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Processo n.º 143/08
 
 1ª Secção
 Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
 
  
 ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA 1ª SECÇÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
 
                                                                        
 
 
 No 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Guimarães foi, em 5 de 
 Novembro de 2007, proferido o seguinte despacho:
 
  
 No presente Incidente de Qualificação de Insolvência relativo a A., S.A., veio a 
 B. pronunciar-se, nos termos do art. 188.º n.º 1, do C.I.R.E.. pela qualificação 
 da insolvência como culposa. 
 O Senhor Administrador de Insolvência emitiu parecer, nos termos do art. 188.º 
 n.º 2, do C.I.R.E., concluindo pela qualificação da insolvência como fortuita, 
 parecer que foi acompanhado pelo Ministério Público, conforme consta de fls. 23. 
 
 
 Estabelece o art. 188.º n.º 4, do C.I.R.E., que “Se tanto o administrador da 
 insolvência como o Ministério Público propuserem a qualificação da insolvência 
 como fortuita, o juiz profere de imediato decisão nesse sentido, a qual é 
 insusceptível de recurso”.
 Cumpre, porém, face ao disposto no art. 204.º da Constituição da República 
 Portuguesa, apreciar da conformidade constitucional do preceito supra 
 transcrito. 
 Estabelece o art. 202.º nºs. 1 e 2, da Lei Fundamental, que: 
 
 “1. Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a 
 justiça em nome do povo. 
 
 2. Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos 
 direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da 
 legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e 
 privados”. 
 Conforme reconhece Jorge Miranda, in “Manual de Direito Constitucional”, Tomo V, 
 
 3.ª edição, pág. 20, o art. 202.º, n.º 2, da Constituição da República 
 Portuguesa, consagra um princípio de reserva absoluta de competência dos 
 tribunais, um princípio de reserva de jurisdição. 
 Tal significa que está reservada aos tribunais a prática de actos materialmente 
 jurisdicionais, os quais se definem pelas seguintes características: 
 a) a resolução de um conflito de interesses num caso concreto; b) que tal 
 resolução deva obedecer a cânones ou critérios normativos jurídicos: c) que a 
 prática do acto não tenha outro fim senão esse mesmo de dar uma solução jurídica 
 ao conflito. 
 
 É o que decorre da jurisprudência do Tribunal Constitucional, de que se citam, a 
 título de exemplo, os acórdãos n.º 182/90, publicado no D.R. II Série, de 
 
