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Processo n.º 283/07
 
 3ª Secção
 Relator: Conselheiro Vítor Gomes
 
  
 
  
 
  Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
 
  
 
  
 
                  1.A. e B. reclamaram, ao abrigo do n.º 4, do artigo 76.º da Lei 
 n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), do despacho de 23 de Novembro de 2006, do 
 relator do processo no Supremo Tribunal de Justiça, que não admitiu recurso que 
 interpuseram para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do 
 artigo 70.º da LTC, do acórdão daquele Supremo Tribunal, de 19 de Dezembro de 
 
 2006. 
 
                  Neste acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça, julgando 
 procedente recurso interposto de acórdão da Relação que decidira em sentido 
 favorável aos recorrentes, absolveu do pedido C., por considerar que não é 
 judicialmente exigível o dever de esta abrir a porta do gavetão onde repousam os 
 restos mortais do seu ex-marido e filho dos recorrentes, para que estes possam 
 contemplar a urna e manter aí objectos de culto, por ser comportamento que 
 respeita a uma obrigação natural, cujo incumprimento é insusceptível de 
 imposição coactiva, nos termos do artigo 402.º do Código Civil.
 
  
 
                  O despacho reclamado não admitiu o recurso com fundamento em 
 que os recorrentes não suscitaram oportunamente a questão de constitucionalidade 
 e não se tratar de uma situação excepcional ou anómala que dispensasse desse 
 
 ónus.
 
  
 
                  Os reclamantes sustentam que a interpretação e a aplicação do 
 art.º 402.º do CC ao caso, “com que só aí foram confrontados, tem de 
 considerar-se, na economia do processo, totalmente imprevisível, inesperada – e, 
 logo por isso, violadora do princípio da confiança dos destinatários das normas 
 legais recorrente ao outro princípio constitucional estruturante que é o do 
 Estado de direito democrático (art.º 2.º) – excepcional ou mesmo insólita e 
 surpreendente. Não cabia, pois, aqui a existência do prévio juízo de prognose 
 relativo à própria aplicação dessa norma (até mais do que à interpretação que 
 lhe é dada para o efeito) ou que antevisse a possibilidade dessa aplicação”. E 
 isto porque “as partes discutiram a questão e as instâncias decidiram-na, tanto 
 na providência cautelar apensa como na acção principal, à luz do direito de 
 propriedade do gavetão do jazigo ou, inversamente, do seu exercício abusivo por 
 ofensa do direito a praticar o culto ao cadáver do filho, causando moléstia ou 
 prejuízo aos Recorrentes, herdeiros para este efeito, da personalidade moral e 
 do seu direito ao repouso eterno, da sua memória, do sítio em que repousa o 
 supremo e degradado objecto dela, e do culto a essa memória, direitos 
 imateriais, ínsitos no direito geral da personalidade dos Recorrentes, cuja 
 protecção e defesa lhes compete”.
 
  
 
  
 
                  O Exmo. Procurador-Geral adjunto emitiu o seguinte parecer:
 
  
 
 “A presente reclamação é, a nosso ver improcedente, pela circunstância de os ora 
 reclamantes não terem suscitado, durante o processo, qualquer questão de 
 inconstitucionalidade normativa, susceptível de servir de base ao recurso de 
 constitucionalidade interposto, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do art.º 
 
 70.º da Lei n.º 28/82.
 E não se diga que – perante o objecto do litígio e a eventualidade de lhe vir a 
 ser aplicada decisão final desfavorável – não tinham o ónus de o fazer: na 
 verdade, todo o litígio entre as partes se articulava em torno de uma ponderação 
 entre a tutela dos direitos de personalidade e ao culto dos mortos, invocados 
 pelos ora reclamantes, e o direito de propriedade sobre o local do sepulcro, 
 cabendo naturalmente aos ora reclamantes o ónus d suscitar a 
 inconstitucionalidade da interpretação normativa que fizesse prevalecer a tutela 
 da propriedade. Note-se que a decisão do Supremo, ao reconhecer a tutela dos 
 interesses invocados pelos reclamantes ao nível das obrigações naturais não pode 
 propriamente qualificar-se como “decisão surpresa”, de conteúdo “insólito” ou 
 
 “imprevisível”. Note-se, ainda, que em rigor – não nos parece que a norma 
 constante do art.º 402.º do CC constitua, só por si, a “ratio decidendi” do 
 acórdão recorrido, tendo a figura (e a incoercibilidade) típico das “obrigações 
 naturais” de ser articulada com a interpretação adoptada quanto ao âmbito do 
 art.º 71.º do CC – e sendo inquestionável que tal norma sempre foi convocada 
 como relevante e decisiva para a dirimição da causa.
 Pelas razões apontadas, somos de parecer que se não verificam efectivamente os 
 pressupostos de admissibilidade do recurso interposto”.
 
  
 
  
 
 2.        Para decisão da reclamação interessa considerar as ocorrências 
 processuais seguintes:
 a)        Os ora reclamantes propuseram contra C., viúva do seu filho D. uma 
 acção em que, além do mais, pediram a condenação da ré a facultar-lhes o acesso 
 
