 
 a procedência da acção».
 
  
 Inconformada, apelou a executada/oponente para o Tribunal da Relação de Évora, 
 alegando, em conclusão, no que respeita à questão da constitucionalidade, que o 
 tribunal recorrido, ao interpretar as normas conjugadas dos artigos 1101º do 
 Código Civil e 814º, alínea g), do Código de Processo Civil no sentido de que «a 
 mera denúncia do contrato de arrendamento para habitação feita com a 
 antecedência mínima de seis meses não tem qualquer relevância jurídica, 
 designadamente para fundamentar a oposição à entrega da casa pelo 
 senhorio-denunciante que já esteja de facto na posse dessa mesma casa», violou 
 directamente o disposto nos artigos 8º da CRP e 8º da CEDH e, bem assim, os 
 artigos 62º e 65º da CRP, sendo certo que «a casa de habitação de uma pessoa, o 
 seu domicílio e a respectiva estabilidade não constituem uma realidade banal que 
 possa estar sujeita a tais vicissitudes pelo único motivo de se estar a aguardar 
 uma decisão judicial sobre a validade da denúncia já operada oportunamente pelo 
 meio próprio» em 30.11.2007, ou seja, decorridos seis meses sobre a instauração 
 da respectiva acção; acresce que «o (seu) direito, como proprietária deste único 
 prédio, é de grau superior ao do oponido», pelo que, havendo colisão de 
 direitos, deve ser dada prevalência à posição do senhorio.
 
  
 O recurso foi, após contra-alegações do recorrido, julgado improcedente.
 
  
 Quanto à questão de saber «se a entrega do imóvel ao exequente viola os artigos 
 
 8º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (respeito do domicílio), 8º 
 
 (direito internacional), 62º (direito à propriedade privada) e 65º (direito à 
 habitação) da CRP», sustentou o Tribunal da Relação de Évora:
 
  
 
 «(…) Não estando ainda judicialmente reconhecido o direito de denúncia, face à 
 pendência da respectiva acção, tal pretenso direito não está em condições de ser 
 exercido na presente oposição à execução, não se podendo ainda considerar 
 radicado na esfera jurídica da oponente».
 
 «Assim, não tendo a oponente demonstrado ser titular da invocada posição 
 jurídica activa, o instituto da colisão de direitos (artigo 335º do C. Civil) 
 deixa de poder aplicar-se, carecendo de sentido a invocação da violação [das 
 citadas normas] (…)».
 
 «Face à falta de reconhecimento judicial do (alegado) direito à habitação do 
 imóvel que a oponente pretende fazer valer na acção de denúncia, não se 
 vislumbra que a restituição deste ao apelante viole as aludidas disposições 
 legais, nomeadamente o direito à habitação/domicílio.
 
  
 Aludindo à execução que a ora executada/oponente havia primeiramente instaurado 
 contra o ora exequente/oponido para entrega do imóvel ora reclamado por este, 
 através da qual lograra obter a sua desocupação e efectiva entrega, lê-se ainda 
 no mencionado acórdão:
 
  
 
 «Ademais, tal restituição, com a inerente privação do uso e fruição do imóvel 
 que na primeira execução lhe foi atribuído, não se configura como arbitrária ou 
 intolerável, tanto mais que, por muito prementes que sejam as necessidades 
 habitacionais da oponente/locadora, elas não se podem sobrepor ao direito de uso 
 e fruição do locatário que foi violado, ilicitamente, pela conduta daquela ao 
 promover, de forma injusta, a execução no âmbito da qual obteve a entrega do 
 imóvel.
 
 «Por outro lado, a Constituição admite restrições ao direito de uso e fruição 
 
 (uma das componentes do direito de propriedade), não sendo, como é sabido, a 
 propriedade privada um direito subjectivo ilimitado, sendo o seu conteúdo e 
 limites definidos por lei.».
 