 11.09.1990. n.º 496/96, publicado no D.R., II Série, de 17.07.1996. n.º 443/91, 
 publicado no D.R., II Série, de 2.02.1991, n.º 98/88, publicado no D.R., II 
 Série, de 22.08.1988. e n.º 71/84, publicado no D.R., II Série, de 2.02.1985. 
 Por outro lado, a exigência de que o acto materialmente jurisdicional seja 
 devolvido à competência de um tribunal implica a atribuição de poderes 
 decisórios a um órgão jurisdicional hoc sensu: não basta, por outras palavras, 
 que um determinado órgão tenha competência materialmente jurisdicional para que 
 seja considerado “tribunal”; é necessário que se trate de um órgão independente 
 e exclusivamente sujeito à lei — Cfr. o ac. n.º 71/84, já acima citado. 
 A reserva de jurisdição assume um especial relevo enquanto expressão do 
 princípio da separação de poderes e enquanto garantia do direito fundamental de 
 acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, consagrado no art. 20.º da 
 Constituição da República Portuguesa. 
 Na verdade, a garantia de defesa dos direitos e interesses legalmente 
 reconhecidos que a todos é assegurada, pressupõe a possibilidade de sujeição dos 
 conflitos de interesses públicos e privados à apreciação de tribunais, órgãos 
 independentes e apenas sujeitos à lei. 
 Que dizer, então, no caso em apreço? 
 O novo regime da insolvência introduziu um novo incidente destinado a apurar se 
 a insolvência é fortuita ou culposa, entendendo-se que esta última se verifica 
 quando a situação tenha sido criada ou agravada em consequência da actuação, 
 dolosa ou com culpa grave (presumindo-se a segunda em certos casos), do devedor, 
 ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao 
 início do processo de insolvência. 
 A qualificação da insolvência como culposa implica sérias consequências para as 
 pessoas afectadas, o que vem na linha de um dos objectivos da reforma 
 introduzida pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, qual seja, o de 
 obtenção de uma maior e mais eficaz responsabilização dos titulares de empresa e 
 dos administradores de pessoas colectivas. 
 Por outro lado, o art. 188.º n.º 1, do C.I.R.E., reconhece a qualquer 
 interessado a possibilidade de alegar, por escrito, o que tiver por conveniente 
 para efeito da qualificação da insolvência como culposa. 
 Entre os interessados devem incluir-se os credores da insolvência: basta ter em 
 consideração que, nos termos do art. 189.º n.º 2, al. d) do C.I.R.E., a 
 qualificação da insolvência como culposa implica, para as pessoas afectadas, a 
 perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente e a 
 sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento 
 desses créditos, redundando tal qualificação num claro beneficio para os demais 
 credores. 
 Existe, por isso, um conflito de interesses a decidir de acordo com critérios 
 exclusivamente jurídicos, aplicando as disposições legais que prevêem os 
 comportamentos susceptíveis de acarretar a qualificação da insolvência como 
 culposa. 
 Ora, o art. 188.º, n.º 4, do C.I.R.E., a ser interpretado no sentido de que o 
 juiz está vinculado à qualificação da insolvência como fortuita, mesmo nos casos 
 em que um interessado tenha requerido a qualificação como culposa, subtrai ao 
 tribunal a resolução do conflito de interesses, na medida em que o acto a 
 proferir tem um conteúdo integralmente heterodeterminado — pelos pareceres do 
 administrador da insolvência e do Ministério Público que, sem que haja nisto 
 qualquer desprimor, não se integram na noção constitucional de “tribunal”. 
 Somando a isto a circunstância de a “decisão” a proferir pelo tribunal nem 
 sequer ser susceptível de impugnação em via de recurso, afigura-se, por outro 
 lado, forçoso concluir que o normativo em crise veda, de forma injustificada, o 
 acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva por parte dos 
 interessados na qualificação da insolvência como culposa. 
 
 É certo que, segundo defendem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in 
 Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Volume IL págs. 22 
 a 23. na interpretação do art. 188.º n.º 4, do CIRE., tem de se entender que, se 
 estiver evidenciado qualquer dos factos que importam a qualificação da 
 insolvência como culposa, ocorre ilegalidade dos parecer, que o juiz deve 
 declarar. 
 A questão subsiste, contudo, nos casos em que, no momento da prolação do 
 despacho em causa, não é manifesta a verificação de qualquer dos factos de que 
 depende a qualificação da insolvência como culposa — v.g., por estar dependente 
 de prova. 
 Nesses casos — como é o presente — afigura-se que o art. 188.º, n.º 4, do 
 C.I.R.E., acarreta uma grosseira violação dos artigos 20.º e 202.º n.º 2, da 
 Constituição da República Portuguesa, não justificada pela salvaguarda de 
 qualquer outro direito ou interesse constitucionalmente protegido — ainda que se 
 entenda que a tão proclamada desjudicialização é algo mais do que um chavão 
 retórico em voga... 
 Assim e pelo exposto, decide-se: 
 a) Não aplicar o disposto no art. 188.º, n.º 4, do C.I.R.E., com fundamento na 
 sua inconstitucionalidade material, quando interpretado no sentido de que o juiz 
 está vinculado, face aos pareceres do administrador da insolvência e do 
 Ministério Público, a qualificar a insolvência como fortuita, nas situações em 
 que um interessado requereu a qualificação como culposa; 
 b) Ordenar a notificação da Insolvente e a citação dos administradores João 
 Manuel Ferreira Ribeiro e Fernando José do Amaral Pinto Ferreira, para se 
 oporem, querendo e em 15 dias, à qualificação da insolvência como culposa, 
 devendo a notificação e as citações ser acompanhadas dos pareceres do 
 Administrador de Insolvência e do Ministério Público, bem como do requerimento 
 de fls. 2 a 3, nos termos do art. 188º, n.º 5, do C.I.R.E. 
 Notifique, sendo o Ministério Público para os efeitos previstos no art. 280.º, 
 n.º 1, al. a) e n.º 3, da Constituição da República Portuguesa. 
 
