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Processo n.º 78/09
 
 2.ª Secção
 Relator: Conselheiro João Cura Mariano
 
 
 
               Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
 
  
 Relatório
 A. intentou acção declarativa contra B., S.A. e C., pedindo que a Ré B. e, 
 subsidiariamente, o Réu C., fossem condenados a pagar-lhe a quantia de USD 
 
 47.120,80, acrescida de USD 5.577.00 de juros vencidos, até 14 de Julho de 1998, 
 e vincendos, até integral e efectivo pagamento, e a indemnizá-lo em quantitativo 
 não inferior a USD 120.000,00, acrescido de juros desde a citação até integral 
 pagamento. 
 
  
 Realizado julgamento foi proferida sentença que julgou a acção procedente, tendo 
 a ré B. sido condenada a restituir ao autor a quantia de USD 47.120 (ou a 
 quantia correspondente em euros) e os juros legais vencidos e vincendos à taxa 
 de 5%, bem como a indemnizá-lo em USD 120.000 (ou a quantia correspondente em 
 euros), acrescida de juros desde a citação.
 
  
 A Ré B. recorreu desta sentença para o Tribunal da Relação de Coimbra que, após 
 ter proferido um primeiro acórdão que foi anulado por decisão do Supremo 
 Tribunal de Justiça, julgou improcedente o recurso interposto, confirmando a 
 sentença da 1ª instância.
 
  
 A Ré B. recorreu desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça que, por 
 acórdão proferido em 16-10-2008, julgou improcedente a revista.
 
  
 A Ré B. após ter sido indeferido um pedido de arguição de nulidade daquele 
 acórdão, recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no 
 artigo 70.º, n.º 1, b), da LTC, nos seguintes termos:
 
 “O presente recurso tem como fundamento a violação dos artigos 2º, 3º nºs 2 e 3, 
 
 8º, nº 1, 20º, nº 4, 32º e 202º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa e 
 concomitantemente, do princípio do Estado de Direito, da garantia de processo 
 justo e adequado à realização do Direito, do princípio da conformação do 
 processo segundo os direitos fundamentais e do princípio da legalidade 
 processual, na interpretação do princípio da livre apreciação da prova, que 
 admite a valoração de prova testemunhal destituída de indicação concreta da 
 respectiva razão de ciência, suscitada nas Alegações de Recurso interposto para 
 este Supremo Tribunal de Justiça.”
 
  
 Apresentou alegações, com as seguintes conclusões:
 
 “I. Nos presentes autos, a procedência da acção derivou exclusivamente, da 
 valoração do depoimento prestado por uma “testemunha” que cedeu os créditos para 
 poder legalmente sê-lo (ou para que os créditos poderem teoricamente existir) e 
 de depoimentos de testemunhas que nunca referiram nos autos, o motivo, razão ou 
 circunstâncias, em que adquiriram conhecimentos daquilo que afirmam ser a mais 
 pura «verdade, pois consta do contrato» que a NEWPALM nunca celebrou as outras 
 sociedades que eram geridas pela isenta testemunha D..
 II. «Do princípio do Estado de Direito deduz-se, sem dúvida, a exigência de um 
 procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito. 
 Como a realização do direito é determinada pela conformação jurídica do 
 procedimento e do processo, a constituição contém alguns princípios e normas 
 designados por garantias gerais de procedimento e de processo.». Dentre as 
 garantias do processo judicial que têm dignidade constitucional, por respeitarem 
 a direitos considerados fundamentais, podem mencionar-se: a garantia do processo 
 equitativo (art.º 20, nº 4), o princípio da conformação do processo segundo os 
 direitos fundamentais (art.º 32), o princípio da fundamentação dos actos 
 judiciais (art.º 205º, nº), o princípio da legalidade processual (art.º 32º). 
 III. A exigibilidade de explicitação das razões de ciência das testemunhas 
 prende-se, primeiramente, com o controlo do respeito pelos limites da livre 
 apreciação da prova testemunhal, tendo em vista garantir um processo justo e 
 equitativo, garantia de inequivocidade e clareza do processo e rejeição de 
 decisões judiciais que se fundem num juízo arbitrário. 
 IV. Na expressão do Professor ALBERTO DOS REIS, «Tem a maior importância esta 
 exigência» a que «Tanto apreço ligou a lei». Sendo as razões de ciência 
 qualificadas por Antunes Varela / J. Miguel Bezerra / Sampaio Nora como 
 
