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Processo n.º 890/06
 
 2.ª Secção
 Relator: Conselheiro Mário Torres
 
  
 
   
 
    Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
 
  
 
  
 
                                  1. Relatório
 
                                  O Ministério Público deduziu acusação contra 
 A., B. e as sociedades C., L.da, e D., L.da, pela prática de um crime de fraude 
 fiscal.
 
                                  Inicialmente condenados, por sentença do 
 Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, os arguidos individuais nas penas de 
 
 12 meses de prisão, suspensas na sua execução pelo período de 3 anos, e as 
 sociedades nas penas de 300 dias de multa à taxa diária de € 10,00, no total de 
 
 € 3000,00, viria, por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 3 de Novembro 
 de 2004, a ser anulado o respectivo julgamento, determinando‑se o reenvio para 
 novo julgamento, “para apuramento da factualidade vertida na contestação em 
 conjugação com a da acusação”.
 
                                  Realizado novo julgamento, foi proferida a 
 sentença de 13 de Julho de 2005, que absolveu todos os arguidos, essencialmente 
 por não se ter “conseguido apurar o valor real da vantagem patrimonial 
 indevida”, pelo que falecia “um dos elementos objectivos do tipo legal de 
 crime”.
 
                                  Desta sentença interpôs recurso o Ministério 
 Público, para o Tribunal da Relação do Porto, alegando contradição insanável da 
 matéria de facto dada como provada com os factos dados como não provados e a 
 fundamentação da convicção do tribunal e errada interpretação das normas 
 jurídicas aplicáveis e consequente errado enquadramento jurídico‑penal da 
 factualidade apurada, e preconizando a substituição da sentença recorrida “por 
 outra que conheça do vício da sentença invocado, embora sem necessidade de 
 repetição de julgamento, atento o âmbito do recurso abranger também matéria de 
 facto, dando‑se como provado o prejuízo efectivamente sofrido pelo Estado em 
 sede de IVA e, consequentemente, se proceda à subsunção da factualidade provada 
 ao crime de fraude fiscal, condenando‑se todos os arguidos pela prática de tal 
 tipo legal, nos termos em que se encontravam acusados”.
 
                                  Na resposta a este recurso, o arguido A. 
 suscitou, além do mais, a questão de inconstitucionalidade de determinada 
 interpretação do artigo 23.º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não 
 Aduaneiras (RJIFNA), aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 20‑A/90, de 15 de Janeiro, 
 nos seguintes termos:
 
  
 
                  “Finalmente, unânime vem sendo a jurisprudência que sufraga que 
 a responsabilidade penal dos arguidos pela prática do crime de fraude fiscal 
 deve ser aferida à luz dos princípios gerais do direito penal, não afastados 
 pelo RJIFNA. Em consequência, uma ampla corrente sustenta ainda que a 
 responsabilidade penal não pode ser aferida com base na determinação do lucro 
 tributável em falta por recurso a métodos indiciários por parte da 
 Administração Fiscal. E isso porque em matéria penal vigora um princípio ou 
 presunção de sentido contrário decorrente, antes de mais, do artigo 32.º, n.º 
 
 2, da CRP. Assim, a fixação da matéria colectável por recurso a métodos 
 indirectos ou meramente indiciários é válida unicamente para efeitos tributários 
 estritos ou, quando muito, de jaez contra‑ordenacional, jamais o podendo ser 
 para efeito de responsabilidade penal. Pelo que a condenação dos arguidos com 
 base em tais presunções, para além dos vícios apontados, volver‑se‑ia numa 
 manifesta inconstitucionalidade que aos Tribunais compete fiscalizar e impedir 
 a respectiva verificação – por todos, vide o acórdão do Tribunal da Relação de 
 Lisboa, de 27 de Fevereiro de 2002, Colectânea de Jurisprudência, tomo I, p. 
 
 152. Ou seja, o artigo 32.º do RJIFNA, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 20‑A/90, de 
 
 15 de Janeiro, quando aplicado assentando os seus elementos essenciais em 
 métodos indirectos ou meramente indiciários de apuramento da prestação 
 tributária, viola o supracitado preceito constitucional.
 
