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Processo n.º 951/08
 
 2.ª Secção
 Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
 
 
 Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
 
  
 A – Relatório
 
  
 
             1 – A., S.A. interpõe recurso para o Tribunal Constitucional, ao 
 abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, 
 na sua actual versão (LTC), do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16 de 
 Setembro de 2008, que negou a revista pedida pela ora recorrente e a concedeu 
 parcialmente no recurso interposto pela Autora B. do acórdão do Tribunal da 
 Relação do Porto que, decidindo o recurso de apelação, condenou o ora recorrente 
 no pagamento à mesma A. dos danos que se apurarem em execução de sentença, 
 decorrentes de esta A. ter ficado privada de utilizar o automóvel, desde 21 de 
 Dezembro de 2002 até Maio de 2004, tendo que socorrer-se de transportes de 
 terceiros ou próprios alternativos, suportando os respectivos custos, e manteve 
 a condenação da mesma R. no pagamento à A, da importância de € 6.122,30, 
 relativa ao custo da reparação do veículo, acrescida de juros de mora desde a 
 citação.
 
  
 
             2.1 – A recorrida B. propôs acção com processo ordinário contra A., 
 S.A., pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia global de € 32.872,30 (ou 
 pelo menos € 9. 122,30 atento o pedido subsidiário), a título de indemnização e 
 compensação pelos danos sofridos pela A. em consequência directa do acidente de 
 viação, acrescida dos juros vencidos e vincendos até efectivo e integral 
 pagamento.
 
             Para tanto alegou, em síntese, que, no dia 21/12/2002, por volta das 
 
 23:50 horas, na auto-estrada A4, ocorreu um acidente de trânsito que envolveu o 
 veículo automóvel n.º ..-..-…, de marca Wolswagen Golf, sua pertença e que era 
 conduzido pelo seu filho C., e uma raposa que se intrometeu na faixa de rodagem 
 por onde o condutor circulava, em virtude de a rede de protecção não estar 
 totalmente vedada, apresentando uma abertura no local do acidente.
 
             A R. contestou alegando efectuar inspecções periódicas da rede de 
 vedação da auto-estrada e consertar imediatamente qualquer anomalia que 
 detectasse, que na data do acidente não era de prever que a rede estivesse 
 danificada, tanto mais que na inspecção realizada pouco antes do acidente 
 acontecer, a vedação estava em bom estado e que só o facto da rede ter sido 
 vandalizada determinou que se encontrasse rompida no dia do acidente, pelo que 
 não houve qualquer culpa sua na eclosão do acidente.
 
             Foi requerida e admitida a intervenção acessória da Companhia de 
 Seguros C., S.A., em virtude de a R. haver transferido para ela a 
 responsabilidade civil que, de conformidade com a lei, lhe possa ser exigida por 
 prejuízos causados a terceiros na qualidade de concessionária da exploração e 
 manutenção das auto-estradas.
 
             Efectuada audiência de julgamento para apuramento da matéria de 
 facto controvertida, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a 
 acção, condenou a R. a pagar à A. a quantia de 6.122,30 €, a título de 
 indemnização correspondente ao custo de reparação do veículo, acrescida de juros 
 de mora, à taxa de 4% ao ano, desde 16/12/2005 até integral e efectivo 
 pagamento, e na indemnização a liquidar em execução de sentença correspondente à 
 quantia despendida pela A. na obtenção de viatura de substituição do OG no 
 período de 21/12/2002 até 01/05/2005. No mais, absolveu-se a R. do pedido.
 
             
 
             2.2 – Não se conformando com esta decisão, dela recorreram tanto a 
 A. como a R. para o Tribunal da Relação do Porto, tendo este Tribunal julgado 
 parcialmente procedentes os recursos, pelo que, revogando em parte a sentença 
 recorrida, julgou a acção parcialmente procedente e condenou a R. a pagar à A. a 
 quantia de 6.122,30 € acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação 
 até integral pagamento e no mais absolveu a R. do pedido.
 
  
 
             2.3 – Não aceitando, uma vez mais, o decidido, dele recorreram a A. 
 e a R., esta subordinadamente, para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ).
 
             A revista da A. foi julgada parcialmente procedente, tendo-se 
 condenado a R. no pagamento à A. dos danos que se apurarem em execução de 
 sentença, decorrentes do facto de a A. ter ficado privada de utilizar o veículo 
 automóvel, desde 21 de Dezembro de 2002 até Maio de 2004, tendo que socorrer-se 
 de transportes de terceiros ou próprios alternativos, suportando os respectivos 
 custos, e mantido a condenação da R. no pagamento à A. da importância de 
 
 6.122,30 €, relativa ao custo de reparação do veículo, acrescida de juros de 
 mora desde a citação.
 
             Por seu lado, foi negado provimento à revista interposta pela R.
 
  
 
             2.4 –    O acórdão recorrido negou provimento ao recurso da R., por 
 entender, em resumo, que, conquanto a doutrina e a jurisprudência se dividissem 
 quanto à natureza da responsabilidade civil das concessionárias das 
 auto-estradas por acidentes nelas ocorridos em razão de animais que nelas se 
 introduzem – defendendo uns a sua natureza extracontratual, com os consequentes 
 corolários da exigência de prova da culpa por parte do titular do direito, e 
 outros uma natureza de responsabilidade contratual, assente, ora num contrato 
 existente entre o utilizador e a concessionária das auto-estradas, atributivo 
 
 àquela parte de um direito subjectivo à prestação do serviço com certas 
 qualidades ou características, evidenciado pelo pagamento de uma taxa pela sua 
 utilização, ora num contrato firmado entre a concessionária e o Estado (o 
 contrato de concessão), mas atributivo ao utilizador de um direito subjectivo 
 que este pode autonomamente exercer contra a concessionária – o certo é que a 
 questão do ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança das 
 concessionárias das auto-estradas havia sido resolvida pelo artigo 12.º n.º 1, 
 da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, em termos correspondentes aos que já eram 
 postulados pela tese contratualista da responsabilidade, ou seja, no sentido de 
 que incumbia ao devedor a prova de que agiu sem culpa na determinação do dano, 
 por força do disposto nas disposições conjugadas dos artigos 799.º, 342.º, 
 
 344.º, n.º 1, e 350.º do Código Civil).
 
