 Imprimir acórdão
 Imprimir acórdão   
			
Processo n.º 641/08
 
 3ª Secção
 Relator: Conselheiro Vítor Gomes
 
                               
 Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
 
  
 I. Relatório
 
  
 
 1. A. propôs, no Tribunal da Comarca de Leiria, acção declarativa contra B. e o 
 Fundo de Garantia Automóvel, alegando que, enquanto conduzia um motociclo na via 
 pública, fora vítima de um acidente de viação exclusivamente causado pelo 
 primeiro réu, que na altura circulava, sem beneficiar de qualquer seguro válido 
 e eficaz, com um motocultivador com reboque; pediu, em consequência, que os réus 
 fossem condenados a pagar solidariamente a quantia de 9.265.005$00 acrescida dos 
 juros legais que se vencessem após a citação, a título de indemnização pelos 
 danos por si sofridos, entre os quais se incluía a amputação traumática pelo 
 terço superior da perna direita e a incapacidade permanente global de 70%.
 
  
 Por sentença de 24 de Abril de 2007, foi a acção julgada parcialmente 
 procedente. Para tanto, a sentença recusou aplicação, por violação do princípio 
 da igualdade, à norma do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de 
 Dezembro, interpretada no sentido de que exclui a responsabilidade civil do 
 Fundo de Garantia Automóvel pelos danos causados a terceiros por viatura 
 agrícola, não sujeita a matrícula, cujo proprietário está legalmente dispensado 
 da obrigação de celebrar contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel.
 
  
 Desta sentença interpôs o Ministério Público recurso para o Tribunal 
 Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do 
 Tribunal Constitucional (fls. 571).
 Pelo acórdão n.º 202/2008, o Tribunal Constitucional concedeu provimento ao 
 recurso, não julgando inconstitucional a norma do artigo 21.º, n.º 1, do 
 Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, na referida interpretação, 
 determinando-se a reformulação da decisão recorrida de acordo com o juízo de não 
 inconstitucionalidade.
 
  
 
             2. Foi, então, proferida nova sentença (fls. 650 e segs. – em 
 
 17/6/2008), na qual se manteve o julgamento de procedência parcial da acção e a 
 consequente condenação dos réus, incluindo o Fundo de Garantia Automóvel. 
 
             Desta vez, o tribunal a quo recusou aplicação à norma do n.º 2 do 
 artigo 1.º do Decreto-lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, por violação do 
 princípio da igualdade, com a seguinte fundamentação:
 
  
 
 “Nos casos de acidente de viação, aquilo que está coberto pelo seguro é a 
 obrigação de indemnização que, em virtude do acidente, possa recair sobre o 
 segurado (até ao limite do valor convencionado entre as partes). 
 Ora, no caso vertente o Réu B. não tinha a responsabilidade por acidentes de 
 viação, em que o seu motocultivador interviesse, transferida para qualquer C de 
 Seguros, pelo que, em caso de responsabilidade sua, é nossa humilde opinião, 
 intervém o Fundo de Garantia Automóvel, apesar da redacção literal do art 21º do 
 DL 522/85, de 3 1-12 que se transcreve: 
 
 1- Compete ao Fundo de Garantia Automóvel satisfazer... as indemnizações 
 decorrentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório 
 e que sejam matriculados em Portugal ou em países terceiros em relação à 
 Comunidade Económica Europeia que não tenham gabinete nacional de seguros, ou 
 cujo gabinete não tenha aderido à Convenção Complementar entre Gabinetes 
 nacionais. 
 
 2- O Fundo de Garantia Automóvel garante, por acidente originado pelos veículos 
 referidos no número anterior, a satisfação das indemnizações por: 
 a) morte ou lesões corporais, quando o responsável seja desconhecido ou não 
 beneficie de seguro válido ou eficaz ou for declarada a falência da 
 seguradora;b) lesões materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não 
 beneficie de seguro válido ou eficaz. 
 
 3- Nos casos previstos na alínea b) do número anterior haverá uma franquia de € 
 
 299,28 a deduzir no montante a cargo do Fundo. 
 Com efeito, exigia-se, na altura do acidente, cumulativamente, para que o FGA 
 fosse responsabilizado que o veículo causador do acidente fosse: 
 
 1º: sujeito ao seguro obrigatório 
 
 2º e que fosse matriculado... 
 O motocultivador; à altura, como máquina agrícola, não estava sujeito a seguro 
 obrigatório nem a matrícula uma vez que tal situação não tinha, ainda, sido 
 regulamentada, conforme o impunha o artigo 117º nº 3 do CE, vigente à altura. 
 Com efeito, preceituava-se no art 1º do DL 522/85 de 31 de Dezembro: “Toda a 
 pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos patrimoniais 
 e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a 
 terceiros por um veículo terrestre a motor, seus reboques ou semi-reboques, 
 deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se, nos termos do 
 presente diploma, coberta por um seguro que garanta essa mesma 
 responsabilidade.” (nº 1); “A obrigação referida no número anterior não se 
 aplica aos responsáveis pela circulação de veículos de caminho de ferro, bem 
 como das máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula” (nº 2). 
 Ora, os motocultivadores circulam, frequentemente, nas vias públicas, com os 
 riscos inerentes à própria “perigosidade” de veículo desta natureza. 
 A dispensa da obrigação de celebrar seguro de responsabilidade civil (imposta à 
 generalidade dos veículos) implica uma desprotecção dos utentes da via pública 
 que sejam intervenientes em acidente de viação provocado por aqueles, uma vez 
 que se isentaria o FGA de responsabilidade pela indemnização devida aos lesados, 
 obrigando estes a accionar exclusivamente o responsável directo pelo acidente, 
 com a possibilidade da “insolvabilidade” do mesmo, o que conduziria à não 
 reparação dos danos sofridos. 
 Filipe Albuquerque Matos, in “O contrato de seguro obrigatório de 
 Responsabilidade Automóvel” (BDF 78, 2002, pág 336, nota 6), doutamente citado 
 pelo Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional nas 
 alegações que apresentou, refere o seguinte (perdoe-se-nos o plágio): “Parece 
 ter sido propósito do legislador no art. 1º, nº 1, impor a obrigatoriedade 
 sempre que estiverem em causa veículos terrestres susceptíveis, dada a sua 
 necessária e frequente utilização na via pública bem como a sua perigosidade, de 
 provocar perturbações na circulação no espaço público. Assim sendo, e no tocante 
 