                  O que equivale a dizer que a existência de uma vantagem 
 ilegítima por parte do arguido deverá ser concretamente apurada em sede de 
 audiência de julgamento, inclusive se devendo discutir o método utilizado (o que 
 não sucedeu suficientemente na audiência em análise).”
 
  
 
                                  Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 
 
 7 de Junho de 2006, foi concedido provimento ao recurso do Ministério Público e 
 determinado o reenvio do processo para novo julgamento, “a fim de se apurar se 
 da conduta dos arguidos houve prejuízos para o Estado ou benefícios para os 
 arguidos e, se possível, determinar o montante dos prejuízos‑benefícios, 
 julgamento a realizar nos termos dos artigos 426.º e 426.º‑A do Código de 
 Processo Penal”. Para fundamentar esta decisão, o referido acórdão, após 
 considerações sobre a natureza e requisitos do vício de contradição insanável da 
 fundamentação, expendeu o seguinte:
 
  
 
                  “Ora, é de facto contraditório afirmar, como se faz nos factos 
 provados, que a empresa «C., Lda» falsificou, conjuntamente com a outra empresa 
 arguida, as facturas referidas no ponto 5. dos factos, e concluir depois por 
 afirmar nos factos (ponto 7.) que em sede de IVA procedeu a deduções indevidas 
 deste imposto deixando de entregar nos cofres do Estado os montantes de Esc. 1 
 
 841 100$00 e Esc. 2 431 425$00, e que em sede de IRC declarou um incremento 
 indevido de custos com referência aos exercícios fiscais de 1995 e 1996, de 
 valor igual às compras que indevidamente registou, nos montantes de Esc. 10 830 
 
 000$00 e Esc. 14 302 500$00, para em seguida, nos factos não provados, entender 
 estar não provado que a «C., L.da» tenha tido uma vantagem patrimonial 
 correspondente ao IVA deduzido e não entregue à Administração Fiscal de Esc. 4 
 
 272 525$00 e que o montante em falta a título de IRC fosse de Esc. 4 460 000$00 
 em 1995 e Esc. 1 062 571$00 em 1996.
 
                  Isto é, reconhecendo a falsidade das facturas (ainda que só 
 parcial, na versão da sentença recorrida, uma vez que só em parte, não apurada, 
 essas facturas não titulavam negócios entre as duas empresas), formula‑se depois 
 o juízo fáctico de que houve deduções indevidas de IVA e declaração de custos 
 superiores aos verificados, apontando mesmo os valores assim «indevidamente» 
 retidos e declarados, para depois afirmar que não se provaram afinal aqueles 
 valores.
 
                  Objectivamente ressalta essa contradição do texto da sentença, 
 embora se perceba que o raciocínio do Sr. Juiz era no sentido de que, apesar 
 daqueles valores constantes das facturas, o prejuízo real do Estado‑Fisco não é 
 possível de quantificar porquanto só em parte, não apurada, aqueles valores 
 
 (preços) eram falsos.
 
                  Vejamos então agora se, perante a prova produzida e a constante 
 dos autos, é possível determinar os factos concretos, mas precisando desde já 
 que, não se tendo procedido à transcrição das declarações prestadas em 
 julgamento, não se pode conhecer do teor dessas mesmas declarações, sendo por 
 isso inútil, neste aspecto, as referências feitas no recurso às declarações dos 
 agentes tributários no sentido da confirmação de determinados factos – 
 transcrição essa que se impunha visto que o artigo 412.º, n.º 4, do Código de 
 Processo Penal impõe a transcrição da prova gravada sempre que no recurso se 
 impugne a decisão sobre a matéria de facto, alegando‑se que «as provas impõem 
 decisão diversa da recorrida» e/ou que «as provas devem ser renovadas» (n.º 3, 
 alíneas b) e c)). E só haveria lugar a transcrição no caso de o recorrente fazer 
 referência, na sua motivação, aos suportes magnéticos donde constam as «provas» 
 que impõem decisão diversa da recorrida e/ou devem ser renovadas.
 
                  Mas antes será útil expor o recorte jurídico do crime de que os 
 arguidos vinham acusados.
 
