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Processo 647/08
 
 3ª Secção
 Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
 
  
 Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional 
 
  
 I – RELATÓRIO
 
  
 
 1. Nos presentes autos, foi interposto recurso pelo Ministério Público, com 
 natureza obrigatória, ao abrigo do artigo 280º, n.º 1, alínea a), e n.º 3 da CRP 
 e dos artigos 70º, n.º 1, alínea a), e 72º, n.º 3, ambos da LTC, da sentença do 
 
 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Esposende, proferida em 27 de Maio 
 de 2008 (fls. 40 a 47) que determinou a desaplicação da norma extraída a partir 
 da conjugação do artigo 348º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e dos artigos 
 
 152º, n.º 3 e 153º, n.º 8, ambos do Código da Estrada, de acordo com a redacção 
 fixada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, com fundamento na sua 
 inconstitucionalidade orgânica, por versar sobre matéria da competência 
 legislativa reservada da Assembleia da República, sem que o Governo estivesse 
 dotado da necessária autorização legislativa, bem como na sua 
 inconstitucionalidade material, por violação do princípio da proporcionalidade e 
 da restrição mínima da liberdade pessoal, previsto no n.º 2 do artigo 18º da 
 Constituição da República Portuguesa.
 
  
 
 2. Notificado para tal pela Relatora, o recorrente produziu alegações, das quais 
 constam as seguintes conclusões:
 
  
 
 «1. Como na versão do Código da Estrada saída da alteração legislativa 
 introduzida pelo Decreto-Lei nº 265-A/2001, de 28 de Setembro, a conduta do 
 recorrente já era punível como crime de desobediência, as alterações 
 introduzidas naquele Código pelo Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro, 
 nada inovaram.
 
 2. Por isso, as normas dos artigos 152º, nº 3 e 153º, nº 8, do Código da 
 Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 44/2005, em conjugação com o 
 artigo 348º, nº 1, alínea a) do Código Penal, na interpretação segundo a qual 
 constitui crime de desobediência a recusa injustificada a ser-se submetido a 
 colheita de sangue para análise, nos casos em que, para apurar a taxa de 
 alcoolemia de condutor de veículo automóvel, não for possível a realização de 
 prova por pesquisa no ar expirado, não são organicamente inconstitucionais.
 
 3. A norma também não é materialmente inconstitucional, não violando qualquer 
 princípio ou preceito constitucional, designadamente os artigos 18º, nº 2, e 
 
 32º, nº 8, da Constituição.
 
 4. Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com o 
 julgamento de não inconstitucionalidade da norma desaplicada na sentença 
 recorrida.» (fls. 67 e 68)
 
  
 
 4. Notificado para tal, o recorrido contra-alegou, podendo extrair-se as 
 seguintes conclusões:
 
  
 
 “1.      O recorrido foi julgado pela prática de um crime de desobediência por 
 ter recusado submeter-se a colheita de sangue para avaliar o estado de 
 influenciado pelo álcool, e, veio a ser absolvido pelo facto de o Ex.mo Senhor 
 juiz a quo ter entendido que as disposições conjugadas dos artigos 348° n.º 1, 
 alínea a) do Código Penal por referência aos artigos 152º nº 3 e 153º nº 8 do 
 Código da Estrada, violam a Reserva Relativa da Assembleia da República sendo 
 por isso, organicamente inconstitucionais. 
 
  
 
 2.         Além disso, as normas em questão violam também o principio da 
 proporcionalidade, previsto no artigo 18° n.º 2 da Constituição da República 
 Portuguesa e ainda o artigo 32° n.º 8, também da CRP, pois a recolha de prova 
 para procedimento criminal mediante colheita de sangue é ofensiva do direito à 
 integridade física do recorrido, na medida em que o mesmo não autorizou essa 
 colheita e vai, por isso, ser sancionado criminalmente. 
 
  
 
 3.         De facto, o entendimento do recorrido vai também nesse sentido, 
 aliás, nem poderia o entendimento ser outro. 
 
  
 
 4.         Senão vejamos, 
 
  
 
 5.         Quanto à inconstitucionalidade orgânica referida, convém referir que 
 a criminalização da recusa a submissão a provas para detecção do estado de 
 influenciado pelo álcool remonta ao Dec. Lei 2/98 de 3 de Janeiro que introduziu 
 alterações ao Código da estrada. 
 