 «elemento essencial» que «reveste efectivamente a maior importância»., pois 
 
 «(...) a prova testemunhal é particularmente falível e precária».. 
 V. Daí que «Se for omitida a explicação da razão da sua ciência acompanhada das 
 circunstâncias que possam justificar o conhecimento dos factos, o depoimento 
 inexiste, seja física, seja juridicamente» (JORGE LOURENÇO MARTINS in “O 
 Depoimento Testemunhal em Processo Civil”, citado por ISABEL ALEXANDRE, in 
 
 “Provas ilícitas em Processo Civil”). 
 VI. Relativamente à validade (ou existência...) do testemunho, a exigibilidade 
 da indicação das razões de ciência das testemunhas, funda-se nestas premissas e 
 encontra-se hoje positivada no art.º 683º, nº1, do Código de Processo Civil, sob 
 a epígrafe: «Regime do Depoimento» (conjunto de regras que regulam a produção da 
 prova testemunhal) exigindo-se portanto que a testemunha faça a declaração de um 
 facto e indique como sabe (viu, ouviu, sonhou...) e explique as circunstâncias 
 desse conhecimento. 
 VII. Nos sistemas da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de 
 formar a sua convicção sobre os factos, com base na observação e análise da 
 prova que lhe é apresentada, mas nem por isso fica desobrigado, «na formação 
 dessa convicção», de indicar os fundamentos onde aquela assentou. A lei 
 processual determina e faz impender, sobre o julgador, um ónus de objectivação 
 da sua convicção, que virá a ser demonstrado na respectiva motivação, nos termos 
 do art. 653.º, n.º 2 do CPC. 
 VIII. Por imposição constitucional (primeiro) e legal (depois), a livre 
 apreciação da prova, não é um juízo arbitrário ou de intuição sobre veracidade 
 ou não de uma certa realidade de facto, mas antes uma convicção adquirida por 
 intermédio dum processo racional, objectivado, alicerçado na análise critica 
 comparativa dos diversos dados recolhidos nos autos na e com a produção das 
 provas e na ponderação e maturação dos fundamentos e motivações, sendo que essa 
 convicção carece de ser enunciada, por expressa imposição legal, como garante da 
 transparência, da imparcialidade e da inerente assunção da responsabilidade por 
 parte do julgador na administração da justiça.
 IX. Ao impor que as testemunhas apresentem a respectiva razão de ciência, a lei 
 processual civil visa consubstanciar a garantias de imparcialidade e legalidade, 
 bem como o direito a um processo justo, para que não ocorra aquilo que nos autos 
 ocorreu: serem valorados depoimentos de testemunhas destituídos (ou sendo 
 presumidas) as respectivas razões de ciência. 
 X. Por outras palavras, a exigibilidade de menção das razões de ciência 
 consubstancia um princípio processual, plasmado na lei ordinária, concretiza e 
 constitui corolário de outros, constitucionalmente consagrados como a exigência 
 constitucional de um processo justo, plasmado no art.º 30º, nº 4, da 
 Constituição, devidamente concretizado, no «Regime» previsto no art.º 683º, nº 
 
 1, do Código de Processo Civil, destinando-se a impedir que o sistema de prova 
 livre e livre apreciação da prova, se converta num poder ilimitado e arbitrário 
 do Juiz. 
 XI. A prova domina todo o processo declarativo, pois a sentença (que lhe põe 
 termo) assenta necessariamente na prova. Dada a importância da prova, ela 
 constitui o ponto central do processo e, consequentemente, do direito 
 processual. Por isso, «Em sede de prova, o direito ao processo equitativo 
 implica a inadmissibilidade de meios de prova ilícitos, quer o sejam por 
 violarem direitos fundamentais, quer porque se formaram ou obtiveram por 
 processos ilícitos.». 
 XII. Se nos termos do art.º 202º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa: 
 