                  Os artigos 103.º do RGIT (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 
 de Junho, em vigor desde 5 de Julho de 2001) e 23.º do RJIFNA têm a seguinte 
 redacção (que apenas não coincide quanto à pena abstracta):
 
  
 
                  «1 – Constituem fraude ... fiscal as condutas ilegítimas 
 tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou 
 pagamento do imposto ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos 
 ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das 
 receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:
 
                  a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam 
 constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações 
 apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente 
 fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável;
 
                  b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam 
 ser revelados à administração tributária;
 
                  c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer 
 quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.
 
                  (...).»
 
  
 
                  À estrutura objectiva do crime pertencem quaisquer das acções 
 referidas no n.º 1, sendo que o crime também pode ser cometido por omissão 
 
 (falta de apresentação de declarações que devam ser apresentadas para 
 fiscalização tributária da matéria colectável e que, consubstanciando a 
 
 «ocultação de factos ou valores», esta ocultação seja querida pelo agente com 
 vista ao não pagamento total do imposto).
 
                  Quer na forma omissiva quer na comissiva por acção, o crime 
 exige uma intenção defraudatória, isto é, uma resolução dirigida à obtenção de 
 vantagens patrimoniais ilegítimas. Elemento subjectivo do crime é, pois, o 
 dolo, ainda que eventual, que consistirá na intenção de praticar a «ocultação ou 
 alteração de factos ou valores», ou de celebrar negócio simulado, com a 
 consciência de que tais actos visam o não pagamento de imposto, imposto a menos 
 do que o devido ou reembolso indevido de imposto, com a consequente diminuição 
 das receitas fiscais.
 
                  É indiferente, para a verificação do tipo, que ocorra um 
 determinado resultado, isto é, o dano para o Fisco. Antes se pretende punir a 
 conduta proibida, independentemente do resultado, ou seja, estamos perante um 
 crime de perigo: a consumação não depende da efectiva obtenção de «vantagens 
 patrimoniais» (Alfredo de Sousa, Infracções Fiscais Não Aduaneiras, 3.ª ed., 
 Almedina, 1998, p. 92; Nuno Sá Gomes, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 376, p. 48), 
 sendo que o crime se consuma no momento da liquidação (sendo esta a cargo do 
 Fisco) ou no momento da autoliquidação (quando o contribuinte entrega a 
 declaração fiscal no termo do prazo de tal apresentação).
 
                  Pois, com efeito, a fraude fiscal reconduz‑se à categoria dos 
 chamados crimes de resultado cortado: a punição a título de consumação basta‑se 
 com a realização parcial da lesão do bem jurídico, conjugada com a existência 
 simultânea do dolo da realização completa ou da realização ulterior da lesão do 
 bem jurídico. A fraude fiscal consuma‑se antes e independentemente da produção 
 do resultado, mas a ocorrência deste resultado determina a agravação da pena.
 
                  Como diz Alfredo de Sousa (ob. cit., p. 89), «para a punição do 
 agente basta comprovar que quis as respectivas acções ou omissões e que elas 
 eram adequadas à obtenção das pretendidas vantagens patrimoniais e à 
 consequente diminuição das receitas tributárias» (no mesmo sentido: acórdão do 
 Tribunal da Relação do Porto, de 3 de Abril de 2002, www.dgsi.pt).
 
                  Apenas a medida da pena deve reflectir a maior ou menor 
 relevância jurídico‑penal do resultado lesivo do património fiscal.
 
                  A vantagem patrimonial ilegítima pretendida é o montante de 
 imposto que o sujeito passivo pretendeu deixar de pagar em consequência da 
 declaração defraudada ou da sua omissão, montante esse que há‑de ser apurado 
 oficiosamente pelo Fisco, fixando a matéria colectável por métodos indiciários 
 e procedendo à liquidação adicional do imposto (artigos 82.º, 83.º e 83.º‑A do 
 CIVA e artigo 51.º e seguintes do CIRC).
 
                  Precisemos, por agora, que, segundo a factualidade dada como 
 provada, a empresa «D.» emitiu a favor da «C.» diversas facturas relativas a 
 compras e vendas de cortiça que, em parte, nunca existiram, desta forma 
 defraudando a Fazenda Nacional (facturas referidas no ponto 5.).
 
