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Processo n.º 856/08
 
 3ª Secção
 Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
 
  
 Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
 
  
 I. Relatório
 
 
 
 1. Na presente de acção de condenação que A., S. A. intentou contra a Câmara 
 Municipal de Miranda do Douro, em vista ao pagamento de importâncias devidas no 
 
 âmbito da execução de contratos de prestação de serviços e exploração das 
 estações de tratamento de águas de abastecimento do município e das estações de 
 tratamento de águas residuais, a ré recorreu para o Supremo Tribunal 
 Administrativo da decisão condenatória proferida pelo Tribunal Administrativo de 
 Círculo, alegando, além do mais, a nulidade dos contratos celebrados entre as 
 partes por violação do regime de delimitação dos sectores, então vigente, que 
 vedava às empresas privadas o exercício da actividade económica em causa.
 
  
 O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 24 de Outubro de 2006, embora 
 reconhecendo a nulidade dos contratos, pela invocada razão, atribuiu à 
 declaração de nulidade mera eficácia ex nunc, admitindo que estes mantivessem os 
 seus efeitos como se fossem válidos durante o período da sua execução, por 
 equiparação com o que sucede nos casos de resolução dos contratos privados de 
 execução continuada ou periódica e de nulidade do contrato de trabalho, por 
 aplicação do disposto nos artigos 434º, n.º 2, do Código Civil e 115º, n.º 1, do 
 Código de Trabalho.
 A Câmara Municipal de Miranda do Douro interpôs então recurso para o Tribunal 
 Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei 
 do Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
 
  
 
 1- Pretende-se que o Tribunal Constitucional aprecie a ilegalidade da aplicação, 
 por equiparação, das normas constantes do artigo 115°, n.° 1, do Código do 
 Trabalho e do artigo 434°, n.° 2, do Código Civil, a contratos administrativos 
 que o próprio Supremo Tribunal Administrativo, no douto acórdão em questão, 
 qualificou de nulos, por violarem lei imperativa, publicada para dar cumprimento 
 a um princípio constitucional, 
 
 2- Ou seja, que seja declarada a inconstitucionalidade dessas normas, se 
 interpretadas no sentido de o seu dispositivo se aplicar a contratos 
 administrativos que estejam nas condições referidas no número anterior. 
 
 3- A recorrente entende que o douto acórdão recorrido, que decidiu aplicar as 
 normas em causa, por equiparação, ao caso dos autos, violou o disposto nos 
 artigos 3°, n.° 3, 202°, n.° 2, e 204.° da Constituição da República Portuguesa. 
 
 
 
 4- A recorrente suscitou a questão da nulidade dos ditos contratos na alegação 
 de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, mas não era possível ter 
 invocado a inconstitucionalidade das referidas normas (se interpretadas no 
 sentido agora posto em causa) uma vez que a aplicação de tais normas ao caso 
 discutido nos autos apenas foi decidida no acórdão recorrido, nunca antes tendo 
 sido aventada tal hipótese. 
 
 5- Também não foram discutidas nos autos, de nenhuma outra forma, as 
 consequências da nulidade dos referidos contratos, precisamente porque essa 
 nulidade, invocada pela recorrente, apenas foi verificada no mencionado acórdão. 
 
 
 
 6- Na sua alegação de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo a 
 recorrente invocou, porém, a ilegalidade dos contratos e defendeu que, em 
 consequência, a solução para o caso era a aplicação do princípio da proibição do 
 enriquecimento sem causa. 
 
 7- Na opinião da recorrente foram enunciados pela recorrente, nessa peça 
 processual, os elementos essenciais de uma questão de constitucionalidade 
 normativa, tendo o Tribunal apreciado e decidido substancialmente a questão, 
 reconhecendo que assistia razão à recorrente, mas não retirando as consequências 
 que a mesma recorrente entende que são devidas. 
 