 à urna do falecido, abrindo a porta do gavetão quando pretendam ou cedendo-lhes 
 a chave do mesmo, bem como a devolver-lhes os objectos de culto que retirou e a 
 aceitar a sua reposição no interior do gavetão;
 b)       O tribunal de 1ª instância julgou o pedido improcedente, tendo os ora 
 reclamantes interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa;
 c)        O Tribunal da Relação de Lisboa concedeu provimento ao recurso, com 
 fundamento em que não pode deixar de merecer tutela jurídica, ao abrigo do n.º 2 
 do artigo 71.º do Código Civil, “a pretensão por parte dos Autores de praticarem 
 o culto junto e em contemplação da urna do seu filho, não obstante a mesma se 
 encontrar depositada em gavetão pertencente à Ré, uma vez que se encontra 
 provado que a porta do referido gavetão é em mármore e não possibilita qualquer 
 visualização da urna do exterior”e que “ponderando o fim social e económico do 
 direito de propriedade da Ré sobre o gavetão (a que não pode ser alheia a 
 especificidade que lhe advém da circunstância do referido gavetão depositar os 
 restos mortais de uma pessoa, neste caso, o respectivo cônjuge que, 
 concomitantemente, é filho dos Autores), há que entender por ilegítimo o seu 
 exercício, nos termos previstos no citado artº 334º, por obstar a que os Autores 
 possam prestar culto à memória do filho contemplando a urna”.
 d)       Concedendo provimento a recurso interposto pela ré, por acórdão de 19 
 de Dezembro de 2007, o Supremo Tribunal de Justiça absolveu-a do pedido com a 
 seguinte fundamentação:
 
  
 
 “[…]
 
 1- Direito mortuário. 
 
 É “thema decidendum” saber se a recorrente está ou não obrigada a abrir a porta 
 do gavetão aos recorridos ou facultar-lhes a respectiva chave, para que estes 
 possam ter acesso à uma do filho, aí sepultado. 
 Indiscutível a propriedade do sepulcro que, independentemente do título causal, 
 ficou assente ser pertença da recorrente. 
 Crê-se, contudo, que a questão não deve ser abordada em termos de exercício de 
 um direito real mas sim noutra sede. 
 E “causa petendi” o direito de “culto à memória do filho” que os recorridos 
 alegam ter. 
 O destino a dar ao corpo, após a morte, varia, ao longo dos tempos, de acordo 
 com as concepções sociais e religiosas vigentes, tendo por base a preocupação de 
 zelar pelo futuro “post mortem” ou tão somente, pelo culto, como manifestação de 
 amor, de saudade, de privação, de respeito. 
 Se o mais frequente é a inumação, quer em cova aberta, depois aterrada, quer à 
 superfície, com espessa cobertura de terra e pedras, quer em depósito numa 
 cavidade, o certo é que muitas outras modalidades se perfilam (cremação, 
 imersão, abandono, exposição sobre plataforma, mumificação, antropologia, etc. – 
 cf Dr. Victor M. Lopes Dias, “Cemitérios, Jazigos e Sepulturas”, 1, 14). 
 O culto público dos mortos, com expressão visível na arte tumular – muitas vezes 
 monumentos emblemáticos de uma civilização, como as pirâmides ou o Taj Mahal – 
 nos panteões nacionais – como o “Pantheon français”, a “Dome des Invalides” ou o 
 nosso Panteão Nacional – ou em certas zonas de grandes monumentos religiosos – 
 
 “Westminster Abbey”. Escorial, Alcobaça, Jerónimos – são formas de perpetuar a 
 memória de cidadãos que se distinguiram nas artes, na ciência, na política, 
 enfim. 
 Já a tumulária privada representa – quando não mera ostentação de uma linhagem – 
 o culto da memória, da personalidade moral, da presença dolorosa de uma ausência 
 definitiva de alguém estremecido e que queremos, e cremos, assim libertar da 
 
 “lei da morte”, do esquecimento de que falava Camões. 
 Se ninguém pode ser privado da possibilidade de prestar culto a seus mortos, de 
 conviver com a sua memória e com a sua saudade, o certo é que as manifestações 
 externas desse recolhimento variam com a personalidade de cada um, os ritos 
 religiosos, os usos da comunidade, as tradições familiares ou de grupo. 
 As várias culturas têm, nessa perspectiva, calendarizados os “dias dos 
 defuntos”, como, e em expressão característica a cultura confucionista onde 
 todas as Primaveras, pela altura da terceira lua do ano, se faz a cerimónia 
 cultural dos antepassados, segundo a qual a primeira alma – a materializada na 
 terra, por ligada ao cadáver (que não a etérea, que se desprende do corpo para 
 ingressar no cosmos) mantém, por esse culto, a continuidade da família. 
 Na Constituição da República e no Código Civil não se encontra consagrado 
 expressamente o direito ao culto dos mortos. 
 Ali consagra-se, apenas, genericamente, a liberdade de consciência, de religião 
 e de culto – artigo 41° n°1 – numa clara perspectiva de livre opção, de prática 
 religiosa. 
 Já o CC se limita à tutela geral dos direitos de personalidade, ainda que depois 
 da morte do respectivo titular (artigo 71°). 
 Por sua vez, o chamado “direito mortuário”, constituído por um conjunto de 
 diplomas – DL n° 433/82, de 27 de Outubro, 411/98, de 30 de Dezembro, alterado 
 pelos DL n° 5/2000, de 29 de Janeiro e 138/2000, de 13 de Julho – destina-se, 
 nuclearmente, a estabelecer o regime jurídico da remoção, transporte, inumação, 
 exumação, transladação e cremação de cadáveres e aos actos relativos às ossadas, 
 cinzas, fetos mortos e peças anatómicas, bem como localização de cemitérios. 
 Confere – artigo 3º do DL n° 411/98 – legitimidade para requerer a prática 
 daqueles actos, e por esta ordem, ao testamenteiro (em cumprimento de disposição 
 testamentária), ao cônjuge sobrevivo, ao unido de facto, a qualquer herdeiro, a 
 qualquer familiar, a qualquer pessoa ou entidade, ao representante diplomático 
 ou consular do país da nacionalidade (se o falecido não tiver nacionalidade 
 portuguesa). 
 Daí que toda a gestão do destino do cadáver, e as respectivas exéquias, cumpra, 
 em primeira linha (e na ausência de disposição testamentária especifica) ao 
 cônjuge sobrevivo. 
 Presume o legislador que o cônjuge após um comungar de vida com o falecido, e 
 tendo partilhado bons e maus momentos na gestão da família, melhor conhece a sua 
 personalidade, interpretando o que ele desejaria se ainda pudesse optar. 
 Ademais, colocando-o a par dos descendentes, na primeira classe de sucessíveis – 
 artigo 2133° n° 1 a) do CC – privilegiando-o em matéria de alimentos – artigos 
 