  
 
 6.         O Dec. Lei 2/98 foi precedido de Lei de Autorização (Lei 97/97 de 23 
 de Agosto) que concedeu autorização ao Governo para proceder à alteração do 
 Código da Estrada. 
 
  
 
 7.         Porém, necessário se torna referir que a criminalização da recusa 
 efectivada pelo Dec. Lei 2/98 não abrangeu o exame por colheita de sangue, ou 
 seja, a recusa apenas constituía crime de desobediência nos casos em que o 
 examinado se recusasse a realizar os exames por ar expirado ou o exame médico, 
 pois para o exame por colheita de sangue era necessário o consentimento do 
 examinado. 
 
  
 
 8.         Referia o artigo 158º nº 3 à altura o seguinte, “Quem recusar 
 submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado 
 pelo álcool ou por substâncias legalmente consideradas como estupefacientes ou 
 psicotrópicas, para as quais não seja necessário o seu consentimento nos termos 
 dos nºs 2 e 3 do artigo 159º, é punido por desobediência”. 
 
  
 
 9.         Compulsado o artigo 59°, à data a que nos estamos a reportar, 
 conclui-se que o exame por análise de sangue não era obrigatório, pois apenas 
 era realizado para efeito de contraprova e a requerimento do examinado, sendo 
 que por isso a recusa de fazer exame de sangue não constituía crime de 
 desobediência. 
 
  
 
 10.       As únicas provas de detecção do estado de influenciado pelo álcool 
 obrigatórias, eram o exame por ar expirado e o exame médico. 
 
  
 
 11.       O Código da Estrada foi entretanto novamente alterado pelo Decreto-Lei 
 n 265 – A/2001, de 28 de Setembro. 
 
  
 
 12.       Esta alteração não foi precedida de qualquer lei de autorização.
 
 13.       O artigo 158º n.º 3 do Código da Estrada passa então a referir o 
 seguinte: “quem recusar submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do 
 estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias legalmente consideradas 
 como estupefacientes ou psicotrópicas é punido por desobediência.” 
 
  
 
 14.       Parece que desta última alteração podemos retirar uma criminalização 
 da recusa à submissão a colheita de sangue para avaliação do estado de 
 influenciado pelo álcool. 
 
  
 
 15.       No entanto, da análise do artigo 159º n.º 7 do C.E. concluímos que o 
 exame por colheita de sangue continua a funcionar como contraprova, e a 
 requerimento do examinado. 
 
  
 
 16.       Logo não podemos concluir que quando o examinado, tendo-se submetido a 
 pesquisa de álcool no ar expirado, se recusar a ser submetido a colheita de 
 sangue para análise, o mesmo perpetre o crime de desobediência previsto no 
 artigo 348° n.º 1, alínea a) do Código Penal. 
 
  
 
 17.       Até porque, o artigo 159° n.º 7 do Código da Estrada confere ao 
 examinado a possibilidade de recusa de submissão a colheita de sangue para 
 análise. 
 
  
 
 18.       Posteriormente, deparamo-nos ainda com a a1teração do DL 44/2005 de 23 
 de Fevereiro. 
 
  
 
 19.       Esta alteração, foi, por sua vez, autorizada pela Lei 53/2004 de 4 de 
 Novembro. 
 
  
 
 20.       Desde já se refere que a mencionada lei de autorização não contempla 
 qualquer tipo de criminalização da conduta do examinado que recuse submeter-se a 
 colheita de sangue para ava1iação do estado de influenciado pelo álcool. 
 
  
 
 21.       Desta última alteração ao código da Estrada, não resulta qualquer 
 alteração ao artigo 158º nº 2 (cuja previsão passa agora para o artigo 152° n. 3 
 do C. E.). 
 
  
 
 22.       Porém, o artigo 159° nº 7, foi alterado e transposto para o actual 
 
 153º n.º 8 do C.E., passando então a referir o seguinte: “Se não for possível a 
 realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, o examinado deve ser 
 submetido a colheita de sangue para análise ou, se esta não for possível por 
 razões médicas, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento oficial de 
 saúde, para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.” 
 
  
 
 23.       Da leitura da norma referida, retira-se que a alteração que o DL. 
 
 44/2005, de 23 de Fevereiro fez ao Código da Estrada, e concretamente ao actual 
 artigo 153º nº 8, criminalizou efectivamente e pela primeira vez, a recusa da 
 realização de colheita de sangue. 
 