             Por outro lado, este critério normativo tinha natureza 
 interpretativa, porquanto o preceito que o explicitou mais não fizera do que 
 eleger, entre as duas soluções antes aventadas pela doutrina e pela 
 jurisprudência, aquela que vinha sendo acolhida, no quadro do pertinente sistema 
 jurídico, por vários arestos do STJ, designadamente, a partir da prolação do 
 Acórdão de 22/06/2004, relatado pelo Conselheiro Afonso Correia.
 
             Ora, de acordo com o princípio de que cabe ao devedor fazer a prova 
 de que o incumprimento das obrigações de segurança, instituídas no contrato de 
 concessão das auto-estradas, não basta ao devedor fazer a prova do cumprimento 
 genérico desses deveres, mas sim o cumprimento dessas obrigações em concreto. 
 
             Não tendo essa prova sido feita, era a R. responsável pelos danos 
 advenientes do acidente ocorrido entre o veículo que circulava na auto-estrada e 
 uma raposa que se havia intrometido na faixa de rodagem por onde circulava o 
 mesmo veículo.
 
             Considerou, ainda, o acórdão recorrido que a aplicação da referida 
 disposição do artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, aos processos 
 pendentes de apreciação judicial não atingia o alegado princípio de separação de 
 poderes, nem a solução nele consagrada violava os princípios do processo 
 equitativo, da igualdade, da proporcionalidade e da justiça ou afrontava o 
 direito fundamental à propriedade privada garantido no artigo 62.º, n.º 1 e 2, 
 da Constituição, este consubstanciado, no caso, na titularidade de obrigações 
 contratuais com valor económico.
 
  
 
             3 – No requerimento de interposição do recurso constitucional, a 
 recorrente disse pretender a “apreciação das questões de inconstitucionalidade 
 das normas que se obtêm, pela interpretação, do artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, 
 de 18 de Julho (define os direitos dos utentes nas vias rodoviárias 
 classificadas como auto-estradas concessionadas, itinerários principais e 
 itinerários complementares, e ainda as constantes dos artigos 4.º a 12.º da 
 mesma Lei, na medida em que, com as normas directamente visadas, tenham relações 
 sistemáticas de aplicação”.
 
  
 
             4 – Porém, em sequência de convite efectuado à recorrente, a coberto 
 do n.º 5 do artigo 75.º-A da LTC, foi, por despacho do relator, fixado como 
 objecto do recurso de constitucionalidade a norma constante do artigo 12.º, n.º 
 
 1, da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, na interpretação segundo a qual, “em caso 
 de acidente rodoviário em auto-estradas, em razão do atravessamento de animais, 
 o ónus de prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à 
 concessionária e esta só afastará essa presunção se demonstrar que a intromissão 
 do animal na via não lhe é, de todo imputável, sendo atribuível a outrem, tendo 
 de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua 
 imputabilidade moral que não lhe deixou realizar o cumprimento”, por alegada 
 violação dos artigos 2.º, 13.º, n.º 1, 20.º, n.º 4 e 62.º, n.º 1, da 
 Constituição da República Portuguesa.
 
  
 
             5 – Alegando sobre o objecto do recurso, a recorrente condensou nas 
 seguintes proposições conclusivas o seu discurso argumentativo:
 
  
 
 «1ª   A A. é uma sociedade concessionária da construção, manutenção e exploração 
 de auto-estradas, caindo nos deveres previstos nas bases anexas ao Decreto-Lei 
 nº 247-C/2008, de 30 de Dezembro.
 
 2ª      Na sequência de obras de alargamento na A1 (auto – estrada do Norte), a 
 Assembleia da República aprovou a Resolução nº 14/2004, de 31 de Janeiro (DR I 
 Série-A, Nº 137, de 31-Jan.-2004, p. 550), na qual pede ao Governo a alteração 
 das bases da concessão, de modo a suspender as portagens nas vias em obras e a 
 melhor informar os utentes da sua ocorrência.
 
 3ª      Seguiram-se negociações entre o Governo e as concessionárias: 
 inconclusivas, por falta de disponibilidades orçamentais.
 
 4ª      Posto o que foram, no Parlamento, apresentados dois projectos de Lei: 
 Projecto nº 145/X (PCP) e nº 164/X (BE); veio a ser aprovado o primeiro (Decreto 
 nº 122/X), o qual deu azo à Lei nº 24/2007, de 18 de Julho, destinada, no fundo, 
 a conseguir, sem contrapartidas, o que não fora possível pela negociação.
 
 5ª      A Lei nº 24/2007 veio, no essencial, fixar um esquema mais denso e mais 
 gravoso, para as concessionárias, na hipótese de obras nas auto-estradas: sem 
 compensação.
 
 6ª      Além disso, adoptou um sistema que pode conduzir, na hipótese de obras, 
 
 à suspensão das taxas e ao afastamento do princípio do equilíbrio financeiro: 
 também sem compensação.
 
 7ª      Finalmente e perante um certo tipo de acidentes (entre os quais os 
 derivados do atravessamento de animais), estabeleceu uma denominada “presunção 
 de incumprimento”, contra as concessionárias: igualmente sem compensação.
 
 8ª      A Lei nº 24/2007, de 18 de Julho, veio definir os direitos dos utentes 
 nas vias rodoviárias classificadas como auto-estradas concessionadas, 
 itinerários principais e itinerários complementares.
 
 9ª      No entanto, ao invadir o espaço de conformação dos contratos 
 administrativos de concessão de auto-estradas celebrados por parte do Governo, 
 em representação do Estado Português, a Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, é 
 inconstitucional por violar o princípio da separação e interdependência dos 
 
 órgãos de soberania e o estatuto constitucional do Governo.
 
 10ª    Na verdade, a leitura restritiva do princípio da separação de poderes que 
 o Tribunal Constitucional fez nos Acórdãos n.º 1/97 e 24/98 deixa sérias 
 dúvidas, na medida em que não só ignora que o princípio democrático é, hoje, 
 fonte de legitimidade de todos os poderes do Estado, como desconsidera a 
 dimensão positiva da mesma proposição normativa enquanto princípio organizativo 
 de optimização do exercício das funções do Estado.
 
 11ª    A Constituição permite recortar, outrossim, uma área de reserva de 
 administração a partir das normas de competência do Governo e outra a partir dos 
 modos típicos de exercício da função administrativa. 
 