  
 
 É contra este acórdão e o modo como foi resolvido o problema de 
 constitucionalidade por si suscitado, que a executada/oponente se insurge, 
 mediante recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, interposto ao 
 abrigo do disposto no artigo 70º., n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal 
 Constitucional,  pretendendo ver apreciada a questão da constitucionalidade da 
 interpretação – perfilhada pela 1ª instância e confirmada pela instância 
 ordinária de recurso – segundo a qual a mera instauração de acção de despejo, 
 com fundamento em denúncia para habitação, não constitui facto extintivo ou 
 modificativo da obrigação exequenda de entrega do locado, por parte do 
 senhorio-executado, podendo apenas vir a sê-lo com a procedência da acção (cf. 
 requerimento de interposição de recurso e esclarecimento posteriormente prestado 
 pela recorrente, para tanto convidada, quanto ao objecto do recurso).
 
  
 Tendo prosseguido o recurso, foram apresentadas alegações, em que a recorrente 
 formula as seguintes conclusões:
 
  
 
 «1ª O artigo 1101º, alínea a), do Código Civil dispõe que o senhorio pode 
 denunciar o contrato de arrendamento em caso de necessidade de habitação pelo 
 próprio ou pelos seus descendentes em 1º grau e o artigo 1103º, n.º 1, estipula 
 que a denúncia é feita nos termos da lei de processo, com antecedência não 
 inferior a seis meses sobre a data pretendida para a desocupação.
 
 «2ª A recorrente denunciou o contrato nos termos da lei do processo através de 
 acção de despejo proposta em 31-05-2007, denúncia essa cuja eficácia é marcada 
 pela própria Lei para 30-11-2007.
 
 «3ª A oposição nos presentes autos, invocando como fundamento e pretendendo 
 fazer valer a referida denúncia, foi deduzida em Outubro de 2008, quando ainda 
 se aguardava a apreciação daquele pedido de despejo.
 
 «4ª A Lei dispõe que a acção de despejo para este efeito deve ser intentada com 
 data não inferior a 6 meses sobre a data pretendida para a desocupação (artigo 
 
 1103º, n.º 1, do Código Civil).
 
 «5ª A acção intentada em 31-05-2007 deveria ter conduzido à “desocupação” em 
 
 30-11-2007, desocupação essa em sentido impróprio porquanto é a própria 
 recorrente que já se encontra na posse da casa de habitação desde 2003 estando 
 em curso uma acção executiva para que esta seja entregue ao inquilino em cujo 
 favor foi entretanto reconhecida a vigência de um contrato de arrendamento que 
 prejudicou a anterior entrega judicial do prédio à ora recorrente.
 
 «6ª Porém, já quase no fim do ano de 2008 a ora recorrente veio invocar nesta 
 acção a denúncia do contrato de arrendamento por si feita na acção intentada em 
 
 31-05-2007 e o julgador decidiu que essa denúncia não era relevante pelo facto 
 de ainda não mostrar validada por sentença.
 
 «7ª A prolação da sentença corresponde ao exercício de uma actividade 
 jurisdicional que em nada depende da recorrente, a qual todavia fez a denúncia 
 nos termos da lei do processo do contrato de arrendamento que o tribunal 
 decretara subsistir não obstante a ora recorrente e os demais herdeiros de seu 
 marido terem invocado, como era sua convicção, que aquele contrato de 
 arrendamento caducara há vários anos.
 
 «8ª O direito à habitação consagrado na Constituição tem de ser entendido além 
 do mais como direito fundamental de carácter social, análogo a direitos, 
 liberdades e garantias, na medida em que não pode deixar de tutelar os cidadãos 
 contra a privação arbitrária de habitação ou contra o impedimento na obtenção de 
 uma habitação.
 