  
 O relator remeteu o processo para alegações com a indicação de que, em seu 
 parecer, o objecto do recurso deveria considerar-se circunscrito à questão de 
 constitucionalidade referenciada no número 2 do requerimento de interposição, 
 por não ser possível, por incompetência material do Tribunal, apreciar os 
 aspectos mencionados nos números 1 e 3 desse requerimento.
 
  
 A Câmara Municipal de Miranda do Douro apresentou alegações em que formulou as 
 seguintes conclusões:
 
  
 
 1- A legislação violada que está em causa neste processo (e que torna os 
 contratos nulos) foi concebida em obediência e para concretização de um comando 
 explícito da Constituição;
 
 2- As suas normas são fiéis à filosofia desse comando e da CRP no seu conjunto;
 
 3- Tratou-se de violação clara dessas normas e não de um desvio de 
 interpretação;
 
 4- As alterações que o diploma legal em questão sofreu ao longo do tempo foram 
 precedidas da revisão da Constituição e foram concretizadas mediante 
 autorizações da Assembleia da República ao Governo para legislar sobre a 
 matéria, com condições e limites específicos;
 
 5- A abertura da actividade económica em causa à iniciativa privada só foi 
 permitida, e com condicionantes, depois da revisão constitucional de 1992, 
 alterado que foi profundamente o paradigma da organização económica do país;
 
 6- Tal como a Administração não pode apagar os efeitos da nulidade dos actos 
 
 'regularizando os actos nulos' e o legislador, mesmo em face de motivações de 
 indiscutível interesse público que aconselhem a alteração do quadro jurídico 
 para evitar a 'desordem jurídica' só o pode fazer respeitando os ditames 
 constitucionais, o intérprete também não pode afrontar esses ditames, mesmo 
 quando entenda ser justa outra solução;
 
 7- O regime do Código do Trabalho é específico desse ramo do direito e as 
 soluções do seu artigo 115.º de não aplicar o regime geral da nulidade 
 estabelecido nos arts. 288.º a 294.º do Código Civil, têm acolhimento 
 precisamente em preceitos constitucionais;
 
 8- A solução de a nulidade apenas operar ex nunc, produzindo os contratos os 
 seus efeitos como se fossem válidos durante o tempo em que estiveram em execução 
 não pode ser aplicada quando tal nulidade advém da violação de normas 
 constitucionais, sob pena de ofensa grave à segurança jurídica e enfraquecimento 
 do Estado de Direito;
 
 9- A regra da conclusão anterior aplica-se, pelas mesmas razões, às normas 
 legais ditadas por comandos constitucionais e que sejam fiéis a esses comandos e 
 
 à filosofia aplicável da Lei Fundamental;
 
 10 – A complacência ou, mais gravemente, a regularização pelo intérprete de 
 violações graves dessas leis significaria o suicídio do Estado de Direito;
 
 11- A defesa do núcleo legislativo plasmado na Constituição e nas leis que dela 
 derivam directamente, implica que em situações de violação, tratando-se de 
 contratos, estes sejam tratados como se fossem inexistentes;
 
 12- A CRP, embora revista, é hoje a de 1976 e não pode deixar de considerar-se 
 inconstitucional uma norma legal se interpretada de molde a contrariar a versão 
 original daquela, quando aplicada a factos ocorridos quando vigorava essa 
 versão;
 
 13- Se assim não fosse o Estado de Direito não seria coerente com ele próprio e 
 não se poderia esperar que as gerações vindouras respeitem as nossas actuais 
 opções;
 
 14- Sendo inconstitucional a norma legal explícita, por maioria de razão o serão 
 outras que foram criadas para outros fins, se interpretadas para aplicação 
 analógica a casos que cairiam dentro do campo abarcado pela 
 inconstitucionalidade;
 
 15- As normas do n.º 2 do art. 434.º do Código Civil e do n.º 1 do art. 115.º do 
 Código do Trabalho são inconstitucionais, se interpretadas no sentido de o seu 
 dispositivo se aplicar a contratos administrativos nulos por violarem lei 
 imperativa publicada para dar cumprimento a um princípio constitucional, porque, 
 sendo aplicadas, contrariam a letra e o espírito das normas inseridas nos 
 artigos 277.º, n.º 1, 204.º e 3.º, n.º 3, da Constituição.       
 