 às máquinas agrícolas, que apesar de serem veículos de tracção mecânica, se 
 destinam a habitualmente circular na via pública (para, por exemplo, efectuarem 
 o transporte dos produtos agrícolas), não vemos razão para não integrar as 
 pessoas eventualmente responsáveis pelos danos causados pela sua circulação no 
 círculo de sujeitos sobre que recai a obrigação de realizar o seguro. Na 
 verdade, em relação a estas máquinas agrícolas colhem as mesmas razões 
 justificativas da obrigatoriedade do seguro subjacentes ao art 1º, nº 1 do 
 Decreto-Lei nº 522/85.”. 
 Assim, a unidade do ordenamento jurídico português e razões de justiça material 
 implicavam que tivesse sido estendida a estes veículos agrícolas que circulam na 
 via pública a obrigação de seguro. 
 Esta situação está salvaguardada, neste momento, pelo disposto no art 48º, nº 1, 
 alínea c) do Decreto Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, que responsabiliza o FGA 
 pelas obrigações decorrentes de acidentes rodoviários originados por veículos 
 cujo responsável pela circulação está isento da obrigação de seguro em razão do 
 veículo em si mesmo. 
 Portanto, e concluindo estas considerações, entendemos que a norma do art 1º nº 
 
 2 do Dec Lei nº 522/85 está ferida de inconstitucionalidade, por violação do 
 princípio da igualdade consagrado na Constituição da República Portuguesa, pelo 
 que, por arrastamento (ou efeito dominó) está também o FGA obrigado a indemnizar 
 os danos causados por veículos agrícolas que circulem na via pública. 
 O princípio constitucional da igualdade, consagrado na CRP no seu artigo 13º nº 
 
 1, é um princípio estruturante do sistema constitucional global e inerente ao 
 conceito de Estado de Direito Democrático e Social, pelo que, com base na sua 
 violação pela redacção do art supra citado, que exclui da obrigatoriedade do 
 seguro os veículos agrícolas, se nega a aplicação do regime previsto no preceito 
 citado. 
 Só esta interpretação obedece ao princípio da eliminação das desigualdades 
 fácticas, no sentido de que se atinja, sempre que possível, uma igualdade e 
 protecção reais de todos os cidadãos. 
 Entender-se o contrário seria tratar diferentemente situações facticamente 
 iguais e retirar protecção ao lesado que tivesse “a desventura” de sofrer 
 acidente de viação causado por veículo não sujeito a seguro obrigatório e a 
 matrícula. 
 Alias, podemos aqui considerar até, que o Estado Português ao não ter 
 regulamentado a situação relativa aos motocultivadores, como já o impunha o art 
 
 117º nº 3 do CE vigente à altura, cometeu omissão grave do seu dever de legislar 
 neste campo, como lhe era imposto pela Directiva 84/9/CEE do Conselho de 
 
 30-12-1983 no que toca a estas situações, pelo que até o próprio Estado pode 
 incorrer em responsabilidade.” 
 
  
 
  
 
             3. O Ministério Público interpôs recurso desta sentença para o 
 Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, 
 na medida em que “recusou aplicação aos ditames do artigo 1.º n.º 2 do 
 Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, por violação do artigo 13.º n.º 1 da 
 Constituição da República Portuguesa”.
 
  
 
             Admitido o recurso, sustentou o representante do Ministério Público 
 junto do Tribunal Constitucional o seguinte:
 
  
 
 “1.2. Neste processo, e na sequência de anterior recurso interposto pelo 
 Ministério Público, foi proferido o Acórdão nº 202/2008 que decidiu não julgar 
 inconstitucional a norma do artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de 
 Dezembro, interpretada como excluindo a responsabilidade civil do Fundo de 
 Garantia Automóvel pelos danos causados a terceiros por viatura agrícola, não 
 sujeita a matricula, e cujo proprietário está legalmente dispensado da obrigação 
 de celebrar contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel. 
 Ora, quando no âmbito desse recurso foram apresentadas as alegações, a abordagem 
 da questão da exclusão de responsabilidade civil do Fundo de Garantia Automóvel 
 foi feita na sua globalilidade, não se tendo cingido exclusivamente à análise do 
 artigo 21º, nº 1, sendo, inclusive, e por várias vezes referido o artigo 1º, nº 
 
 2. 
 Deste modo, o que então se disse é, com as inevitáveis adaptações, perfeitamente 
 transponível para os presentes autos, pelo que nos limitaremos a transcrever 
 essas alegações: 
 
 [Omitido por já reproduzido no acórdão nº 202/2008]. 
 Acresce que o próprio Tribunal Constitucional (Acórdão nº 202/2008) parece 
 apontar no sentido da inconstitucionalidade da norma objecto do recurso, quando, 
 após concluir pela não inconstitucionalidade do n 1 do artigo 21°, afirma 
 expressamente o seguinte: 
 
  “Questão diversa é a de saber se a não sujeição a matrícula do veículo causador 
 do acidente dos autos, e a sua consequente não sujeição a seguro obrigatório de 
 responsabilidade civil automóvel é constitucionalmente justificável “. 
 
