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Processo n.º 217/08
 
 3ª Secção
 Relator: Conselheiro Vítor Gomes
 
 
 
             Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
 
 
 I- Relatório
 
  
 
 1. A. e B., recorrem para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do 
 n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), do acórdão do 
 Tribunal da Relação de Guimarães que confirmou a sentença que, em incidente 
 instaurado ao abrigo do artigo 188.º do Código da Insolvência e da Recuperação 
 de Empresas (C.I.R.E.), os considerou responsáveis pela insolvência, qualificada 
 como culposa, da sociedade “C. Ldª” e, em consequência: 
 a) decretou a sua inabilitação,  pelo período de três anos, para a prática de 
 quaisquer actos referentes ao seu património ou a patrimónios por si geridos que 
 não sejam de mera administração, sendo necessário para os demais (actos de 
 disposição de bens entre vivos) autorização de curador; 
 b) declarou os mesmos recorrentes inibidos, durante um período de cinco anos,  
 para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de 
 titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada 
 de actividade económica, empresa pública ou cooperativa; 
 c) determinou a perda de quaisquer  créditos sobre a insolvência ou sobre a 
 massa insolvente detidos pelos mesmos e condenou-os a restituir todos os bens ou 
 direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
 
 2. Nas suas alegações perante este Tribunal, os recorrentes sustentaram o 
 seguinte:
 
  
 
 “1ª - Os artigos 186º, nº 2, alíneas a) e d) e 189º nº 2 alínea b) do Código da 
 Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo D.L. n.º 53/2004 
 de 18 de Março, alterado pelo D.L. n.º 200/2004 de 18 de Agosto, estabelecem uma 
 cominação de inabilitação do administrador cuja conduta culposa tenha 
 contribuído ou determinado a insolvência da empresa, presumindo a sua culpa caso 
 destrua, inutilize, oculte, ou faça desaparecer, no todo ou em parte 
 considerável, o património do devedor ou disponha de bens em proveito próprio ou 
 de terceiro. 
 
 2ª - Tais normas prevêem a inabilitação, em paralelo ou simultâneo com a 
 inibição, como uma verdadeira e própria incapacidade jurídica que o Código Civil 
 tipifica como modalidades, a menoridade (artigo 122º) a interdição (artigo 138º) 
 e a inabilitação (artigo 152º). 
 
 3ª - A capacidade jurídica definida no artigo 67º do Código Civil encontra 
 consagração no artigo 26° da Constituição da República Portuguesa como direito 
 fundamental em termos de a todos ser reconhecido o direito à capacidade civil 
 cujas restrições só podem efectuar-se nos casos e termos previstos na lei. 
 
 4ª - Os motivos da restrição devem ser pertinentes e relevantes sob o ponto de 
 vista da capacidade da pessoa e não pode servir de pena ou efeito de pena. 
 
 5ª - A restrição dos direitos fundamentais, como a capacidade civil, devem 
 obedecer aos requisitos de substância resultantes do artigo 18º da CRP, ou seja, 
 que vise salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido, 
 que seja exigida por essa salvaguarda, que seja apta para o efeito e se limite à 
 medida necessária para alcançar esse objectivo e que a restrição não aniquile o 
 direito em causa atingindo o conteúdo essencial do respectivo preceito. 
 
 6ª - A inabilitação prevista no artigo 152º do Código Civil, como a interdição, 
 assenta na demonstração da incapacidade do cidadão de reger o seu património, ou 
 regê-lo convenientemente, pelo que o que se pretende prevenir com uma tal 
 limitação à capacidade jurídica do cidadão é o seu próprio interesse. 
 
 7ª - Ao invés, a inabilitação prevista no artigo 189º nº 2 alínea b) do CIRE 
 visa, primariamente, o interesse dos credores, e não o interesse do próprio 
 inabilitando, pelo que uma tal restrição da capacidade civil não é “pertinente” 
 e “relevante” sob o ponto de vista da capacidade da pessoa e não visa 
 salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido. 
 
 8ª - Na inabilitação a que se refere o artigo 189° do CIRE, além do interesse 
 protegido não ser o do próprio inabilitando mas sim dos credores da insolvente, 
 nada justifica uma tal restrição do direito fundamental na óptica de que a mesma 
 
 é inócua nos efeitos que produz no processo de insolvência ou mesmo nos próprios 
 interesses dos credores. 
 
 9ª - Tal inabilitação assume, pois, carácter ou natureza sancionatória, sendo 
 que a Constituição da República Portuguesa – artigo 26º – não consente que uma 
 restrição (como a inabilitação) de um direito fundamental (como a capacidade 
 jurídica) tenha um efeito de pena. 
 
 10ª - O que conduz ao decretamento da inabilitação é um juízo de culpabilidade 
 na insolvência que recai sobre a pessoa do administrador, culpa que se acha pelo 
 recurso a presunções “iuris et de iure” como as que vêm reflectidas no citado 
 artigo 186º nº 2 do CIRE. 
 