  
 
  
 A A., S. A., ora recorrida, contra-alegou, concluindo, por seu turno, do 
 seguinte modo:
 
  
 I O Recorrente carece de legitimidade para interpor o presente recurso em 
 virtude de não ter suscitado perante o Tribunal Recorrido a questão da 
 inconstitucionalidade, por esse motivo, deve o mesmo ser indeferido, o que se 
 requer nos termos e para os efeitos do disposto no n.° 3 do artigo 76.° da Lei 
 n.° 28/82. 
 II. A Lei dos Sectores Vedados — Lei n.° 46/77, de 8 de Julho - não é uma norma 
 constitucional, trata-se, tão só, de uma norma legal que concretiza um comando 
 constitucional por conseguinte, a celebração de contratos em desconformidade com 
 as disposições legais contidas nesse diploma poderá traduzir-se, apenas num 
 vício de violação de lei, e nada mais. 
 III. A declaração de nulidade com efeitos ex nunc é admissível no âmbito do 
 Direito Administrativo — nos termos previstos no n.° 3 do artigo 134.° do CPA- , 
 não é uma solução com acolhimento legal específico em apenas alguns ramos de 
 direito. 
 IV. As normas que possibilitam a atribuição de efeitos ex nunc à declaração de 
 nulidade encontram a sua fundamentação em princípio gerais e estruturantes do 
 nosso ordenamento jurídico: o princípio da segurança jurídica e da tutela da 
 confiança. 
 V. De resto, o legislador constituinte eleva o princípio da segurança jurídica 
 ao ponto de considerar que o mesmo pode justificar uma limitação dos efeitos da 
 declaração de inconstitucionalidade, conforme se prevê no n.° 4 do artigo 282.° 
 da CRP. 
 VI. Ora, se este princípio justifica a limitação dos efeitos de uma declaração 
 de inconstitucionalidade, por maioria de razão justificará uma limitação dos 
 efeitos de uma declaração de nulidade. 
 
  
 Cabe apreciar e decidir.
 
  
 
  
 II. Fundamentação
 
  
 Questão prévia
 
  
 
 2. Na sua contra-alegação, a recorrida suscita a questão da ilegitimidade 
 processual activa para a interposição do recurso, por considerar que recorrente 
 não cumpriu o ónus de suscitação da questão de constitucionalidade no decurso do 
 processo e não preenche, por conseguinte, o requisito processual a que se 
 referem os artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal 
 Constitucional.
 
  
 E, na verdade, na alegação de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, a 
 recorrente limitou-se a arguir a nulidade dos contratos de prestação de serviços 
 celebrados entre as partes sem equacionar a inconstitucionalidade da 
 interpretação normativa que viesse a ser adoptada pelo tribunal de recurso no 
 sentido da limitação da eficácia da declaração de nulidade, questão que está 
 agora em causa.
 
  
 No entanto, a recorrente invocou, no requerimento de interposição de recurso que 
 a questão da nulidade dos contratos nunca tinha sido antes aventada no processo, 
 e foi arguida apenas em sede de recurso, e a sua perspectiva, como decorre das 
 respectivas alegações, é a de que nunca seriam aplicáveis ao caso, no plano das 
 consequências jurídicas da declaração de nulidade, normas que têm um campo 
 aplicativo restrito às relações de direito contratual privado ou do direito 
 laboral.
 