 «9ª É este claramente um caso flagrante desta natureza, em que o Estado consagra 
 o direito à habitação própria, fazendo prevalecer legislativamente tal direito 
 se necessário contra o direito do inquilino ao uso da mesma casa, daí resultando 
 que nesse conflito de interesses e por determinação legal prevalece o direito do 
 senhorio/proprietário se estiver em causa a sua própria necessidade de 
 habitação.
 
 «10ª Sendo tão óbvio o sentido da opção legislativa e estipulando a Lei que o 
 senhorio pode denunciar o contrato em caso de necessidade de habitação pelo 
 próprio e que a denúncia é feita nos termos da lei do processo, resulta 
 claramente violado o direito à habitação do senhorio proprietário se o artigo 
 
 1101º do Código Civil for interpretado no sentido de que a propositura e 
 pendência da correspondente acção de despejo pelo senhorio que já se encontra de 
 facto a habitar a casa, não constitui por si só denúncia do contrato, só se 
 considerando como tal a sentença que validará a denúncia.
 
 «11ª Uma tal interpretação do disposto no artigo 1101º do Código Civil viola o 
 disposto nos artigos 62º e 65º da Constituição da República.
 
 «12ª A recorrente invocou como facto modificativo ou extintivo da sua obrigação 
 de entrega, ao abrigo do disposto no artigo 814º, alínea g), do CPC ter já 
 denunciado o contrato de arrendamento para habitação própria com a antecedência 
 necessária de despejo, mas o Mm° Juiz considerou que esse facto não tem 
 relevância jurídica para fundamentar a oposição e que só terá a sentença que 
 venha a ser proferida quanto ao pedido de despejo.
 
 «13ª Esta interpretação desprotege e viola arbitrariamente o seu direito ao 
 domicílio e à respectiva estabilidade, que lhe são garantidos pelos artigos 8º 
 da CEDH e pelo artigo 8º da Constituição da República.
 
 «14ª Efectivamente, a recorrente encontra-se a viver desde há mais de seis anos 
 na única casa de que é proprietária e que constitui o seu domicílio, e requereu 
 em devido tempo ao tribunal o reconhecimento do seu direito à cessação de um 
 contrato de arrendamento do mesmo local a favor de terceiro.
 
 «15ª Só porque o Tribunal ainda não validou definitivamente a denúncia não 
 obstante já terem decorrido os prazos estabelecidos para o efeito na lei do 
 processo, não lhe poderá ser imposta coercivamente a privação de tal domicílio – 
 no mínimo a sua expulsão temporária dele.
 
 «16ª O domicílio de uma pessoa – de mais a mais uma pessoa de idade avançada e 
 sozinha – estabelecido na única casa de que é proprietária e onde vive rodeada 
 das pequenas coisas que constituem o seu mundo, é uma realidade protegida, um 
 habitat cuja privação e devassa consequentes da sua entrega forçada a terceiros 
 que neste momento são apenas titulares de um direito virtual de uso, ainda que 
 se trate de uma expulsão temporária, atentam contra o seu direito fundamental à 
 habitação e ao domicílio.
 
 «17ª A interpretação contrária do artigo 814º, alínea g), do CPC conjugado com o 
 disposto no artigo 1101º, nº 1, do Código Civil, constante da decisão recorrida, 
 viola o disposto nos artigos 8º da CRP e 8º da CEDH.
 
 «18ª Devendo ser julgadas inconstitucionais as normas dos artigos do Código 
 Civil e do Código (de Processo) Civil supra interpretadas na interpretação que o 
 tribunal “a quo” delas fez.».
 
  
 O recorrido contra-alegou, pugnando pela manutenção do julgado.
 
  
 Cumpre apreciar e decidir.
 