 2015° a 2018° CC – conferindo-lhe a tutela – artigo 143° n°1 a) CC – e a 
 curatela – artigo 156° CC – o legislador faz ressaltar o relevante papel de um 
 cônjuge em relação ao outro. 
 Mas não será por esta via que se buscará o destino da lide. 
 E que, 
 
 2- Obrigações naturais. 
 Estamos no âmbito das obrigações naturais. 
 Dispõe o artigo 402° do CC “a obrigação diz-se natural, quando se funda num mero 
 dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, 
 mas corresponde a um dever de justiça.” 
 São pressupostos – ou requisitos positivos – o basear-se a obrigação num dever 
 moral ou social e ao seu cumprimento corresponder um dever de justiça. 
 E requisito negativo a sua não coercibilidade. 
 Vejamos. 
 
 2.1- Como acima se acenou o culto dos mortos faz parte da tradição da nossa 
 sociedade com forte enraizamento na cultura judaico-cristã. 
 Como se disse no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 11 de Dezembro de 2003 — 
 
 03B2523 — brilhantemente relatado pelo Cons. Pires da Rosa, “aí nesse espaço ou 
 local concreto, onde estão os cadáveres ou as ossadas dos que nos são queridos, 
 ou onde repousam as cinzas daqueles que amámos (ainda que esse local seja o mar 
 ou uma roseira no jardim), aí fazemos o centro do culto dessa memória que é 
 nossa e da personalidade moral de que a morte do corpo da pessoa amada nos fez, 
 apesar de nós, depositários.” 
 Deixar viver essa memória dos entes queridos, designadamente, como aqui, aos 
 pais de um jovem falecido prematuramente aos 30 anos de idade (e haverá maior 
 dor do que perder um filho; a revolta de perder parte de nós?...) é um 
 indiscutível dever moral e social. 
 Privar uns doridos pais da proximidade possível do “sítio da memória”, e por 
 muito conflitual que seja a relação, é incumprir esse dever, é o olvidar 
 ostensivo de permitir que ali, no recolhimento intranquilo, chorem a sua perda. 
 Mas não basta o dever moral, como dever de consciência. 
 O dever de consciência tem de ser também um dever de justiça, senão o seu 
 cumprimento traduz-se numa mera liberalidade. 
 O dever de justiça não se confunde com o mero dever genérico de caridade, com o 
 dever social de cortesia, com o mero dever de gratidão ou com o propósito de 
 gratificar ou retribuir um serviço. 
 Só há obrigação natural “quando os tribunais entendem que uma consideração de 
 moralidade merece ser satisfeita e o direito não a consagrou. A obrigação 
 natural compreende tudo o que não é nem uma mera obrigação civil munida de 
 acção, nem uma pura liberalidade.” (Prof Vaz Serra, apud “Obrigações Naturais”, 
 in BMJ, 53-13, citando Planiol, Ripert e Radouant, “Obligations – 2°, VII, 
 
 “Traité Pratique de Droit Civil Français” n° 983). 
 Ou como refere o Prof. Almeida Costa: “Claro que o ponto de partida da indagação 
 reside na própria consciência da pessoa que realiza a prestação, no pensamento 
 que a inspira.” 
 Trata-se do “cumprimento ou reconhecimento voluntário – efectuado em obediência 
 a um dever moral e de justiça, e não com o intuito de fazer uma liberalidade. 
 Contudo, um escrúpulo de consciência meramente subjectivo não bastará para 
 justificar uma obrigação natural. Seria ir demasiado longe. Importa que esse 
 dever de consciência corresponda às concepções sociais, que se mostre 
 objectivamente aprovado e tido como normal. Em resumo: compete à jurisprudência, 
 de harmonia com as concepções predominantes e nas circunstâncias concretas de 
 cada situação, averiguar primeiro, se existe um dever moral ou social e, 
 seguidamente, se esse dever moral ou social é tão importante que o seu 
 cumprimento envolve um dever de justiça.” (in “Direito das Obrigações”, 10ª ed., 
 
 176). 
 Há que apurar se esse dever também respeita à consciência jurídica. 
 Terão de ser deveres morais ou sociais juridicamente relevantes, mas que não 
 devem ser transformados em figuras de direito. 
 