 «Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a 
 justiça em nome do povo», não faz qualquer sentido aplicar uma lei processual 
 diversa daquela que é a lei do povo em nome do qual o tribunal aplica a lei 
 substantiva. E também a efectivação do princípio do direito ao processo 
 equitativo exige o julgamento de acordo com as leis do país. Por essas razões, 
 no direito processual civil não há qualquer excepção resultante da aplicação da 
 lei: as normas de processo são exclusivamente territoriais.
 XIII. Da natureza pública do direito processual civil e do princípio da 
 aplicação territorial absoluta da lei adjectiva, decorre que a validação dos 
 depoimentos, de acordo com a (hipotética!) lei estrangeira afecta a 
 independência do Estado Português. 
 XIV. Ainda que a prova seja livre, não o é a sua valoração. A vinculação do Juiz 
 
 à lei do Estado em que julga o litígio é a expressão do Estado de Direito, pois 
 nos termos do art.º 2 da Constituição da República Portuguesa, a República 
 Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular no 
 respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais, o 
 que, nos termos do nº 2 do artigo 202º da Lei Fundamental, incumbe aos tribunais 
 assegurar. 
 XV. Segundo o Acórdão recorrido «a falta de menção de conhecimento dos factos 
 relatados pela testemunha não afecta o depoimento enquanto tal» e «não acarreta, 
 de per si, a proibição de consideração do seu depoimento», fundando-se na 
 premissa segundo a qual o art.º 638º, nº 1, do CPC, «dirige-se à ponderação da 
 credibilidade do depoimento e, consequentemente, à formação da convicção do juiz 
 
 (...)». 
 XVI. A fundamentação do Acórdão recorrido abre um perigoso precedente, pois 
 recorre a uma singular interpretação do princípio da prova livre, legitimando 
 
 “fundamentação” de qualquer decisão assente na prova testemunhal (ilicitamente) 
 produzida e (ilegalmente) valorada, sem qualquer referência às razões de 
 ciência, «exigência» e «elemento essencial)) a que a lei «Tanto apreço ligou», 
 sem as quais, conforme a doutrina entende unanimemente, fica o Tribunal impedido 
 de apreciar a força probatória e de valorar a prova testemunhal, assim 
 subvertendo a jurisprudência proferida por este Tribunal Constitucional, 
 relativamente ao princípio da fundamentação das decisões judiciais. 
 XVII. O Acórdão recorrido mostra-se claramente avesso à jurisprudência 
 Constitucional, ao rejeitar a anulação dos Acórdãos proferidos pelo Tribunal da 
 Relação de Coimbra, na medida em que «só a falta absoluta de motivação constitui 
 a nulidade prevista na al. b) do nº 1 do art.º 668 do C. Pr. Civil)). 
 XVIII. O necessário acatamento da lei positiva, consubstanciado no princípio da 
 legalidade processual, associado à necessidade de garantir a transparência das 
 decisões judiciais, impõe que a formação da convicção se destine igualmente a 
 combater a ocultação, por detrás de meras justificações formais, dos reais 
 motivos da decisão, ou sequer de «meias fundamentações». 
 XIX. Se a fundamentação da decisão não pode deixar de indicar os razões de 
 ciência das testemunhas, sob pena de nulidade, também não poderá valorar-se um 
 depoimento que vem sem as (assim necessárias) razões de ciência: sem conhecer as 
 razões de ciência, o Julgador não pode enunciar os razões pelas quais valorou e 
 creditou a prova testemunhal, nem efectuar qualquer análise crítica do 
 depoimento destituído de razões de ciência. E não pode o cidadão conformar-se 
 com tal juízo, totalmente arbitrário. 
 XX. A decisão recorrida é arbitrária, iníqua, injusta e ofensiva da dignidade 
 constitucional do Princípio do Estado de Direito, pondo em crise o princípio da 
 legalidade processual e da transparência das decisões judiciais, o direito a um 
 processo justo e consequentemente, o princípio da legalidade democrática, a 
 confiança no poder judicial e a própria noção de Estado de Direito: conforme 
 afirmaria Taruffo, só seria uma boa decisão se para ela houvesse, ou pudesse 
 haver, boas justificações. 
 XXI. Para rejeitar a «deficiente fundamentação da matéria de facto», o Acórdão 
 limita-se, de forma artificial e falaciosa, a transcrever passagens do Acórdão 
 da Relação “reformado”, das quais se destaca «a testemunha tem conhecimento pelo 
 facto de ter visto os contratos» e «referiram expressamente que este facto 
 consta do contrato», quando o mesmo Tribunal e os mesmos Juízes Desembargadores, 
 já haviam anteriormente considerado que «É certo que não se encontra mencionada 
 naqueles a razão de ciência». 
 XXII. Em Estado de Direito, subordinado «à Constituição e funda-se na legalidade 
 democrática», o acatamento dos valores constitucionais da certeza e segurança 
 jurídica e da imparcialidade do poder judicial, não é compaginável com decisões 
 que visam “justificar-se” através da contradição e da aparência de legalidade! 
 XXIII. A independência e a imparcialidade do Juiz não podem ser afirmadas só a 
 nível de princípios gerais e abstractos, sob pena de provocarem o seu completo 
 esvaziamento: o juiz só é independente e imparcial se demonstra sê-lo na 
 particular decisão que profere, motivando-a de modo que ela resulte fundada 
 sobre uma verificação objectiva dos factos da causa e sobre uma interpretação 
 válida e imparcial da norma. 
 XXIV. Sendo a obrigação de motivação garantida por uma norma constitucional, ela 
 
