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Processo n.º 202/09
 
 2.ª Secção
 Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
 
                                                                            
 Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
 
              
 A – Relatório
 
  
 
             1 – O representante do Ministério Público no Supremo Tribunal 
 Administrativo recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no 
 artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua 
 actual redacção (LTC), do Acórdão proferido naquele Supremo, de 21 de Janeiro de 
 
 2009, no qual se recusou, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação 
 da norma do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 437/78, de 28 de Dezembro.
 
  
 
             2 – Alegando, no Tribunal Constitucional, o Procurador-Geral Adjunto 
 concluiu do seguinte jeito o seu discurso argumentativo:
 
  
 
 “1.º
 
             Os privilégios creditórios gerais, mobiliários e imobiliários, não 
 se configuram actualmente como direitos reais de garantia, face ao disposto na 
 lei civil, estando desprovidos de sequela sobre os bens que oneram e de 
 prevalência sobre as garantias gerais que incidam sobre tais bens.
 
  
 
  
 
 2.º
 
             A norma constante do artigo 7.º, alínea b), do Decreto-Lei n.º 
 
 437/78, de 28/12, ao conferir eficácia real ao privilégio imobiliário geral, 
 outorgado aos créditos do IEFP, abrangendo todos os bens imóveis existentes no 
 património da entidade devedora, susceptível de prevalecer sobre qualquer 
 hipoteca; ainda que de constituição anterior, afecta o princípio da confiança e 
 da segurança no comércio jurídico, ao possibilitar a existência de ónus ocultos 
 sobre o património do devedor, susceptíveis de precludir, em absoluto, um 
 direito real de garantia, constituído sobre bens determinados, ultrapassando a 
 regra da prioridade temporal na eficácia das várias garantias.
 
 3.º
 
             Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade 
 formulado pela decisão recorrida”.
 
                         
 
             3 – A recorrida A., notificada das alegações do Ministério Público 
 veio dizer que não pretende contra-alegar.
 
             
 B – Fundamentação
 
  
 
             4 – O presente recurso obrigatório vem interposto pelo Ministério 
 Público, por força do disposto no n.º 3 do artigo 72.º da Lei n.º 28/82, de 15 
 de Novembro, na sua actual versão (LTC), do acórdão proferido pelo Supremo 
 Tribunal Administrativo, no processo de reclamação de créditos deduzido por 
 apenso à execução movida pela A., contra a B., Lda, na parte em que a mesma 
 decisão desaplicou a norma constante do artigo 7.º, alínea b) do Decreto-Lei n.º 
 
 437/78, enquanto prescreve que prevalece sobre a hipoteca, ainda que de 
 constituição anterior, o privilégio imobiliário geral outorgado aos créditos por 
 apoios financeiros concedidos pelo IEFP.
 
             Discreteando sobre a questão, no âmbito do objecto do recurso para 
 ele interposto, assim discorreu a decisão recorrida:
 
  
 
      “(...)
 
      Vem o presente recurso interposto pela reclamante A. da graduação de 
 créditos efectuada pela Mma. Juíza do TAF de Beja nos presentes autos, com vista 
 ao pagamento pelo produto da venda do bem penhorado (um imóvel), por não se 
 conformar com o facto de o crédito reclamado pelo IEFP ter sido graduado 
 preferencialmente em relação ao seu crédito hipotecário.
 Relativamente a tal crédito, entendeu a Mma. Juíza “a quo” na decisão recorrida 
 que o mesmo gozava de privilégio imobiliário, devendo ser graduado logo após os 
 créditos referidos no art.º 748.º, n.º 1, alínea a) do CC, como dispõe o artigo 
 
 7.º do DL n.º 437/78, de 28/12, e que tal privilégio precedia mesmo a garantia 
 que o bem penhorado tinha no caso (hipoteca).
 
      Ora, é relativamente sobre este entendimento que a recorrente se não 
 conforma, alegando que, estando o seu crédito garantido por hipoteca, há-de 
 gozar de prioridade, na sua graduação, sobre os créditos do IEFP, que beneficiam 
 apenas de um privilégio imobiliário geral.
 