  
 
 24.       Não podemos, no entanto, esquecer que esta última alteração ao Código 
 da Estrada, tendo sido precedida de Lei de autorização (Lei 53/2004 de 4 de 
 Novembro), essa Lei de Autorização não contempla uma criminalização da recusa de 
 submissão a colheita de sangue para avaliação do estado de influenciado pelo 
 
 álcool. 
 
  
 
 25.       E, assim sendo, deparamo-nos com uma violação da Reserva Relativa de 
 Competência da Assembleia da República, concretamente do artigo 165º n.º 1, 
 alínea c) da Constituição da República Portuguesa. 
 
  
 
 26.       Em consequência da violação da reserva relativa de competência da 
 Assembleia da República, verifica-se inconstitucionalidade orgânica dos artigos 
 
 348° n.º 1, alínea a) do Código Penal, bem como dos artigos 152 nº 3 e 153° n.º 
 
 8 do Código da Estrada. 
 
  
 
 27.       Por outro lado, e no que respeita à inconstitucionalidade material do 
 artigos 152° nº3 e 153° nº 8 do Código da Estrada, diremos o seguinte. 
 
  
 
 28.       A criminalização da recusa à submissão a colheita de sangue para fazer 
 despiste do estado de influenciado pelo álcool, constitui uma ilegítima violação 
 do direito a integridade física do recorrido. 
 
  
 
 29.       Desde logo, porque o exame por colheita de sangue pressupõe, sempre, a 
 introdução no corpo do recorrido, contra a sua vontade, de uma agulha. 
 
  
 
 30.       E duvidas não se terão, de que o espetar de uma agulha no corpo de uma 
 determinada pessoa, contra a sua vontade constitui uma manifesta ofensa ao seu 
 direito à integridade física. 
 
  
 
 31.       O direito à integridade física das pessoas, como direito fundamental 
 que é, encontra-se consagrado na Constituição da República Portuguesa, no artigo 
 
 25°, referindo o nº 1 que a integridade física das pessoas é inviolável, 
 
  
 
 32.       Esta violação ilegítima do direito à integridade física do recorrido, 
 não pode ser tolerada até porque a mesma não é justificada face aos valores aqui 
 em ponderação. 
 
  
 
 33.       O artigo 18º nº2 refere o critério a ter em conta em casos em que 
 surja a necessidade de restrição de direitos fundamentais, dispondo o seguinte: 
 
 “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos 
 expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao 
 necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente 
 protegidos”. 
 
  
 
 34.       Assim, esta ofensa à integridade física do recorrente através da 
 introdução no seu corpo de uma agulha, sem o seu consentimento viola também o 
 artigo 18º nº 2 da CRP, pois esta ofensa não é proporcional, isto é, não é 
 justificável face ao interesse, também ele protegido constitucionalmente, que se 
 pretende salvaguardar. 
 
  
 
 35.       Os valores que aparentemente se pretendem salvaguardar com a 
 criminalização da recusa a submissão a colheita de sangue para avaliação do 
 estado de influenciado pelo álcool, seriam a segurança rodoviária e a 
 integridade física de terceiros. 
 
  
 
 36.       Porém, isto não é exacto, pois o que verdadeiramente aqui está em 
 causa é a recolha de provas para a incriminação do recorrido por um crime. 
 
  
 
 37.       Ou seja, o que está em causa não é o impedimento de um condutor 
 embriagado conduzir e assim pôr em causa a segurança de terceiros e a própria 
 segurança rodoviária, mas sim através de uma colheita de sangue ofensiva da 
 integridade física do recorrido, angariar provas para o punir por um crime. 
 
  
 
 38.       Ofendendo como ofende a integridade física do recorrente, este meio de 
 prova terá que ser considerado nulo, conforme aliás se retira do nº 8 do artigo 
 
 32 da Constituição da República Portuguesa.
 
  
 
 39.       Esta disposição veda qualquer tipo de violação à integridade física da 
 pessoa para a obtenção de prova em processo criminal. 
 
  
 
 40.       Assim, facilmente se conclui, por todos os argumentos aqui referidos, 
 que o direito à integridade física do recorrente terá que prevalecer sobre o 
 objectivo de angariar provas para a punição do mesmo.
 
  
 
 41.       Mais uma vez se frisa que esta introdução no corpo do recorrido de uma 
 agulha para colheita de sangue cujo objectivo é fazer prova de um crime, 
 violando o seu direito à integridade física, direito constitucionalmente 
 garantido, é ofensiva quer do artigo 25º da Constituição da República 
 Portuguesa, bem como do nº2 do artigo 18º e do artigo 32º nº 8 do diploma 
 citado.
 