  
 Como se sabe, a exigência da prévia suscitação da questão de constitucionalidade 
 decorre da própria natureza do recurso para o Tribunal Constitucional e do seu 
 específico âmbito objectivo, tendo em consideração que  o recurso incide sobre 
 normas e não sobre decisões; o que pressupõe que o tribunal a quo tenha aplicado 
 na decisão recorrida a norma cuja constitucionalidade se questiona e tenha, por 
 isso, sido confrontado com essa matéria ainda antes da prolação da sua decisão, 
 em termos de estar obrigado a dela conhecer.
 
  
 Todavia, o tribunal tem entendido que o ónus de prévia suscitação não é 
 aplicável nas situações em que o recorrente não tenha tido oportunidade 
 processual de formular, perante o tribunal recorrido, a questão da 
 constitucionalidade da interpretação normativa que tenha sido adoptada, o que 
 sucede, designadamente, nos casos em que o interessado se depara com uma 
 decisão-surpresa, isto é, com uma interpretação com a qual não poderia 
 razoavelmente contar.
 
  
 No caso em apreço, sendo embora certo que não está afastada, no domínio do 
 contencioso administrativo, a possibilidade de aplicação de princípios gerais 
 que emergem de outros ramos do direito ou do ordenamento jurídico globalmente 
 considerado, é aceitável que o interessado possa invocar a não previsibilidade 
 de uma solução normativa que tenha sida extraída de um regime legal que não 
 seria, à partida, directamente aplicável.
 
  
 Entende-se, assim, ser de rejeitar o invocado fundamento de ilegitimidade 
 activa.
 
  
 Delimitação do objecto do recurso.
 
  
 
 3. A apreciação da matéria de fundo justifica, no entanto, que se efectue uma 
 precisão quanto ao objecto do recurso.
 
  
 No requerimento de interposição de recurso, a recorrente não suscita apenas a 
 questão da inconstitucionalidade das normas dos artigos 115º, n.º 1, do Código 
 do Trabalho e 434º, n.º 2, do Código Civil, mas também a inconstitucionalidade 
 da própria decisão recorrida, por violação do disposto nos artigos 3º, n.º 3, 
 
 202º, n.º 2, e 204º da Constituição da República, e, bem assim, a sua 
 ilegalidade por violação das normas que definem o regime legal de delimitação de 
 sectores.
 
  
 Como se deixou antever, e consta do despacho interlocutório do relator, a 
 competência do Tribunal Constitucional está circunscrita às questões de 
 constitucionalidade normativa, pelo que não pode conhecer-se do objecto de 
 recurso na parte em que nele se pretende obter um controlo do mérito da própria 
 decisão recorrida.
 
  
 Acresce que, no âmbito da fiscalização concreta da legalidade, o Tribunal 
 Constitucional apenas pode conhecer de decisões que recusem a aplicação de 
 normas constantes de acto legislativo por violação de lei de valor reforçado ou 
 por violação do estatuto de uma região autónoma (artigo 281º, n.º 2, da 
 Constituição), pelo que não é também possível conhecer do recurso na parte em 
 que se pretende a verificação da legalidade da decisão quanto à aplicação aos 
 contratos administrativos, por equiparação, das disposições dos artigos 115°, 
 n.° 1, do Código do Trabalho e 434°, n.° 2, do Código Civil.
 
  
 Por outro lado, mesmo no que se refere à questão de constitucionalidade 
 normativa que está em causa, importa notar que a pronúncia do tribunal recorrido 
 foi não no sentido da aplicação tout court das normas dos artigos 115º, n.º 1, 
 do Código do Trabalho e 434º, n.º 2, do Código Civil, mas no sentido da 
 aplicação de um princípio jurídico de limitação da eficácia da declaração de 
 nulidade dos contratos extraído dessas disposições.
 