  
 
  
 II - Fundamentação
 
  
 
 2. Deve começar por dizer-se, como ponto prévio, que, à semelhança do que este 
 Tribunal teve já oportunidade de afirmar noutras ocasiões (cf., entre outros, 
 Acórdãos nºs. 322/93, 223/95 e 121/97, publicados no Diário da República, II 
 Série, de 29 de Outubro de 1993, 27 de Junho de 1995 e de 30 de Abril de 1997, 
 respectivamente), que não se justifica apreciar a eventual desconformidade entre 
 as questionadas normas de direito interno, na interpretação adoptada pelo 
 acórdão recorrido, e a invocada disposição do artigo 8º da Convenção Europeia 
 dos Direitos do Homem, na parte em que assegura o direito ao domicílio, quando é 
 certo que nada se diz neste preceito que se não contenha na CRP, designadamente 
 no artigo 65º, que figura já como parâmetro de constitucionalidade.
 
  
 Analisar-se-á, pois, apenas, a questão da inconstitucionalidade das normas dos 
 artigos 1101º do Código Civil e do artigo 814º, alínea g), do Código de Processo 
 Civil, na interpretação segundo a qual a mera denúncia do contrato de 
 arrendamento não tem qualquer relevância jurídica para fundamentar a oposição à 
 entrega da casa pelo senhorio-denunciante que já esteja de facto na posse dessa 
 casa, por alegada violação dos artigos 62º e 65º da CRP.
 
  
 
 É sabido que um dos traços que mais marcantemente caracteriza o «arrendamento 
 vinculístico» consiste no facto de o senhorio, contrariamente ao arrendatário, 
 não gozar, em princípio, do direito de denúncia do contrato de arrendamento, 
 isto é, na terminologia adoptada na versão originária do Código Civil, do 
 direito de se opor à sua renovação no termo do prazo (inicial ou sucessivo) 
 convencionado ou fixado por lei.
 
  
 Esta solução, por constituir um claro desvio ao princípio da liberdade 
 contratual, foi originariamente consagrada como transitória, num contexto de 
 crise subsequente à Primeira Grande Guerra; manteve-se, contudo, vigente, ao 
 longo do tempo, convertendo-se de excepção em princípio geral (princípio da 
 prorrogação forçada do contrato de arrendamento) digno de expressa consagração 
 no Código Civil de 1966 (artigo 1095º).
 
  
 E o que justificou a permanência no tempo de um tal regime restritivo foi o 
 reconhecimento de que, para lá das razões conjunturais que aconselhavam a 
 adopção de medidas tendentes a garantir a subsistência do arrendamento, estava 
 em causa a garantia de um espaço vital de realização humana objecto de expressa 
 tutela constitucional: o direito à habitação.
 
  
 Assim é que, apesar de sublinhar a natureza positiva de um tal direito 
 fundamental, concebido nuclearmente como um «direito a prestações» cujo sujeito 
 passivo é, antes de mais, o Estado, não deixou este Tribunal de afirmar, em 
 jurisprudência retomada em sucessivos acórdãos, a legitimidade constitucional 
 das «normas que subtraem o contrato de arrendamento para habitação à regra da 
 liberdade contratual e o submetem à regra da renovação automática e 
 obrigatória»:
 
  
 
 «(…) fundando-se o direito à habitação na dignidade da pessoa humana (ou seja, 
 naquilo que a pessoa realmente é – um ser livre com direito a viver dignamente), 
 existe aí um mínimo que o Estado sempre deve satisfazer. E para isso pode, até, 
 se tal for necessário, impor restrições aos direitos do proprietário privado. 
 Nesta medida, também o direito à habitação vincula os particulares, chamados a 
 serem solidários com o seu semelhante (princípio da solidariedade social); 
 vincula, designadamente, a propriedade privada, que tem uma função social a 
 cumprir. (…)» (Acórdão n.º 151/92, publicado no Diário da República, II Série, 
 n.º 172, de 28 de Julho de 1992; cf., ainda, entre outros, os Acórdãos nºs. 
 
 311/93 e 420/2000, publicados no Diário da República, II Série, nºs. 170, de 22 
 de Julho de 1993, e 270, de 22 de Novembro de 2000, respectivamente).
 