 12ª    O núcleo da reserva de caso concreto é constituído pela autonomia 
 pública, isto é, pela permissão de criação de efeitos de direito não 
 predeterminados por normas jurídicas e titularidade e exercício do 
 correspondente poder, isto é, por margens de livre decisão na criação de efeitos 
 de direito nas situações concretas regidas pelo direito administrativo. 
 
 13ª    A autonomia pública corresponde, pois, a uma reserva de decisão parcial a 
 favor da Administração, exercida através da prática de actos administrativos ou 
 da outorga de contratos administrativos.
 
 14ª    No caso em análise, a Assembleia da República pretendeu alterar, através 
 um acto formalmente legislativo, contratos administrativos de concessão 
 celebrados pelo Governo, em representação do Estado Português, com sociedades de 
 direito privado.
 
 15ª    O diploma veio versar matéria que estava ocupada pelo Governo, 
 determinando a alteração de contratos administrativos em execução, através da 
 introdução de novas obrigações que passam a impender sobre os co-contratantes da 
 Administração. Mais: o Parlamento fê-lo prescindindo de qualquer acordo de 
 vontades entre as partes.
 
 16ª    Existe, assim, uma cobertura 'com a forma de lei' de uma “pura actividade 
 administrativa' (alteração de um contrato de concessão já existente), com 
 consequências evidentes no futuro desenvolvimento do plano rodoviário traçado 
 pelo Governo, em termos de se não poder falar a este propósito de 'uma 
 esporádica e excepcional limitação do espaço de manobra do Governo'. 
 
 17ª    Por outro lado, o diploma é ainda inconstitucional por violação dos 
 princípios da igualdade e da proporcionalidade. 
 
 18ª    Este diploma veio consagrar, com carácter geral, uma presunção de culpa 
 das concessionárias de auto-estradas em matéria de (in)cumprimento de obrigações 
 de segurança daquelas quanto a acidentes rodoviários.
 
 19ª    Fazendo-o, passou a onerar as concessionárias com a demonstração de que 
 não cometeram nenhuma violação dos deveres de segurança a que estavam adstritas, 
 ou seja, são oneradas com a prova de um facto negativo. Estabelece um ónus de 
 prova, mas ao mesmo tempo inviabiliza efectivamente, na prática, a sua 
 realização: atenta contra as regras do processo equitativo e do acesso ao 
 direito.
 
 20ª    A verdade, porém, é que os restantes co-contratantes da Administração - 
 ou sequer os restantes concessionários -, não estão onerados com uma tal 
 presunção de culpa; o caso da ANA, que gere as infra-estruturas aeroportuárias, 
 
 é paradigmático a este respeito.
 
 21ª    Ponderadas as 'propriedades' dos dois casos - o das concessionárias de 
 auto-estradas e o da ANA - , conclui-se inexistir qualquer razão suficiente para 
 um tratamento desigual que não seja a maior frequência dos sinistros rodoviários
 
 22ª    Não se vê, contudo, como possa esse fundamento justificar a diferença de 
 tratamento, visto que, se uma tal asserção é verdadeira, não é menos certo dizer 
 que os acidentes conjecturáveis nas infra-estruturas aeroportuárias causados 
 pela violação das mesmas regras de segurança seriam, potencialmente, de 
 proporções muito superiores aos que se verificam em auto-estradas; ou seja, de 
 certa forma, a magnitude dos acidentes acaba por compensar a respectiva 
 frequência. 
 
 23ª    Se assim é, estão aqui dois sujeitos - por um lado, as concessionárias de 
 auto-estradas e, por outro, a concessionária das infra-estruturas aeroportuárias 
 
 - a ser tratados de forma arbitrariamente desigual, o que se encontra proscrito 
 pelo princípio da igualdade. 
 
 24ª    No que concerne ao equilíbrio financeiro uma leitura atenta do artigo 
 
 11.º deste diploma demonstra que o que o mesmo determina é que, caso a 
 concessionária não cumpra o disposto nos artigos 4.º a 8.º e, por via disso lhe 
 sejam aplicáveis as sanções previstas nos artigos 9.° e 10.°, tal situação não 
 será 'causa justificativa de revisão contratual para efeitos de equilíbrio 
 financeiro'.
 
 25ª    De resto, visto que o direito ao equilíbrio financeiro do contrato se 
 encontra constitucionalmente protegido pelo direito fundamental de propriedade 
 privada, associado à liberdade de iniciativa económica privada, e pelo princípio 
 da protecção da confiança, sempre prevaleceria esse direito contra qualquer lei 
 que o negasse. 
 
 26ª    Em concreto, através do princípio do equilíbrio financeiro, não se 
 indemnizam prejuízos causados por circunstâncias excepcionais e imprevisíveis 
 alheias à vontade das partes: antes se mantém um equilíbrio que, por respeito ao 
 significado inicial do contrato, a administração não pode romper. 
 
 27ª    A intervenção legislativa em questão configura-se como um caso de fait du 
 prince, isto é, trata-se de uma actuação exterior ao contrato que determina uma 
 perturbação significativa na sua equação económico-financeira. 
 
 28ª    São vários os requisitos do factum principis: (i) a imprevisibilidade: 
 
 (ii) a natureza geral da medida; (iii) a natureza jurídico-pública da entidade 
 que emana a medida; (iv) o grau de perturbação do equilíbrio financeiro do 
 contrato, que deve sofrer um agravamento significativo; e (v) a repercussão 
 particular da medida em determinados sujeitos.
 
 29ª    O fait du prince gera uma obrigação ressarcitória que deverá ser 
 satisfeita pela pessoa colectiva administrativa contratante, fundada no 
 princípio do equilíbrio do contrato.
 
 30ª    A Lei nº 24/2007 vem invadir os poderes nucleares do Governo enquanto 
 
 órgão superior da administração pública – 182º – incumbido da direcção da 
 administração directa do Estado – 199º, d).
 
 31ª    Com efeito, cabe apenas ao Governo negociar os contratos públicos de 
 concessão, tanto mais que apenas ele tem os meios técnicos e humanos necessários 
 para o efeito; nesse sentido, de resto, o próprio Parlamento adoptou a referida 
 Resolução nº 14/2004.
 
 32ª    A Lei nº 24/2007 traduz, logo por aí, uma intromissão do Parlamento na 
 
 área própria do Governo, pondo em crise o princípio da separação dos poderes e 
 violando o artigo 2º da Constituição.
 