 É o “distinguo” entre os simples deveres morais ou sociais e as obrigações 
 naturais “quo tale”, sempre que tal não integre uma obrigação civil. 
 A mera existência de um dever de justiça, que não uma obrigação jurídica, 
 torna‑as obrigações imperfeitas (lege humana non prohibuntur omnia vitia”). 
 O Prof. Vaz Serra já reconhecia ser “extremamente difícil” aquela distinção 
 sendo “delicada a investigação destinada a apurar se, nelas, um princípio 
 jurídico geral mais ou menos preciso (suum cuique tribuere, neminem laedere, 
 honeste vivere) as erige à altura de verdadeiras obrigações jurídicas.” (ob. 
 cit. 37). 
 Crê-se que a solução está em averiguar se o dever moral ou social, em concreto, 
 deve ser reconhecido em termos de legitimar obrigações. 
 Isto é se devem merecer alguma tutela do direito, por corresponderem a um dever 
 de justiça, embora com exclusão da coercibilidade. 
 E tal caracterização varia com a tempo e com as sociedades. 
 Terá de ser feita uma valoração casuística com apelo ao sentir social ou às 
 concepções sociais dominantes, desde que razoáveis e não eivadas de qualquer 
 tipo de fundamentalismo obscurantista. 
 Os tribunais são chamados a pronunciar-se “a priori” quanto a obrigações 
 naturais, em regra sobre a irrepetibilidade, mas podendo antes e até em acção 
 para tal intentada qualificar a obrigação como natural ou civil (cf. Prof. 
 Manuel de Andrade – “Noções Elementares de Processo Civil”, 1979, 79 ss; o 
 Acórdão do STJ de 10 de Maio de 1983 – 070707). 
 Ainda o Prof. Manuel de Andrade apontava para “as circunstâncias do caso” e para 
 o “reconhecimento pelo direito natural, que só cura do justo” (in “Direito Civil 
 
 – Teoria Geral das Obrigações”, 1955, n°14). 
 
 “Para que haja obrigação natural é necessário que exista como fundamento da 
 prestação, um dever moral ou social específico entre pessoas determinadas cujo 
 cumprimento seja imposto por uma recta composição de interesses (ditames da 
 justiça)” – cf. Prof. A. Varela, “Das obrigações em geral”, 9ª ed., I, 748). 
 Quem decide sobre a existência (objectiva) do dever no caso em controvérsia é o 
 julgador baseado na consciência colectiva (Oppo in “Adempimento e liberalità”, 
 n°52). 
 Dir-se-á, ainda, que a obrigação natural não se restringe a prestações 
 pecuniárias, ou avaliáveis em dinheiro, mas a qualquer tipo de prestação ainda 
 que não remuneratória. 
 
 2.2- Aqui chegados, e concluindo-se da matéria de facto que os recorridos 
 tiveram, até certa altura (mudança de fechadura do gavetão) contacto directo com 
 o interior (aí colocando objectos) e assim prestando o seu culto à memória do 
 filho; verificando-se que esse tipo de culto faz parte da tradição cultural, 
 para, nas palavras de Virgílio Ferreira, procurar ‘justificar a vida em face da 
 inverosimilhança da morte”, o dever de não impedir esse contacto assume a 
 natureza de um dever de justiça. 
 Estão presentes os pressupostos da obrigação natural. 
 Só que, e de acordo com o citado artigo 404° do Código Civil não há 
 coercibilidade do vínculo obrigacional, por a obrigação ser imperfeita ou de 
 juridicidade reduzida. 
 Este é o traço mais saliente das obrigações naturais, ou seja o seu cumprimento 
 não é judicialmente exigível por ausência da coercibilidade jurídica sendo que 
 tratando-se de prestações financeiras entregues ocorre a irrepetibilidade. 
 Há, em consequência, plena liberdade de incumprir por o direito do credor não 
 ser accionável. 
 São, pois, arredadas todas as disposições das obrigações civis conectadas com a 
 realização coerciva da prestação. 
 
 “E a necessidade de preservar a incoercibilidade da obrigação natural tem ainda 
 como consequência, quanto às prestações periódicas, que a realização da 
 prestação relativa a certo período não vincula o devedor ao cumprimento das 
 prestações correspondentes aos períodos subsequentes.” (Prof. A. Varela, ob. 
 cit. 1, 758). 
 A falta de possibilidade de impor coactivamente o cumprimento desse dever de 
 justiça, que resulta do artigo 402° do CC, inviabiliza a procedência desta acção 
 de condenação. 
 Mas sente-se, ainda que como mera observação lateral e parafraseando Alexandre 
 O’Neill, que quando a morte nos dá todas as razões de amarmos sem reservar 
 sentimentos, bem andaríamos se pudéssemos partilhar esses sentimentos autênticos 
 com grande paz interior. 
 
 3- Conclusões. 
 Pode concluir-se que: 
 a) Ninguém pode ser privado da possibilidade de prestar o culto aos seus mortos, 
 de conviver com a sua memória e com a sua saudade sendo que a exteriorização 
 desse recolhimento varia com os usos da comunidade, as tradições familiares ou 
 de grupo, os ritos religiosos ou, enfim, a personalidade de cada um. 
 b) A Constituição da República, o Código Civil e o direito mortuário – DL n°s 
 
 433/82, 422/98, 5/2000 e 138/2000 – não consagram expressamente o direito ao 
 culto dos mortos. 
 e) São pressupostos das obrigações naturais o basear-se a obrigação num dever 
 moral ou social e o seu cumprimento corresponder a um dever de justiça. E 
 requisito negativo a sua não coercibilidade. 
 d) Privar os pais da proximidade possível do túmulo do filho é incumprir um 
 dever social ou moral, não permitindo que, no recolhimento intranquilo, chorem a 
 sua perda. 
 e) O dever de consciência assume a natureza de dever de justiça quando não é um 
 mero dever social de cortesia ou uma liberalidade mas corresponde a uma situação 
 tão socialmente relevante que merece certa tutela do direito, embora não se 
 transforme em dever jurídico gerador de obrigação civil. 
 f) Cumpre aos tribunais decidir, após apreciação casuística, e com apelo ao 
 sentir social e às razoáveis concepções dominantes, se um determinado dever 
 moral ou social tem ínsito um principio jurídico de natureza geral e merece 
 alguma tutela, por reconhecimento pelo direito natural. 
 g) Da obrigação natural, que não se limita a obrigações pecuniárias, mas a 
 qualquer tipo, ainda que não remuneratório, estão arredadas as disposições das 
 obrigações civis conectadas com a realização coactiva da prestação.” 
 