 2. Conclusão 
 Nestes termos e pelo exposto, conclui-se: 
 
 1º
 A norma do nº 1, do artigo 1º, do Decreto-Lei nº 525/85, de 31 de Dezembro, na 
 medida em que não sujeita a matricula as máquinas agrícolas que podem legal e 
 livremente circular nas vias públicas, o que implica a sua não sujeição a seguro 
 obrigatório, – levando à exclusão da responsabilidade civil do Fundo de Garantia 
 Automóvel pelos danos causados a terceiros – é inconstitucional por violação do 
 princípio da igualdade (artigo 13º da Constituição). 
 
  
 
  
 
 2º
 Termos em que deverá improceder o presente recurso.” 
 
  
 Os recorridos não contra-alegaram.
 
  
 II. Fundamentação
 
  
 
 4. O acidente consistiu numa colisão entre um motociclo conduzido pelo autor, e 
 um motocultivador sem matrícula, tripulado pelo réu B.. Em resultado do embate, 
 o autor sofreu lesões corporais, bem como danos materiais.
 
  
 A sentença recorrida deu como assente que o acidente ficou a dever-se a culpa 
 exclusiva do condutor do motocultivador, que, com negligência, violou as regras 
 estradais, nomeadamente a obrigação de cedência de passagem imposta pelo artigo 
 
 31.º, n.º 1, alínea a), do Código da Estrada, então vigente.
 Tendo considerado inconstitucional a norma do artigo 1.º, n.º 2, do Decreto-Lei 
 n.º 522/85, de 31 de Dezembro, na interpretação segundo a qual a obrigação de 
 cobrir com um contrato de seguro a responsabilidade civil por danos causados a 
 terceiros por veículo terrestre a motor não se aplica às máquinas agrícolas não 
 sujeitas a matrícula mas admitidas a circular na via pública, a sentença 
 recorrida concluiu que, por arrastamento, o Fundo de Garantia Automóvel está 
 também obrigado a indemnizar pelos danos causados por tais máquinas quando 
 circulem na via pública, ao abrigo do n.º 2 do art.º 21.º do citado diploma 
 legal ( Salienta-se que no presente recurso não cabe apreciar o modo como foi 
 dada execução ao anterior julgamento de constitucionalidade, mas apenas decidir 
 a nova questão de constitucionalidade suscitada).
 
  
 
 5. O Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, entretanto substituído pelo 
 Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, disciplinava o chamado seguro 
 obrigatório de responsabilidade civil automóvel, num sistema de protecção dos 
 lesados por 
 acidentes de viação assente em dois pilares principais: 1º) a obrigação de 
 efectuar seguro de responsabilidade para que o veículo pudesse circular na via 
 pública; 2º) e a responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel quando essa 
 obrigação não fosse cumprida (o seguro inexistisse, fosse inválido ou ineficaz) 
 ou o responsável fosse desconhecido. 
 
  
 Quanto ao primeiro aspecto, dispunha o artigo 1.º deste diploma, o seguinte:
 
  
 
 “Artigo 1.º
 
   (Da obrigação de segurar)
 
 1 - Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos 
 patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais 
 causadas a terceiros por um veículo terrestre a motor, seus reboques ou 
 semi-reboques, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se, nos 
 termos do presente diploma, coberta por um seguro que garanta essa mesma 
 responsabilidade.
 
  2 - A obrigação referida no número anterior não se aplica aos responsáveis pela 
 circulação dos veículos de caminho de ferro, bem como das máquinas agrícolas não 
 sujeitas a matrícula.”
 
  
 
  
 E, quanto ao segundo, o artigo 21.º do mesmo diploma legal, inserido nas 
 disposições gerais relativas ao Fundo de Garantia Automóvel e possuindo como 
 epígrafe “Âmbito do Fundo”, dispunha no seu n.º 1, o seguinte:
 
  
 
 “1 – Compete ao Fundo de Garantia Automóvel satisfazer, nos termos do presente 
 capítulo, as indemnizações decorrentes de acidentes originados por veículos 
 sujeitos ao seguro obrigatório e que sejam matriculados em Portugal ou em países 
 terceiros em relação à Comunidade Económica Europeia que não tenham gabinete 
 nacional de seguros, ou cujo gabinete não tenha aderido à Convenção Complementar 
 entre Gabinetes Nacionais”.
 
  
 
             O veículo cujo condutor e proprietário a sentença considerou 
 responsável pelo acidente era um motocultivador, espécie de veículo agrícola que 
 o n.º 3 do artigo 108.º do Código da Estrada (ao tempo do acidente, na versão 
 resultante do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro) definia como 'o veículo com 
 motor de propulsão, de um só eixo, destinado à execução de trabalhos agrícolas 
 ligeiros, que pode ser dirigido por um condutor a pé ou em semi-reboque ou 
 retrotrem atrelado ao referido veículo”.
 