                  Como é sabido, é frequente o uso de facturação falsa para 
 documentar falsos custos, tendentes a diminuir a matéria colectável dos 
 impostos que incidem sobre rendimentos residuais determinados pela diferença 
 entre proveitos e custos ou despesas, como sucede com os rendimentos comerciais, 
 industriais, agrícolas, ou das profissões independentes, seja a obter reembolsos 
 fiscais ilegítimos, como sucede em matéria do IVA.
 
                  Inquestionavelmente as facturas eram falsas, pois, como diz 
 Nuno Sá Gomes quanto ao conceito de factura, para efeitos fiscais, «parece de 
 aceitar a noção que, de resto, está suposta no artigo 476.º do Código Comercial, 
 segundo a qual a factura é um documento escrito que incorpora uma declaração 
 expressa onde se discriminam as coisas e serviços e respectivos preços 
 relativos às operações económicas que ocorreram entre duas unidades económicas. 
 E as facturas relativas ao IVA devem revestir os requisitos exigidos nos artigos 
 
 28.º e 35.º do CIVA» (Ciência e Técnica Fiscal, n.º 377, p. 9 e seguintes), sob 
 pena de não serem documentos válidos (artigo 19.º, n.º 3, do CIVA).
 
                  Depois, está fixado na matéria de facto (ressalvada a 
 contradição acima referida) que houve um prejuízo para o Estado‑Fisco, pois que 
 em sede de IVA se procedeu a deduções indevidas deste imposto relativas aos 
 exercícios de 1995 e 1996 e em sede de IRC se declarou um incremento indevido de 
 custos com referência aos exercícios fiscais de 1995 e 1996.
 
                  Ora, bastaria dizer que as facturas eram falsas e que se 
 mostravam adequadas ao fim que os arguidos pretendiam com a sua falsificação 
 para se poder dizer que cometeram o crime de fraude fiscal.
 
                  A única questão será a da punibilidade a título de crime, dado 
 o disposto no n.º 2 do artigo 103.º do RGIT, que diz que estes factos não são 
 puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a € 7500 (2000 contos 
 no RJIFNA, para as pessoas colectivas).
 
                  Quanto à motivação da factualidade dada como não provada, a 
 sentença recorrida discorre: «Assim, e uma vez que a Administração Fiscal admite 
 que as facturas aqui em causa titulassem parcialmente transacções verdadeiras, 
 não foi possível determinar o valor efectivo do IVA retido e não entregue ao 
 Fisco pela sociedade arguida C., L.da, nem, tão‑pouco, aquelas facturas que 
 traduziam efectivamente custos e que podiam ser introduzidas na contabilidade de 
 tal sociedade, e consequentemente qual o lucro tributável e o benefício efectivo 
 obtido com a actividade delituosa. Ora, nos presentes autos apenas possuímos um 
 valor indicativo, obtido pela Administração Fiscal através de métodos 
 indirectos, suscitando‑se ao tribunal dúvida séria e efectiva quanto ao montante 
 efectivo do benefício obtido pela sociedade arguida C., L.da, e seu 
 representante legal com a actividade desenvolvida.»
 
                  Quanto ao IRS, resulta dos factos que a Administração Fiscal 
 recorreu, para a fixação dos valores ali referidos, ao método indiciário de 
 apuramento, e quanto ao IVA deduz‑se que os valores foram retirados dos 
 montantes ali inscritos pelos arguidos.
 
                  Nos termos do artigo 19.º, n.ºs 2 e 3, do CIVA, só pode 
 deduzir‑se o imposto do IVA mencionado em documentos passados em forma legal e 
 que não resulte de operação simulada ou em que não seja simulado o preço.
 O recurso ao método indiciário por parte da Administração Fiscal é legítimo para 
 obter um rendimento real presumido e assim determinar a matéria colectável 
 