  
 e)        Os recorrentes interpuseram recurso deste acórdão para o Tribunal 
 Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, por 
 requerimento do seguinte teor:
 
  
 
 “2. Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 402.° 
 do CC ou, mais rigorosamente, a sua interpretação e aplicação ao caso concreto e 
 que conduziu ao resultado constante da decisão recorrida do mesmo passo que 
 afasta da Constituição, do Código Civil e do direito mortuário, o direito ao 
 culto dos mortos, premissa (al. b) das Conclusões) que inculca a opção, prévia, 
 formal e dedutiva, pela aplicação da “noção” de obrigação natural e uma 
 interpretação normativa que, erigida como foi (ou pode vir a ser) em critério 
 jurisprudencial, no pressuposto de uma vocação de generalidade e abstracção, se 
 mostra inconciliável com a Constituição. – Cfr. Lopes do Rego, Jurisprudência 
 Constitucional, n°. 3, págs. 7 a 10. 
 
 3. Com efeito, a interpretação e a aplicação daquele preceito violam, na medida 
 em que arredam e excluem a aplicação destes, o art.º 70°. n°. 1 do Código Civil, 
 que consagra o direito geral da personalidade (dos Recorrentes) que é um direito 
 fundamental materialmente constitucional (art.° 16°. n°. 1 da CRP), que assenta 
 no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e da vontade popular 
 
 (art°. 1º) e do princípio do estado de direito democrático (art.° 2.°); – Cfr., 
 naquele sentido, Capelo de Sousa, Direito Geral da Personalidade (Cap. IV, 15°., 
 
 3.) pág. 620, Coimbra Editora, 1995, que cita, em apoio dessa sua tese, G. 
 Canotilho e V. Moreira, in CRP Anotada, agora 4ª edição Coimbra Editora, 2007, 
 pág. 366, e Jorge Miranda, desde Constituição de 1976, Formação, Estrutura, 
 Princípios Fundamentais, Liv., Petrony, 1978, pág. 351. 
 Assim como violam, o art.º 71°. n°. 1 e 2, ainda do CC, na medida em que “os 
 direitos de personalidade” gozam igualmente de protecção depois da morte do 
 respectivo titular fazendo-lhe corresponder “providências adequadas”, e 
 especificando quem tem legitimidade para as requerer. A tal ponto que se pode 
 falar, para além de direitos especiais de personalidade de pessoas falecidas 
 expressamente regulados, de uma tutela geral da personalidade do defunto, de 
 natureza ontológica já que a personalidade cessa com a morte e o que resta dela 
 se traduz em bens jurídicos imateriais – Cfr. Capelo de Sousa, obra citada, pág. 
 
 193. 
 
 4. Para além disso, a interpretação normativa e aplicação do art°. 402.° pela 
 forma excludente em que o foi ao concreto, tendo em conta o art.º 16°, n.º. 2, 
 da CRP, que manda interpretar e integrar os preceitos constitucionais e legais 
 relativos aos direitos fundamentais de harmonia com a Declaração Universal dos 
 Direitos do Homem (designadamente art°. 7.º, 18°. e 26°. n°.2) viola esse 
 preceito quando conjugado com a liberdade de culto (art°. 41°. da CRP), com a 
 integridade moral garantida às pessoas (art.º 25°. N.º 1) e com a protecção 
 legal contra quaisquer formas de discriminação (art°. 26.°, 1, in fine), no caso 
 os Recorrentes, enquanto pais do marido da Recorrida. 
 
 5. Tal interpretação normativa e o seu resultado plasmado na decisão, viola 
 também o próprio direito à vida já que, “o cadáver, enquanto suporte da vida 
 mesma, não deixa assim de beneficiar de uma tutela legal que se filia, ainda de 
 que de forma remota e não exclusiva, no direito consagrado no art°. 24°. da 
 Constituição... - Cfr. Jorge Miranda, Constituição Portuguesa Anotada, pág. 245, 
 Coimbra editora, 2005. 
 
 6. A questão de inconstitucionalidade não foi, nem razoavelmente o poderia ter 
 sido, suscitada nos autos não tendo os Recorrentes disposto de oportunidade 
 processual para levantar a questão antes de proferir o douto acórdão. 
 Com efeito, a interpretação e a aplicação do art.° 402.° do CC ao “casus 
 decidendum”, tem de considerar-se, na economia do processo, totalmente 
 imprevisível e inesperada e, logo por isso, violadora do princípio da confiança 
 dos destinatários das normas legais recorrente ao outro princípio constitucional 
 estruturante que é o do Estado de direito democrático (art°. 2°.). – Cfr. ACTC 
 n°. 509/2006, de 26/06/2006, n°. 336, de 6/03/96, nº 432, de 7/04/94, 188, de 
 
 3/03/93, n.º 473, de 10/12/92, n.° 261, de 23/07/86. 
 