  
 
 É certo que, desde então, o legislador, porque também não está a tal 
 constitucionalmente obrigado, tem vindo gradualmente a deixar de fazer uso dessa 
 possibilidade tida como constitucionalmente legítima de garantir o direito à 
 habitação (do locatário) mediante a adopção de medidas legislativas 
 objectivamente restritivas do direito de propriedade do locador; mais, tem mesmo 
 
 (re)introduzido mecanismos de igualação da posição do senhorio e do inquilino 
 tendentes a conferir ao contrato de arrendamento e, designadamente ao destinado 
 
 à habitação do locatário, a feição original de um espaço de exercício da 
 liberdade contratual.
 
  
 Assim, com a reforma operada pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, passou 
 também a reconhecer-se ao senhorio, mesmo nos arrendamentos habitacionais, o 
 direito de se opor à renovação do contrato (nos contratos com prazo certo) ou de 
 denunciá-lo de forma não fundamentada (nos contratos de duração indeterminada) 
 e, desse modo, recuperar a sua liberdade de utilizar o imóvel dado de 
 arrendamento (artigos 1096º, n.º 2, e 1101º, alínea c), do CC).
 
  
 Ponto é que, no primeiro caso, a declaração de oposição à renovação se faça com 
 uma antecedência não inferior a um ano do termo do contrato (artigo 1097º do 
 CC), e que, no segundo caso, a comunicação de denúncia se efectue com uma 
 antecedência não inferior a cinco anos sobre a data em que se pretenda a 
 cessação e seja confirmada com uma antecedência máxima de 15 meses e mínima de 
 um ano sobre a data da sua efectivação (artigos 1101º, alínea c), e 1014º do 
 CC).
 
  
 Conferiu-se, pois, inovatoriamente, ao senhorio, também nos contratos de duração 
 indeterminada, um direito de denúncia livre ou não fundamentado apenas sujeito a 
 um prazo de pré-aviso e confirmação.
 
  
 Manteve-se, contudo, paralelamente, a figura da denúncia justificada ou 
 fundamentada na necessidade de habitação do senhorio, já antes excepcionalmente 
 reconhecida ao senhorio, desde a década de 50, face à regra geral que lhe vedava 
 o direito de se opor à continuação do vínculo locatício.
 
  
 Ora, ainda no contexto da afirmação legal de um tal princípio da prorrogação 
 forçada do contrato de arrendamento, não hesitou o Tribunal Constitucional em 
 afirmar a legitimidade constitucional, à luz do disposto no mesmo artigo 65º da 
 CRP, do direito excepcional de denúncia, pelo senhorio, com tal fundamento 
 
 (necessidade para habitação):
 
  
 
 «(…) é indubitável que as normas que reconhecem ao senhorio o direito de 
 denúncia do contrato de arrendamento, quando aquele necessitar do prédio para 
 habitação, desde que se verifiquem os requisitos – bem rigorosos e apertados – 
 indicados no artigo 1098º do Código Civil, não infringem aquele preceito 
 constitucional.
 
 «Com efeito, as normas do Código Civil respeitantes à denúncia do contrato de 
 arrendamento para habitação pelo senhorio, com fundamento na necessidade deste 
 em utilizar o prédio para sua habitação, visam resolver um conflito entre o 
 direito à habitação do senhorio e o direito à habitação do inquilino. Em face 
 desse conflito, a lei atribui preferência ao direito à habitação do senhorio – o 
 qual se fundamenta no direito de propriedade sobre o prédio urbano, direito esse 
 garantido pelo artigo 62º, n.º 1, da Constituição – sobre o direito a habitação 
 do inquilino – o qual se baseia no contrato de arrendamento urbano, que é 
 obrigatoriamente renovável nos termos da lei.
 
