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Processo n.º 209/08
 
 2ª Secção
 Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
 
  
 
        Acordam, em conferência, na 2ª secção do Tribunal Constitucional
 
             
 
 1. O representante do Ministério Público junto do 2.º Juízo do Tribunal de 
 Pequena Instância Criminal do Porto reclama para o Tribunal Constitucional, ao 
 abrigo do n.º 4 do artigo 76.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo 
 do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho daquele Tribunal que não admitiu o 
 recurso por ele interposto para o Tribunal Constitucional do anterior despacho, 
 do mesmo Tribunal, que determinou a remessa dos autos ao Ministério Público para 
 tramitação sob outra forma processual.
 
  
 
 2. Compulsados os autos, apura-se o seguinte:
 
 − A presente reclamação emerge de processo iniciado em “auto de notícia por 
 detenção”, instaurado, por agente da PSP, a A., por, em determinada data, hora e 
 local, ter alegadamente praticado “crimes contra a segurança das comunicações”.
 
 − O referido condutor foi detido, constituído arguido e posteriormente 
 restituído à liberdade.
 
 − Por despacho do Tribunal de Turno do Porto foi determinada a remessa dos autos 
 
 à Comarca competente para aí se realizar a audiência de julgamento na data 
 designada.
 
 − Por despacho do Tribunal de Pequena Instância Criminal do Porto foi ordenada a 
 remessa dos autos ao Ministério Público «para os fins tidos por convenientes, 
 respectivamente apresentação da acusação».
 
 − Aberta vista ao Ministério Público, este exarou que «aguardará o início da 
 audiência para, aí e então, se for o caso, requerer, nos termos legais supra, a 
 substituição da apresentação da acusação pela leitura do auto de noticia (por 
 Detenção de fls. 4) da autoridade (PSP) que procedeu à detenção.»
 
 − Em 26.11.2007 foi exarado despacho com o seguinte teor:
 
 «Do auto de notícia elaborado pela autoridade policial resulta que o arguido foi 
 detido em flagrante delito e depois restituído à liberdade, tendo sido 
 notificado para comparecer perante o M.P. junto do Tribunal de turno.
 Resulta também dos autos, que não foi deduzida verdadeira acusação escrita 
 contra o arguido.
 O M.P. apresentou apenas o expediente ao juiz de turno para os efeitos do art. 
 
 387.º, n.º 2, al. a) do C.P.P., pretensão que foi deferida, adiando-se 
 simplesmente o início da audiência de julgamento.
 Aberta vista à Digna Magistrada do M.P., pela mesma foi referido que aguardará o 
 início da audiência, para aí requerer a substituição da apresentação da acusação 
 pela leitura do auto de notícia da autoridade que procedeu à detenção.
 
 É certo que no auto de notícia constam alguns factos.
 Todavia, tais factos, por si só, não constituem qualquer crime.
 
 É de ter em conta que a consciência e a vontade de praticar tais factos típicos, 
 bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei – o dolo – constitui 
 elemento típico dos ilícitos criminais, e designadamente do perfunctoriamente 
 indiciado no auto de notícia.
 O mesmo sucede quanto à negligência, nos termos do disposto nos arts. 13.º e 
 