 33ª    O contrato de concessão tem uma inequívoca base contratual, integrando-se 
 nas chamadas leis-contrato ou leis pactuadas.
 
 34ª    Do facto de essas leis serem de formação contratual e terem uma 
 substância contratual decorrem importantes implicações em sede do seu regime 
 jurídico, tais como: a de a sua modificação ou revogação apenas poder 
 realizar-se por mútuo acordo das partes, que lhe deram origem, a menos que a sua 
 modificação resulte do poder de modificação unilateral
 
 35ª    O princípio jurídico fundamental pacta sunt servanda é estruturante da 
 nossa ordem constitucional que tem o seu fundamento último na própria ideia de 
 Estado de Direito ou no princípio da segurança jurídica ou da protecção da 
 confiança, com assento muito claro no art. 2° da Constituição. Pois a 'palavra 
 dada' é para respeitar mesmo quando venha a assumir a forma de lei.
 
 36ª    Na revisão do contrato de concessão formalizada pelo Dec.-Lei nº 
 
 247-C/2008, de 30 de Dezembro, e pela Resolução do Conselho de Ministros nº 
 
 198-B/2008, da mesma data (esta publicada no D.R., 1ª Série, nº 252, de 
 
 31-12.08), a estipulação da responsabilidade civil na Base XLIX do Dec.-Lei nº 
 
 294/97, de 24 de Outubro, para com os utentes, manteve-se incólume, não tendo 
 sido alvo de modificação.
 
 37ª    Com efeito, não é legítimo tratar uma tal lei como as demais, 
 colocando-as sob o normal poder de revisão (ou alteração) próprio do poder e 
 ordenamento legislativos, uma vez que tais leis, em virtude do vínculo 
 contratual subjacente, não participam inteiramente da livre revisibilidade 
 própria da função legislativa. 
 
 38ª    O nº 1 do art. 12º viola também o princípio da protecção da confiança, 
 num outro aspecto, ou seja, enquanto põe em causa o particular mundo das 
 empresas que planeiam a longo prazo com o maior rigor os proveitos que vão obter 
 e os e custos em que vão incorrer. 
 
 39ª    Além disso, a Lei nº 24/2007, designadamente através do seu artigo 12º/1, 
 veio interferir na composição de litígios já em curso, surgidos entre 
 particulares.
 
 40ª         Tais litígios só podem ser dirimidos pelos tribunais (202º/2), sob 
 pena de se pôr também em causa o direito de acesso aos mesmos, para defesa dos 
 direitos (20º/1).  Interpretar o contrato não compete à lei, mas aos tribunais.
 
 41ª    A Lei nº 24/2007 equivale a uma intromissão do Parlamento no núcleo do 
 poder judicial; põe em causa, num ponto estruturante do nosso ordenamento, o 
 princípio da separação de poderes, violando, também por aqui, o artigo 2º da 
 Constituição.
 
 42ª    O Direito assenta no postulado básico de tratar o igual de modo igual e o 
 diferente de modo diferente, de acordo com a medida da diferença: a essa luz, as 
 soluções desarmónicas são, já por si, contrárias ao princípio da igualdade.
 
 43ª    O Direito civil, na sequência de um esforço milenário de equilíbrio, 
 distingue a responsabilidade obrigacional da aquiliana: a obrigacional, 
 emergente da violação de deveres concretos pré-existentes, prevê uma presunção 
 de culpa, perante o incumprimento (mais severo); a aquiliana, correspondente à 
 inobservância de deveres gerais de respeito, não comporta tal presunção (mais 
 leve): artigos 799º/1 e 487º/1, do Código Civil.
 
 44ª    A cominação de um ou outro tipo de responsabilidade não é arbitrária: 
 depende da materialidade em jogo, sob pena de atingir a igualdade.
 
 45ª    No caso de acidentes em auto-estrada, mostrando‑se cumpridos os deveres 
 específicos a cargo da A., apenas queda verificar se, com violação do dever 
 genérico de respeito, foram violados direitos dos utentes: a responsabilidade é, 
 pela natureza das coisas, aquiliana.
 
 46ª    A “presunção de incumprimento”, ao interferir (e na medida em que 
 interfira) nessa questão, viola o artigo 13º/1, da Constituição. Sem conceder,
 
 47ª    A igualdade constitucional projecta-se no princípio da igualdade 
 rodoviária: nas diversas vias e aos vários utentes aplicam-se regras genéricas e 
 nunca ad hominem.
 
 48ª    Daí que não seja compaginável, nas auto-estradas, uma regra de maior 
 protecção (ou menor risco) dos utentes, em função de gerar coordenadas 
 jurídicas: ser ou não um lanço concessionado; haver ou não portagem; estar em 
 causa o condutor ou o passageiro, como exemplos: seria violado o artigo 13º/1. 
 Sem conceder,
 
 49ª    O artigo 12º/1 da Lei nº 24/2007 veio, de facto, fixar uma presunção de 
 
 “não-cumprimento” (e, não, de culpa); com isso estabelece, de facto, um regime 
 de imputação objectiva: mesmo cumprindo todos os seus deveres, a concessionária 
 ainda será responsabilizada pelo resultado, numa manifestação de puro risco.
 
 50ª    A responsabilidade pelo risco é expoliativa: só se admite em casos 
 especiais, para o futuro, com limitação das indemnizações e acompanhamento por 
 seguros. In casu, nada disso foi ponderado: há nova via de 
 inconstitucionalidade, por discriminação subjectiva, atingindo-se o artigo 13º/1 
 da Lei Fundamental. Sem conceder,
 
 51ª    A Lei nº 24/2007, em vários dos seus preceitos, designadamente o artigo 
 
 12º/1, veio atingir selectivamente os direitos das concessionárias; fê-lo fora 
 de quaisquer pressupostos tributários, violando, também por aqui, a igualdade 
 prevista no artigo 13º/1, da Constituição.
 
 52ª    A recorrente A. detém um acervo patrimonial enquanto parte num contrato 
 de concessão; tal acervo, ainda que contratual, é protegido pela Constituição, 
 por reconduzir-se a uma noção ampla de propriedade (artigo 62º/1, da 
 Constituição).
 
 53ª    A Lei nº 24/2007, em vários dos seus preceitos e, designadamente, no seu 
 artigo 12º, veio atingir direitos patrimoniais pré-existentes, sem compensação: 
 violou a propriedade privada.
 