  
 
 42. Por isso, a criminalização da recusa por parte do recorrente em permitir a 
 ofensa já atrás referida, é também, materialmente inconstitucional, na medida em 
 que, é a própria constituição que repudia a obtenção de provas mediante ofensa à 
 integridade física das pessoas.” (fls. 70 a 80)
 
  
 Assim sendo, cumpre apreciar e decidir.
 
  
 
  
 II – FUNDAMENTAÇÃO
 
  
 
 5. Como ponto de partida registe-se que a possibilidade de tipificação de um 
 crime de desobediência, resultante da conjugação do artigo 348º, n.º 1, alínea 
 a), do Código Penal, e dos artigos 152º, n.º 3 e 153º, n.º 8, ambos do Código da 
 Estrada, de acordo com a redacção fixada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de 
 Fevereiro, se encontra inscrita na reserva relativa de competência legislativa 
 da Assembleia de República [alínea c) do n.º 1 do artigo 165º, da CRP]. De notar 
 igualmente que se afigura inquestionável a ausência de autorização legislativa 
 ao Governo para legislar sobre tal matéria, na medida em que a Lei n.º 53/2004, 
 de 04 de Novembro – que o Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, 
 expressamente invoca –, não contém qualquer disposição normativa nesse sentido.
 
  
 Certo é, portanto, que a norma ora colocada em crise não beneficia de qualquer 
 autorização legislativa concedida pela Assembleia da República ao Governo.
 
  
 Porém, por si só, esta não será razão suficiente para optar pela 
 inconstitucionalidade orgânica da norma. Com efeito, a análise da jurisprudência 
 consolidada no Tribunal Constitucional aponta no sentido de que a falta de lei 
 de autorização legislativa, em matéria de competência legislativa relativamente 
 reservada da Assembleia da República, não obsta a que o Governo possa legislar, 
 desde que a normação adoptada não se revista de conteúdo inovatório face à 
 anteriormente vigente. A título de exemplo, cite-se o Acórdão n.º 114/08 da 3ª 
 Secção do Tribunal Constitucional (disponível in www.tribunalconstitucional.pt):
 
  
 
 “Com efeito, o Tribunal já por diversas vezes afirmou, em jurisprudência que 
 remonta à Comissão Constitucional, que o facto de o Governo aprovar actos 
 normativos respeitantes a matérias inscritas no âmbito da reserva relativa de 
 competência da Assembleia da República não determina, por si só e 
 automaticamente, a invalidação das normas que assim decretem, por vício de 
 inconstitucionalidade orgânica. Força é que se demonstre que as normas postas 
 sob observação não criaram um regime jurídico materialmente diverso daquele que 
 até essa nova normação vigorava, limitando-se a retomar e a reproduzir 
 substancialmente o que já constava de textos legais anteriores emanados do órgão 
 de soberania competente (Cfr. os acórdãos n.ºs 502/97, 589/99, 377/02, 414/02, 
 
 450/02, 416/03, 340/05 estes tirados em Secção e publicados no Diário da 
 República, II Série, de 4 de Novembro de 1998, de 20 de Março de 2000, de 14 de 
 Fevereiro de 2002, de 17 de Dezembro de 2002, de 12 de Dezembro de 2002, de 6 de 
 Abril de 2004 e de 29 de Julho de 2005, bem como o acórdão n.º 123/04 (Plenário) 
 publicado no Diário da República, I Série-A, de 30 de Março de 2004. Cfr. ainda, 
 aliás com posição discordante, a indicação de jorge miranda, Manual de Direito 
 Constitucional, tomo V, págs. 234/235).
 Para tanto, para que essa intromissão formal em domínios de reserva relativa de 
 competência parlamentar seja irrelevante, é necessário que se possa concluir 
 pelo carácter não inovatório da normação suspeita. Não bastará a mera 
 verificação da identidade textual dos dispositivos legais em sucessão, tendo 
 também de ponderar-se os demais elementos de interpretação da lei, pois o mesmo 
 texto, reproduzido em novo contexto, pode adquirir diverso conteúdo normativo. 
 Mas, adquirida a certeza do carácter materialmente não inovatório da norma 
 editada pelo Governo, na perspectiva da distribuição constitucional de 
 competências legislativas tutelada pela inconstitucionalidade orgânica, não se 
 vê razão para a invalidade da norma. A opção política e a volição legislativa 
 primária do parlamento materializadas em determinado acto legislativo da 
 Assembleia da República ou parlamentarmente autorizado mantêm-se intocadas no 
 ordenamento jurídico, apesar da recompilação no novo acto legislativo do 
 Governo.
 