 15.º do C.P.
 Tal elemento subjectivo deverá constar da acusação e/ou do auto de notícia – 
 cfr. os arts. 243.º e 283.º, n.º 3, al. b) do C.P.P., e ainda sobre o tema, 
 entre outros, o Ac. do TRG de 7/04/2003, in CJ, tomo II, pg. 291-294.
 Qualquer acusação em que se omita este facto – falta dos factos integradores do 
 dolo ou da negligência – deve ser rejeitada, por se encontrar manifestamente 
 infundada, com base no art. 311.º, n.º 3, al. d) do C.P.P. – quando os demais 
 elementos típicos do crime se encontrarem nela descritos.
 De salientar a posição assumida pelo Exmº Sr. Procurador-Geral Distrital do 
 Porto, plasmada na Acta de Reunião de trabalho de dia 26-10-2007, que teve lugar 
 no Tribunal da Relação do Porto, onde pode ler-se “A respeito o Exmº 
 Procurador-Geral Distrital afirmou que o Ministério Público tem sempre que 
 transformar o auto de notícia em acusação, aditando-lhe, designadamente, os 
 elementos subjectivos da infracção e a incriminação legal”.
 Do expediente ora em análise não consta qualquer um desses elementos (dolo ou 
 negligência).
 De tal expediente também não se retira a indicação das disposições legais 
 aplicáveis, a chamada qualificação jurídica dos factos, o que é relevante e 
 implica até a rejeição da acusação, nos termos do citado art. 311.º, n.º 3,  al. 
 c) do C.P.P.
 Dado o teor do auto de notícia, mesmo com a sua leitura em audiência nada mais 
 se acrescenta ao que aí consta.
 
 É condição da realização de julgamento em processo sumário e desta forma de 
 processo especial a existência de um crime concreto e devidamente identificado, 
 com indicação dos respectivos factos integradores (objectivos e subjectivos) e 
 de todas as disposições legais aplicáveis. Só assim se podem apreciar os 
 apertados requisitos de admissibilidade do processo sumário, bem como a 
 competência do tribunal.
 Está em causa a natureza acusatória do processo penal, além das garantias de 
 defesa do arguido e o princípio da vinculação temática do tribunal.
 Afigura-se-nos, pois que não se verificam os requisitos que justificam o 
 julgamento em processo sumário, nos termos do disposto no art. 381.º do C.P.P., 
 na redacção da Lei n.º 48/07, de 29/08.
 Assim sendo, e por razões de economia processual, e ainda nos termos dos arts. 
 
 381.º e 390.º, alínea a) do C.P.P., na actual redacção, determino a remessa dos 
 presentes autos ao Ministério Público para tramitação sob outra forma 
 processual.» 
 
 − O representante do Ministério Público junto daquele Tribunal interpôs recurso 
 deste despacho para o Tribunal Constitucional, ao abrigo das alienas «a) e/ou 
 c)» do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, para apreciação da «constitucionalidade e 
 legalidade da norma constante do n.º 2 do art. 389.º do CPP».
 
 − Por despacho de 10.12.2007, o recurso não foi admitido, com fundamento na 
 falta dos respectivos requisitos de admissibilidade, nomeadamente, por se ter 
 entendido que o despacho recorrido não recusou, explícita ou implicitamente, a 
 aplicação de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade.
 
  
 
 3. É contra este despacho que vem deduzida a presente reclamação, concluindo o 
 magistrado reclamante o seguinte:
 
 «[…] Concluindo, o que o/a Mmo/a Juiz fez, no/a douto/a despacho/decisão 
 recorrido/a, ao decidir “.../..., determino a remessa dos presentes autos ao 
 Ministério Público para tramitação sob outra forma processual.” (sic), não 
 realizando o requerido pelo MP, nos termos legais e aliás, anteriormente, 
 judicialmente determinado, - tendo sido o/a arguido/a e o/a/s agente/s 
 autuante/s de tal despacho notificado/a/s (cfr. fls. 11) - julgamento do/a 
 arguido/a, em processo sumário e nem sequer iniciando a audiência, cujo início, 
 note-se, havia sido, oportuna e anteriormente, judicialmente adiado, nos termos 
 do disposto na al.a), do n°. 2, do art°. 387.°, do CPP, - sem cuidar aqui sequer 
 da questão da eventual violação do princípio do caso julgado formal, na medida 
 em que se pronunciou o/a Mmo/a juiz a quo, sobre questão já 
 ultrapassada/processualmente precludida e relativamente à qual se encontrava 
 esgotado o poder jurisdicional com a prolacção do anterior despacho judicial, 
 supra citado, que procedeu ao adiamento do início da audiência de julgamento em 
 processo sumário - foi manifestamente recusar a aplicação da norma constante do 
 n.° 2, do art°. 389.°, do CPP, com fundamento em inconstitucionalidade e/ou na 
 sua ilegalidade, por permitir a realização do julgamento em processo sumário, 
 nos casos em que o MP, não tendo deduzido acusação, reserva para o início da 
 audiência, a faculdade de substituir a apresentação da acusação pela leitura do 
 auto de notícia da autoridade que tiver procedido à detenção, quando deste “ não 
 consta qualquer um desses elementos (dolo ou negligência).” (sic) e “.../... não 
 se retira a indicação das disposições legais aplicáveis, a chamada qualificação 
 jurídica dos factos, .../…” (sic).
 Face ao exposto, o interposto recurso, requerendo a apreciação da 
 constitucionalidade e legalidade da norma constante do n.° 2 do art.° 389.°, do 
 CPP, deveria ter sido admitido, pelo que, não o tendo sido, o MP apresenta a 
 presente reclamação, sendo as ora expostas, as razões que justificam a admissão 
 daquele.»
 