 54ª    No caso do artigo 12º em causa, esse fenómeno mais flagrante se torna: 
 foi criada, com referência a situações pré-existentes, uma situação objectiva de 
 risco, que é substancialmente amputante de valores patrimoniais: a violação do 
 artigo 62º/1, da Constituição, surge apodíctica.
 
  
 
             Nestes termos e naqueles que, suprindo, os Venerandos Conselheiros 
 Constitucionais queiram subscrever, deve ser declarada a inconstitucionalidade 
 material da Lei nº 24/2007 e, designadamente, do seu artigo 12º, por violação, 
 inter alia, dos artigos 2º, 13º/1 e 62º/1, da Constituição, assim se dando 
 provimento ao presente recurso».
 
  
 
             6 – A recorrida não contra-alegou.
 
  
 B – Fundamentação
 
  
 
             7 – Resulta do relatado que o objecto do recurso de 
 constitucionalidade se cinge à norma constante do artigo 12.º, n.º 1, da Lei n.º 
 
 24/2007, de 18 de Julho, na acepção segundo a qual, “em caso de acidente 
 rodoviário em auto-estradas, em razão do atravessamento de animais, o ónus de 
 prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à concessionária e 
 esta só afastará essa presunção se demonstrar que a intromissão do animal na via 
 
 [não] lhe é, de todo imputável, sendo atribuível a outrem, tendo de estabelecer 
 positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade 
 moral que não lhe deixou realizar o cumprimento”. 
 
             Em tal norma radica, na verdade, o fundamento normativo do decidido 
 relativamente à obrigação de indemnizar em que a ora recorrente foi condenada. 
 
             De fora do objecto do recurso de constitucionalidade, por não terem 
 constituído sua ratio decidendi, estão, assim, as normas constantes dos artigos 
 
 4.º a 12.º da mesma Lei às quais a recorrente imputa a violação do equilíbrio 
 financeiro do contrato de concessão firmado entre o Estado e a recorrente para a 
 construção, manutenção e exploração de auto-estradas formalizado no Decreto-Lei 
 n.º 294/97, de 24 de Outubro, bem como, em certa medida, “o princípio da 
 separação e interdependência dos órgãos de soberania e o estatuto constitucional 
 do Governo”. 
 
             Deste modo apenas faz sentido convocar o princípio do equilíbrio dos 
 contratos, mesmo quando de natureza administrativa, enquanto dimensão absorvida 
 no princípio da proporcionalidade que a nossa Constituição acolheu quer como 
 princípio geral próprio do princípio do Estado de direito democrático (artigo 
 
 2.º), quer como princípio legitimador das limitações ou restrições aos direitos 
 fundamentais (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição).
 
             A problemática da responsabilidade das concessionárias de 
 auto-estradas por acidentes nelas ocorridos por virtude de animais que nelas se 
 introduzem tem sido objecto de larga discussão doutrinária e jurisprudencial, 
 centrada essencialmente na preocupação de dar resposta à questão de saber a quem 
 compete o ónus de prova da culpa do facto, tendo no horizonte como referentes 
 legais os princípios segundo os quais, na responsabilidade contratual, esse ónus 
 incumbe ao devedor (artigo 799.º do Código Civil) e, na responsabilidade 
 extra-contratual, ao lesado (artigo 487.º, n.º 1, do Código Civil).
 
             Pode dizer-se que, para uns, se trata de uma responsabilidade 
 contratual, porque advém de um contrato inominado de utilização da auto-estrada, 
 expresso na oferta de fornecimento do serviço de circulação automóvel, efectuado 
 segundo os parâmetros de qualidade expressos no contrato de concessão, e no 
 pagamento da taxa de portagem que possibilita a utilização do serviço oferecido: 
 a situação ajusta-se a um contrato de facto celebrado directamente entre o 
 utente do serviço e o fornecedor do respectivo bem, por adesão de uma relação 
 factual concreta a um tipo contratual predefinido pela exigência de pagamento de 
 uma taxa de portagem e pela disponibilidade de utilização da auto-estrada em 
 condições de segurança (Sobre as diferentes teses, cf. a anotação do Prof. Sinde 
 Monteiro, in Revista de Legislação e Jurisprudência, anos 131.º, 41 e segs., 
 
 132.º, 29 e segs. e 133.º, 27 e segs.).
 
             Outros admitem a natureza contratual da responsabilidade mas 
 fundam-na no contrato de concessão celebrado entre o Estado e a concessionária 
 da construção, conservação e exploração das auto-estradas, descortinando neste 
 uma cláusula de constituição de responsabilidade contratual em benefício de 
 terceiros, os utentes da via: os terceiros utilizadores da via estariam 
 incluídos, por força do próprio contrato, no âmbito da protecção dos interesses 
 acautelados pelo contrato de concessão, em termos que justificam a chamada à 
 colação da figura dos «contratos com eficácia de protecção para terceiros» (cf. 
 Sinde Monteiro, loc. cit.).
 
             Finalmente, depara-se uma tese de responsabilidade extra-contratual 
 ou aquiliana, nos termos da qual, o único contrato discernível na situação é um 
 contrato entre a concessionária das auto-estradas e o Estado que apenas define 
 as suas recíprocas obrigações, pelo que aquela responde perante os terceiros se, 
 com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer 
 disposição legal destinada a proteger interesses alheios (cf. Profs Menezes 
 Cordeiro, in Igualdade Rodoviária e Acidentes de Viação nas Auto-Estradas, 
 Estudo do Direito Civil Português, 2004, pp. 56; Carneiro da Frada, parecer 
 publicado na Revista do STJ n.º 650/07, e Conselheiro Armando Triunfante, in 
 Responsabilidade Civil das Concessionarias das Auto-estradas, RDJ, tomo 1.º, pp. 
 
 45 e segs.).
 
             O Supremo Tribunal de Justiça adoptou tanto a tese da 
 responsabilidade extra-contratual (cf. Acórdãos de 12/11/96, BMJ, 461.º, 411 e 
 Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 131, pp. 41 e segs., de 20/05/2003 e 
 de 1/10/2009, in www.dgsi.pt/jstj,nsf), como a da responsabilidade contratual 
 que o acórdão recorrido tem por dominante a partir da prolação do Acórdão de 
 
 22/06/2004, disponível no mesmo site informático.
 