 «não é já orientada só para a finalidade de controlo endoprocessual da sentença, 
 passando a consubstanciar uma garantia geral e não vazia de conteúdo: sendo um 
 instrumento de controle democrático sobre a justiça da decisão, a motivação tem 
 um “valor instrumental” de efectivação de outros princípios fundamentais, 
 relativos à administração da justiça no Estado de Direito, razão pela qual, não 
 pode ter-se por cumprida “de qualquer maneira”, bastando invocar uma boa 
 
 “desculpa”, como a livre prova e livre apreciação da prova, para assim “motivar” 
 uma decisão completamente ilegal e iníqua. 
 XXV. Em concreto, a valoração dos depoimentos processuais influíram na decisão 
 da causa, contribuindo determinantemente para o resultado probatório. Sem esses 
 depoimentos, não seriam provados os factos vertidos nos pontos 5 e 6 da Base 
 instrutória. Não seriam provados os prejuízos supostamente causados pela não 
 celebração dos Contratos. Não existiria o crédito cedido ao Autor. 
 XXVI. A admissibilidade de tais depoimentos, destituídos da indicação da 
 respectiva razão de ciência, põe em crise a confiança no poder judicial, que só 
 se consegue obtendo o respeito e total confiança dos cidadãos no seu poder 
 judicial, podendo mesmo considerar-se, por essa razão, contrária à ordem 
 pública. 
 XXVII. Estes princípios relativos à produção da prova testemunhal, são por isso 
 princípios de Direito geral ou comum, aplicáveis em sede de direito processual 
 civil e comuns a todo o Estado de Direito que nos termos do Artigo 8.º, nº1 da 
 Constituição «fazem parte integrante do direito português.». 
 XXVIII. A interpretação dos princípios da prova livre e da livre apreciação da 
 prova, adoptada nos presentes autos, segundo a qual a inexistência de declaração 
 das razões de ciência não compromete a admissibilidade dos depoimentos, nem a 
 admissibilidade de valoração desses depoimentos, mostra-se assim 
 inconstitucional por violar o art.º 2º, 3º nºs 2 e 3, 8.º, nº 1, 20º, nº 4 e 
 
 202º da Constituição da República Portuguesa. 
 Termos em que deve ser declarada a inconstitucionalidade da interpretação 
 ventilada no Acórdão recorrido, segundo a qual, o Tribunal é livre de apreciar 
 os depoimentos destituídos de razão de ciência e a falta de menção e 
 inexistência de declaração dessas razões de ciência das testemunhas, não 
 determina a inadmissibilidade de valoração da prova assim produzida (pressupondo 
 o «regime do depoimento» previsto no art.º 683º, nº 1, como meramente indicativo 
 da credibilidade do depoimento, possibilitando a valoração de tais depoimentos 
 ao abrigo do art.º 655º, ambos do Código de Processo Civil) e em consequência, 
 ser o mesmo revogado, assim se fazendo sã e serena justiça.”
 
