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Proc. nº 18/2000 
 2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma 
 Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional 
 I Relatório 
 1. B., PLC instaurou, junto do 10º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, acção executiva contra J. C., para pagamento de 32.794.121$00, com base numa livrança avalizada pelos executados. 
 O executado deduziu embargos, que foram julgados improcedentes, por despacho saneador. Dessa decisão recorreu o embargante, invocando vício de forma da livrança, por dela constar a expressão 'letra, aliás livrança' e 'pagará' em vez de 'pagarei'. O recurso foi julgado improcedente por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 7 de Janeiro de 1997. Já após o trânsito em julgado do acórdão de 7 de Janeiro de 1997, J. C. requereu a rejeição da execução. Tal requerimento foi indeferido por despacho de 18 de Setembro de 1997, com fundamento em caso julgado formado pelo acórdão de 7 de Janeiro de 1997. 
 Dessa decisão foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, invocando o recorrente que o caso julgado apenas terá abrangido a questão relativa à utilização da expressão 'letra, aliás, livrança', continuando em aberto a questão relativa ao uso da expressão 'pagará'. 
 Por acórdão de 25 de Junho de 1998, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, em virtude da excepção de caso julgado. O recorrente foi ainda condenado por litigância de má fé. 
 Do acórdão de 25 de Junho de 1998 foi interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que, por acórdão de 20 de Janeiro de 1999, negou provimento ao recurso. 
 
 2. J. C. requereu a aclaração do acórdão de 20 de Janeiro de 1999, pedindo que fosse explicitado o critério legal que permitiu concluir que os acórdãos do Tribunal da Relação haviam ponderado e decidido, ainda que implicitamente, a questão relativa às consequências jurídicas de no título exequendo ter sido mantida a expressão 'pagará' em vez da expressão 'pagarei'. O requerente pediu ainda que se explicitasse o critério legal que fundamentou a condenação por litigância de má fé. 
 O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 16 de Março de 1999, considerando não haver qualquer obscuridade ou ambiguidade a aclarar, indeferiu a aclaração. 
 
 3. J. C. arguiu a nulidade do acórdão de 20 de Janeiro de 1999. Para tanto, sustentou que o Supremo Tribunal de Justiça conheceu de questões que não podia conhecer, ao considerar que o acórdão da Relação de Lisboa, de 7 de janeiro de 1997, não declarando a livrança ineficaz, apreciou também, ainda que implicitamente, o fundamento relativo à utilização da expressão 'pagará' em vez de 'pagarei'. Em consequência, concluiu o reclamante pela nulidade do acórdão de 
 20 de Janeiro de 1999, por excesso de pronúncia e ainda por contradição entre os fundamentos e a decisão [alíneas d) e c) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil. 
 O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 18 de Maio de 1999, considerou que 'quem pede uma aclaração de um acórdão, na óptica dos artigos 
 667º e 669º, ambos do Código de Processo Civil - aplicáveis na lógica dos invocados artigos 716º, nº 2, e 749º - mostra que concorda com a essência da decisão'. Em consequência, concluiu pela impossibilidade da arguição de nulidade, indeferindo a pretensão deduzida. 
 
 4. J. C. interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão de 18 de Maio de 1999, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. 
 Não tendo o recurso de constitucionalidade sido admitido, o recorrente reclamou da decisão de não admissão, ao abrigo dos artigos 76º, nº 4, e 77º, da Lei do Tribunal Constitucional, reclamação que foi julgada procedente, pelo acórdão do Tribunal Constitucional nº 642/99, de 24 de Novembro de 1999. 
 
 5. Junto do Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo: 
 1ª No caso em apreço o acórdão recorrido, que recaiu sobre uma reclamação por nulidades, predeterminou-se por um critério erigido a norma, nos termos do qual, um prévio requerimento de aclaração de acórdão prejudica uma posterior reclamação por nulidades. 
 2ª É esta norma que constitui o objecto do presente recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade. 
 3ª Ao fim e ao cabo foi criada uma norma que varreu do ordenamento jurídico português o preceituado na al. a) do nº 1 do art. 669º e no nº 3 do art. 670º do Cód. Proc. Civil. Além disso, 
 4ª Criou-se uma nova norma de preclusão processual que, como óbvio se torna, contende com o direito fundamental de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (art. 20º da CRP). 
 5ª A elaboração da questionada norma violou, ainda, o princípio da legalidade, porquanto os tribunais estão sujeitos à lei (art. 203º da CRP). 
 6ª Violou também, a feitura da mesma norma, o princípio da separação dos poderes, invadindo a esfera das competências legislativas da Assembleia da República e do Governo (al. e) do art. 164º, al. q) do art. 168º, als. a) e b) do nº 1 do art. 201º e nº 5 do art. 115º, todos da CRP, na redacção anterior à ora vigente. 
 