             O acórdão recorrido resolveu a questão do ónus da prova do 
 cumprimento das obrigações de segurança das auto-estradas em função apenas do 
 disposto na norma questionada do artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18 de Junho 
 que assim dispõe:
 
 “Artigo 12.º
 Responsabilidade
 
           1 — Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de 
 acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da 
 prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde 
 que a respectiva causa diga respeito a:
 
           a) Objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de 
 rodagem;
 
           b) Atravessamento de animais;
 
           c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas 
 anormais.
 
           2 — Para efeitos do disposto no número anterior, a confirmação das 
 causas do acidente é obrigatoriamente verificada no local por autoridade 
 policial competente, sem prejuízo do rápido restabelecimento das condições de 
 circulação em segurança.
 
           3 — São excluídos do número anterior os casos de força maior, que 
 directamente afectem as actividades da concessão e não imputáveis ao 
 concessionário, resultantes de:
 
           a) Condições climatéricas manifestamente excepcionais, designadamente 
 graves inundações, ciclones ou sismos;
 
           b) Cataclismo, epidemia, radiações atómicas, fogo ou raio;
 
           c) Tumulto, subversão, actos de terrorismo, rebelião ou guerra.”.
 
  
 
             Segundo o aresto recorrido “este dispositivo põe fim à polémica 
 relativa ao ónus de prova, remetendo a discussão sobre a natureza jurídica da 
 responsabilidade civil das concessionárias das auto-estradas para fundamentos 
 meramente teórico-académicos”. Todavia, não obstante esta proclamação, certo é 
 que, para resolver o caso concreto, não pôde o aresto ignorar as posições 
 anteriores sobre o fundamento da responsabilidade das concessionárias das 
 auto-estradas, pois se lhe tornou necessário aferir se ao novo preceito deveria 
 ser atribuída natureza interpretativa ou carácter inovatório, dado os factos em 
 questão terem ocorrido antes da entrada em vigor da lei nova. 
 
             E no desembaraço dessa tarefa e convocando os critérios definidores 
 das leis interpretativas concluiu o acórdão recorrido que o preceito devia ser 
 tido como lei interpretativa e consequentemente como norma esclarecedora do 
 sentido da norma interpretada e integrando, por isso, ab initio, o seu conteúdo 
 prescritivo enquanto cometendo às concessionárias das auto-estradas o ónus da 
 prova das obrigações de segurança, tal qual era antes consagrado pela 
 jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal de Justiça.
 
             Ora, conquanto a recorrente, pelos termos em que recorta a norma 
 sindicada, pareça apenas controverter a validade do critério estabelecedor do 
 
 ónus de prova do cumprimento das obrigações de segurança, a se, o certo é que, 
 na sua argumentação, não deixa ela de atacar igualmente a eficácia retroactiva 
 da norma associada àquela qualificação de lei interpretativa.
 
              A elucidação da questão de constitucionalidade dispensa a 
 determinação da natureza da responsabilidade aqui em causa, mas já não desobriga 
 de uma análise da norma impugnada quanto a saber se ela deve ser havida como 
 norma que dispõe sobre matéria cuja regulação tenha sido pactuada entre os 
 intervenientes do contrato de concessão, formalizado no Decreto-Lei n.º 294/97, 
 de 24 de Outubro (ou diploma posterior – Decreto-Lei n.º 247-C/2008, de 30 de 
 Dezembro) ou se dispõe sobre efeitos que são estranhos à negociação contratual 
 ou à ponderação dos interesses que cada um dos contraentes visa acautelar 
 vinculativamente através do contrato.
 
             Ora, o preceito questionado insere-se num diploma que tem como 
 objecto definir, nos termos nele apontados (artigo 1.º da referida Lei n.º 
 
 24/2007), “os direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como 
 auto-estradas concessionadas, itinerários principais e itinerários 
 complementares e estabalece[r], nomeadamente as condições de segurança, 
 informação e comodidade exigíveis, sem prejuízo de regimes mais favoráveis aos 
 utentes estabelecidos ou a estabelecer”.
 
             Se bem que a norma sindicada respeite apenas ao ónus da prova do 
 cumprimento das obrigações de segurança da concessionária de “auto-estradas, com 
 ou sem obras em curso, em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas 
 para pessoas ou bens”, o certo é que ele atinge não só os sujeitos que já 
 detenham a qualidade de concessionários de auto-estradas, mas igualmente todos 
 aqueles que venham a ficar em tal posição no futuro. Por outro lado, o preceito 
 não visa dispor acerca de um certo e determinado contrato de concessão de 
 auto-estradas, nem interferir com a definição das obrigações contratuais 
 assumidas nesses contratos por quem neles intervém: o Estado concedente e a 
 concreta concessionária. O legislador associa, simplesmente, a constituição de 
 efeitos jurídicos à existência de uma hipótese de facto configurada em torno de 
 uma categoria abstracta de pessoas e de um tipo de situações, igualmente 
 abstractas.
 
             Nesta linha de pensamento não se vê como seja possível sustentar-se 
 que, ao adoptar o regime jurídico de cometer à concessionária das auto-estradas 
 o ónus de prova do cumprimento das obrigações de segurança atinentes à 
 circulação nas respectivas vias, na dimensão aqui sindicada, o legislador 
 parlamentar esteja a violar o “princípio da separação e interdependência dos 
 
 órgãos de soberania e o estatuto constitucional do Governo”, como esgrime a 
 recorrente.
 
             Não tendo a norma em causa a natureza de qualquer cláusula 
 contratual, mesmo que construída sobre um qualquer prévio pacto de legislar em 
 certo sentido, antes derivando da competência da Assembleia da República de 
 
 “fazer leis sobre todas as matérias, salvo as reservadas pela Constituição ao 
 Governo” [artigo 161.º, alínea c)], não se vislumbra como possa defender-se que, 
 com a conformação do respectivo regime jurídico, com carácter geral e abstracto, 
 se possa estar a atingir o “núcleo essencial” da autonomia pública pressuposta 
 como função material da Administração-Governo em se vincular, com respeito pelo 
 princípio da precedência e da reserva material de lei, em contratos de concessão 
 da concepção, construção, manutenção e exploração de auto-estradas.
 