  
 O recorrido contra-alegou, sustentando que o Tribunal não deveria conhecer deste 
 recurso, atento o cariz instrumental do recurso constitucional, e pugnando pela 
 sua improcedência, para a hipótese de ser conhecido o seu mérito.
 
  
 
  
 
                                                     *
 Fundamentação
 
 1.      Da idoneidade do objecto do recurso
 A recorrente pediu que o Tribunal Constitucional se pronunciasse sobre a 
 constitucionalidade do princípio da livre apreciação da prova em processo civil 
 
 (vertido no artigo 655.º, do C.P.C.), na interpretação segundo a qual é 
 admissível a valoração de prova testemunhal destituída da indicação concreta da 
 respectiva razão de ciência.
 O recorrido defendeu que não deveria ser conhecido o mérito deste pedido, uma 
 vez que o recurso constitucional tem natureza instrumental e a decisão recorrida 
 apesar de ter sustentado a constitucionalidade daquela interpretação, tinha 
 acrescentado que a razão de ciência das testemunhas em causa, apesar de não se 
 encontrar indicada no registo dos seus depoimentos, decorria de elementos 
 constantes no processo.
 
 É certo que, tendo o recurso constitucional natureza instrumental, este Tribunal 
 só deve conhecer do seu mérito quando o juízo de constitucionalidade a efectuar 
 se repercuta utilmente sobre o sentido da decisão recorrida, não servindo este 
 recurso para dilucidar questões meramente académicas.
 Contudo, pretendendo a recorrente que se verifique da constitucionalidade da 
 interpretação normativa segundo a qual é possível ao julgador, em processo 
 civil, valorar os depoimentos testemunhais donde não conste a indicação da sua 
 razão de ciência, um eventual juízo de inconstitucionalidade que recaia sobre 
 tal interpretação obrigará à reformulação da decisão recorrida, quanto à 
 valoração daqueles depoimentos, uma vez que esta admitiu a falta dessa 
 indicação.
 O facto do tribunal recorrido acrescentar que, no caso concreto, a razão de 
 ciência das testemunhas em cujo depoimento tal dado foi omitido, poder ser 
 extraída de outros elementos do processo, não é susceptível de continuar a 
 fundamentar este segmento da decisão recorrida, perante o juízo de 
 inconstitucionalidade peticionado.
 Daí a utilidade do presente recurso.
 
  
 
 2.     Do mérito do recurso
 O tema deste recurso situa-se no domínio da valoração da prova testemunhal em 
 processo civil.
 Para enquadramento da questão de constitucionalidade colocada neste recurso, 
 importa relembrar o ocorrido neste processo relativamente à prova testemunhal em 
 causa.
 Na fase da produção de prova foi expedida carta rogatória a Moçambique para 
 inquirição de testemunhas, tendo em 29-9-2000 e em 6-10-2000 sido realizada esta 
 diligência no Tribunal da Cidade de Maputo, onde prestaram depoimento D., E., 
 F., G., H., I., J., L. e M..
 
  O depoimento de algumas destas testemunhas, nomeadamente o de D., J., L.e M., 
 foi apontado como fundamento para a decisão da matéria de facto, quer em 1ª 
 instância, quer no acórdão do Tribunal da Relação que decidiu a impugnação 
 daquela decisão.
 O recorrente defendeu perante o Supremo Tribunal de Justiça que os depoimentos 
 destas testemunhas não podiam ser valorados, uma vez que do registo escrito do 
 seu depoimento não constava a razão de ciência destas testemunhas.
 O acórdão recorrido, admitindo essa omissão, sustentou que a mesma não impedia 
 que o julgador valorasse livremente tais depoimentos como meio de prova.
 