 À obrigatoriedade de matrícula deste tipo de veículo se referia o artigo 117.º, 
 n.º 3, do Código da Estrada que estatuía o seguinte:
 
  
 
 “3 - Os casos em que as máquinas agrícolas e industriais, os motocultivadores e 
 os tractocarros estão sujeitos a matrícula são fixados em regulamento” (itálico 
 acrescentado).”
 
  
 Este regulamento não chegou a ser publicado, pelo que nada foi determinado 
 quanto à necessidade de as máquinas agrícolas (lato sensu), incluindo os 
 motocultivadores, ficarem sujeitas a matrícula para serem admitidos à circulação 
 na via pública.
 
  
 Deste modo, face à excepção constante do citado artigo 1.º, n.º 2, do 
 Decreto‑Lei n.º 522/85, os motocultivadores poderiam circular na via pública, 
 ainda que o respectivo proprietário não tivesse coberto por um contrato de 
 seguro a responsabilidade civil por danos que pudessem resultar para terceiros 
 de acidentes em que o veículo estivesse envolvido. Com a consequência de, por 
 efeito do já mencionado artigo 21.º, n.º 1, do mesmo diploma, as indemnizações 
 por acidentes causados por esse tipo de veículos não se encontrarem garantidas 
 pelo Fundo de Garantia Automóvel, que, como se viu, apenas está obrigado a 
 satisfazer as «indemnizações decorrentes de acidentes originados por veículos 
 sujeitos ao seguro obrigatório».
 
  
 
 6. Convirá começar por lembrar o enquadramento histórico da solução legislativa 
 em presença, repetindo o que se disse no acórdão n.º 202/2008.
 
  
 O Decreto-Lei n.º 408/79, de 25 de Setembro, que instituiu o seguro obrigatório 
 de responsabilidade civil automóvel, determinou no seu artigo 20º que «[o]s 
 direitos dos lesados por acidentes ocorridos com veículos sujeitos ao seguro 
 obrigatório poderão ser efectivados, nos termos que legalmente vierem a ser 
 estabelecidos, contra o fundo de garantia automóvel, a instituir no âmbito do 
 Instituto Nacional de Seguros, nos seguintes casos: a) quando o responsável seja 
 desconhecido ou não beneficie de seguro válido ou eficaz; b) quando for 
 declarada a falência do segurador».
 
  
 O Fundo de Garantia Automóvel – reconhecendo-se ter constituído um contributo 
 importante no sentido da socialização do risco (cfr. Filipe Albuquerque Matos, 
 ob. cit., pág. 361) – foi instituído pelo Decreto Regulamentar n.º 58/79, de 25 
 de Setembro, que, nos termos do artigo 2.º, n.º 2, lhe atribuiu a competência 
 para «satisfazer as indemnizações de morte ou lesões corporais consequentes de 
 acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório, nos casos 
 previstos no artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 408/79».
 
  
 Nem todos os danos se encontravam, no entanto, cobertos pelo Fundo de Garantia: 
 para além das limitações inerentes ao âmbito objectivo de protecção 
 
 (indemnizações por morte ou lesões corporais em acidentes em que fossem 
 intervenientes veículos sujeitos ao seguro obrigatório), o diploma também previa 
 a existência de certos limites às indemnizações a satisfazer pelo Fundo (artigo 
 
 2.º, n.º 3); estipulava diversas exclusões, como, por exemplo, a referente ao 
 condutor do veículo titular da apólice e aos danos causados às pessoas dos 
 autores, cúmplices e encobridores de roubo, furto ou furto de uso de qualquer 
 veículo que intervenha no acidente (artigo 3º); e determinava que só 
 aproveitavam do benefício do Fundo os lesados por acidentes ocorridos em 
 Portugal (artigo 4.º).
 
  
 
             À delimitação do âmbito de protecção do Fundo (circunscrito como 
 estava aos acidentes provocados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório) não 
 será alheio o próprio regime de financiamento, sabendo-se que constituía receita 
 do Fundo «o montante, a liquidar por cada seguradora, resultante da aplicação de 
 uma percentagem sobre os prémios simples (líquidos de adicionais) de seguros 
 directos automóvel processados no ano anterior, líquidos de estornos e 
 anulações», para o que ficavam «as seguradoras autorizadas a cobrar dos seus 
 segurados do ramo “Automóvel” um adicional, calculado sobre os prémios simples 
 
 (líquidos de adicionais) […]» (artigo 6.º, n.º s 1 e 4). E só em situações 
 excepcionais, devidamente comprovadas, o Estado podia assegurar uma dotação 
 correspondente ao montante dos encargos que excedessem as receitas previstas do 
 Fundo” (n.º 5 do mesmo artigo).
 
  
 
             A articulação do funcionamento do Fundo de Garantia Automóvel com a 
 actividade seguradora era também revelada pelo estabelecido no artigo 7.º, n.º 
 
 1, do Decreto Regulamentar n.º 58/79, de 25 de Setembro, que habilitava o Fundo 
 a solver eventuais compromissos superiores às suas disponibilidades de 
 tesouraria mediante o recurso às seguradoras, permitindo-lhe arrecadar até ao 
 limite de 0,25% da carteira de prémios de seguro directo automóvel processados 
 no ano anterior.
 
  
 
             O regime jurídico Fundo de Garantia Automóvel viria a ser alterado 
 pelo Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro – o diploma que agora está 
 particularmente em foco –, que, através do seu artigo 40º, revogou os 
 mencionados Decreto-Lei n.º 408/79 e Decreto Regulamentar n.º 58/79, de 25 de 
 Setembro.
 