                         (…)
 
             Ora, como se deixou dito, os factos imputados ao arguido, ora 
 recorrido, eram punidos como crime de desobediência qualificada pelo n.º 4 do 
 artigo 139.º do Código da Estrada na versão deste Código anterior àquela em que 
 se insere a norma a que agora foi subsumida essa conduta. E continuam a ser 
 punidos como crime de desobediência qualificada pelo n.º 2 do artigo 138.º na 
 nova versão do Código, nos mesmos exactos termos. A diferente numeração e a 
 alteração da epígrafe do preceito é mera consequência da reordenação dos demais 
 preceitos do Código, não traduzindo diversa valoração quanto ao bem jurídico 
 protegido ou quanto ao contexto dos elementos relevantes para a punição desta 
 conduta. Nesta parte, continua a tutelar-se penalmente, agora como antes, o 
 cumprimento das decisões que imponham sanções acessórias de inibição de conduzir 
 pela prática de contra-ordenações em matéria de circulação rodoviária. Não houve 
 aqui intervenção materialmente constitutiva do Governo. Estão, assim, reunidas 
 as condições para que, à luz da referida jurisprudência do Tribunal e tendo em 
 consideração que estamos no âmbito de um processo de fiscalização concreta, a 
 intromissão legislativa formal não autorizada do Governo no domínio da reserva 
 relativa da competência da Assembleia da República não gere 
 inconstitucionalidade orgânica.”
 
  
 
             Retomando esta linha de raciocínio, há que proceder a uma comparação 
 entre a norma existente antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 
 
 23 de Fevereiro – “in casu”, o n.º 7 do artigo 159º do Código da Estrada – e a 
 que resulta da posterior vigência do referido diploma legal – a norma extraída a 
 partir da conjugação do artigo 348º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e dos 
 artigos 152º, n.º 3 e 153º, n.º 8, ambos do Código da Estrada, de acordo com a 
 redacção fixada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro – com o intuito 
 de averiguar se existe ou não inovação normativa, sendo que apenas no primeiro 
 caso se poderá concluir no sentido da inconstitucionalidade orgânica.
 
  
 
             Vejamos, então.
 
  
 
             6. A norma que configura o tipo incriminador ora em apreço é obtida 
 através da conjugação do tipo genérico do crime de desobediência [alínea a) do 
 n.º 1 do artigo 348º, do CP] com as seguintes disposições do Código da Estrada, 
 segundo a redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 44/2005:
 
  
 
 “Artigo 152º
 Princípios gerais
 
 (…)
 
 3 – As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às 
 provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou 
 por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência.
 
 (…)
 
  
 Artigo 153º
 Fiscalização da condução sob influência de álcool
 
 (…)
 
 8 – Se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar 
 expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou, 
 se esta não for possível por razões médicas, deve ser realizado exame médico, em 
 estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado 
 pelo álcool.”
 
  
 
             Importa, portanto, analisar o regime anteriormente vigente, de modo 
 a aquilatar a natureza inovatória da norma desaplicada pela decisão recorrida.
 
  
 
             A versão originária do actual Código da Estrada (aprovado pelo 
 Decreto-Lei n.º 114/94, de 03 de Maio) determinava, através do n.º 1 do artigo 
 
 158º, o dever legal de submissão a exames para detecção de possíveis 
 intoxicações por parte de condutores e demais utentes da via pública, estes 
 
 últimos quando tenham sido intervenientes num acidente de trânsito. Contudo a 
 referida versão originária do Código da Estrada não estabelecia quaisquer 
 sanções – penais ou de outra natureza – para os indivíduos que recusassem a 
 realização dos referidos exames, limitando-se, por força do artigo 159º, a 
 remeter o procedimento de fiscalização para legislação especial.
 