             Como dizem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da 
 República Portuguesa, Anotada, 3.ª edição revista, pp. 497-498), o sentido útil 
 do princípio da separação de poderes, como princípio normativo autónomo dotado 
 de um irredutível núcleo essencial, será o de servir de fundamento à declaração 
 de inconstitucionalidade de qualquer acto que ponha em causa o sistema de 
 competências, legitimação, responsabilidade e controlo consagrado no texto 
 constitucional”.
 
             A definição do regime de responsabilidade dos concessionários das 
 auto-estradas para com os utentes dessas vias de comunicação não é matéria que 
 respeite à definição das obrigações recíprocas dos contraentes no contrato de 
 concessão respeitantes às operações materiais e jurídicas da concepção, 
 construção, manutenção e exploração de auto-estradas e, consequentemente, ao 
 exercício, com respeito pelos referidos princípios da precedência e de reserva 
 material de lei, de uma competência inserida materialmente na função 
 administrativa, independentemente de esta não caber exclusivamente ao Governo, 
 mas apenas como função-regra, própria da concepção constitucional do Governo 
 como órgão superior da administração pública (artigo 182.º da Constituição) 
 dotado de uma competência administrativa expressamente enunciada no texto 
 fundamental (artigo 199.º da Constituição), mas ao regime de relações com 
 terceiros em relação ao contrato.
 
             Do mesmo passo, pode asseverar-se que a instituição do referido ónus 
 de prova, por banda das concessionárias de auto-estradas, do cumprimento das 
 obrigações de segurança na circulação rodoviária que estas oferecem, não ofende, 
 ao contrário do alegado, as regras do processo equitativo, consagrado no artigo 
 
 20.º, n.º 4, da Constituição.
 
             O princípio do processo equitativo tem sido compreendido enquanto um 
 direito a um due process of law que deve compreender o direito à igualdade de 
 armas ou direito à igualdade de posições no processo, com proibição de todas as 
 discriminações ou diferenças de tratamento arbitrárias, o direito de defesa e de 
 contraditório traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes 
 invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da 
 outra parte, pronunciar-se sobre o valor e resultado dessas provas, direito a 
 prazos razoáveis de acção e de recurso, direito à fundamentação das decisões, 
 direito à decisão em tempo razoável, direito ao conhecimento dos elementos 
 processuais, “direito à apresentação de provas tendentes e aptas a demonstrar os 
 factos alegados e o direito a um processo orientado para a justiça material sem 
 demasiadas peias formalísticas” (cf. J. J. Gomes Canotilho, Constituição da 
 República Portuguesa Anotada, Volume I, p. 415-416).
 
             Ora a repartição, pelo legislador, entre os sujeitos das obrigações 
 do ónus de prova dos elementos constitutivos de tais obrigações não se afigura 
 constituir matéria de processo, mas antes matéria substantiva, conquanto o 
 momento de primacial efectividade da norma ocorra dentro do processo, 
 determinando a quem incumbe, nele, a tarefa de ter de demonstrar os factos 
 controvertidos e de como deve o tribunal decidir no caso de não se fazer prova 
 do facto. Está ausente dessa atribuição qualquer ideia de igualdade ao processo 
 e no processo.
 
             De qualquer modo, não se vislumbra que seja desprovido de fundamento 
 material bastante a opção de o legislador cometer o ónus em causa à parte que se 
 encontra em melhores condições para antecipadamente poder lançar mão dos meios 
 ou instrumentos materiais aptos à prova dos factos, quer pelo domínio material 
 que tem sobre as auto-estradas e os meios de equipamento e de infra-estruturas 
 adequadas a conferir maior segurança na circulação rodoviária, quer pela sua 
 capacidade económica para se socorrer desses meios.
 
             Entende a recorrente que o estabelecimento, pelo referido preceito, 
 do ónus de prova de cumprimento das obrigações de segurança viola os princípios 
 da igualdade, da proporcionalidade e da protecção da confiança.
 
             Para fundamentar a primeira asserção convoca a circunstância de os 
 restantes co-contratantes da Administração – ou sequer os restantes 
 concessionários – não estarem onerados com uma tal presunção de culpa, 
 constituindo caso paradigmático da diferença de tratamento o que se passa com a 
 ANA que gere as infra-estruturas aeroportuárias e cuja violação das regras de 
 segurança terá potencialmente proporções muito superiores.
 
             Mas tal alegação é manifestamente improcedente. O princípio da 
 igualdade, assumido como princípio fundamental na nossa Constituição (artigo 
 
 13.º) não significa igualitarismo ou igualdade formal. 
 
             Como se disse no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 186/90, 
 publicado no Diário da República II Série, de 12 de Setembro de 1990, 
 dispensando-se o Tribunal de citar outros locais, dada a uniformidade de 
 critério, “O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação 
 do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, 
 
 “razoável, racional e objectivamente fundadas”, sob pena de, assim não 
 sucedendo, “estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do 
 acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores 
 constitucionalmente relevantes”, no ponderar do citado Acórdão nº 335/94.  Ponto 
 
 é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a 
 discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar, 
 diz-nos j.c.vieira de andrade – Os Direitos Fundamentais na Constituição 
 Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pág. 299)”.
 
             Ora, a afirmação de que o regime de responsabilidade civil do ónus 
 da prova dos restantes co-contratantes da Administração na concessão de bens ou 
 serviços públicos, e mais especificadamente a alegada relativa à ANA, é menos 
 exigente do que a decorrente da aplicação do artigo 12.º da Lei n.º 24/2007 é 
 tudo menos líquida, porquanto é possível sustentar que idêntica inversão do ónus 
 da prova opera, nesse domínio, seja por decorrência do enquadramento na 
 responsabilidade contratual (artigo 799.º do Código Civil), seja por aplicação 
 do regime específico da responsabilidade extracontratual (artigo 493.º, nº 1, do 
 Código Civil). 
 
             Por outro lado, não pode negar-se que as duas situações de facto 
 apresentam contornos evidentes de exigências não inteiramente coincidentes.
 
             Do mesmo passo, tendo em conta que o tipo de bens oferecido através 
 da oferta da via das auto-estradas, diferentemente do que se passa com as demais 
 estradas, pressupõe níveis elevados e especiais de segurança, traduzidos desde 
 logo na concepção, construção, manutenção e exploração das vias segundo padrões 
 materiais ou normativos de grande exigência, e que a sua utilização é feita em 
 termos massivos e mediante o pagamento de uma taxa (ainda que nas SCUT esta seja 
 assumida pelo Estado), não se vê que possa considerar-se existir qualquer 
 violação do princípio da proporcionalidade ao atribuir-se ao concessionário da 
 auto-estrada o ónus de demonstrar que cumpriu, em concreto, relativamente a cada 
 utilizador, a obrigação de segurança cuja pressuposta existência real se 
 apresenta como determinante para que uma grande massa de consumidores opte pela 
 sua utilização.
 