             O Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, procedeu ao alargamento 
 do âmbito de responsabilidade civil do Fundo, passando a assegurar também o 
 ressarcimento de danos materiais em relação a acidentes em que o responsável, 
 sendo conhecido, não seja portador de seguro válido e eficaz (cfr. o preâmbulo 
 do diploma e o seu artigo 21.º, n.º 2, alínea b)).
 
  
 
             Já depois do acidente em causa, mediante o Decreto-Lei n.º 291/2007, 
 de 21 de Agosto, o legislador aproveitou o ensejo proporcionado pela necessidade 
 de transposição da Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do 
 Conselho, de 11 de Maio, que altera as Directivas n.ºs 72/166/CEE, 84/5/CEE, 
 
 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Directiva n.º 2000/26/CE, relativas ao 
 seguro de responsabilidade resultante da circulação de veículos automóveis (a 
 chamada “5ª Directiva sobre o Seguro Automóvel”) para proceder à actualização do 
 regime de protecção dos lesados por acidentes de viação baseado neste seguro.
 
  
 
             Merece referência o facto de o novo regime manter a exclusão da 
 obrigatoriedade do seguro quanto às máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula 
 
 (artigo 4.º, n.º 2). Mas sobretudo importa destacar que o diploma instituiu, no 
 seu artigo 48.º, n.º 1, alínea c), a regra segundo a qual o Fundo de Garantia 
 Automóvel satisfaz as indemnizações decorrentes de acidentes rodoviários 
 ocorridos em Portugal e originados «[p]or veículo cujo responsável pela 
 circulação está isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo 
 
 […]». Essa é uma solução centrada no aumento de protecção dos lesados, que é 
 acompanhada de outras medidas de reforço da responsabilização do Fundo, como 
 seja a extensão da cobertura dos danos materiais nos sinistros causados por 
 responsável desconhecido ou quando tenha o veículo causador do acidente sido 
 abandonado no local do acidente (artigo 49.º, alínea c)), e que se integra num 
 mais amplo conjunto de alterações justificadas pela necessidade da transposição 
 da Directiva n.º 2005/14/CE (cfr. preâmbulo do diploma).
 
  
 
             7. No acórdão n.º 202/2008, o Tribunal decidiu não julgar 
 inconstitucional a norma do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 
 de Dezembro, interpretada como excluindo a responsabilidade civil do Fundo de 
 Garantia Automóvel pelos danos causados a terceiros por viatura agrícola não 
 sujeita a matrícula, cujo proprietário está legalmente dispensado da obrigação 
 de celebrar contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel. Na 
 delimitação do objecto do recurso o Tribunal sublinhou que não estava em causa a 
 norma que dispensa o proprietário de máquinas deste tipo da celebração de 
 contrato de seguro para poder circular na via pública.
 Agora, a norma que constitui objecto do recurso de constitucionalidade passou a 
 ser essa mesmo que o Tribunal expressamente salientara estar excluída do âmbito 
 do recurso anterior: a norma do n.º 2 do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 522/85, na 
 medida em que excepciona as máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula da 
 obrigação de segurar.
 Mais propriamente, considerando a natureza instrumental do recurso de 
 constitucionalidade e que existem diversos tipos de máquinas agrícolas, 
 susceptíveis de diferir entre si na aptidão para circular na via pública e na 
 frequência com que aí são habitualmente utilizadas, a questão que agora se 
 coloca é a de saber se é constitucionalmente conforme a própria dispensa da 
 obrigação de celebrar contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel em 
 relação a motocultivadores com atrelado. Note-se que o isolamento deste segmento 
 normativo ideal para efeito da delimitação do recurso se justifica também 
 sistematicamente pelo facto de no Código da Estrada, dentro da classe dos 
 veículos agrícolas, os motocultivadores serem objecto de normação específica.
 
   
 
             Sublinhe-se que é a dispensa objectiva da obrigação de segurar a 
 responsabilidade civil emergente de acidentes de circulação em que o veículo 
 esteja envolvido e não o facto de a máquina não estar sujeita a matrícula que 
 fundamentalmente interessa à questão de constitucionalidade. A matrícula (ou a 
 sua não exigência) é apenas o pressuposto ou o elemento que a lei utiliza para 
 delimitar no conjunto das máquinas agrícolas ou industriais aquelas cujo 
 proprietário está obrigado ao seguro (matrícula -> obrigação de seguro -> 
 responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel). Mas o nó do problema de 
 constitucionalidade agora colocado, a deficiência ou a desigualdade de protecção 
 dos lesados em acidentes de viação que envolvam máquinas nesta situação, é a 
 falta do pilar de socialização do risco que o seguro obrigatório constitui.
 
  
 
             8. Importa, portanto, saber se a exclusão da obrigação de cobrir por 
 contrato de seguro a responsabilidade que possa advir da circulação na via 
 pública de motocultivadores com atrelado viola o princípio da igualdade, o que 
 implica que se averigue se essa exclusão da obrigação de segurar poderá ser 
 entendida como medida razoável, racional ou objectivamente fundada.
 