  
 
             Até à entrada em vigor da versão originária do Código da Estrada, 
 vigoravam o Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril, que fixava o regime jurídico 
 aplicável à condução sob efeito de álcool, bem como o respectivo Decreto 
 Regulamentar n.º 12/90, de 14 de Maio. Os referidos diplomas não foram alvo de 
 revogação pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 03 de Maio, uma vez que o seu artigo 
 
 7º determinava a manutenção em vigor de todos os regimes jurídicos especiais até 
 que entrassem em vigor as normas regulamentares necessárias à aplicação do novo 
 Código da Estrada. Depois de prever o dever legal de sujeição a exames para 
 efeitos de fiscalização da condução sob o efeito de álcool (artigos 6º, 8º e 
 
 9º), o artigo 12º do Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril de 1990, determinava 
 o seguinte:
 
  
 
 “Artigo 12º
 Recusa a exames
 
  
 
 1 – Todo o condutor que, ou pessoa que contribua para acidente de viação, que se 
 recusar a exame de pesquisa de álcool será punido com pena de prisão até um ano 
 ou multa até 200 dias.”
 
  
 
             O referido Decreto-Lei n.º 124/90 foi precedido da necessária 
 autorização legislativa, concedida pela Lei n.º 31/89, de 23 de Agosto, que, nos 
 termos da alínea a) do artigo 2º, previa expressamente a possibilidade de o 
 Governo criar tipos incriminadores relativamente à recusa de realização de 
 exames para detecção de álcool no sangue. Assim, fica demonstrado que, desde a 
 entrada em vigor do referido diploma legal que se encontrava previsto no 
 ordenamento jurídico português o crime de recusa de realização de exame de 
 pesquisa de álcool no sangue.
 
  
 
             Tal regime vigorou até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 2/98, 
 de 03 de Janeiro, que, através do seu artigo 20º, n.º 1, revogou expressamente o 
 Decreto-Lei n.º 124/90, optando por concentrar o regime jurídico primário da 
 fiscalização da condução sob o efeito do álcool no próprio Código da Estrada 
 
 (artigos 158º a 165º). Por sua vez, o Decreto Regulamentar n.º 12/90 permaneceu 
 em vigor até à entrada em vigor do Decreto Regulamentar n.º 24/98, de 30 de 
 Outubro, conforme determinado pelo n.º 2 do artigo 20º do Decreto-Lei n.º 2/98, 
 de 03 de Janeiro.
 
  
 
             A partir da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de 
 Janeiro, o anterior tipo incriminador específico de recusa de submissão a exame 
 para detecção de álcool no sangue foi substituído pelo tipo genérico de crime de 
 desobediência, previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 348º do Código Penal, 
 por força de expressa previsão do n.º 3 do (então) artigo 158º do Código da 
 Estrada:
 
  
 
 “Artigo 158º
 Princípios gerais
 
                         (…)
 
             3 – Quem recusar a submeter-se às provas estabelecidas para a 
 detecção do estado de influenciado pelo álcool ou substâncias legalmente 
 consideradas como estupefacientes ou psicotrópicas, para as quais não seja 
 necessário o seu consentimento nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 159.º, é 
 punido por desobediência.”
 
  
 
             A referida norma encontrava-se autorizada pela Lei n.º 97/97, de 23 
 de Agosto, nos seguintes termos:
 
  
 
 “Artigo 3º
 
  
 
                         Fica ainda o Governo autorizado a estabelecer:
 
                         (…)
 
             d) A punição como desobediência da recusa, por condutor ou outra 
 pessoa interveniente em acidente de trânsito, em submeter-se aos exames legais 
 para detecção de estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias 
 legalmente consideradas como estupefacientes ou psicotrópicas, e ainda dos 
 médicos ou paramédicos que, injustificadamente, se recusem a proceder às 
 diligências previstas na lei para diagnosticar os referidos estados.”
 
  
 Daqui decorre que, por força do tipo incriminador constante do n.º 3 do artigo 
 
 158º do Código da Estrada, segundo a redacção do Decreto-Lei n.º 2/98, cometia o 
 crime de desobediência aquele que recusasse submeter-se a exame para detecção de 
 
 álcool no sangue, salvo quando fosse legalmente exigido o seu consentimento, 
 designadamente, nos casos de contraprova, que dependia sempre de iniciativa do 
 examinado (cfr. n.ºs 2 e 3 do artigo 159º da redacção então vigente do Código da 
 Estrada).
 
  
 Através de decreto-lei não autorizado (cfr. Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de 
 Setembro), o Governo viria a alterar os elementos típicos do crime de 
 desobediência, bem como a aditar um n.º 7 ao artigo 159º do Código da Estrada:
 
  
 
 “Artigo 158º
 
 1 – Devem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção dos estados de 
 influenciado pelo álcool ou por substâncias legalmente consideradas como 
 estupefacientes ou psicotrópicas:
 
             a) Os condutores;
 
             b) Os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de 
 trânsito;
 
             c) As pessoas que se propuserem a iniciar a condução.
 