 É este critério cuja constitucionalidade é questionada pelo recorrente.
 Nos termos do disposto, especificamente, no artigo 396.º do C.C. e do princípio 
 geral enunciado no artigo 655.º do C.P.C. o depoimento testemunhal é hoje um 
 meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador (em tempos recuados os 
 depoimentos testemunhais já estiveram sujeitos a regimes de predominância do 
 sistema da prova legal, sendo muitas vezes valorados em função de factores 
 meramente quantitativos), devendo este avaliá-lo em conformidade com as 
 impressões recolhidas da sua audição ou leitura e com a convicção que delas 
 resultou no seu espírito, de acordo com as regras de experiência (sobre o 
 conteúdo e limites deste princípio, vide TEIXEIRA DE SOUSA, em “A livre 
 apreciação da prova em processo Civil”, em Scientia Iuridica, tomo XXXIII 
 
 (1984), pág. 115 e seg., e AROSO LINHARES, em “Regras de experiência e liberdade 
 objectiva do juízo de prova – convenções e limites de um possível modelo 
 teorético”, ed. de 1988, da Coimbra Editora).
 A adopção do sistema romano da “prova livre” privilegia a obtenção da verdade 
 material dos factos, em detrimento da certeza do resultado da prova que preside 
 ao sistema da “prova legal”.
 Mas a liberdade na apreciação da prova não equivale a uma apreciação arbitrária 
 das provas produzidas, uma vez que o inerente dever de fundamentação do 
 resultado alcançado impedirá a possibilidade de julgamentos despóticos.
 Na avaliação da prova testemunhal a fonte do conhecimento dos factos narrados 
 pela testemunha é um elemento da maior importância para o julgador aferir da 
 credibilidade do relato (vide, neste sentido, ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA e 
 SAMPAIO E NORA, em “Manual de processo civil”, pág. 624-625, da 2ª ed., da 
 Coimbra Editora, ANSELMO DE CASTRO, em “Direito processual civil declaratório”, 
 vol. III, pág. 341-342, da ed. de 1982, da Almedina, PAIS DO AMARAL, em “Direito 
 processual civil”, pág. 304, da 5.ª ed., da Almedina, e JORGE LOURENÇO MARTINS, 
 em “O depoimento testemunhal em processo civil”, pág. 69-71, da ed. do Autor de 
 
 1988), defendendo este último a inexistência jurídica do depoimento que não 
 contenha qualquer referência à razão de ciência).
 Já nas Ordenações, regulando o ofício dos Enqueredores, se dispunha 
 relativamente à inquirição das testemunhas:
 
 “E bem assi perguntarão declaradamente polo que sabem dos artigos…E se disserem 
 
 , que sabem alguma cousa daquillo, porque são perguntados, perguntem-lhes como o 
 sabem. E se disserem, que o sabem de vista, perguntem-lhes em que tempo e lugar 
 o viram, e se stavam ahi outras pessoas, que o vissem. E se disserem que o sabem 
 de ouvida, perguntem-lhes a quem o ouviram, e em que tempo e lugar. E todo o que 
 disserem, façam screver, fazendo-lhes todas as outras perguntas, que lhes 
 pareçam necessárias, per que melhor e mais claramente se possa saber a verdade” 
 
 (In. Ordenações Filipinas, Livro I, título LXXXVI, § 1º, reproduzindo o § 2º, t. 
 
 65, do Livro 1.º, das Ordenações Manuelinas).
 O Código Civil de 1867, que regulou a prova testemunhal, nos seus artigos 2506.º 
 e seguintes, previa que a “força probatória dos depoimentos será avaliada tanto 
 pelo conhecimento, que as testemunhas mostrarem ter dos factos, como pela fé que 
 merecerem por seu estado, vida e costumes, ou pelo interesse que possam ter ou 
 não ter no pleito, ou, finalmente, pelo seu parentesco ou relações com as 
 partes” (artigo 2514.º), sendo o referido conhecimento que as testemunhas 
 mostrarem ter dos factos, nada mais que a razão da sua ciência (vide, neste 
 sentido, Cunha Gonçalves, em “Tratado de direito civil em comentário ao Código 
 Civil Português”, vol. XIV, pág. 372-373, da ed. de 1940, da Coimbra Editora).
 E o Código de Processo Civil de 1939, que assumiu a regulamentação da produção 
 da prova testemunhal, ao contrário do anterior Código de Processo Civil de 1876, 
 retomando, curiosamente, a formulação das Ordenações, fez constar no artigo 
 
 641.º :
 
 “A testemunha será interrogada sobre os factos incluídos no questionário que 
 tiverem sido articulados pela parte que a ofereceu, e deporá com precisão, 
 indicando a razão da ciência e quaisquer circunstâncias que possam justificar o 
 conhecimento dos factos.
 