  
 
             Como logo se salientou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 
 
 750/95 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt):
 
  
 
        «O princípio da igualdade reconduz-se […] a uma proibição de arbítrio 
 sendo inadmissíveis quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação 
 razoável, de acordo com critérios de valor objectivos, constitucionalmente 
 relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente 
 desiguais.
 A proibição de arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação 
 ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como 
 princípio negativo de controle.
 Mas existe, sem dúvida, violação do princípio da igualdade enquanto proibição de 
 arbítrio, quando os limites externos da discricionariedade legislativa são 
 afrontados por ausência de adequado suporte material para a medida legislativa 
 adoptada.
 Por outro lado, as medidas de diferenciação hão-de ser materialmente fundadas 
 sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da 
 solidariedade, não devendo basear-se em qualquer razão constitucionalmente 
 imprópria (cfr. sobre a matéria, por todos, os Acórdãos do Tribunal 
 Constitucional n.os 44/84, 425/87, 39/88 e 231/94, Diário da República, II 
 Série, de, respectivamente, 11 de Junho de 1984 e 5 de Janeiro de 1988, e I 
 Série, de, respectivamente, 3 de Março de 1988 e 28 de Abril de 1994, e ainda 
 Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 
 
 1993, pp. 127 e segs; Jorge Miranda, «O regime dos direitos, liberdades e 
 garantias», Estudos sobre a Constituição, vol. iii, pp. 50 e segs., e Manual de 
 Direito Constitucional, tomo iv, Coimbra, 1993, p. 219; Maria da Glória Ferreira 
 Pinto, «Princípio da Igualdade — Fórmula Vazia ou Fórmula Consagrada de 
 Sentido?», Separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 358, Lisboa, 1987; 
 Lívio Paladin, Il Princípio costituzionale d’equaglianza, Milão, 1965).»
 
              
 Nesta ordem de considerações tem-se entendido que a vinculação jurídico‑material 
 do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação 
 legislativa, pertencendo-lhe, dentro dos limites constitucionais, definir ou 
 qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar 
 como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente.
 E, assim, aos tribunais, na apreciação daquele princípio, não compete 
 verdadeiramente «substituírem-se» ao legislador, ponderando a situação como se 
 estivessem no lugar dele e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a 
 solução «razoável», «justa» e «oportuna» (do que seria a solução ideal do caso); 
 compete-lhes, sim «afastar aquelas soluções legais de todo o ponto 
 insusceptíveis de se credenciarem racionalmente» (acórdão da Comissão 
 Constitucional, n.º 458, Apêndice ao Diário da República, de 23 de Agosto de 
 
 1983, pág. 120, também citado no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 750/95, 
 que vimos acompanhando).
 
 À luz das considerações precedentes pode dizer-se que a caracterização de uma 
 medida legislativa como inconstitucional, por ofensiva do princípio da igualdade 
 dependerá, em última análise, da ausência de fundamento material suficiente, 
 isto é, de falta de razoabilidade e consonância com o sistema jurídico (nestes 
 precisos termos o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 370/2007 (disponível no 
 mesmo sítio).
 
  
 
             Vejamos, então, se a norma em causa passa este teste.
 
  
 
             9. O princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da 
 Constituição, tem ínsito um princípio jurídico fundamental, historicamente 
 objectivado e claramente enraizado na consciência jurídica geral segundo o qual 
 todo e qualquer autor de acto ilícito gerador de danos para terceiros se 
 constitui na obrigação de ressarcir o prejuízo que causou (Maria Lúcia Amaral, 
 Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador, pág. 442). E o 
 lesado tem o direito correspondente, a exercer contra o autor do facto lesivo ou 
 contra aquele a quem a responsabilidade seja juridicamente imputável.
 Porém, em muitos casos, este direito à reparação dos danos depara-se com uma 
 inultrapassável dificuldade de concretização prática: a inexistência de 
 património do obrigado à reparação susceptível de execução. É, por isso, 
 frequente que o legislador institua o dever de cobrir com um seguro de 
 responsabilidade civil a obrigação de indemnizar que possa estar ligada ao 
 exercício de determinadas actividades potencialmente geradoras de danos para 
 terceiros de modo a que, verificado o evento que obriga à reparação, os lesados 
 possam ter perante si uma entidade cuja solvabilidade esteja, em princípio, 
 garantida (a seguradora) e não (ou não apenas) o lesante cujos acasos de fortuna 
 podem esvaziar de conteúdo prático o direito à indemnização.
 
  
 O seguro automóvel obrigatório é precisamente um destes institutos. As regras 
 gerais da responsabilidade civil tornaram-se inidóneas para dar resposta, 
 prática, equitativa e economicamente equilibrada, ao problema da reparação dos 
 danos emergentes de acidentes de viação. Sendo a circulação rodoviária uma das 
 actividades em cujo desenvolvimento mais frequentemente ocorrem acidentes 
 susceptíveis de causar danos pessoais ou patrimoniais a terceiros, ao 
 estabelecer a obrigação de cobrir a responsabilidade civil emergente da 
 circulação de veículos, não deixando a sua sorte ao acaso da previdência dos 
 responsáveis, o legislador protege de modo genérico as potenciais vítimas e 
 futuros titulares do direito à reparação. Protecção que se não resume à mera 
 instituição legal da obrigação de segurar, mas que é reforçada através dos 
 instrumentos destinados a tornar efectivo o cumprimento dessa obrigação, 
 designadamente a acção de fiscalização a cargo das autoridades de fiscalização 
 do trânsito e as correspondentes sanções e medidas cautelares quando o dever é 
 infringido. E que é rematada com a colectivização ou socialização do risco que 
 se obtém mediante a intervenção substitutiva do Fundo de Garantia Automóvel, 
 quando falhe ou não possa funcionar a protecção através do contrato de seguro 
 
 (Reduzimos a atenção ao essencial. A protecção dos lesados envolve outros 
 aspectos, tais como a “acção directa” contra a seguradora ou o “fundo de 
 garantia”, a inoponibilidade de excepções ou cláusulas limitadoras de 
 responsabilidadade e a instituição de meios céleres de composição ou de 
 efectivação do direito à indemnização).
 