  
 
  
 O representante Ministério Público no aludido Tribunal interpôs recurso deste 
 despacho para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
 
  
 O Magistrado do Ministério Público junto deste juízo, vem, ao abrigo do disposto 
 no artigo 280.º, nº.s 1, al. a) e 3.º, da Constituição da Republica Portuguesa, 
 artigos 70.º, nº. 1, al. a), 72.º, n.º 1 al. a) e 75.º-A, todos da Lei n.º 
 
 28/82, de 15/11, com as alterações introduzidas pelas Leis nº.s 143/85, de 
 
 26/11, 85/89, de 7/9, 88/95, de 1/9 e 13-A/98, de 26/2, interpor recurso do 
 douto despacho de fls. 25 a 29, proferido no âmbito dos autos de Insolvência de 
 
 “A., S.A.” – apenso “C”, que recusou a aplicação do artigo 188.º n.º 4 do CIRE 
 
 (Código de Insolvência e Recuperação de Empresa), com fundamento da sua 
 inconstitucionalidade material, por violar o disposto nos artigos 20.º e 202.º, 
 n.º 2, da CRP. 
 
  
 O recurso foi admitido com efeito meramente devolutivo, a subir imediatamente e 
 em separado por despacho que não vincula o Tribunal Constitucional.
 Conclusos os autos ao relator, foi proferida a seguinte decisão:
 
  
 Nos recursos de fiscalização concreta de inconstitucionalidade previstos no 
 artigo 70º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC) o carácter instrumental da 
 decisão do Tribunal Constitucional constitui um pressuposto da sua 
 admissibilidade. Tal entendimento, desde sempre afirmado na jurisprudência do 
 Tribunal, impõe que a decisão que for proferida tenha efectiva repercussão no 
 processo, fazendo caso julgado quanto à questão suscitada. Ora, o efeito de caso 
 julgado está dependente, em primeiro lugar, da própria natureza da decisão 
 recorrida, o que naturalmente só se verifica quando essa decisão, na parte 
 relevante ao recurso de inconstitucionalidade, se mostrar definitiva.
 Acontece que no caso em presença a decisão de desaplicação da norma não permite 
 antecipar a solução dela resultante. Isto é: não se sabe ainda se, como 
 resultado do processo desaplicativo, resultará uma solução jurídica contrária à 
 determinação normativa, e só esse resultado habilita, nos termos já expostos, a 
 intervenção do Tribunal Constitucional, pois só assim a sua decisão terá 
 efectiva repercussão no processo, alterando ou confirmando, com efeito de caso 
 julgado, aquela decisão.
 Impõe-se, por isso, que o processo seja devolvido ao Tribunal recorrido a fim de 
 que, oportunamente, se possa verificar a ocorrência do aludido requisito quando 
 for proferida decisão final quanto à qualificação da insolvência de que tratam 
 os autos.
 
  
 
 É contra esta decisão que o representante do Ministério Público no Tribunal 
 Constitucional reclama para a conferência, ao abrigo do artigo 78º-A n.º 3 da 
 Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC), nos seguintes termos:
 
             
 O representante do Ministério Público junto deste Tribunal, notificado do douto 
 despacho da p. 33 – que substancialmente implica o não conhecimento do recurso 
 obrigatoriamente interposto pelo Ministério Público, por não ser definitiva a 
 decisão recorrida – vem reclamar para a conferência, nos termos do artigo 78º-A, 
 nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, com os seguintes fundamentos: 
 
 1.º
 O artigo 188.º, n.º 4, do CIRE vincula efectivamente o juiz ao parecer conjunto 
 do administrador da insolvência e do Ministério Público, que considere ser a 
 mesma meramente “fortuita”, impondo-lhe, neste caso, a prolação “imediata” de 
 decisão que consagre tal qualificação. 
 
 2º
 No caso dos autos, o juiz julgou materialmente inconstitucional tal 
 interpretação normativa, abstendo-se, em consequência, de proferir “de imediato” 
 a decisão em que qualificaria a insolvência como fortuita, determinando, pelo 
 contrário, que os autos prosseguissem, a fim de ser dado cumprimento ao 
 princípio do contraditório, facultando aos interessados a controvérsia sobre a 
 natureza da insolvência. 
 