 …
 
 § 2.º A razão de ciência invocada pela testemunha será, quanto possível, 
 especificada. Se disser que sabe por ver, há-de explicar em que tempo e lugar 
 viu o facto, se estavam aí outras pessoas que também vissem e quais eram; se 
 disser que sabe por ouvir, há-de indicar a quem ouviu, em que tempo e lugar, e 
 se estavam aí outras pessoas que também o ouvissem e quais eram.”.
 Alberto dos Reis explicou assim esta exigência legal:
 
 “Tem a maior importância esta exigência da lei, porque a razão da ciência é um 
 elemento de grande valor para a apreciação da força probatória do 
 depoimento…Desceu a lei a estas minúcias, porque uma vez destruída ou abalada a 
 razão da ciência, o depoimento perde o valor ou fica notavelmente enfraquecido; 
 e para a parte contrária poder atacar a razão da ciência e o tribunal poder 
 avaliar até que ponto é exacta a razão invocada, muito interessa saber as 
 condições e circunstâncias especiais de que a testemunha se socorre para 
 justificar o seu conhecimento” (In “Código de Processo Civil anotado”, vol. IV, 
 pág. 422, da ed. de 1951, da Coimbra Editora).
 A reforma de 1961 do Código de Processo Civil determinou que o regime do 
 depoimento testemunhal passasse a constar do artigo 640.º, e suprimiu a 2ª parte 
 do § 2º do anterior artigo 641.º, dispondo agora o n.º 5 do artigo 640.º, apenas 
 que “a razão de ciência invocada pela testemunha será, quanto possível, 
 especificada e fundamentada”.
 O Decreto-Lei n.º 47.690, de 11 de Maio de 1967, que introduziu no Código de 
 Processo Civil as adaptações exigidas pela entrada em vigor do Código Civil de 
 
 1966, transpôs o regime do depoimento testemunhal para o artigo 638.º, dando-lhe 
 a redacção actual que é a seguinte:
 