 (lucro tributável).
 Tem razão o recorrente quando diz, no que concerne ao IRC, «a Administração 
 Fiscal tem o ónus de demonstrar a factualidade que a levou a desconsiderar um 
 custo contabilizado, factualidade essa que tem de ser susceptível de abalar a 
 presunção da veracidade das operações da escrita» (...), «a Administração 
 Tributária dever presumir custos mínimos em função das condições concretas do 
 exercício da actividade» (...), «o ónus de fazer a comprovação desses elementos 
 cabe ao contribuinte que substituiu o meio justificativo normal por outro, 
 devendo, portanto, suportar as consequências inerentes ...».
 Só que estas normas não podem servir para determinar a responsabilidade 
 criminal dos suspeitos de prática do crime de fraude fiscal, levando à 
 presunção de um dano, nem a natureza de crime de perigo legitima, face aos 
 princípios da necessidade e da culpa legitima essa presunção, que aliás 
 violaria o princípio da presunção de inocência do arguido (ou, no plano da 
 prova, o princípio in dubio pro reo).
 Como já se disse, este tribunal não dispõe de todos os meios de prova usados no 
 julgamento e não pode, assim, sindicar um eventual erro na apreciação da prova 
 com vista a, possivelmente, superar as contradições da sentença.
 Impõe‑se, por isso, que se proceda a novo julgamento, restrito à superação 
 daquelas contradições entre os factos provados e os não provados, ou seja, para 
 saber se da conduta dos arguidos houve prejuízos para o Estado ou benefícios 
 para os arguidos e, se possível, determinar o montante dos 
 prejuízos‑benefícios, tudo nos termos dos artigos 426.º e 426.º‑A do Código de 
 Processo Penal.”
 
  
 
                                  É contra este acórdão que, pelo arguido A., vem 
 interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º 
 da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal 
 Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, 
 por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), constando do 
 respectivo requerimento de interposição que se pretendia ver apreciada “a 
 inconstitucionalidade dos artigos 23.º, n.ºs 1, 2, alíneas a) e c), 3, alíneas 
 a) e e), e 4, e 7.º, n.º 1, do (...) RJIFNA, na versão do Decreto‑Lei n.º 
 
 394/93, de 24 de Novembro, actualmente punido nos termos dos artigos 103.º, n.º 
 
 1, alíneas b) e c), e 104.º, n.º 1, alínea d), do RGIT, mormente na 
 interpretação que lhe foi conferida pela douta decisão recorrida”, porquanto “as 
 referidas normas, que, de acordo com a sentença recorrida (nessa parte em 
 sintonia com a sentença da 1.ª instância), não colocam embaraço a que seja 
 entendido que um resultado ou escrutínio contabilístico/fiscal obtido por 
 métodos estatísticos, indiciários, presuntivos ou indirectos (como se reconhece 
 manifestamente nos doutos arestos), prevaleça para efeito de imputação criminosa 
 dos factos acusados e respectiva condenação, violam – para além dos princípios 
 gerais do direito penal a que devem subordinar‑se (artigo 4.º do RJIFNA) – os 
 artigos 32.º, n.º 2, 8.º, n.º 1, e 27.º, n.º 2, da Constituição da República 
 Portuguesa”.
 
                                  No Tribunal Constitucional, o recorrente 
 apresentou alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
 
  
 
 “A) A douta decisão recorrida que ordena o reenvio do processo para novo 
 julgamento padece de vício de inconstitucionalidade, seja ao consentir uma 
 interpretação do artigo 23.º do RJIFNA que acolhe a possibilidade de imputação 
 criminosa de factos com base em métodos de apuramento da matéria colectável por 
 recurso a padrões, estatísticas e indícios (métodos indirectos/indiciários), 
 seja porque tal reenvio incide e é justificado com a repetição de prova sobre 
 matéria que já mereceu nova e específica produção em anterior [audiência] de 
 julgamento, a qual, de resto, foi sujeita à respectiva gravação.
 B) A consentida interpretação, no douto aresto apreciado, dos artigos 23.º, n.ºs 
 