  
 
 É o que decorre com evidência do seguinte excerto do acórdão recorrido:
 
  
 Concordamos, inteiramente, com a ideia de que a eficácia ex nunc é a melhor 
 solução. Na verdade, pelas razões expostas, a regra do art. 289º, n.º 1, do 
 Código Civil, que como vimos, se aplicada com efeitos ex tunc no domínio dos 
 contratos de execução continuada de serviços se mostra inadequada à sua própria 
 teleologia, carece de uma restrição que permita tratar desigualmente o que é 
 desigual, isto é, deve ser objecto de redução teleológica (cfr. Karl Larenz, ob. 
 cit., págs. 450/457), de molde a que, nos contratos de execução continuada em 
 que uma das partes beneficie do gozo de serviços cuja restituição em espécie não 
 
 é possível, a nulidade não abranja as prestações já efectuadas, produzindo o 
 contrato os seus efeitos como se fosse válido em relação ao tempo durante o qual 
 esteve em execução, a exemplo do que, como afloramento da mesma ideia, está 
 expressamente consagrado na nulidade, por equiparação, resultante da resolução 
 dos contratos de execução continuada ou periódica (arts. 433º e 434º, n.º 2, do 
 Código Civil) e na nulidade do contrato de trabalho (art. 115º, n.º 1, do Código 
 do Trabalho).
 
  
 Não há, por conseguinte, uma aplicação directa ao caso dos autos das referidas 
 normas do Código do Trabalho e do Código Civil, mas antes a aplicação de um 
 critério legal de que existem afloramentos nessas disposições e que se pode 
 considerar como um princípio geral que se torna extensivo ao contencioso dos 
 contratos administrativos.
 
  
 
  
 Mérito do recurso
 
  
 
 4. Como resulta dos elementos dos autos, a ré, ora recorrente, adjudicou à 
 autora a prestação de serviços de exploração das estações de tratamento de águas 
 de abastecimento público e de águas residuais.
 Os contratos foram celebrados em 28 de Janeiro de 1992.
 
  
 A ré não procedeu ao pagamento de diversas facturas vencidas relativas a  
 serviços prestados no âmbito dos referidos contratos, no montante global de € 
 
 335 082,98.
 
  
 Por sentença do Tribunal Administrativo de Círculo, a ré foi condenada a pagar à 
 autora a referida importância, acrescida de juros moratórios.
 
  
 Em recurso jurisdicional interposto perante o STA, a ré invocou a nulidade dos 
 contratos celebrados entre as partes, por violação da «lei de delimitação dos 
 sectores», que vedava às empresas privadas o acesso às actividades que 
 constituíam o objecto contratual.
 
  
 Apesar da questão da nulidade ter sido suscitada pela primeira vez em sede de 
 recurso, e não ter sido, por isso, objecto de pronúncia pelo tribunal de 
 primeira instância, o STA considerou que lhe cumpria conhecer da questão, por se 
 tratar de matéria de conhecimento oficioso; e, tendo reconhecido que os 
 contratos em causa foram celebrados contra disposição legal imperativa, declarou 
 a nulidade desses contratos nos termos do artigo 294º do Código Civil, aplicável 
 por força do artigo 185º, n.º 3, alínea b), do Código de Procedimento 
 Administrativo; no entanto, atendendo a que se tratava de contratos de execução 
 continuada que foram efectivamente executados, o tribunal de recurso procedeu à 
 redução teleológica do disposto no artigo 289º, n.º 1, do Código Civil, que era 
 aplicável ao caso, atribuindo à declaração de nulidade mera eficácia ex nunc, em 
 termos tais que considerou que os contratos produziram todos os seus efeitos 
 pelo período correspondente à sua execução, como se fossem válidos, com o que se 
 estabelece no âmbito da resolução dos contratos civis de execução continuada ou 
 periódica (artigos 433º e 434º, n.º 2, do Codigo Civil) e em caso de nulidade do 
 contrato de trabalho (artigo 115º, n.º 1, do Código do Trabalho).
 
  
 Deste modo, o acórdão recorrido, apesar do reconhecimento da nulidade dos 
 contratos, considerou que não havia motivo para julgar procedente o recurso e 
 confirmou a sentença condenatória.
 