 «Ora, é perfeitamente legítimo, sob o ponto de vista constitucional, que, na 
 hipótese de colisão entre aqueles dois direitos à habitação – um (o do senhorio) 
 alicerçado no direito fundamental de propriedade privada, com assento na 
 Constituição, e outro (o do arrendatário) baseado no contrato – o legislador dê 
 primazia ao do senhorio.» (Acórdão n.º 131/92, publicado no Diário da República 
 n.º 169, de 24 de Julho de 1992; cf., no mesmo sentido, entre outros, o citado 
 Acórdão nºs. 151/92, os Acórdão nºs. 174/92 e 4/96, publicados no Diário da 
 República, II Série, nºs. 216, de 12 de Setembro de 1992, e 101, de 30 de Abril 
 de 1996, respectivamente).
 
  
 E é precisamente sob esta perspectiva que a recorrente pretende ver resolvida a 
 questão de constitucionalidade por si suscitada no presente recurso.
 
  
 Com efeito, partindo da premissa de que a denúncia por si exercida, na 
 respectiva acção de despejo, apesar de ainda não judicialmente validada, operou 
 decorridos seis meses sobre a instauração desta, sustenta a recorrente que, 
 estando em causa a própria necessidade de habitação do senhorio/proprietário, 
 deve o respectivo direito à habitação própria, constitucionalmente tutelado, 
 prevalecer «se necessário contra o direito do inquilino ao uso da mesma casa» 
 
 (conclusão 9ª).
 
  
 Tal linha de argumentação padece, contudo, de dois vícios de raciocínio.
 
  
 Primeiro, não é verdade que a denúncia fundada na necessidade do prédio para 
 habitação opere decorridos seis meses sobre a data da instauração da acção de 
 despejo com tal fundamento.
 
  
 Com efeito, a exigência, imposta pelo n.º 1 do artigo 1103º do CC, no sentido de 
 que a denúncia pelo senhorio, com qualquer dos fundamentos previstos nas alíneas 
 a) e b) do artigo 1101º do mesmo Código, seja feita nos termos da lei de 
 processo «com antecedência não inferior a seis meses sobre a data pretendida 
 para a desocupação», embora fundada no pressuposto inverosímil de que a acção de 
 despejo terminará nesse prazo, não parece comportar tal sentido interpretativo.
 
  
 O que apenas se pretende, com tal exigência temporal, é impor ao senhorio, mesmo 
 nos casos de denúncia fundamentada, um prazo mínimo de aviso prévio, de modo a 
 que o inquilino, apesar da justiça material de decisão de despejo, não seja 
 confrontado com a possibilidade de ser subitamente despejado sem que tenha tido 
 tempo para deslocalizar o seu centro de vida para outro lugar e domicílio.
 
  
 O efeito extintivo da denúncia, caso a acção de despejo venha a ser julgada 
 procedente, apenas operará, contudo, com a própria sentença que, com tal 
 fundamento, o decrete, assumindo esta, como é sabido, um alcance claramente 
 constitutivo.
 
  
 
 É que, além do mais, deixou de vigorar a regra prevista no artigo 53º do RAU 
 
 (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, entretanto revogado) 
 segundo a qual quando o senhorio pretende fazer cessar o arrendamento, nos casos 
 em que a lei o permita, deve interpelar a outra parte, fazendo-se a 
 interpelação, quando seja exigida acção judicial, através da citação, cujo 
 efeito substantivo era precisamente, de acordo com o regime então vigente, a 
 cessação do arrendamento (artigos 52º, n.º 1, e 54º, n.º 1, do RAU).
 
  
 
 À luz deste regime pretérito, os efeitos processuais e substantivos da denúncia 
 reportavam-se, pois, ao momento da citação do arrendatário para a acção de 
 despejo, retroagindo os efeitos do caso julgado, atenta a sua eficácia 
 retroactiva, a tal momento prévio.
 
  
 Não é, contudo, este o regime vigente e aplicável ao caso vertente.
 