 A recorrida não apresentou contra-alegações. 
 
 6. Corridos os vistos, cumpre decidir. 
 II Fudamentação 
 7. O objecto do presente recurso de constitucionalidade é constituído pelas normas dos artigos 668º, n.º 1, alínea d), 669º, n.º 1, alínea a), e 670º, nº 3, do Código de Processo Civil, aplicáveis, in casu, por força do disposto nos artigos 716º, nº 1, 732º e 749º do mesmo Código. 
 É a seguinte a redacção daqueles preceitos: Artigo 668º Causas de nulidade da sentença 
 1 - É nula a sentença: 
 (...) d) Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; 
 (...) 
 Artigo 669º Esclarecimento ou reforma da sentença 
 1 - Pode qualquer das partes requerer no tribunal que proferiu a sentença: a) O esclarecimento de alguma obscuridade ou ambiguidade que ela contenha; 
 (...) 
 Artigo 670º Processamento subsequente 
 (...) 
 3 - Se alguma das partes tiver requerido a rectificação ou aclaração da sentença, o prazo para arguir nulidades ou pedir a reforma só começa a correr depois de notificada a decisão proferida sobre esse requerimento. 
 (...) 
 O Supremo Tribunal de Justiça interpretou tais preceitos no sentido de a apresentação do requerimento de aclaração do acórdão permitir concluir que o requerente concorda com a decisão, pelo que não pode este depois arguir a nulidade do mesmo acórdão. 
 O recorrente sustenta que tal dimensão normativa dos preceitos indicados viola o disposto no artigo 20º da Constituição, o princípio da legalidade (artigo 203º da Constituição) e o princípio da separação de poderes, dado o Juiz, ao elaborar a norma que subjaz à decisão recorrida, ter invadido a esfera da competência legislativa da Assembleia da República e do Governo 
 [alínea e) do artigo 164º, alínea q) do artigo 168º, alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 201º e nº 5 do artigo 115º, todos da Constituição]. 
 Apreciar-se-á, primeiramente, a alegada violação do artigo 20º da Constituição. 
 
 8. A aclaração da sentença visa, fundamentalmente, o esclarecimento de alguma obscuridade ou ambiguidade da decisão [cf. artigo 669º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil]. Trata-se, pois, e nesta dimensão, de um meio processual que possibilita a superação de dúvidas relativas a eventuais imperfeições que se reportam ao texto da sentença, mas que não a afectam enquanto acto jurídico. 
 A nulidade da sentença, por outro lado, já consubstancia um vício 
 (substancial ou formal) da decisão, constituindo a sua arguição um meio de reagir contra a própria sentença defeituosa (cf. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed., 1985, p. 693 e ss.; Fernando Luso Soares, Processo Civil de Declaração, 1985, p. 845 e ss.). 
 Verifica-se, assim, que a aclaração da sentença e a arguição de nulidades têm finalidades diversas e efeitos distintos. 
 Nos presentes autos está em causa a articulação dos dois mecanismos. 
 Em face do artigo 670º, nº 3, do Código de Processo Civil, pode afirmar-se que, tendo sido requerida a aclaração, a arguição de nulidade terá lugar após a decisão daquele requerimento (cf. Antunes Varela, ob.cit., p. 694). 
 Porém, o Supremo Tribunal de Justiça, interpretando os preceitos impugnados de modo diferente, considerou que a apresentação do requerimento de aclaração significa que a parte concorda com a decisão, não podendo, nessa medida, arguir a nulidade da sentença depois de decidida a sua aclaração. Fez, portanto, e implicitamente, uma interpretação restritiva do artigo 670º, nº 3, do Código de Processo Civil, pois, se assim não o tivesse feito, teria encontrado no teor de tal preceito um obstáculo intransponível à solução a que chegou. 
 Será tal dimensão normativa conforme à Constituição? 
 