  
 
             Ora, como se refere nas alegações do Ministério Público e na 
 sentença recorrida, embora primacialmente destinadas a trabalhos agrícolas, as 
 máquinas do tipo que originou o acidente a que a acção se reporta circulam 
 frequentemente e sem restrições na via pública, a caminho dos locais onde essa 
 actividade se desenvolve ou, até, como meio de transporte de cargas ou produtos 
 agrícolas, constituindo-se em gravosos obstáculos à segurança e fluidez do 
 tráfego, podendo gerar acidentes com lesões graves e danos avultados, como o 
 caso demonstra. Não será assim quando o motocultivador é conduzido a pé pelo seu 
 manobrador, situação que a lei equipara ao trânsito de peões (artigo 104.º, 
 alínea e) do actual Código da Estrada). Mas já o é quando o veículo é ligado a 
 semi‑reboque ou retrotrem, composição que a lei faz equivaler, para efeitos de 
 circulação, a tractor agrícola (cf. artigo 108.º, n.º 4, do mesmo Código). Assim 
 utilizada, a máquina torna-se, pelas suas características intrínsecas de veículo 
 motorizado e pelas contingências de quem a conduz, potencialmente geradora de 
 danos para terceiros que tem um direito igual à utilização da via pública.
 Nestas condições a dispensa da obrigação de celebrar contrato de seguro para que 
 tais máquinas possam circular na via pública deixa os lesados por acidentes 
 decorrentes da utilização desses veículos sem a protecção jurídica que o 
 legislador entendeu conceder aos restantes lesados por acidentes de viação 
 contra as insuficiências de fortuna do lesante. 
 E deixa-os sem essa protecção perante situações que em tudo correspondem, seja 
 pela potencialidade de risco de o veículo ser gerador de acidentes, seja de 
 possibilidade de insuficiência económica do responsável para fazer face à 
 obrigação de indemnizar, àquelas que são cobertas pelo regime do seguro 
 obrigatório ao abrigo da regra geral do n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 
 
 522/85. O factor escolhido para afastar a sujeição ao seguro obrigatório – não 
 estar o veículo sujeito a matrícula – é estranho à aptidão do veículo para 
 causar danos inerentes à circulação da via pública ou ao risco de o direito à 
 indemnização não ter efectivação prática por insuficiência do património do 
 responsável, pelo que tem de haver-se a excepção por arbitrária e a norma em 
 causa como violadora do princípio da igualdade consagrado no n.º 1 do artigo 
 
 13.º da Constituição. 
 E, embora a matrícula do veículo desempenhe, para vários fins, um papel 
 fundamental na configuração do regime jurídico do seguro obrigatório (no direito 
 nacional e da União Europeia), não pode sequer invocar-se uma dificuldade 
 prática insuperável ou uma ligação indissolúvel entre as duas realidades (o 
 seguro e a matrícula) porque sempre é possível eleger outro sinal identificador 
 que viabilize a celebração do contrato e a individualização da responsabilidade.
 
             
 
             9. Não se ignora que esta dispensa da obrigação de celebrar contrato 
 de seguro de responsabilidade civil surgiu no Decreto-Lei n.º 165/75, de 28 de 
 Março em cujo preâmbulo se dizia que “…a sujeição ao seguro das máquinas e 
 tractores para serviço na agricultura iria onerar gravemente esta actividade 
 económica”. A ressalva passou para o Decreto-Lei n.º 408/79, de 25 de Setembro e 
 a razão de ser dela veio a ser reafirmada no texto do preâmbulo do Decreto-Lei 
 n.º 110/80 (que alterou o Decreto-Lei n.º 408/79) onde se alude à agricultura, 
 como um sector produtivo de grande relevância, cujo desenvolvimento deve 
 considerar-se prioritário, e, por isso, se passou a ressalvar também os 
 reboques, semi-reboques e atrelados “quando destinados exclusivamente a fins 
 agrícolas”.
 Estas razões poderiam legitimar uma solução como a que actualmente consta do 
 Decreto-Lei n.º 291/2007, em que o facto de a admissão do veículo à circulação 
 na via pública não estar dependente da celebração de contrato de seguro 
 obrigatório não exclui a protecção que resulta da possibilidade concedida ao 
 lesado de chamar o Fundo de Garantia Automóvel a satisfazer a indemnização 
 
 (artigo 48.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 291/2007). Mas, o factor de 
 comparação é o âmbito de protecção concedido aos lesados por acidentes gerados 
 na via pública pela utilização desse tipo de veículos por confronto com outras 
 vítimas de acidentes de viação e, nesta perspectiva, a medida legislativa é 
 desproprocionada no âmbito global do regime do DL 522/85, onde tem como 
 consequência que o lesado também perde, por essa mesma razão, a acção contra o 
 Fundo.          
 
  
 
             III. Decisão
 
  
 Nestes termos, decide-se:
 a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da igualdade consagrado no 
 n.º 1 do artigo 13.º da Constituição, a norma do n.º 2 do artigo 1.º do 
 Decreto-Lei 522/85, quando interpretada no sentido de a circulação na via 
 pública de motocultivadores com atrelado não estar dependente da celebração do 
 contrato de seguro obrigatório previsto no n.º 1 do mesmo preceito legal;
 b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
 c) Sem custas.
 Lx. 27/5/2009
 Vítor Gomes
 Ana Maria Guerra Martins
 Maria Lúcia Amaral
 Carlos Fernandes Cadilha (vencido de acordo com a declaração
 em anexo)
 Gil Galvão (vencido conforme declaração junta)
 
  
 
  
 
  
 
  
 
  
 DECLARAÇÃO DE VOTO
 
  
 
  
 Votei vencido pelas considerações a seguir sucintamente expostas.
 