             Não constituindo a instituição legal desse ónus uma interferência no 
 domínio da estipulação das concretas relações contratuais, não pode também 
 defender-se que ela introduza qualquer perturbação anormal e imprevisível na 
 habitual previsão dos riscos que as partes ponderam antecipadamente antes de se 
 decidir pela vinculação contratual, em termos de se poder considerar afectar-se 
 intoleravelmente a autonomia de vontade pressuposta pelo direito à capacidade 
 civil e ao livre desenvolvimento da personalidade.
 
             Estando-se perante especiais actividades económicas geradoras de 
 riscos elevados de lesão de bens e direitos de terceiros, muitas vezes ínsitos 
 ao próprio tipo de bens cuja aquisição se oferece, afigura-se como previsível 
 que o legislador possa submeter essa actividade concreta a especial regime de 
 responsabilidade e isso principalmente quando ela é levada a cabo em regime de 
 concessão pública, pois dela poderá sobrar para o Estado a emergência de ter de 
 suprir as consequências danosas para os utilizadores desses bens, mormente 
 através do cumprimento dos deveres de prestação dos serviços de saúde e de 
 segurança social.
 
             Nesta senda, falece, igualmente, o argumento da violação do 
 princípio da protecção da confiança, independentemente de se afigurar 
 inconsistente a sua convocação quando, como acontece no caso, se está, segundo o 
 entendimento do tribunal a quo que constitui um dado para o Tribunal 
 Constitucional, em presença de uma lei interpretativa, por o sujeito não poder 
 deixar de contar com a eventualidade de o legislador vir a assumir como sentido 
 normativo obrigatório aquele que, na jurisprudência aplicada, pese embora a 
 existência de divergências perante a lei interpretada, coincidia com o que veio 
 a ser positivado na lei interpretativa.
 
             Alega, ainda, a recorrente que a norma em questão viola o direito de 
 iniciativa económica privada e o direito de propriedade privadas, consagrados, 
 respectivamente, nos artigos 61.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, ambos da Constituição.
 
             Mas sem razão, uma vez mais. O direito de iniciativa económica 
 privada está expressamente reconhecido como direito fundamental no artigo 61.º, 
 n.º 1, da Constituição. Mas não como direito absoluto. Daí que ele deva ser 
 exercido “nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o 
 interesse geral”.
 
             Ora, no preceito constitucional imediatamente antecedente (o artigo 
 
 60.º, n.º 1) dispõe-se que “os consumidores têm direito à qualidade dos bens e 
 serviços consumidos, […] à protecção […] da segurança e dos seus interesses 
 económicos, bem como à reparação de danos”.
 
             Por outro lado, não pode deixar de distrair-se do artigo 2.º da 
 Constituição, consagrador do princípio do Estado de direito democrático, 
 enquanto postulado decorrente do princípio de justiça material em que aquele 
 também se decompõe, um princípio fundamental do reconhecimento de um direito 
 geral à reparação de danos.
 
             O direito à reparação de danos, seja por violação dos direitos do 
 consumidor com protecção constitucional garantida no artigo 60.º, n.º 1, da 
 Constituição, seja por falta de cumprimento de obrigações emergentes de 
 contratos, da violação de direitos ditos “absolutos” ou até da prática de actos 
 que, embora lícitos causam prejuízo a outrem, pressupõe uma tomada de posição 
 legislativa quanto à exigência ou não da culpa pelo facto danoso e dentro desta 
 matéria, da repartição do ónus de prova.
 
             Não se afigura, pelas razões já expendidas, que a sujeição das 
 concessionárias de auto-estradas ao ónus de prova do cumprimento, em concreto, 
 das obrigações de segurança de circulação na via, viole esse direito de 
 iniciativa económica privada, mormente por ofensa do alegado princípio da 
 proporcionalidade em qualquer das suas significações.
 
             E também não procede a alegada violação do direito fundamental à 
 propriedade privada.
 
             Pode, desde logo, questionar-se que, no âmbito material da garantia 
 do direito fundamental à propriedade privada, possa incluir-se as diminuições de 
 património decorrentes do dever de indemnizar.
 
             Mas, independentemente da resposta que essa dúvida possa merecer, 
 certo é que o direito de propriedade privada não está garantido em termos 
 absolutos, mas apenas, como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 62.º da 
 Constituição, dentro dos limites e com as restrições previstas em outros lugares 
 da Constituição e na lei quando ela remeta para esta a regulação das matérias 
 previstas nesses outros lugares da Lei Fundamental. 
 
             Sendo assim, mesmo que o direito à reparação de danos por acidentes 
 em auto-estradas possa fundar-se, em alguns casos e, em parte, na violação do 
 direito de propriedade privada de outrem, sempre razões de segurança e de 
 protecção de outros direitos com reconhecimento constitucional, como o direito à 
 vida, à integridade física e à protecção da saúde, podem justificar a opção 
 legislativa de atribuição do ónus de prova do facto danoso à quem incumbe o 
 cumprimento de uma obrigação legal de concreta provisão material e normativa de 
 condições de segurança na circulação rodoviária.
 
             Deste jeito, impõe-se concluir que a norma constante do artigo 12.º, 
 n.º 1, da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, na acepção segundo a qual, “em caso 
 de acidente rodoviário em auto-estradas, em razão do atravessamento de animais, 
 o ónus de prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à 
 concessionária e esta só afastará essa presunção se demonstrar que a intromissão 
 do animal na via não lhe é, de todo, imputável, sendo atribuível a outrem, tendo 
 de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua 
 imputabilidade moral que não lhe deixou realizar o cumprimento”, não padece de 
 inconstitucionalidade.
 C – Decisão
 
  
 
             8 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional 
 decide negar provimento ao recurso.
 
             Custas pela recorrente com taxa de justiça que se fixa em 25 UCs.
 
  
 Lisboa, 18 de Novembro de 2009
 Benjamim Rodrigues
 Joaquim de Sousa Ribeiro
 João Cura Mariano
 Rui Manuel Moura Ramos