  
 Por outro lado, também não é sustentável considerar, como pretende a recorrente, 
 que à data da oposição à execução por si deduzida, fosse já titular do direito à 
 habitação de que se arroga, por via do exercício, pela forma e prazo legais, do 
 direito de denúncia fundado na necessidade do locado para sua habitação própria.
 
  
 Na verdade, por força da sentença, transitada, que julgou procedentes os 
 embargos de executado deduzidos pelo ora recorrido e reconheceu a existência de 
 um contrato de arrendamento válido e em vigor sobre o imóvel que este, na 
 execução principal, foi forçado a desocupar, não só não tinha a recorrente o 
 direito a habitar no locado como, pelo contrário, era sua obrigação proporcionar 
 ao recorrido, como decorria das obrigações contratualmente assumidas, o 
 respectivo gozo, para o mesmo fim habitacional.
 
  
 
 É que, estando em causa o exercício de um direito fundamentado e não livre de 
 denúncia, com claras repercussões no direito do inquilino em permanecer, com 
 garantia constitucionalmente tutelada de estabilidade, na habitação locada, 
 cumpre ao senhorio alegar e provar que se verificam os requisitos previstos na 
 lei e, nuclearmente, a necessidade do locado para a sua própria habitação 
 
 (artigo 1102º do CC).
 
  
 Como bem sublinhou o acórdão recorrido, só com tal demonstração em juízo, é 
 possível equacionar o conflito de interesses habitacionais concorrentes entre 
 locador e locatário e resolvê-lo, como imposto por lei e consentido pela Lei 
 Fundamental, em favor do primeiro.
 
  
 E é indiferente que, durante a pendência da acção de despejo, a recorrente se 
 encontre a habitar o locado, atenta a génese ilegal ou injusta de tal situação 
 de facto, face ao reconhecimento judicial da validade e vigência do contrato de 
 arrendamento.
 
  
 Com efeito, ainda que se perspective no direito constitucional à habitação uma 
 dimensão negativa, análoga à dos direitos, liberdades e garantias, como 
 sustentado pela recorrente (neste sentido expresso, apenas se pronunciou o 
 acórdão n.º 101/92, com duas declarações de voto divergentes), comportando 
 também «o direito de não ser arbitrariamente privado da habitação», a verdade é 
 que, como é bem ver, não são inconstitucionalmente irrelevantes as 
 circunstâncias de facto que estiveram na origem da própria apropriação material 
 do espaço habitacional pela pessoa que invoca um tal direito fundamental.
 
  
 Assim, quando a lei reconhece ao arrendatário habitacional o direito de 
 permanecer no locado fá-lo porque lhe reconhece um título legítimo de origem 
 contratual; do mesmo modo, quando impõe a este que desocupe o locado para que o 
 locador possa aí passar a residir, por dela comprovadamente necessitar, fá-lo 
 porque reconhece a este os poderes de uso e fruição que integram o conteúdo do 
 seu direito de propriedade; e a conformação constitucional das opções legais em 
 matéria de arrendamento urbano, de pendor mais ou menos vinculístico, assentam 
 no pressuposto básico de que locador e locatário são titulares de interesses 
 que, apesar de potencialmente conflituantes, são ambos merecedores da tutela do 
 direito.
 
  
 Ora, no caso vertente, a recorrente recuperou a posse do imóvel, sua 
 propriedade, em execução que veio a ser julgada extinta por efeito da 
 procedência do embargos de executado deduzidos pelo inquilino, que neles fez 
 prova de que, afinal, tinha o direito, contratualmente fundado, de habitar o 
 locado que foi forçado a desocupar, recaindo sobre a exequente a correspondente 
 obrigação contratual.
 