 “A testemunha é interrogada sobre os factos incluídos no questionário, que 
 tenham sido articulados pela parte que a ofereceu, e depois deporá com precisão, 
 indicando a razão de ciência e quaisquer circunstâncias que possam justificar o 
 conhecimento dos factos; a razão de ciência invocada será, quanto possível, 
 especificada e fundamentada”.
 Era este também o preceito que se encontrava em vigor na República Popular de 
 Moçambique nas datas em que foram efectuadas as inquirições em causa, uma vez 
 que após a declaração de independência deste Estado, o Código de Processo Civil 
 Português manteve-se em vigor na redacção que lhe havia sido conferida pelo 
 Decreto-Lei n.º 47.690, de 11 de Maio de 1967, sendo certo que o cumprimento das 
 cartas rogatórias deve ser feito segundo a lei do tribunal rogado, nos termos do 
 artigo 7.º, n.º 1, do Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre a 
 República Portuguesa e a Republica Popular de Moçambique, assinado em 12 de 
 Abril de 1990, e aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da 
 República n.º 7/91, de 14 de Fevereiro, e que entrou em vigor em 22 de Fevereiro 
 de 1996.
 A lei aplicada no cumprimento da carta rogatória de tomada do depoimento a 
 diversas testemunhas não foi, pois, diferente da lei nacional vigente, pelo que 
 não faz qualquer sentido a invocação pela recorrente duma pretensa violação do 
 princípio da legalidade e da independência do Estado Português.
 Apesar do preceituado na legislação ordinária, do registo escrito dos 
 depoimentos das testemunhas ouvidas neste processo no Tribunal da Cidade de 
 Maputo, por carta rogatória, conforme admitiu a decisão recorrida, não consta a 
 indicação da sua razão de ciência.
 Se este dado é um elemento muito importante para o julgador poder aferir da 
 credibilidade dos depoimentos, será que a valoração de prova testemunhal que foi 
 produzida sem essa indicação concreta afronta alguma exigência constitucional?
 Nesta matéria o parâmetro constitucional que deve ser ponderado é o que exige 
 que os processos em tribunal, incluindo o processo civil, tenham um procedimento 
 equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da C.R.P.).
 O due process é o processo cujas regras de tramitação obedecem aos princípios 
 materiais da justiça, cuja densificação tem vindo a ser realizada 
 casuisticamente pelo Tribunal Constitucional, recorrendo muitas vezes à 
 enunciação de sub-princípios, com particular atenção à jurisprudência do 
 Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, em torno do artigo 6.º, da Convenção 
 Europeia dos Direitos do Homem, onde também se consagrou expressamente o direito 
 a um processo equitativo.
 No domínio das proibições de valoração da prova, em processo civil, tem sido 
 defendida a aplicação analógica do disposto no artigo 32.º, n.º 8, da C.R.P., 
 sempre que as provas sejam obtidas através de meios violadores dos direitos 
 fundamentais (vide, neste sentido, TEIXEIRA DE SOUSA, na ob. cit., pág. 140, 
 ISABEL ALEXANDRE, em “Provas ilícitas em processo civil”, pág. 233 e seg., da 
 ed. de 1998, da Almedina, PAULA COSTA E SILVA, em “Saneamento e condensação no 
 novo Processo Civil”, em “Aspectos do novo Processo Civil”, pág. 255-256, da ed. 
 de 1997, da Lex, e JOSÉ JOÃO ABRANTES, em “Prova ilícita”, em “Revista 
 Jurídica”, pág. 35-36).
 Além destes casos, a exigência constitucional de uma equidade processual 
 orientada para a realização duma justiça material também pode não permitir a 
 valoração de meios de prova manifestamente prejudiciais ao apuramento da verdade 
 dos factos (v.g. as antigas ordálias).
 Neste caso, estamos apenas perante o incumprimento duma regra procedimental da 
 produção de um meio de prova em processo civil, destinando-se essa regra a 
 permitir um melhor apuramento da verdade. Com efeito, indicando a testemunha a 
 fonte do seu conhecimento dos factos por ela relatados, o juiz poderá mais 
 facilmente aferir da credibilidade desse relato.
 Ora, a protecção ao apuramento da verdade dos factos não exige, necessariamente, 
 que o incumprimento duma regra procedimental de produção da prova, destinada a 
 facilitar a aferição do seu valor, seja sancionado com a impossibilidade da sua 
 apreciação, uma vez que, mesmo perante aquele incumprimento, sempre a prova 
 deficientemente produzida poderá continuar a ter alguma utilidade na descoberta 
 da verdade material, não impedindo que o juiz cumpra integralmente o dever de 
 fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.
 Independentemente do juízo de constitucionalidade que possa ser formulado sobre 
 a solução que se encontre para a falta de conhecimento pelo julgador da razão de 
 ciência do depoimento testemunhal, a mera falta da indicação pela testemunha no 
 seu depoimento das fontes do conhecimento dos factos por ela relatados, não 
 determina inelutavelmente que o julgador não possa aperceber-se das razões da 
 ciência revelada. Não só essas razões poderão ser retiradas de outros elementos 
 do processo (como a decisão recorrida diz suceder no caso sub iudice), como elas 
 poderão estar implícitas nos próprios factos testemunhados ou resultarem da 
 natureza da relação existente entre as partes e a testemunha.
 Daí que não seja possível dizer que o incumprimento daquela regra procedimental 
 prejudique necessariamente o apuramento da verdade e o cumprimento do dever de 
 fundamentação cabal das decisões jurisdicionais.
 Deste modo conclui-se que a atribuição ao juiz do poder de livremente continuar 
 a apreciar o valor do depoimento em que a testemunha não indicou a sua razão de 
 ciência, não põe em causa a exigência constitucional de um processo equitativo, 
 constante do artigo 20.º, n.º 4, da C.R.P., nem qualquer outro parâmetro 
 constitucional, pelo que o recurso deve ser julgado improcedente.
 
  
 
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 Decisão
 Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto para o Tribunal 
 Constitucional, por B., S.A., do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 
 proferido nestes autos em 16-10-2008.
 
  
 
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 Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, 
 ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 
 
 303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
 Lisboa, 12 de Maio de 2009
 João Cura Mariano
 Benjamim Rodrigues
 Mário José de Araújo Torres
 Joaquim de Sousa Ribeiro
 Rui Manuel Moura Ramos