      E, na verdade, assiste-lhe razão.
 Com efeito, estabelece o art.º 7.º, al. b) do Decreto-Lei n.º 437/78, de 28/12, 
 que “os créditos resultantes dos apoios financeiros concedidos nos termos do 
 presente diploma gozam das seguintes garantias especiais: …Privilégio 
 imobiliário sobre os bens imóveis do devedor, graduando-se logo após os créditos 
 referidos no artigo 748.º do Código Civil nos mesmos termos dos créditos 
 previstos no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 512/76, de 3 de Julho”.
 
      Por sua vez, determina o citado art.º 2.º do Decreto-Lei nº 512/76 de 3/7 
 que “os créditos pelas contribuições do regime geral de previdência e 
 respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis 
 existentes no património das entidades patronais à data da instauração do 
 processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748.º 
 do Código Civil”.
 
      Desde logo, importa referir, como já se fez no acórdão deste Tribunal de 
 
 31/1/2008, proferido no recurso n.º 612/07, que “o predito art.º 7.º, al. b) do 
 Decreto-Lei n.º 437/78 não qualifica o privilégio em causa de especial, 
 referindo-se, antes, a garantias especiais.
 
      Ora, o privilégio imobiliário, mesmo geral, constitui sempre uma garantia 
 especial face à garantia geral do património do devedor (cfr. art.ºs 601.º a 
 
 614.º do CC).
 Por outro lado, o privilégio previsto no citado art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 
 
 512/76, uma vez que se refere a uma generalidade de bens (os bens imóveis 
 existentes no património das entidades patronais à data da instauração do 
 processo executivo) e não a bens certos e determinados com uma relação 
 específica com a respectiva dívida, é geral e não especial, pelo que não confere 
 direito de sequela.”.
 
      Por outro lado, o direito de crédito garantido por hipoteca só cede, nos 
 termos do disposto no n.º 1 do artigo 686.º do CC, perante os créditos que 
 disponham de privilégio imobiliário especial ou prioridade de registo, e isso 
 porque dos privilégios creditórios só os especiais, porque envolvidos de 
 sequela, se traduzem em garantia real de cumprimento de obrigações, limitando-se 
 os gerais a constituir mera preferência de pagamento e sendo apenas susceptíveis 
 de prevalecer em relação a titulares de créditos comuns.
 
      Razão por que os direitos de crédito garantidos por hipoteca devem ser 
 graduados antes dos que sejam garantidos por privilégio imobiliário geral.
 Acresce que o Tribunal Constitucional no acórdão 362/2002, de 17/9/02, publicado 
 no DR, I Série A, de 16/10, declarou a inconstitucionalidade, com força 
 obrigatória geral, das normas constantes do artigo 11.º do DL 103/80, de 9/5, e 
 do artigo 2.º do DL 512/76, de 3/7, na interpretação segundo a qual o privilégio 
 imobiliário geral nelas conferido à Segurança Social prefere à hipoteca, nos 
 termos do artigo 751.º do CC, por violação do princípio da confiança ínsito no 
 princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da CRP.
 
      Ora, sendo os créditos do IEFP, por força do artigo 7.º do DL 437/78, de 
 
 28/12, graduados nos mesmos termos dos créditos da Segurança Social, não faria 
 sentido que a interpretação daquele preceito segundo a qual o privilégio 
 imobiliário geral nele conferido tem preferência sobre as hipotecas não fosse 
 também pelas mesmas razões inconstitucional.
 
      Sendo assim, é perfeitamente ajustada a crítica que a recorrente faz à 
 sentença recorrida, quando defende que o seu crédito hipotecário deve preferir 
 ao privilégio imobiliário geral.
 
      Pelo que o crédito reclamado pela Fazenda Pública relativo ao Instituto de 
 Emprego e Formação Profissional, gozando de privilégio imobiliário geral, não 
 deve ser graduado no lugar em que o foi, já que não prefere ao crédito da 
 recorrente garantido por hipoteca (cfr. art.º 686.º, n.º 1 do CC)”.
 
  
 
  
 
             5 - Este Tribunal já teve oportunidade de se pronunciar sobre a 
 constitucionalidade da norma sindicanda, tendo-a julgado inconstitucional por 
 violação do disposto no artigo 2.º da Constituição, na exacta dimensão normativa 
 que se encontra subjacente ao juízo de censura constitucional lavrado na decisão 
 recorrida.
 Fê-lo no acórdão n.º 387/02 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), no 
 qual decidiu, em sede de reclamação para a conferência, confirmar a decisão 
 sumária prolatada nesses autos, com o seguinte teor:
 
  
 
 “(...)
 