  
 Face à existência, reconhecida por sentença transitada, de um contrato de 
 arrendamento válido e em vigor, cujos efeitos obrigacionais subsistem até que a 
 senhoria demonstre, na competente acção, que tem o direito de denúncia para 
 habitação, é de concluir que é materialmente ilegítima, também sob o ponto de 
 vista constitucional, a própria vivência no espaço habitacional que a recorrente 
 pretende ver protegida durante a pendência de tal acção declarativa.
 
  
 Assim configuradas as coisas, não se afigura inconstitucional a interpretação 
 que, considerando justamente irrelevante o facto de a executada-senhoria se 
 encontrar a habitar o locado, manda prosseguir a execução instaurada pelo 
 exequente-inquilino, com a consequente entrega coerciva do locado a este último, 
 apesar do facto de aquela ter instaurado acção de despejo, com fundamento no 
 direito de denúncia do locado para sua habitação própria, ainda pendente.
 
  
 Interpretação contrária é que poderia porventura pôr em causa o direito à 
 habitação constitucionalmente tutelado do locatário, que, apesar de ver 
 judicialmente reconhecido o direito à habitar no locado, por ser dele 
 arrendatário, estaria impedido de executar um tal direito enquanto decorresse a 
 discussão judicial em torno da questão de saber se assistia à senhoria o direito 
 ou não de denunciar tal contrato.
 
  
 
 É que o direito à habitação do locador apenas pode ser processualmente exercido 
 na respectiva na acção de despejo, só relevando a delonga desta na perspectiva 
 constitucionalmente autónoma, que a recorrente não equacionou, do direito 
 constitucionalmente consagrado de obter uma decisão judicial em prazo razoável 
 
 (artigo 20º, n.º 4, da CRP).
 
  
 E só com a procedência definitiva da acção é que opera o efeito extintivo da 
 denúncia, cessando, com tal fundamento, a própria relação locatícia que até esse 
 momento legitimou a afectação do locado às necessidades habitacionais do 
 locatário.
 
  
 Até lá, o que existe juridicamente e merece tutela constitucional é, tão-só – 
 sublinhe-se de novo –, o vínculo obrigacional constituído por efeito do contrato 
 de arrendamento para habitação que une senhoria e inquilino, cujo conteúdo 
 integra, como pólo activo, o direito do locatário a habitar o locado e, como 
 pólo passivo, a obrigação do locador de proporcionar, nas condições 
 contratualmente estipuladas e exigidas por lei, o exercício, pelo locatário, de 
 tal direito. E é essa circunstância que justifica que não possa relevar, sem 
 mais, a mera invocação do direito de propriedade, tal como está consagrado no 
 artigo 62º da Constituição. 
 
  
 Por tudo isso, não é constitucionalmente ilegítima a interpretação que não 
 reconhece à simples instauração da acção de despejo, com o fundamento invocado 
 
 (denúncia para habitação), ainda que nos termos da lei do processo e com a 
 antecedência legalmente imposta, relevância extintiva ou, mesmo modificativa, da 
 obrigação exequenda de entrega que recai sobre o senhorio que já se encontra, de 
 facto, na posse do locado.
 
  
 
  
 III – Decisão
 
  
 Pelo exposto, decide-se:
 a) não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 1101º, alínea a), do CC, e 
 
 814º, alínea g), do CPC, quando interpretadas no sentido de que a mera 
 instauração, ainda que com a antecedência mínima de seis meses imposta por lei, 
 da acção de despejo, com fundamento no direito de denúncia para habitação do 
 senhorio, não constitui facto extintivo ou modificativo da obrigação exequenda 
 de entrega do locado, pelo senhorio, que já esteja na posse do mesmo, podendo 
 apenas vir a sê-lo com a procedência da acção;
 b) e, consequentemente, negar provimento ao recurso.
 
  
 Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC.
 Lisboa, 28 de Abril de 2010
 Carlos Fernandes Cadilha
 Vítor Gomes
 Ana Maria Guerra Martins
 Maria Lúcia Amaral
 Gil Galvão