 É que as partes discutiram a questão e as instâncias decidiram-na, tanto na 
 providência cautelar apensa como na acção principal, à luz do direito de 
 propriedade do gavetão do jazigo ou, inversamente, do seu exercício abusivo por 
 ofensa do direito a praticar o culto ao cadáver do filho, causando moléstia ou 
 prejuízo aos Recorrentes, herdeiros para este efeito, da personalidade moral e 
 do seu direito ao repouso eterno, da sua memória, do sítio em que repousa o 
 supremo e degradado objecto dela, e do culto a essa memória, direitos 
 imateriais, ínsitos no direito geral da personalidade dos Recorrentes, cuja 
 protecção e defesa lhes compete.” 
 
  
 f)          O recurso não foi admitido, tendo sido proferido despacho do 
 seguinte teor:
 
  
 
 “O recurso a que se referem os artigos 280.º n.º 1, alínea b) e n.º 4 da 
 Constituição da República e 70.º, n.º 1 alínea b) e n.º 2 da Lei n.º 28/82 
 depende da verificação simultânea dos seguintes requisitos: aplicação de norma 
 após a sua submissão a um juízo de inconstitucionalidade; suscitação da 
 inconstitucionalidade no decurso do processo pela parte que recorre; 
 inadmissibilidade de recurso ordinário para esgotamento dos que ao caso 
 caberiam.
 Ora, não se mostra, desde logo, aplicada qualquer norma que, no decurso do 
 processo, os recorrentes tivessem assacado de desconformidade à Constituição, 
 quer em si mesmo, quer na interpretação que o Tribunal lhe deu.
 Daí que a aventada inconstitucionalidade não seja de conhecer por não se tratar 
 de norma cuja inconformidade com o diploma fundamental tenha sido, antes, 
 suscitada pela recorrente e não ter a norma, assim impugnada, sido objecto de 
 aplicação.
 No tocante a oportunidade, o Acórdão do TC n.º 153/93 (DR II, 16 de Março de 
 
 1993) sedimentou jurisprudência admitindo que se excepciona a regra – em sentido 
 funcional, que não formal – da suscitação da constitucionalidade em situações 
 anómalas “em que o interessado não disponha de oportunidade processual para 
 levantar a questão antes de proferida a decisão” (cfr. ainda o Acórdão do TC de 
 
 19 de Junho de 1991 – BMJ 408-616).
 Serão em regra situações de interposição de uma lei nova ou quando não é 
 exigível um “juízo prévio de prognose relativo à aplicação (da norma ou da 
 interpretação questionada) em termos de se antecipar ao proferimento da decisão, 
 suscitando logo a questão da inconstitucionalidade”.
 Como tal não se verificou “in casu” – designadamente quanto a qualquer 
 interpretação do artigo 402.º do CC conectada com a CRP – não admito o recurso.
 Ademais, o recurso para o Tribunal Constitucional destina-se a clarificar a 
 aplicação de norma, um segmento ou uma interpretação, desconforme à lei 
 fundamental, que não a impedir, ou protelar, o trânsito de um decaimento, o que 
 cada vez mais (e não é apodíctico no caso vertente) acontece.
 Custas pelos recorrentes, com 6 UCs de taxa de justiça.
 Notifique.” 
 
  
 
  
 
                  3. É este o despacho reclamado que assenta em dois passos 
 essenciais de raciocínio: os recorrentes não suscitaram a questão de 
 constitucionalidade que querem submeter a apreciação do Tribunal Constitucional 
 e não se trata de uma situação em que o cumprimento desse ónus deva 
 considerar-se não exigível, de acordo com a jurisprudência do Tribunal 
 Constitucional.
 
                  Vejamos.
 
                  Os recorrentes aceitam que não suscitaram perante o tribunal 
 que proferiu a decisão recorrida a questão de constitucionalidade de qualquer 
 norma, designadamente, daquela cuja apreciação agora pretendem submeter ao 
 Tribunal Constitucional. Mas sustentam que se verifica uma daquelas situações 
 excepcionais ou anómalas em que não é possível aplicar a regra da exigência da 
 arguição da inconstitucionalidade até à decisão, porque não era exigível que 
 antevissem a possibilidade de aplicação da norma do artigo 402.º do Código Civil 
 ao caso concreto. 
 
                  
 
                  Efectivamente, recai sobre as partes o ónus de perspectivar as 
 várias hipóteses razoáveis de selecção e interpretação do direito potencialmente 
 aplicável à situação e de suscitar antecipadamente as inconstitucionalidades daí 
 decorrentes. É que, como se ponderou, entre muitos, no acórdão nº 479/89, 
 publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1992, 'não pode 
 deixar de recair sobre as partes o ónus de considerarem as várias possibilidades 
 interpretativas das normas de que se pretendem socorrer, e de adoptarem, em face 
 delas, as necessárias cautelas processuais (por, outras palavras, o ónus de 
 definirem e conduzirem uma estratégia processual adequada). E isso – 
 acrescentar-se-á – também logo mostra como a simples 'surpresa' com a 
 interpretação dada judicialmente a certa norma não será de molde (ao menos, 
 certamente, em princípio) a configurar uma dessas situações excepcionais [...] 
 em que seria justificado dispensar os interessados da exigência da invocação 
 
 'prévia' da inconstitucionalidade perante o tribunal a quo'. 
 
                  Mas, reafirmada esta regra, como o Tribunal Constitucional tem 
 repetidamente afirmado, o recorrente pode ser dispensado do ónus de invocar a 
 inconstitucionalidade “durante o processo” nos casos excepcionais e anómalos em 
 que não tenha disposto processualmente dessa possibilidade, sendo então 
 admissível a arguição em momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os 
 acórdãos deste Tribunal com os n.ºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, 
 respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 
 
 663 e no Diário da República, II, de 28 de Maio de 1994).
 Assim, já será exigência desproporcionada impor esse juízo de prognose em 
 situações em que determinada norma apenas é chamada à decisão do caso pelo 
 tribunal de último grau de recurso, sem que a discussão travada ao longo do 
 processo e as decisões anteriores nele tomadas tenham versado sobre tal 
 possibilidade, sequer pela referência a um determinado instituto ou complexo 
 normativo a que a norma respeita ou em que se insere, e sem que exista uma 
 corrente jurisprudencial ou doutrina consistente que sejam idóneas para alertar 
 a comunidade dos operadores judiciários, medianamente informados, cautelosos e 
 capazes, para essa outra perspectiva de solução do litígio. Nestas 
 circunstâncias, por mais pertinente que a aplicação da norma ou o sentido 
 normativo adoptado nessa fase processual venha a revelar-se, deve considerar-se 
 tal aplicação imprevisível para efeitos de, num entendimento funcional dessa 
 exigência, não vedar o acesso ao Tribunal Constitucional por incumprimento do 
 
 ónus de suscitar a questão de constitucionalidade de modo processualmente 
 adequado em termos de o tribunal que proferiu a decisão recorrida estar obrigado 
 a dela conhecer.
 