 2. É certo ter o acórdão recorrido, para se chegar àquele juízo de 
 inconstitucionalidade, ponderado o seguinte:
 
 ‘O artº 7°, b) do DL n° 437/78, de 28/12, ao criar um privilégio imobiliário 
 geral que prefere à hipoteca nos termos do artº 751° do CC, está realmente 
 inquinado de inconstitucionalidade, desde logo por violação do princípio do 
 Estado de Direito democrático. Com efeito, o artº 2° Constituição estatui que a 
 República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania 
 popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no 
 respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e 
 na separação e interdependência de poderes, visando a realização de democracia 
 económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.
 E como referem Marcelo Rebelo de Sousa e José de Melo Alexandrino, na 
 Constituição da República Portuguesa Comentada, pág. 72:
 
 «Trata-se de um verdadeiro princípio fundamental, dado o seu cariz congregador 
 de inúmeros outros princípios (ou subprincípios) e regras, com destaque para os 
 seguintes:...da protecção contra o arbítrio, da tutela da confiança...».
 Ora o artº 7°, b) em referência, mediante a aplicação do regime do artº 751° do 
 CC, confere ao privilégio creditório imobiliário geral a natureza de verdadeiro 
 direito real de garantia, munido de sequela sobre todos os imóveis existentes no 
 património da entidade devedora dos apoios financeiros do IEFP no âmbito do 
 emprego e formação profissional, atribuindo-lhe preferência sobre a hipoteca da 
 A.. Não estando tal privilégio imobiliário geral sujeito a registo, viola, ao 
 neutralizar a garantia real da hipoteca registada, o princípio da confiança, a 
 segurança jurídica que o registo predial visa garantir, consubstanciando um ónus 
 oculto e configurando uma arbitrariedade com que a A. não podia razoavelmente 
 contar.
 Podia de resto o IEFP ter registado a hipoteca legal conferida pela al. c) do 
 artº 7°, pelo que nem sequer o privilégio imobiliário geral lhe era 
 imprescindível, sendo, por conseguinte, também violador do artº 18°, n° 2 da Lei 
 Fundamental, que estabelece o princípio da proporcionalidade ou da proibição de 
 excesso, ao comandar que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e 
 garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as 
 restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou 
 interesses constitucionalmente protegidos’
 E daí a conclusão de que, ‘no que tange à graduação dos créditos pelo produto 
 dos bens imóveis apreendidos para a massa falida, não pode portanto o crédito do 
 IEFP ficar à frente do crédito da A., S.A. e dos créditos dos trabalhadores’.
 
 3. Ora, ao mesmo juízo de inconstitucionalidade chegou o Tribunal 
 Constitucional, a propósito doutras normas, em vários acórdãos, e podem 
 aproveitar-se perfeitamente in casu os fundamentos usados nesses arestos (cfr., 
 por todos, o recente acórdão nº 226/02, inédito, onde se identificam os 
 arestos). Daí ser simples a questão a resolver.
 Há, pois, que remeter para tais fundamentos e aplicar a doutrina expressa em 
 tais acórdãos, a propósito do privilégio imobiliário geral e da sua preferência 
 
 à hipoteca, nos termos do artigo 751º, do Código Civil, não se vendo motivo para 
 divergir só porque se trata aqui de norma distinta das que versaram aqueles 
 acórdãos.
 Com o que não merece provimento o presente recurso.”
 
  
 
             Acolhendo aqui a bondade de tais fundamentos decisórios, restará 
 reiterar in casu idêntico juízo de inconstitucionalidade.
 
  
 C – Decisão
 
  
 
             6 – Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide 
 negar provimento ao recurso.
 