  
 A recorrente insurge-se contra o assim decidido, dizendo, em resumo, que a norma 
 imperativa que determinou a nulidade dos contratos (constante da Lei n.º 46/77, 
 de 8 de Julho) resulta da concretização de um comando explícito da Constituição, 
 relativo à delimitação dos sectores, vigente à data em que os contratos foram 
 celebrados, pelo que a atribuição de eficácia ex nunc à declaração de nulidade 
 constitui ofensa ao princípio da segurança jurídica e ao primado do Estado de 
 Direito, concluindo que as normas do n.º 2 do artigo 434.º do Código Civil e do 
 n.º 1 do artigo 115.º do Código do Trabalho são inconstitucionais, quando 
 interpretadas no sentido de serem aplicáveis a contratos administrativos nulos, 
 por contrariarem o disposto nos artigos 277.º, n.º 1, 204.º e 3.º, n.º 3, da 
 Constituição.          
 
  
 Já vimos num momento precedente, que o tribunal recorrido não efectuou uma 
 aplicação directa das referidas normas da lei civil e da lei laboral e 
 considerou antes aplicável um princípio geral, segundo o qual, em caso de 
 contratos administrativos de execução continuada, em que uma das partes tenha 
 beneficiado dos serviços prestados que já não poderão ser objecto de restituição 
 em espécie, a declaração de nulidade não abrange as prestações efectuadas; com a 
 consequência de se manter, em relação ao co-contratante, o dever de pagamento do 
 preço correspondente.
 
  
 Importa notar, por outro lado, que a recorrente, como fundamento de 
 inconstitucionalidade, limita-se a aludir a normas constitucionais de garantia 
 que não possuem um relevo autónomo como parâmetro de constitucionalidade. De 
 facto, o artigo 3.º, n.º 3, da Constituição consagra um princípio de 
 conformidade dos actos do Estado e das demais entidades públicas com a 
 Constituição, o que constitui uma consequência directa da juridicidade dos 
 poderes estaduais e da força normativa da Constituição enquanto lei fundamental 
 da ordem jurídica; é em concretização desse mesmo princípio que a Constituição 
 assegura, por sua vez, a fiscalização jurisdicional da constitucionalidade das 
 leis e permite que os tribunais recusem a aplicação de normas que sejam 
 inconstitucionais, tal como resulta dos citados artigos 204º e 277º (cfr. Gomes 
 Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 
 
 4ª edição, págs. 217-218).
 
  
 O reconhecimento da existência de um princípio de constitucionalidade não é, 
 todavia, bastante para se considerar verificado, em relação à norma aplicada 
 pelo tribunal recorrido, o vício de desconformidade com a Constituicão.
 
  
 
 É necessário que se identifique o princípio ou preceito constitucional 
 substantivo que possa ter sido violado pela interpretação normativa que 
 constitui objecto do recurso. 
 
  
 E nesse plano, o único princípio que pode ser chamado à colação e servir de 
 parâmetro de constitucionalidade é o da segurança jurídica, como decorrência do 
 Estado de direito, a que a recorrente se refere na conclusão 8.ª das suas 
 alegações. 
 
  
 Como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, o princípio do Estado de direito, 
 a que alude o artigo 2º da Constituição, «mais do que constitutivo de preceitos 
 jurídicos, é sobretudo conglobador e integrador de um amplo conjunto de regras e 
 princípios dispersos pelo texto constitucional, que densificam a ideia de 
 sujeição do poder a princípios e regras jurídicas,  garantindo aos cidadãos 
 liberdade, igualdade e segurança». E, como acrescentam os mesmos autores, não 
 está excluído que dele se possam colher normas que não tenham expressão directa 
 em qualquer dispositivo constitucional, mas que se apresentam «como consequência 
 imediata e irrecusável daquilo que constitui o cerne do Estado de direito 
 democrático, a saber, a protecção dos cidadãos contra a prepotência, o arbítrio 
 e a injustiça (especialmente por parte do Estado)» (ob. cit., págs. 205-206).
 