 9. No presente recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade não cumpre, naturalmente, apreciar a correcção dos critérios de interpretação da lei que o julgador utilizou na fixação do sentido dos preceitos infraconstitucionais, nomeadamente na interpretação do artigo 670º, n.º 3, do Código de Processo Civil. 
 Também não cabe, por outro lado, avaliar a razoabilidade dos fundamentos invocados na aclaração e na arguição de nulidades apresentadas, nem se tais mecanismos foram utilizados de modo adequado. 
 Tais questões, situando-se no plano infraconstitucional, estão evidentemente fora da fiscalização concreta da inconstitucionalidade normativa que compete ao Tribunal Constitucional, nos termos da Constituição. 
 Apenas compete, pois, ao Tribunal Constitucional apreciar a conformidade à Constituição da dimensão normativa que subjaz à decisão recorrida, segundo a qual a arguição de nulidades da sentença não pode ter lugar depois de ter sido requerida e decidida a sua aclaração. 
 O artigo 20º da Constituição consagra, no nº 1, a garantia de acesso ao direito e aos tribunais para tutela dos interesses legalmente protegidos. 
 A concretização dessa garantia, nomeadamente em matéria cível, é conferida ao legislador infraconstitucional, que dispõe de uma ampla margem de decisão no que respeita ao âmbito das específicas soluções a consagrar (cf., neste sentido, e no que respeita ao direito ao recurso, entre outros, os Acórdãos n.ºs 239/97 e 479/98 – D.R., II, de 15 de Maio de 1997 e de 24 de Novembro de 1999, respectivamente). 
 Contudo, e no que se refere à questão de constitucionalidade em apreciação, o legislador terá sempre de respeitar a dimensão da garantia de acesso ao direito e aos tribunais que se traduz em assegurar às partes uma completa percepção do conteúdo das sentenças judiciais e em assegurar a possibilidade de reacção contra determinados vícios da decisão. O legislador terá, pois, de consagrar na legislação processual mecanismos que viabilizem, de modo eficaz, a prossecução de tais finalidades. 
 No que respeita aos vícios e reforma da sentença, o legislador instituiu o quadro legal constante dos artigos 666º e ss. do Código de Processo Civil. Nesse regime, consagrou a possibilidade de requerer a aclaração da sentença, assim como de arguir a sua nulidade. A arguição de nulidades constitui, verdadeiramente, o único meio processual de reacção contra determinados vícios da decisão, consubstanciando, nessa medida, a aludida dimensão da garantia constitucional de acesso ao direito e aos tribunais. Por outro lado, e em função do recorte legal dos respectivos mecanismos processuais, o legislador estatuiu que, tendo sido requerida a aclaração da sentença, o prazo da arguição de nulidades só começa a correr depois da notificação da decisão da aclaração (artigo 670º, nº 3, do Código de Processo Civil). Ora, exprimindo o regime em vigor, nos seus traços essenciais, um modo de concretização da garantia constitucional, não pode, nessa medida, ser por via interpretativa restringido ou truncado naqueles aspectos que materializam o exercício (no caso) do direito constitucionalmente garantido. A limitação da utilização dos meios processuais em causa (maxime, da arguição de nulidades), quando a parte observa o condicionalismo legal (nomeadamente no que respeita a prazos), atentará, pois, contra o direito de acesso aos tribunais constitucionalmente consagrado, se tal limitação não se fundar num outro valor ou princípio com dignidade constitucional. 
 Nos presentes autos, o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão recorrido, considerou que a arguição de nulidades não podia ter lugar, uma vez que tinha sido requerida a aclaração do acórdão. Entendeu, para esse efeito, e apenas, que a apresentação do requerimento de aclaração permite concluir, inevitavelmente, que o reclamante concorda com a sentença e que preclude a possibilidade de arguir a respectiva nulidade. 
 Tal conclusão impede a autonomização da aclaração face à arguição de nulidades enquanto meios processuais com finalidades distintas. Com efeito, e numa outra interpretação possível das normas que prevêem tais mecanismos, a aclaração do acórdão pode até constituir um momento preparatório da arguição de nulidades (como acontece in casu), havendo a possibilidade de a parte apenas poder formar fundadamente a sua decisão de arguir nulidades após a decisão do requerimento de aclaração. 
 Verifica-se, assim, que a interpretação feita pelo Supremo Tribunal de Justiça das normas em causa limita, não justificadamente, o direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º, nº 1, da Constituição. Trata-se, na verdade, da inviabilização do recurso a um mecanismo processual com uma finalidade singular, e, por essa via, da denegação da única possibilidade legal de reacção contra determinados vícios da decisão jurisdicional. 
 
 10. Alcançada esta conclusão, afigura-se inútil apreciar os demais argumentos de inconstitucionalidade invocados pelo recorrente. 
 III Decisão 
 11. Em face do exposto, decide-se julgar inconstitucional, por violação do artigo 20º, nº 1, da Constituição, a interpretação dos artigos 668º, n.º 1, alínea d), 669º, nº 1, alínea a), e 670º, nº 3, do Código de Processo Civil, segundo a qual, apresentado o requerimento de aclaração do acórdão, não pode a mesma parte arguir a respectiva nulidade, em virtude de a apresentação daquele requerimento permitir concluir que a parte concorda com a decisão. Em consequência, concede-se provimento ao recurso de constitucionalidade, revogando-se a decisão recorrida, que deverá ser reformulada de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade. Lisboa, 22 de Novembro de 2000 Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Bravo Serra Guilherme da Fonseca Luís Nunes de Almeida