             Sem custas.
 Lisboa, 12/05/2009
 Benjamim Rodrigues
 Mário José de Araújo Torres
 Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, nos termos da declaração anexa)
 João Cura Mariano (vencido, nos termos de declaração anexa).
 Rui Manuel Moura Ramos
 
  
 DECLARAÇÃO DE VOTO
 
  
 Não acompanhei a decisão que fez vencimento, porque considero que não 
 corresponde a um imperativo constitucional a preferência dos créditos garantidos 
 por hipoteca sobre os créditos garantidos por um privilégio geral.
 A matéria cabe no âmbito da liberdade de conformação do legislador, que 
 ponderará, consoante os interesses em jogo e o tipo de créditos, a solução mais 
 adequada de distribuição e escalonamento do grau de risco a suportar pelas 
 várias classes de credores. A Constituição, em princípio, não exige, nem impede, 
 uma dada solução.
 O princípio da confiança e da segurança jurídica, designadamente, só deverá ser 
 pertinentemente invocado, pelo menos na sua zona nuclear, em caso de uma mutação 
 legislativa com que o interessado não pudesse razoavelmente contar, frustrante, 
 pois, de expectativas legítimas na continuidade da ordem jurídica. Não é o caso 
 dos autos, em que a constituição do crédito garantido por hipoteca é de data 
 muito posterior á promulgação do diploma, de 1978, que confere o privilégio 
 imobiliário geral aos créditos do IEFP.
 A segurança jurídica visada pelo desempenho funcional de certos institutos 
 civilísticos, mormente os direitos reais de garantia, não pode ser 
 automaticamente constitucionalizada, pondo-os a coberto, sem mais, do princípio 
 constitucional da segurança jurídica. 
 Não por acaso, os discursos argumentativos com que se pretende abonar o juízo de 
 inconstitucionalidade da perda de prioridade de um crédito garantido por um 
 direito real de garantia, mormente os sujeitos a registo, caem amiúde em 
 considerações meramente de direito infraconstitucional, do que dá bom exemplo a 
 sentença recorrida. Também as alegações do Ministério Público não evitam, em 
 minha opinião, esse desvio do plano de apreciação da questão de 
 constitucionalidade.
 Não se discute que esses institutos visam instilar confiança, no tráfego 
 jurídico, como também não se discute os inconvenientes de uma proliferação 
 incontrolada de privilégios gerais preferentes, sem condições de 
 cognoscibilidade idênticas às dos direitos reais de garantia. Mas, coisa 
 diferente é ajuizar se tais entorses, por legislação avulsa, aos paradigmas 
 clássicos do Código Civil estão sempre feridas de inconstitucionalidade.  
 A minha resposta, num caso com a configuração do dos autos, é negativa, pelo que 
 me pronunciei pela constitucionalidade.
 
  
 Joaquim de Sousa Ribeiro
 
  
 DECLARAÇÃO  DE  VOTO
 
  
 O presente acórdão mais não fez do que transpor para o presente caso a tese 
 sustentada por este Tribunal, quer relativamente à norma aqui em apreciação 
 
 (acórdão n.º 387/02, acessível no site www.tribunalconstitucional.pt), quer 
 relativamente a outras normas que atribuíam um privilégio imobiliário geral a 
 determinados créditos (acórdãos com força obrigatória geral n.º 362/02 e 363/02, 
 publicados em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, vol. 54.º, pág. 85 e 95), 
 no sentido da interpretação segundo a qual os créditos que gozam desse 
 privilégio tem uma preferência de pagamento sobre os créditos garantidos por 
 hipoteca é inconstitucional, por violação do princípio da confiança, ínsito no 
 princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da 
 Constituição.
 
 É desta tese que discordamos.
 A hipoteca é uma garantia real que confere ao credor o direito de ser pago pelo 
 valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a 
 terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio 
 especial ou de prioridade de registo (artigo 686.º, do C.C.).
 Conhecida em tempos ainda próximos pela “rainha das garantias” a hipoteca tem as 
 suas origens nos direitos grego, ao qual deve o seu nome (hypothéké), e romano 
 
 (vide, sobre esta figura nestes direitos antigos, JOHN GLISSEN, em “Introdução 
 histórica ao direito”, pág. 756-757, da 2.ª ed. da Gulbenkian, MENEZES CORDEIRO, 
 em “Direitos reais”, pág. 754-756, da reimpressão de 1979, da Lex, SANTOS JUSTO, 
 em “Direito Privado Romano – III”, pág. 218-223”, da ed. de 1997, da Coimbra 
 Editora, e VERA-CRUZ PINTO, em “O direito das obrigações em Roma”, vol. I, pág. 
 