  
 
 É assim que se compreende que o princípio da segurança jurídica surja como uma 
 projecção do Estado de direito e se torne invocável, como critério 
 jurídico-constitucional de aferição de uma certa interpretação normativa, a 
 partir do próprio conceito de Estado de direito ínsito no falado artigo 2º da 
 Constituição.
 
  
 Mas sendo assim, o único princípio constitucional que é susceptível de ter sido 
 violado, face aos termos em que a questão é colocada no processo, é o princípio 
 da segurança jurídica, a que se reconduz a concomitante referência que é feita 
 nas alegações de recurso ao princípio do Estado de direito, sendo, pois, esse o 
 
 único parâmetro de constitucionalidade que interessa analisar.
 
  
 
 5. A garantia de segurança jurídica inerente ao Estado de direito corresponde, 
 numa vertente subjectiva, a uma ideia de protecção da confiança dos particulares 
 relativamente à continuidade da ordem jurídica. Nesse sentido, o princípio da 
 segurança  jurídica vale em todas as áreas da actuação estadual, traduzindo-se 
 em exigências que são dirigidas à Administração, ao poder judicial e, 
 especialmente, ao legislador.
 
  
 Referindo-se à protecção da confiança dos particulares relativamente à 
 manutenção de um certo regime legal, Reis Novais defende, em tese geral, que «os 
 particulares têm, não apenas o direito a saber com o que podem legitimamente 
 contar por parte do Estado, como, também, o direito a não verem frustradas as 
 expectatitvas que legitimamente formaram quanto à permanência de um dado quadro 
 ou curso legislativo, desde que essas expectativas sejam legítimas, haja 
 
 índicios consistentes de que, de algum modo, elas tenham sido estimuladas, 
 geradas ou toleradas por comportamentos do próprio Estado e os particulares não 
 possam ou devam, razoavelmente, esperar alterações radicais no curso do 
 desenvolvimento legislativo normal» (Os princípios constitucionais estrutrantes 
 da República Portuguesa, Coimbra, 2004, pág. 263). No entanto, face ao valor 
 constitucional contraposto do interesse público, a que o legislador está  também 
 vinculado, o autor reconhece que «o alcance prático do princípio da protecção da 
 confiança só é delimitável através de uma avaliação ad hoc que tenha em conta as 
 circunstâncias do caso concreto e permita concluir, com base no peso variável 
 dos interesses em disputa, qual dos princípios deve merecer prevalência». E no 
 plano da ponderação do peso das posições relativas dos particulares, acentua que 
 
 «as expectativas têm de ser legítimas», excluindo que possam assumir qualquer 
 relevo valorativo às posições sustentadas «em ilegalidades ou em omissões 
 indevidas do Estado»   (ob. cit., págs. 264 e 267)
 
  
 Também o Tribunal Constitucional tem já firmado o entendimento de que o 
 princípio do Estado de direito democrático postula «uma ideia de protecção da 
 confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do 
 Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas 
 e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas», conduzindo à 
 consideração de que «a normação que, por natureza, obvie de forma intolerável, 
 arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança 
 jurídica que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como 
 dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida 
 como não consentida pela a lei básica» (entre outros, o acórdão n.º 303/90, in 
 Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17º vol., pág. 65).
 
  
 
 6. Segundo o disposto no artigo 289º, n.º 1, do Código Civil, «tanto a 
 declaração de nulidade como a anulação de negócio têm efeito retroactivo, 
 devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em 
 espécie não for possível, o valor correspondente». O que é, em geral, entendido 
 como significando que há lugar à reposição das coisas no estado anterior ao 
 negócio, com a consequente repetição do indevido e não apenas daquilo com que 
 qualquer das partes se tenha locupletado. 
 