             (…)
 
             3 – As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem 
 submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado 
 pelo álcool ou por substâncias legalmente consideradas como estupefacientes ou 
 como psicotrópicas são punidas por desobediência.”
 
  
 
 “Artigo 159º
 Fiscalização da condução sob influência do álcool
 
 (…)º
 
             7 – Se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool 
 no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para 
 análise ou, se recusar, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento 
 oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.”
 
  
 Da análise desta evolução legislativa, podemos extrair as seguintes conclusões 
 preliminares:
 
  
 i)                          O crime específico de recusa de submissão a exames 
 para controlo do álcool no sangue (artigo 12º) encontra-se previsto no 
 ordenamento jurídico português, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 
 
 124/90, de 14 de Abril, adoptado ao abrigo de autorização legislativa;
 
  
 ii)                        A partir da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 2/98, 
 de 03 de Janeiro, adoptado ao abrigo de autorização legislativa, passou a 
 prever-se no ordenamento jurídico português o crime de desobediência simples, 
 salvo quando fosse necessário o consentimento do examinando, por exemplo, nos 
 casos de contraprova [artigo 158º, n.º 3, do Código da Estrada então vigente];
 
  
 iii)                      Desde a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 
 
 265-A/2001, de 28 de Setembro, adoptado sem prévia autorização legislativa, 
 reconhece-se ao examinando o direito a recusar colheita de sangue, sem 
 necessidade de fundamentação, nos casos em que seja impossível proceder a 
 pesquisa de álcool em ar expirado;
 
  
 iv)                      Desde a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 
 
 23 de Fevereiro, adoptado sem prévia autorização legislativa, retira-se ao 
 examinando o direito a recusar colheita de sangue, independentemente do motivo, 
 nos casos em que seja impossível proceder a pesquisa de álcool em ar expirado, 
 apenas sendo realizado exame médico no caso da colheita de sangue não ser 
 possível por razões médicas.
 
  
 
  
 
 7. Vejamos, então, como ajuizar a similitude entre a norma constante do 
 originário n.º 3 do artigo 158º do Código da Estrada [na redacção conferida pelo 
 Decreto-Lei n.º 2/98] – única norma dotada da necessária autorização legislativa 
 
 – e a norma actualmente decorrente da conjugação entre o n.º 3 do artigo 152º e 
 o n.º 8 do artigo 53º do vigente Código da Estrada.
 
  
 A alteração legislativa introduzida pelo Decreto-Lei n.º 44/2005 representa um 
 passo à frente face à dimensão normativa decorrente da conjugação entre o n.º 3 
 do artigo 158º e o n.º 7 do artigo do Código da Estrada [na redacção conferida 
 pelo Decreto-Lei n.º 265-A/2001]. Dá-se por adquirido, na esteira da anterior 
 jurisprudência deste Tribunal (cfr. Acórdãos n.º 423/06 e n.º 628/06, 
 disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt), que a alteração legislativa 
 introduzida pelo Decreto-Lei n.º 265-A/2001 não implicou uma ruptura face ao 
 tipo penal resultante do n.º 3 do artigo 158º do Código da Estrada vigente até 
 então. É que, note-se, mesmo que o nº 3 do referido artigo 158º do Código da 
 Estrada tenha deixado de incluir o elemento do tipo “para as quais não seja 
 necessário o seu consentimento nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 159.º”, este 
 mesmo elemento do tipo de crime de desobediência permanece ínsito do Código da 
 Estrada. Isto porque o n.º 7 do (então) artigo 159º do Código da Estrada 
 garantia que o examinando pudesse recusar, sem exigida fundamentação, a recolha 
 de sangue – o que denota uma notória preocupação do legislador em salvaguardar o 
 direito à integridade física e, eventualmente, moral, em casos de recusa fundada 
 em razões religiosas ou filosóficas (cfr. artigos 25º e 41º, n.º 6, ambos da 
 CRP), bem como à reserva da intimidade privada (cfr. artigo 26º, n.º 1, da CRP) 
 
 –, sendo esta substituída por outro tipo de exame médico.
 