 178-194, da ed. da A.A.F.D.L., de 1997).
 A cobertura legal a este mecanismo de garantia da satisfação dos créditos 
 ocorreu desde cedo no nosso país (vide as Ordenações Afonsinas, Livro IV, título 
 
 49, Manuelinas, Livro IV, título 33 pr., e Filipinas, Livro IV, título III, pr., 
 e a Lei Pombalina de 20 de Junho de 1744), tendo a sua importância crescido a 
 partir do momento em que se criou o Registo Geral das Hipotecas (Decreto de 26 
 de Outubro de 1836), o qual está na origem do actual Registo Predial (vide, numa 
 visão da época sobre a importância da hipoteca e os inconvenientes da 
 inexistência de um eficaz sistema de registo predial, COELHO DA ROCHA, em 
 
 “Instituições de direito civil português”, tomo II, pág. 723-732, da 6.ª ed. 
 
 (1886), da Imprensa da Universidade).
 Dizia Cunha Gonçalves que “de todas as garantias imaginadas pelo homem e 
 adoptadas pelo legislador no decurso dos séculos, nenhuma é tão importante e tão 
 frequente como a hipoteca” (In “Tratado de direito civil em comentário ao Código 
 Civil Português”, vol. V, pág. 363, da ed. de 1932, da Coimbra Editora).
 E Guilherme Moreira explicava, deste modo, as vantagens da hipoteca:
 
 “É fácil depreender as vantagens que oferece esta garantia e a sua superioridade 
 relativamente às outras. Assim, tem sobre a fiança a superioridade das garantias 
 reais sobre as pessoas, e sobre o penhor e a consignação de rendimentos a 
 vantagem de os bens hipotecados não saírem do poder do devedor, sendo que o 
 credor não adquire sobre esses bens nem o direito de gozo nem o de detenção, e 
 pode assim o devedor gozar e dispor livremente deles, sem que por isso o credor 
 deixe de conservar o direito que tem, pois tanto o faz valer achando-se os bens 
 em poder do devedor como de terceiro.
 A importância da hipoteca verifica-se praticamente no extraordinário 
 desenvolvimento que tem tido, sendo enormes os capitais por ela garantidos.
 A boa organização do regime hipotecário constitui, pois, uma questão económica 
 de incontestável importância; se directamente interessa aos capitalistas, aos 
 devedores e aos adquirentes de bens imobiliários, também interessa 
 indirectamente ao público, porque, garantindo-se devidamente o capital, baixará 
 o juro, e, determinando-se precisamente os encargos que oneram a propriedade 
 imobiliária, tornar-se-á mais fácil e rápida a circulação desta, promovendo-se 
 assim o desenvolvimento da riqueza pública.
 Um bom sistema hipotecário deve oferecer ao capitalista, ou a quem empresta, 
 seguros meios de verificação sobre se o devedor é o proprietário dos bens que 
 oferece em garantia e quais são os ónus que sobre eles pesam; ao devedor meios 
 fáceis de se libertar da obrigação, sem comprometer os legítimos interesses do 
 credor; e aos compradores de bens imobiliários os elementos precisos para 
 conhecerem o estado desses bens, e, quando sobre eles recaia alguma hipoteca, 
 meios fáceis de a expurgarem.” (In. “Instituições do direito civil português”, 
 vol. II, pág. 456, da ed. do autor de 1911).
 A preocupação relativamente à existência de ónus ocultos, nomeadamente a 
 atribuição excessiva de privilégios creditórios (anteriormente designados 
 
 “preferências”), que debilitassem a segurança conferida ao credor pela garantia 
 hipotecária foi, contudo, uma constante relativamente à evolução legislativa 
 verificada neste domínio (vide, revelando essa preocupação, entre muitos, JOSÉ 
 TAVARES, em “Os princípios fundamentais do direito civil”, vol. I, pág. 568, da 
 ed. de 1922, da Coimbra Editora, VAZ SERRA, em “Hipoteca”, no B.M.J. n.º 62, 
 pág. 3-10, LUÍS GONÇALVES, em “Privilégios Creditórios: evolução histórica. 
 Regime. Sua inserção no tráfico creditício”, no B.F.D.U.C., vol. LXVII, pág. 
 