 3º
 Ora, nesta interpretação que fazemos dos termos da decisão recorrida, ao ter-se 
 abstido o juiz de proferir decisão imediata sobre a qualificação da insolvência, 
 em consonância com o dito parecer conjunto (e apesar de tal tema ser 
 controvertido por parte da credora), acabou por proferir decisão “definitiva” – 
 não naturalmente sobre a qualificação da insolvência, mas sobre a imperatividade 
 do regime prescrito no n.º 4 do artigo 188.º do CIRE. 
 
 4º
 Termos em que entendemos que – salvo melhor opinião – se verificam os 
 pressupostos do recurso interposto pelo Ministério Público, dada a efectiva e 
 definitiva recusa de aplicação de tal regime normativo. 
 
  
 Não houve resposta à reclamação, cumprindo decidir.
 
  
 A questão suscitada na presente reclamação tem a ver com os pressupostos da 
 intervenção do Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta de 
 constitucionalidade, nos termos previstos no artigo 70º n.º 1 da Lei n.º 28/82 
 de 15 de Novembro, designadamente quanto ao recurso previsto na alínea a) do já 
 referido preceito.
 
             Ora, para além dos requisitos próprios de cada um dos recursos 
 previstos nas diversas alíneas do mencionado artigo 70º da LTC, o Tribunal tem 
 decidido reservar a sua intervenção, na área da fiscalização concreta, aos casos 
 em que a sua decisão se reveste de utilidade. 
 A utilidade mede-se pela repercussão que a decisão do Tribunal Constitucional 
 tem no processo, influenciando, com a força de caso julgado, a solução jurídica 
 da causa. Acontece que a repercussão que a decisão do Tribunal Constitucional 
 possa ter no processo depende, como parece ser intuitivo, da natureza da própria 
 decisão recorrida e da virtualidade que apresenta para decidir, de forma 
 tendencialmente definitiva, qualquer questão que se imponha ao conhecimento do 
 tribunal.
 No presente caso, entendeu a decisão recorrida que o artigo 188.º n.º 4 do 
 C.I.R.E. – interpretado no sentido de no momento da prolação do despacho 
 qualificativo, o juiz estar vinculado à qualificação da insolvência como 
 fortuita, ainda que lhe tenha sido requerida, por um interessado, a qualificação 
 da insolvência como culposa, e não ser manifesta a verificação de qualquer dos 
 factos de que depende a qualificação da insolvência como culposa, 
 designadamente, por estarem dependentes de prova –,  constituiria 'uma grosseira 
 violação dos artigos 20.º e 202.º n.º 2, da Constituição, não justificada pela 
 salvaguarda de qualquer outro direito ou interesse constitucionalmente 
 protegido'. Por isso, o tribunal recorrido anunciou que não iria aplicar a dita 
 norma, com fundamento na sua inconstitucionalidade material, pelo que prosseguiu 
 a tramitação processual para instrução e posterior decisão do incidente.
 
 É, assim, manifesto que a invocada 'desaplicação' da norma não apresenta, na 
 lógica da própria decisão recorrida, qualquer relevo decisório.
 Na verdade, o Tribunal recorrido fez um juízo, de carácter opinativo, de 
 desconformidade constitucional abstracta da norma que apenas se traduziu no não 
 acatamento dos efeitos adjectivos indirectamente decorrentes da aplicação da 
 norma, aqueles que imporiam ao juiz o julgamento imediato ou automático da 
 questão. 
 A decisão recorrida nada adiantou sobre o efeito substantivo da mesma norma, 
 isto é, sobre a classificação da insolvência. Bem vistas as coisas, era até 
 totalmente dispensável o juízo de inconstitucionalidade proferido, que não 
 motivou a decisão de qualquer questão e, principalmente, que nenhuma força de 
 caso julgado tem no processo.
 Deste modo, é bem certo que é na fase da classificação da insolvência que o 
 tribunal recorrido irá, de forma potencialmente definitiva, recusar – em 
 concreto – a aplicação da norma; e é nessa decisão – na medida em que ela se 
 afasta, ou não, da previsão legal –, que se revela a efectiva utilidade do 
 recurso de inconstitucionalidade, dependente, como está, de a classificação 
 adoptada ser diversa daquela que haveria de resultar da aplicação da norma. 
 Resulta do exposto que o Tribunal não pode conhecer do presente recurso, pelo 
 que decide confirmar a decisão de não conhecimento.
 Sem custas.
 Lisboa, 6 de Maio de 2008
 Carlos Pamplona de Oliveira
 Maria João Antunes
 Gil Galvão