 1 e 2, alíneas a) e c), n.º 3, alíneas a) e e), e n.º 4, e 7.º, n.º 1, do 
 Decreto‑Lei n.º 20‑A/90, de 15 de Janeiro, na versão do Decreto‑Lei n.º 394/93, 
 de 24 de Novembro, que, pelo menos em sede de IRC, admite a referida imputação 
 criminosa pela via meramente indiciária e sem comprovação fáctica efectiva da 
 realidade económica em que se moveu o contribuinte, choca com um princípio de 
 sentido contrário: o princípio da presunção de inocência do arguido.
 Tal princípio basilar, que limita de modo incontornável o Direito penal e 
 processual penal (daí, como soe dizer‑se, que não é este mais do que direito 
 constitucional aplicado), encontra‑se vertido no artigo 32.º, 1.ª parte, da CRP.
 C) Na verdade, e relativamente a tal imposto, é a própria acusação pública (e o 
 relatório da administração fiscal que lhe subjaz) que desde logo reconhece a 
 impossibilidade de quantificar o montante do proveito/benefício para o 
 contribuinte (admitindo que tenha existido e que nunca se aceitou nem aceita).
 Mas mais, tendo‑se realizado dois julgamentos em primeira instância – o segundo 
 deles com a finalidade elencada pela sentença do Tribunal da Relação do Porto 
 no sentido de que se fizesse um apuramento dos efectivos prejuízos/benefícios 
 fiscais – não se logrou em qualquer deles apurar tal prejuízo/benefício, do 
 fisco e do arguido, respectivamente, e muito menos a sua quantificação exacta.
 D) É certo que a sentença apreciada aflora o princípio da presunção de inocência 
 para efeito da qualificação criminosa dos factos. Porém, nessa tarefa 
 desvaloriza manifestamente a quantificação desses mesmos factos, só assim se 
 percebendo que o reenvio se destine, segundo o que nela pode ler‑se, a «... 
 saber se da conduta dos arguidos houve prejuízos para o Estado ou benefícios 
 para os arguidos e, se possível, determinar o montante dos 
 prejuízos‑benefícios, tudo nos termos dos…».
 E) Inculca claramente o texto do aresto em causa que se reputa admissível, para 
 efeito do preenchimento do tipo legal, a mera existência de um prejuízo, 
 independentemente da respectiva quantificação e modo de quantificação desse 
 mesmo prejuízo para o Estado. Em suma, acolhe‑se a convivência possível entre 
 um juízo de prejudicialidade que conduza à condenação em sede criminal que 
 radique exclusivamente em métodos indiciários.
 F) De outro modo, porém, a decisão recorrida viola o texto constitucional e 
 mais uma vez o preceito constitucional em apreço (artigo 32.º, n.º 2), mas na 
 sua parte final.
 G) Os factos acusados na acusação pública ocorreram entre 1995 e primeira 
 metade de 1996, ou seja, há mais de 10 anos. O arguido recorrente, para além de 
 ter passado pelo périplo de um inquérito demorado e precedido de inspecção 
 tributária, já foi julgado por duas vezes no Tribunal Judicial de Santa Maria da 
 Feira.
 H) Realizou‑se o segundo julgamento mercê de reenvio tendo em vista o apuramento 
 da existência de efectivo benefício para o recorrente e prejuízo para o Estado, 
 tendo o Tribunal de recurso dado nota das questões concretas a dirimir mediante 
 nova produção de prova. Tal reenvio ocorreu nos termos do artigo 426.º do CPP.
 Tendo‑se apurado, em sequência, a decisão respectiva e cuja prova foi 
 devidamente registada mediante gravação.
 I) O Tribunal ora recorrido, porém, tendo em vista o apuramento dos mesmos 
 factos (e menosprezando, em certa medida, a respectiva quantificação), ou seja, 
 o efectivo prejuízo do Estado e benefício do recorrente, ordena novo reenvio ao 
 abrigo do mesmo artigo 426.º, n.º 1, do CPP.
 J) Salvo o devido respeito por melhor opinião, tal aplicação do artigo 426.º, 
 n.º 1, do CPP, que permite uma viabilidade ad infinitum do recurso ao reenvio 
 como forma de apuramento da verdade material, sobretudo quando verse, como é o 
 caso, sobre factos que já foram anteriormente objecto de reenvio, é 
 manifestamente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 2, 
 in fine, da CRP. Tanto mais que tal matéria não só foi o leit motiv da repetição 
 de julgamento já ocorrida como igualmente a prova produzida foi objecto de 
 gravação susceptível de ser compulsada pelas instâncias, seja em ordem a aferir 
 a adequação da matéria dada como provada, seja dirimindo, sem necessidade de 
 reenvio, eventuais contradições existentes e plasmadas na decisão da primeira 
 instância.
 Termos em que deve, por conseguinte, julgar‑se inconstitucionais – e recusada a 
 aplicação no caso concreto – as normas contidas nos artigos 23.º, n.ºs 1 e 2, 
 alíneas a) e c), n.º 3, alíneas a) e e), e n.º 4, e 7.°, n.º 1, do Decreto‑Lei 
 n.º 20‑A/90, de 15 de Janeiro (RJIFNA), na versão do Decreto‑Lei n.º 394/93, de 
 