 29-46, ANTUNES VARELA, em “Das obrigações em geral”, vol. II, pág. 555-556, da 
 
 4.ª ed., da Almedina, ARMINDO RIBEIRO MENDES e LEBRE DE FREITAS, em “Actas da 
 conferência sobre a reforma da acção executiva”, pág. 122, da ed. de 2001, da 
 Coimbra Editora, e MIGUEL LUCAS PIRES, em “Dos privilégios creditórios: regime 
 jurídico e sua influência no concurso de credores”, pág. 189-192, da ed. de 
 
 2004, da Almedina).
 Apesar dos Códigos Civis de 1887 e de 1966 terem procurado reduzir o número de 
 privilégios creditórios e de não contemplarem a existência de privilégios 
 imobiliários gerais, estas intenções foram traídas pela legislação extravagante 
 em que proliferou a atribuição de múltiplos privilégios creditórios, tendo sido 
 previstos, em alguns casos, como sucede relativamente à norma sub iudice, 
 privilégios imobiliários gerais.
 E se, na vigência da redacção original do Código Civil de 1966, a jurisprudência 
 dominante entendeu que os créditos beneficiados com esses privilégios 
 imobiliários gerais estavam protegidos pela disciplina rígida do artigo 751.º, 
 preferindo sobre os credores com garantia real, apesar de se ouvirem vozes 
 discordantes (LUÍS GONÇALVES, na ob. e loc. cit., ALMEIDA COSTA, em “Direito 
 das obrigações”, pág. 825, da 5.ª ed., da Almedina, e ISABEL MENÉRES CAMPOS, em 
 
 “Da hipoteca. Caracterização, constituição e efeitos”, pág. 212-221, da ed. de 
 
 2003, da Almedina), o legislador, pressionado pelas declarações de 
 inconstitucionalidade dos acima referidos acórdãos n.º 362/02 e 363/02, deste 
 Tribunal, através do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, veio admitir 
 implicitamente a existência de privilégios imobiliários gerais não previstos no 
 Código (nova redacção do artigo 735.º, n.º 3), mas incluindo-os no regime do 
 artigo 749.º, do C.C., segundo o qual esses privilégios não valem contra os 
 credores com garantias reais. 
 Foi antes desta alteração legislativa que o Tribunal Constitucional proferiu os 
 referidos acórdãos n.º 362/02 e 363/03, os quais declararam inconstitucional o 
 entendimento de que créditos que gozavam de privilégio imobiliário geral tinham 
 uma preferência de pagamento sobre os créditos garantidos por hipoteca, dando 
 força às opiniões que então contestavam a aplicação a esses créditos do regime 
 de preferência previsto no artigo 751.º, do C.C..
 Nestes acórdãos considerou-se que essa preferência punha em causa o princípio da 
 confiança, ínsito a um Estado de direito democrático.
 Desde a Revisão Constitucional de 1982 o artigo 2.º, da C.R.P., afirma 
 expressamente que “a República Portuguesa é um Estado de Direito Democrático”.
 Do princípio do Estado de Direito, a doutrina deduz como seu sub-princípios 
 concretizador o da segurança jurídica em sentido amplo que abrange a ideia da 
 protecção da confiança dos cidadãos (vide GOMES CANOTILHO, em “Direito 
 constitucional e teoria da Constituição”, pág. 257 e seg., da 7.ª Edição, da 
 Almedina, JORGE REIS NOVAIS, em “Os princípios constitucionais estruturantes da 
 República Portuguesa”, pág. 261 e seg., da ed. de 2004, da Coimbra Editora).
 
 É inestimável o valor da segurança jurídica na vida em sociedade, a qual apenas 
 
 é propiciada pelo Direito, por não estar ao alcance de qualquer outra ordem 
 normativa (vide J. BAPTISTA MACHADO, em “Introdução ao Direito e ao Discurso 
 Legitimador”, pág. 57-59, da 3.ª Reimpressão (1989), da Almedina). 
 O homem necessita que lhe seja garantida a segurança necessária a poder 
 conduzir, planificar e conformar autónoma e responsavelmente a sua vida.
 