  
 Assim, a conjugação do n.º 7 do (então) artigo 159º do Código da Estrada com a 
 nova redacção do n.º 3 do (então) artigo 158º do mesmo diploma codificador 
 garantia que o examinando nunca cometeria o crime de desobediência, sempre que 
 recusasse, de modo sempre legítimo nos termos da lei, a recolha de sangue, 
 funcionando, de certo modo, como um elemento negativo daquele mesmo crime de 
 desobediência. Ou seja, quando não fosse possível a realização de prova por 
 pesquisa de álcool no ar expirado – ónus que correria sempre contra o Estado, 
 quando não dispusesse dos equipamentos adequados –, apenas haveria cometimento 
 do crime de desobediência se o examinando recusasse realizar o exame médico 
 alternativo.
 
  
 Como é bom de ver esta dimensão normativa – como já reconhecido nos Acórdãos n.º 
 
 423/06 e n.º 628/06 – era, de todo em todo, equivalente à que resultava do n.º 3 
 do (então) artigo 158º do Código da Estrada [na redacção conferida pelo 
 Decreto-Lei n.º 2/98] que, como já vimos, beneficiava da competente autorização 
 legislativa.
 
  
 
 8. Porém, entende-se que o mesmo já não se passa com a norma actualmente 
 extraída da conjugação entre o n.º 3 do artigo 152º e o n.º 8 do artigo 153º do 
 Código da Estrada [agora segundo a redacção resultante do Decreto-Lei n.º 
 
 44/2005].
 
  
 Da mera comparação literal entre o n.º 8 do actual artigo 153º do Código da 
 Estrada e as anteriores normas – seja ela a extraída do n.º 3 do artigo 158º 
 
 [segundo o Decreto-Lei n.º 2/98] ou a extraída da conjugação entre o n.º 3 do 
 artigo 158º e o n.º 7 do artigo 159º [segundo o Decreto-Lei n.º 265-A/2001] – 
 resulta evidente que o legislador governamental substituiu o elemento negativo 
 do tipo de crime de desobediência a realização de exame “se recusar”, 
 substituindo-o por “se esta não for possível por razões médicas”. Com efeito, o 
 legislador governamental pretendeu retirar aos condutores sujeitos aos exames 
 para comprovação do teor de influência sob álcool o direito à recusa de colheita 
 de sangue – note-se – mesmo nos casos em que a impossibilidade de realização de 
 exame por método de ar expirado é apenas imputável ao Estado. Quando antes 
 qualquer condutor podia recusar a sujeição a exame mediante colheita de sangue, 
 sem necessidade de fundamentação em razões médicas – frise-se bem –, passa agora 
 a exigir-se que a não realização da colheita de sangue apenas possa ser 
 justificada pela impossibilidade técnica de tal operação médica.
 
  
 Claro está que os condutores continuarão a praticar o crime de desobediência 
 sempre que recusem a realização do exame através do método de ar expirado ou, 
 quando este não for possível, quando recusem o exame médico alternativo à 
 colheita de sangue. Ora, a nova redacção do n.º 8 do artigo 153º do Código da 
 Estrada vem, de modo manifesto, agravar a responsabilidade criminal dos 
 condutores que pretendam – muitas vezes, admite-se, por razões plenamente 
 justificadas e até protegidas pela Lei Fundamental [direito à integridade física 
 e moral, direito à intimidade privada, direito à objecção de consciência] –, na 
 medida em que passa a punir como crime de desobediência a recusa de sujeição a 
 colheita de sangue nos casos em que seja tecnicamente possível fazê-lo.
 
  
 Verificado esse mesmo conteúdo inovatório, é forçoso concluir-se que o 
 legislador governamental necessitava da autorização legislativa, na medida em 
 que a decisão normativa primária cabia à Assembleia da República, por força da 
 alínea c) do n.º 1 do artigo 165º da CRP.  
 
  
 Opta-se, assim, pela inconstitucionalidade orgânica da norma objecto do presente 
 recurso, razão pela qual não se conhecerá da também alegada 
 inconstitucionalidade material por violação do princípio da proporcionalidade 
 
 (artigo 18º, n.º 2, da CRP) ou por violação da proibição de obtenção de prova 
 mediante ofensa da integridade física ou moral da pessoa ou abusiva intromissão 
 na vida privada (artigo 32º, n.º 8, da CRP).
 
  
 III – DECISÃO
 
  
 Pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso.
 
  
 Sem custas, por não serem legalmente devidas.
 Lisboa, 27 de Maio de 2009
 Ana Maria Guerra Martins
 Maria Lúcia Amaral
 Vítor Gomes
 Carlos Fernandes Cadilha
 Gil Galvão