 24 de Novembro, quando interpretadas no sentido de que é possível a condenação 
 do arguido com base em meras presunções fiscais sobre rendimentos ou de que 
 bastará o respectivo benefício, ainda que identificado sem quantificação por 
 métodos indiciários, para lograr a respectiva condenação. Igualmente deverá 
 recusar‑se a aplicação do artigo 426.º, n.º 1, do CPP, quando a determinação de 
 reenvio ocorra para apuramento de factos que já anteriormente foram objecto de 
 reenvio e a respectiva prova então produzida foi devidamente gravada, porquanto 
 tal aplicação viola as garantias de defesa previstas no artigo 32.º, n.º 2, in 
 fine, da CRP.”
 
  
 
                                  O representante do Ministério Público no 
 Tribunal Constitucional, nas contra‑alegações apresentadas, suscitou a questão 
 prévia do não conhecimento do objecto do recurso:
 
                                  – quanto à questão de inconstitucionalidade 
 reportada ao artigo 23.º do RJIFNA, por o acórdão recorrido não ter feito 
 aplicação da interpretação normativa arguida de inconstitucional pelo 
 recorrente, pois “em lado nenhum se diz, ou se pode inferir que se disse, ser 
 possível condenar o arguido pela prática de um crime de fraude fiscal com base 
 em simples presunções fiscais sobre rendimentos ou de que bastará o respectivo 
 benefício, ainda que identificado sem quantificação, por métodos indiciários”, 
 antes a decisão recorrida expressamente afasta “a possibilidade de recurso aos 
 métodos indiciários para presumir danos e permitir condenações penais, pois de 
 contrário resultaria violado o princípio da presunção de inocência”; e
 
                                  – quanto à questão de inconstitucionalidade 
 reportada ao artigo 426.º do CPP, por não referida no requerimento de 
 interposição de recurso, mas apenas em sede de alegações, o que implica uma 
 inadmissível ampliação do objecto do recurso.
 
                                  Notificado da suscitação destas questões 
 prévias, respondeu o recorrente que, quanto à primeira questão, “além de não ser 
 absolutamente rigoroso afirmar de entre o douto aresto uma clara e expressa 
 renúncia de aplicação dos métodos indiciários na imputação criminosa dos factos 
 
 (mas, unicamente, que, acolhendo‑os, quer ver melhor esmiuçados, com o que não 
 se concorda), e, como tal, sempre plenamente se justifica a pronúncia do 
 Tribunal Constitucional à questão colocada”, e que, quanto à segunda questão, 
 
 “não obstante, por lapso, não tenha sido expressamente indicada a norma jurídica 
 cuja aferição da inconstitucionalidade se pretende apurar (artigo 426.º, n.º 1, 
 do CPP), verdade é que a norma constitucional que se reputa lesada é objecto de 
 indicação em tal peça do arguido recorrente – artigo 32.º, n.º 2, da CRP”, para 
 além de que, “não brotando esta segunda via da inconstitucionalidade levantada 
 
 (a questão do reenvio) senão da decisão última do Tribunal da Relação, como 
 entende o recorrente (já que não questiona, obviamente, o reenvio enquanto tal), 
 discutível sempre seria que não pudesse dela fazer apelo o recorrente senão 
 nesta fase, dado que a interposição de recurso principalmente serve para 
 levantar a questão da norma constitucional que se alvitra como violada”, “aqui 
 não se evidenciando, pois, a necessidade de à mesma fazer referência expressa em 
 todo o iter processual”.
 