  
 
                  Ora, é certo que sempre esteve em discussão saber se a ré 
 estava ou não obrigada a abrir a porta do gavetão aos recorridos ou 
 facultar-lhes a respectiva chave, para que estes possam ter acesso à urna do 
 filho, aí sepultado, e a deixar aí permanecer certos objectos de culto. Estava 
 em causa determinar se os ora reclamantes podiam reclamar protecção jurídica, no 
 confronto com a recorrida, para um certo modo de prestar culto aos restos 
 mortais de seu filho. Mas a questão sempre foi discutida na acção por 
 contraposição ao direito de propriedade (ou equivalente para efeitos do poder de 
 exclusão de terceiros, de acordo com o regime jurídico dos cemitérios) e seu 
 exercício abusivo por parte da ré, ao inviabilizar esse modo de exteriorização 
 do culto, por parte dos autores, à memória do filho. A sentença de 1ª instância 
 entendeu que a ré se mantinha nos limites do exercício do seu direito e a 
 Relação que excedia os limites inerentes ao seu fim social.
 
                  Foi contra a perspectiva da Relação, de que aos ora reclamantes 
 assistia o direito de desenvolver o culto nesses termos e de que a ré fazia um 
 uso abusivo do seu direito de propriedade ao impedi-los, que esta se insurgiu no 
 recurso de revista, sustentando que a sua conduta não ofendia a memória do 
 falecido nem os direitos dos recorrentes e de que a recusa em aceder à pretensão 
 destes traduz um uso do seu direito de propriedade sobre o gavetão que não viola 
 o art.º 334.º do Código Civil. Os ora reclamantes contrapuseram o seu 
 entendimento quanto a essas mesmas normas que a aí recorrente considerava 
 violadas. 
 
                  O Supremo Tribunal de Justiça considerou indiscutível a 
 propriedade do sepulcro que, independentemente do título causal, ficou assente 
 ser pertença da recorrente. Mas entendeu que a questão não devia ser abordada em 
 termos de exercício de um direito real, mas sim noutra sede. E, assim, entendeu 
 que a pretensão que os recorrentes querem tornar judicialmente efectiva contra a 
 ré quanto ao concreto modo de exercício do “culto à memória do filho” releva de 
 um obrigação natural, nos termos do artigo 402.º do Código Civil, não podendo 
 ser coactivamente imposto, face ao que dispõe o artigo 404.º do mesmo Código. É 
 nítida a diferença de perspectiva e a deslocação da questão para o âmbito de 
 outro instituto jurídico. Enquanto que até então, nas intervenções contrapostas 
 das partes e nas decisões judiciais de 1ª instância e da Relação, a legitimidade 
 da resistência da ré a satisfazer a pretensão dos autores era analisada a o 
 abrigo do poder exclusivo inerente ao direito de propriedade (jus excludendi 
 omnes allios) e, depois de considerada legítima em 1ª instância fora afastada 
 pela Relação, por se considerar um exercício abusivo do direito, agora o dever 
 de facultar aos ex-sogros as condições para esse modo de prestar culto à memória 
 do filho é perspectivada como consubstanciado uma obrigação natural, 
 insusceptível portanto de imposição coerciva. 
 
                  Assim, tendo presente os termos em que tinha decorrido toda a 
 discussão anterior, quer em 1ª instância, quer no recurso perante a Relação, e 
 os termos em que a parte contrária alegara no recurso de revista, a 
 circunstância de as partes não terem sido previamente confrontadas com a 
 possibilidade desse novo enquadramento da questão não existir qualquer corrente 
 jurisprudencial que fizesse antever esta outro modo de encarar o enquadramento 
 jurídico da questão – o acórdão do STJ, de 11 de Dezembro de 2003, citado no 
 acórdão recorrido, versa sobre o 'culto dos mortos', mas a questão que decide é 
 de diferente natureza e não faz referência directa ou implícita à natureza do 
 dever dos 'proprietários' dos jazigos facultarem o acesso aos demais familiares 
 do defunto –, considera-se que a aplicação das normas respeitantes às obrigações 
 naturais para integrar o critério jurídico de solução da questão controvertida, 
 não era razoavelmente previsível. Consequentemente o Tribunal entende valorando 
 conjugadamente estas circunstâncias, não ser exigível que a questão de 
 constitucionalidade destas normas tivesse sido colocada pelos recorrentes 
 perante o Supremo Tribunal de Justiça, antes de ser proferido o acórdão 
 recorrido.
 
  
 
  
 
                  4. Mas o reconhecimento de que os recorrentes têm razão quanto 
 a este pressuposto do recurso de constitucionalidade não implica o deferimento 
 da reclamação.
 
                  Com efeito, constitui jurisprudência uniforme, fundada no facto 
 de a decisão que refira a reclamação constituir caso julgado quanto à 
 admissibilidade do recurso (n.º 4 do artigo 77.º da LTC), que, para deferir a 
 reclamação, ainda que não confirme o fundamento que levou à não admissão do 
 recurso pelo despacho reclamado, o Tribunal deve verificar se estão satisfeitos 
 todos os requisitos e pressupostos para que o recurso deva prosseguir. E que o 
 recorrente deve, se não o tiver feito antes, aproveitar a reclamação para suprir 
 as deficiências de que o requerimento de interposição do recurso padeça e que 
 possam comprometer o prosseguimento deste.
 