  
 O tribunal recorrido efectuou, contudo, uma redução teleológica e considerou 
 que, tratando-se de contratos de execução continuada, a declaração de nulidade 
 não abrangia as prestações já realizadas, sendo esta  a interpretação normativa 
 que se alega ser passível de violar o princípio da segurança jurídica.
 
  
 O que se verifica, porém, no caso em apreço, é que a ré, ora recorrente, tomou 
 ela própria a iniciativa de outorgar com a autora, aqui recorrida, os contratos 
 de prestação de serviços relativos a actividades económicas que, nos termos do 
 disposto na Lei n.º 46/77, de 8 de Julho, estavam vedadas a empresas privadas. 
 E, na sequência da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo, 
 que a condenou no pagamento de importâncias referentes às contra-prestações 
 devidas pelos serviços prestados, veio invocar, em recurso jurisdicional, a 
 nulidade dos contratos por terem sido celebrados contra disposição legal 
 imperativa.
 
  
 Neste condicionalismo, foi a ré, na sua qualidade de contraente público e 
 entidade adjudicante, que deu azo à outorga dos contratos administrativos 
 feridos de invalidade, ao escolher como co-contratante uma entidade que, pela 
 sua natureza, estava impedida de realizar, nos termos da lei, as prestações que 
 constituiam o objecto da relação contratual.
 
  
 A ré criou motu proprio a situação de ilegalidade que determinou a declaração de 
 nulidade dos contratos, e agiu, por conseguinte, em desconformidade com a lei e, 
 como tal, em claro desrespeito pelo princípio da legalidade, que se encontra 
 constitucionalmente consagrado e constitui uma regra basilar de todo e qualquer 
 procedimento administrativo (cfr. artigos 266º, n.º 2, da Constituição e 3º, n.º 
 
 2, do Código de Procedimento Administrativo).
 
  
 Transpondo para o caso dos autos os princípios acabados de expor quanto à tutela 
 da confiança, facilmente se constata que não existe qualquer expectativa 
 legítima, por parte da entidade administrativa, relativamente a uma 
 interpretação normativa que não implique a destruição retroactiva do negócio 
 jurídico e a consequente restituição do indevido, quando a declaração de 
 nulidade é decorrente da própria actuação ilícita dessa entidade.
 E, de resto, qualquer outra interpretação do artigo 289º do Código Civil que 
 conduzisse à liquidação dos contratos em termos que permitisse à ré eximir-se ao 
 pagamento das contra-prestações devidas pelos serviços prestados em execução do 
 negócio nulo, corresponderia a um verdadeiro abuso de direito na modalidade de 
 venire contra factum proprium, na medida a que implicaria a violação do seu 
 próprio dever de restituição resultante da conformação do contrato viciado (que 
 a eficácia ex tunc da declaração de nulidade sempre impunha) e, 
 consequentemente, um injustificado enriquecimento à custa do co-contratante que 
 teria derivado de uma actuação ilícita que lhe é directamente imputável.
 
  
 O que bem evidencia a inexistência, na esfera jurídica da ré, de qualquer 
 posição jurídica que devesse ser salvaguardada através de uma outra 
 interpretação da lei.
 
  
 Não há, pois, nenhum motivo para considerar verificada a violação do princípio 
 da segurança jurídica.
 
  
 
  
 III. Decisão
 
  
 Termos em que se decide negar provimento ao recurso.
 
  
 Sem custas, por não serem devidas, tendo em conta que o processo foi instaurado 
 antes da entrada em vigor das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 
 
 324/2003, de 24 de Fevereiro (artigo 14º, n.º 1).
 
  
 
  
 Lisboa, 12 de Março de 2009
 Carlos Fernandes Cadilha
 Ana Maria Guerra Martins
 Maria Lúcia Amaral
 Vítor Gomes
 Gil Galvão