                                  Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
 
  
 
                                  2. Fundamentação
 
                                  Há que reconhecer que assiste razão ao 
 Ministério Público relativamente às duas questões conducentes ao não 
 conhecimento do objecto do recurso por ele suscitadas.
 
                                  Na verdade, o acórdão recorrido, embora 
 reconhecendo a legitimidade do recurso aos métodos indiciários por parte da 
 Administração Fiscal, “para obter um rendimento real presumido e assim 
 determinar a matéria colectável (lucro tributável)”, isto é, embora admitindo a 
 recurso a esses métodos em sede fiscal, expressamente afasta a sua extensão 
 quando esteja em causa a determinação da responsabilidade criminal, quando 
 afirma:
 
  
 
                  “Só que estas normas não podem servir para determinar a 
 responsabilidade criminal dos suspeitos de prática de crime de fraude fiscal, 
 levando à presunção de um dano, nem a natureza de crime de perigo o legitima, 
 face aos princípios da necessidade e da culpa legitima essa presunção, que aliás 
 violaria o princípio da presunção de inocência do arguido (ou, no plano da 
 prova, o princípio in dubio pro reo).”
 
  
 
                                  Assim, mesmo admitindo, para efeitos da 
 verificação dos requisitos próprios do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do 
 artigo 70.º da LTC, a equiparação entre as decisões de aplicação de normas 
 arguidas de inconstitucionais e as decisões de aplicabilidade dessas normas 
 
 (isto é, as decisões que considerem aplicável certa norma ao caso em análise, 
 mesmo que a não apliquem de imediato, pelo menos quando esse juízo de 
 aplicabilidade seja susceptível de se constituir em caso julgado no processo em 
 causa), o certo é que, no presente caso, o acórdão ora recorrido não admitiu – 
 antes expressamente rejeitou – a possibilidade de atribuição de relevância ao 
 recurso aos métodos indiciários em sede de determinação da responsabilidade 
 criminal. Não tendo sido aplicada (ou julgada aplicável) a dimensão normativa 
 arguida de inconstitucional pelo recorrente, o recurso é, nesta parte, 
 inadmissível, o que determina o correspondente não conhecimento do seu objecto.
 
                                  O mesmo se passa com a segunda questão de 
 inconstitucionalidade, suscitada apenas nas alegações produzidas no Tribunal 
 Constitucional, pois, como é sabido, o objecto do recurso é definido pelo 
 requerimento através do qual ele é interposto, não podendo as subsequentes 
 alegações ampliá‑lo, mas apenas restringi‑lo. Ora, no requerimento de 
 interposição de recurso nenhuma referência é feita à inconstitucionalidade do 
 artigo 426.º, n.º 1, do CPP, nada indiciando que se tenha tratado de lapso 
 material do recorrente, já que a referência ao artigo 32.º, n.º 2, da CRP 
 encontra justificação por ter sido a norma constitucional desde sempre 
 considerada violada, pelo recorrente, a propósito da primeira questão de 
 inconstitucionalidade, reportada ao artigo 23.º do RJIFNA.
 
                                  A circunstância de o artigo 426.º do CPP apenas 
 ter sido aplicado no acórdão recorrido poderia justificar que se considerasse o 
 recorrente dispensado do ónus da suscitação da correspondente 
 inconstitucionalidade antes de proferida essa decisão, mas, obviamente, não o 
 dispensava de mencionar essa norma no requerimento de interposição de recurso, 
 se pretendia englobá-la no respectivo objecto. Não o tendo feito nesse momento, 
 que era o adequado, já não lhe era lícito aditar essa questão nas alegações de 
 recurso.
 
  
 
                                  3. Decisão
 
                                  Em face do exposto, acordam em não conhecer do 
 objecto do recurso.
 
                                  Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de 
 justiça em 12 (doze) unidades de conta.
 Lisboa, 8 de Março de 2007.
 Mário José de Araújo Torres 
 Benjamim Silva Rodrigues
 Maria Fernanda Palma
 Paulo Mota Pinto
 Rui Manuel Moura Ramos