  
 
                  Ora, quando o recorrente questiona apenas uma certa 
 interpretação de uma norma, torna-se necessário que precise o sentido com que a 
 norma foi aplicada e sobre que deve recair a apreciação de constitucionalidade, 
 de modo a que o Tribunal possa verificar os respectivos pressupostos de 
 admissibilidade do recurso e balizar a discussão e, vindo ela a ser considerada 
 inconstitucional com esse sentido, o possa enunciar no juízo de 
 inconstitucionalidade para que a decisão recorrida seja reformada em 
 conformidade. Só assim se cumpre, quando a norma que constitui objecto de 
 recurso não é a que emerge de um dado preceito na sua simples literalidade, o 
 
 ónus, que é do recorrente, de identificar o objecto (material) do recurso (Cfr. 
 acórdão n.º 178/95, publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Junho 
 de 1995, a que muitos outros se seguiram)
 
                  Assim, quando o não tiver feito no requerimento de interposição 
 do recurso, o interessado tem de proceder a essa precisa indicação do sentido 
 normativo que quer submeter a julgamento de inconstitucionalidade na reclamação 
 contra o despacho de não admissão do recurso – tal como tem de aproveitar essa 
 oportunidade para suprir as demais indicações exigidas pelo artigo 75.º-A da 
 LTC, porventura em falta naquele requerimento – a fim de que a decisão da 
 reclamação possa constituir decisão definitiva sobre o conhecimento do recurso. 
 Como este Tribunal tem vindo a entender, o cumprimento destes ónus não 
 representa simples observância do dever de colaboração das partes com o 
 Tribunal; constitui, antes, o preenchimento de requisitos formais essenciais ao 
 conhecimento do objecto do recurso (Cfr., entre muitos, acórdão n.º 430/06, 
 disponível em www.tribunalconstitucional.pt). 
 
  
 
                  Ora, é evidente que a norma do artigo 402.º do Código Civil, 
 isoladamente considerada e tomada na sua literalidade, não fornece o critério de 
 decisão adoptado pelo acórdão recorrido. Foi aplicada num específico sentido, 
 integrado por elementos relativos ao “culto dos mortos” e aos direitos de 
 personalidade e às relações entre as partes, que os reclamantes deveriam 
 enunciar, porque essa é que constitui a norma aplicada. 
 
                  Os recorrentes aperceberam-se disso ao dizerem que pretendem 
 
 'ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 402.º do CC ou, mais 
 rigorosamente, a sua interpretação e aplicação ao caso concreto e que conduziu 
 ao resultado constante da decisão recorrida do mesmo passo que afasta da 
 Constituição, do Código Civil e do direito mortuário, o direito ao culto dos 
 mortos, premissa (al. b) das Conclusões) que inculca a opção, prévia, formal e 
 dedutiva, pela aplicação da “noção” de obrigação natural e uma interpretação 
 normativa que, erigida como foi (ou pode vir a ser) em critério jurisprudencial, 
 no pressuposto de uma vocação de generalidade e abstracção, se mostra 
 inconciliável com a Constituição'. Mas nunca procedem à enunciação desse 
 critério normativo mediante uma proposição com um mínimo de precisão, de modo a 
 poder distinguir-se da apreciação do caso concreto e poder suportar a 
 fiscalização de constitucionalidade, num sistema em que o que tem de ser 
 confrontado com a Constituição são as normas aplicadas – embora em determinado 
 sentido ou dimensão com que foram assumidas pela decisão recorrida – e não as 
 decisões judiciais que as aplicam em si mesmas consideradas. Tudo o que os 
 reclamantes seguidamente desenvolvem, quer no requerimento de interposição do 
 recurso, quer na reclamação, é para demonstrar o que, no seu entender, é o 
 desacerto da decisão, seja quanto à aplicação da norma, seja quanto à sua 
 interpretação em relação  aos direitos de personalidade e outros, que consideram 
 
 (directamente) violados pela decisão recorrida, o que não cabe na competência 
 cognitiva do Tribunal Constitucional. Mas nunca procederam à enunciação do 
 sentido normativo que querem ver recusado, de tal modo que teria de ser o 
 Tribunal a proceder à identificação do sentido normativo do artigo 402.º do 
 Código Civil operante no caso concreto, o que quer dizer que teria de ser o 
 Tribunal a identificar autonomamente a norma que constitui objecto de 
 apreciação. Ora, este é um ónus que a lei põe a cargo do recorrente e cuja 
 omissão não pode ser ultrapassada nem, agora, suprida.
 
  
 
                  Aliás, como salienta o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, a norma 
 constante do artigo 402.º do CC dificilmente pode ser erigida, só por si, em 
 ratio decidendi do acórdão recorrido, tendo a figura e a incoercibilidade das 
 
 “obrigações naturais” de ser articuladas com o entendimento adoptado, pelo 
 menos, quanto ao âmbito dos direitos de personalidade, para que a pretensão de 
 tutela que os recorrentes reclamam cobre sentido. 
 
  
 
                  Consequentemente, embora por razões não coincidentes com as do 
 despacho reclamado, a reclamação não pode ser atendida.
 
  
 
  
 
 5. Decisão
 
  
 
                  Pelo exposto, acordam em indeferir a reclamação e condenar os 
 recorrentes nas custas, fixando a taxa de justiça em vinte unidades de conta de 
 taxa de justiça.
 Lisboa, 12 de Março de 2007
 Vítor Gomes
 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
 Artur Maurício