  
 A norma do artigo 1º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, ao 
 isentar de seguro obrigatório as «máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula» 
 contém uma implícita remissão para o artigo 117º, n.º 3, do Código da Estrada, 
 onde se estabelece o regime de obrigatoriedade de matrícula nos seguintes 
 termos: «[o]s casos em que as máquinas agrícolas e industriais, os 
 motocultivadores e os tractocarros estão sujeitos a matrícula são fixados em 
 regulamento».
 
  
 O preceito não contém, em si, um critério normativo arbitrário, e tem antes como 
 pressuposto que a dispensa da obrigação de segurar apenas opera em relação a 
 máquinas agrícolas que não circulem na via pública ou não representem um 
 potencial risco para a circulação, e que, por isso, se encontrem isentas de 
 matrícula.
 
  
 Neste contexto, a possível violação do princípio da igualdade, por diferenciação 
 de tratamento sem justificação razoável, apenas poderia incidir sobre os 
 dispositivos regulamentares que, em execução do disposto no artigo 117º, n.º 3, 
 do Código da Estrada, viessem afastar a exigência de matrícula (e, por via 
 disso, a obrigação de segurar) em relação a máquinas que possuíssem normal 
 aptidão para produzir danos em terceiros em resultado da sua circulação na via 
 pública.
 
  
 Na própria lógica do acórdão, a violação da proibição do arbítrio decorre de o 
 legislador ter deixado sem protecção jurídica os lesados por acidentes de viação 
 causados por máquinas não sujeitas a matrícula, quando estas, por circularem na 
 via pública, possam potenciar um risco de lesão em igual medida à de qualquer 
 outro veículo matriculado. A questão é que, no preceito em causa, o legislador 
 se limitou a utilizar uma técnica legislativa de remissão intra-sistemática (que 
 permite caracterizar o artigo 1º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 522/85 como uma 
 norma indirecta), de tal modo o défice de constitucionalidade que possa existir 
 não é directamente imputável à própria norma remissiva, mas tão só, se for caso 
 disso, à norma ad quam, isto é, à estatuição para que tenha sido reenviada a 
 solução normativa do caso.
 
  
 O factor escolhido pelo artigo 1º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 522/85 – não 
 sujeição a matrícula -  não comporta, em si, uma qualquer diferenciação entre 
 situações que devam merecer um tratamento igualitário. Essa eventualidade apenas 
 ocorreria caso a densificação do regime de obrigatoriedade de matrícula (a 
 efectuar por norma contida noutro diploma legal) viesse a consagrar soluções 
 jurídicas divergentes para veículos que pudessem potenciar, em iguais 
 circunstâncias, o risco de acidente e de produção de danos indemnizáveis.
 
  
 E sublinhe-se que a invocação da remissão feita na referida norma para o direito 
 estradal, não implica uma qualquer alteração do objecto do recurso. A questão de 
 constitucionalidade não deixa de ser reportada à dispensa de obrigação de 
 segurar que resulta do estabelecido no artigo 1º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 
 
 522/85. O ponto é que, como se esclareceu, esta norma não contém um programa 
 legislativo completo, e antes pretende concretizar o regime jurídico de não 
 sujeição a seguro por remissão para um outro diploma legislativo que há-de 
 definir as situações em que é obrigatória a matrícula para que os veículos a 
 motor e os seus reboques sejam admitidos em circulação.
 
  
 Por outro lado, nada permite concluir, no caso concreto, pela violação do 
 princípio da responsabilidade patrimonial, que se extrai do princípio de Estado 
 de Direito consagrado no artigo 2º da Constituição. Na verdade, a situação de 
 indefinição relativamente à obrigação de segurar (e consequente intervenção do 
 Fundo de Garantia Automóvel) no tocante a máquinas agrícolas que possam circular 
 na via pública, como é o caso dos motocultivadores, deve-se à inércia 
 regulamentar do Estado, que não deu ainda execução ao comando contido no artigo 
 
 117º, n.º 3, do Código da Estrada. Por conseguinte, o dever indemnizatório é 
 imputável, em última instância, à ilegalidade decorrente da omissão 
 regulamentar.
 
  
 Carlos Alberto Fernandes Cadilha
 
  
 
  
 DECLARAÇÃO DE VOTO
 
  
 Votei vencido quanto à decisão, no essencial, por duas ordens de razões: em 
 primeiro lugar, por considerar que, não postulando a Constituição, 
 necessariamente, a existência de um seguro obrigatório para todos os veículos 
 que circulem na via pública, não me parecer possível considerar inconstitucional 
 uma norma apenas por não fazer depender a «circulação na via pública de 
 motocultivadores com atrelado» da celebração do contrato de seguro obrigatório; 
 por outro, por considerar que, havendo boas razões para excluir esses 
 motocultivadores do referido seguro obrigatório - como, aliás, sucede com o 
 regime actualmente em vigor -, não se me afigurar arbitrária, e consequentemente 
 violadora do princípio da igualdade, a não sujeição de tais motocultivadores ao 
 mencionado seguro.
 
    Gil Galvão