  
 
 4. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no 
 sentido da manifesta improcedência da reclamação, «face ao reiterado 
 entendimento, expresso já em numerosos arestos, tirados em situações exactamente 
 idênticas à dos presentes autos».
 
  
 Cumpre apreciar e decidir.
 
  
 
 5. O reclamante pretende interpor recurso de constitucionalidade, ao abrigo das 
 alíneas «a) e/ou c)» do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
 
 É pressuposto deste recurso que a decisão recorrida tenha rejeitado, explícita 
 ou implicitamente, a aplicação ao caso concreto de uma norma, com fundamento em 
 inconstitucionalidade (no caso do recurso da alínea a)), ou na sua ilegalidade, 
 por violação de lei com valor reforçado, no caso da alínea c) daquele preceito) 
 e que esse juízo de inconstitucionalidade (ou ilegalidade) constitua uma 
 verdadeira ratio decidendi da decisão recorrida.
 No caso em apreço, o despacho de que se pretende recorrer determinou a remessa 
 dos autos ao Ministério Público para tramitação sob outra forma processual, por 
 se ter concluído que «não se verificam os requisitos que justificam o julgamento 
 em processo sumário, nos termos do disposto no artigo 381.º do CPP, na redacção 
 da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto», invocando-se que o auto de notícia é 
 omisso quanto a alguns elementos essenciais a qualquer acusação, nomeadamente, 
 por dele não constarem os elementos relativos ao dolo ou negligência e à 
 qualificação jurídica dos factos.
 Ao decidir assim, o despacho tem implícita uma interpretação do n.º 2 do artigo 
 
 389.º do CPP que apela ao elemento sistemático (nomeadamente, aos princípios da 
 Constituição e às normas do Código de Processo Penal que estabelecem os 
 requisitos da acusação), dele extraindo a regra de que apenas será admissível a 
 substituição da acusação pela leitura do auto de notícia quando este auto 
 contenha todos os elementos legalmente exigíveis para a validade de qualquer 
 acusação. E conclui, com base nessa regra, que tais elementos, naquele caso 
 concreto, não constavam do auto de notícia. 
 Ora, esta actividade interpretativa do n.º 2 do artigo 389.º do CPP, ainda que 
 implicitamente convoque princípios constitucionais, não se confunde com uma 
 recusa de aplicação daquela norma, com fundamento em inconstitucionalidade (ou 
 ilegalidade por violação de lei com valor reforçado), que aqui não existiu.
 Pelo exposto, o presente recurso revela-se inadmissível (no mesmo sentido, 
 versando despachos idênticos ao que aqui está em causa, vejam-se, entre outros, 
 os Acórdãos n.ºs 8/2008, 12/2008 e 65/2008, disponíveis em 
 
 www.tribunalconstitucional.pt).
 
  
 
 6. Pelo exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
 Sem custas.
 Lisboa, 30 de Abril de 2008
 Joaquim de Sousa Ribeiro
 Benjamim Rodrigues
 Rui Manuel Moura Ramos