  Conforme sintetiza Jorge Reis Novais “(…) a protecção da confiança dos cidadãos 
 relativamente à acção dos órgãos do Estado é um elemento essencial, não apenas 
 da segurança da ordem jurídica, mas também da própria estruturação do 
 relacionamento entre Estado e cidadãos em Estado de Direito. Sem a 
 possibilidade, juridicamente garantida, de poder calcular e prever os possíveis 
 desenvolvimentos da actuação dos poderes públicos susceptíveis de repercutirem 
 na sua esfera jurídica, o indivíduo converter-se-ia, em última análise com 
 violação do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, em mero objecto 
 do acontecer estatal.” (na ob. cit., pp. 261-262).
 Pode-se, pois, dizer que o princípio geral da segurança jurídica, incluindo a 
 ideia de protecção da confiança, impõe a salvaguarda dos efeitos jurídicos dos 
 actos praticados pelos cidadãos alicerçados no ordenamento jurídico vigente no 
 momento da prática desses actos.
 Ora, neste caso, quando foi constituída a hipoteca para garantia de um 
 determinado crédito, já se encontrava em vigor a norma que havia atribuído aos 
 créditos do IEFP o privilégio que se considerou prevalecer sobre a hipoteca, sem 
 que este Tribunal tenha poderes para sindicar a correcção deste entendimento 
 perante o actual direito ordinário. O beneficiário da hipoteca quando optou pela 
 constituição desta garantia já sabia que os créditos do IEFP gozavam de 
 privilegio imobiliário geral pelo que não é possível dizer-se que a constituição 
 dessa hipoteca legitimasse a invocação de qualquer posição de confiança 
 constitucionalmente salvaguardada.
 O que a norma declarada constitucional vulnerabilizou não foi qualquer direito 
 já constituído do credor beneficiário da hipoteca, mas sim a própria figura 
 jurídica da hipoteca, enquanto garantia real da satisfação de créditos.
 Ao atribuir mais um privilégio creditório imobiliário geral a um determinado 
 tipo de créditos, criou mais uma possibilidade de existência de ónus ocultos 
 sobre bens que a hipoteca afecta ao cumprimento de obrigações, o que faz 
 diminuir a segurança desta garantia.
 
  A mesma vulnerabilidade, aliás, que resulta da atribuição de privilégios 
 creditórios imobiliários especiais a determinados créditos e dos efeitos de 
 outros direitos como o direito de retenção, o direito de arrendamento ou o 
 direito dos credores da herança (vide sobre a concorrência destes direitos com a 
 hipoteca, LUÍS GONÇALVES, na ob. cit., e CLÁUDIA MADALENO, em “A vulnerabilidade 
 das garantias reais”, ed. de 2008, da Almedina).
 Ora, a hipoteca não é nenhuma figura de consagração constitucional, tendo o 
 legislador ordinário no domínio das garantias creditícias inteira liberdade de 
 conformação, podendo optar, consoante os interesses em jogo e o tipo de 
 créditos, pela solução que entenda mais adequada de distribuição e escalonamento 
 do grau de risco a suportar pelas várias classes de credores.
 Mesmo que se considere que o direito constitucional à propriedade privada 
 
 (artigo 62.º, n.º 1, da C.R.P.) exige a existência de um sistema de garantias 
 que assegurem a satisfação dos créditos, tem o legislador ordinário a mais ampla 
 liberdade para conformar esse sistema de acordo com as suas opções.
 E se a hipoteca assumiu no nosso sistema jurídico uma posição privilegiada entre 
 os diferentes tipos de garantia disponibilizados ao credor pela ordem jurídica, 
 isso não significa que a segurança que ela confere à posição do credor não possa 
 ser afectada pela preferência entretanto dada pelo legislador a outros créditos, 
 pela prevalência reconhecida a outros interesses, sendo certo que o aparecimento 
 de novas formas de garantia veio colocar em causa a primazia que era atribuída à 
 hipoteca.
 Por estas razões entendo que a atribuição pelo legislador de um privilégio 
 creditório imobiliário geral, com preferência sobre as hipotecas, a um 
 determinado tipo de créditos, não viola qualquer parâmetro constitucional, 
 apesar de suscitar sérias reservas sobre se será a melhor opção em termos de 
 política de dinamização do recurso ao crédito.
 Além disso, mesmo que se concluísse, como fez este acórdão, que a interpretação 
 no sentido de que um crédito que beneficie de um privilégio imobiliário geral 
 prevalecia sobre um crédito garantido por uma hipoteca estava ferida de 
 inconstitucionalidade, deveria proferir-se decisão negativa de 
 inconstitucionalidade, impondo-se interpretação conforme à Constituição, nos 
 termos do artigo 80.º, n.º 3, da C.R.P., face à alteração introduzida aos 
 artigos 749.º e 751.º, do Código Civil, pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de 
 Março, donde decorre que os privilégios imobiliários gerais não preferem sobre a 
 hipoteca.
 
  
 João Cura Mariano