 11ª - O legislador ordinário, em matéria de restrições ao direito fundamental 
 como a capacidade civil não podia instituir um regime que, na forma (recurso a 
 presunções) e na substância (tipificação de situações que nada têm a ver com a 
 capacidade jurídica) facilitam o decretamento da inabilitação. 
 
 12ª - Não constitui fundamento sério, equilibrado, adequado, exigível e 
 proporcional decretar a inabilitação de um cidadão só porque se presume culpado 
 da insolvência, presunção essa alicerçada no simples facto do sujeito ter 
 inutilizado ou ocultado bens do património do devedor ou disposto dos bens do 
 devedor em proveito pessoal ou de terceiro reproduzido art.º 186º, nº 2, alíneas 
 a) e d) do CIRE, norma que, assim, viola os princípios da proibição do excesso, 
 da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade em sentido restrito. 
 
 13ª - O art. 186º, n.º 2 do CIRE, ao fixar uma presunção de culpa dos 
 administradores do devedor, presunção essa inilidível, ou seja, sem 
 possibilidade de prova em contrário, padece de flagrante inconstitucionalidade 
 
 (orgânica e material), pois os administradores da insolvente poderão ter 
 praticado o facto, inclusive a coberto de um dever, mas não podem sequer tentar 
 demonstrar e provar que não tiveram culpa no facto e na situação de insolvência. 
 
 
 
 14ª - A Lei n.º 39/2003 de 22 de Agosto – art. 2º, n.º 5, 6, 7 e 8 – autorizou o 
 Governo a prever, no processo de insolvência, um incidente de qualificação da 
 insolvência como fortuita ou culposa, prescrevendo-se que ela será culposa 
 quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, 
 dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores, de direito ou 
 de facto, caso em que o Juiz deverá declarar a inabilitação do administrador. 
 
 15 - Ao presumir-se, automaticamente, a culpa e cominar-se com as consequências 
 previstas no art. 189º, n.º 2 do CIRE nos casos do art. 186º, n.º 2, o 
 legislador ordinário ultrapassou e violou os poderes legislativos conferidos 
 pela citada Lei de autorização legislativa. 
 
 16ª - Para além de que se está a violar clara e inequivocamente os mais 
 elementares princípios e direitos constitucionalmente protegidos, nomeadamente o 
 direito ao trabalho protegido (artigo 58º, n.º 1 da CRP), o direito à livre 
 escolha de uma profissão (artigo 47, n.º 1 da CRP), o direito à iniciativa 
 económica privada (artigo 61º da CRP) e o direito à propriedade privada (artigo 
 
 62º da CRP). 
 
 17ª - Assim, os artigos 186º, nº 2, alíneas a) e d) e 189º nº 2 alínea b) do 
 CIRE são orgânica e materialmente inconstitucionais por violação do disposto nos 
 artigos 18°, 26º, 165º e 198º da CRP e bem assim dos princípios da 
 proporcionalidade e da proibição do excesso, da adequação e da exigibilidade, 
 normativos e princípios que, entre outros, foram violados pela sentença 
 recorrida. 
 
 18ª - Inconstitucionalidade já reconhecida pelo Acórdão n.º 564/2007 e pela 
 Decisão Sumária n.º 615/2007, quanto à norma do artigo 189º, n.º 2, alínea b) do 
 CIRE, por ofensa ao artigo 26º, conjugado com o artigo 18º, da CRP, no segmento 
 em que consagra o direito à capacidade civil.” 
 
  
 
             3. O Ministério Público salientou que a norma da alínea d) do n.º 2 
 do artigo 186.º do CIRE não foi aplicada pela decisão recorrida, que a presunção 
 de culpa é ilidível e, invocando jurisprudência do Tribunal (acórdão n.º 564/07 
 e decisões sumárias n.ºs 615/07, 85/08 e 288/08), concluiu nos termos seguintes:
 
  
 
 “1º
 
 É inconstitucional, por ofensa do artigo 26º, nº 1, conjugado com o artigo 18º 
 da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 189º, nº 2, alínea b) 
 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei 
 nª 53/04, de 18 de Março, na parte em que se impõe que o juiz, na sentença que 
 qualifique a insolvência como culposa, decrete a inabilitação do administrador 
 da sociedade comercial declarada insolvente. 
 
 2°
 Não é inconstitucional a norma do artigo 186º, nº 2, alínea a), do Código da 
 Insolvência e da Recuperação de Empresas, na parte em que prevê uma presunção 
 ilidível de culpa para os gerentes que hajam feito desaparecer parte 
 considerável do património da sociedade requerida.” 
 
  
 
 4. Ouvidos sobre as questões suscitadas nas alegações do Ministério Público, os 
 recorrentes vieram reconhecer que houve lapso na invocação da alínea d) do n.º 2 
 do artigo 186.º do CIRE. No mais, sustentaram que o n.º 2 do artigo 186.º 
 estabelece uma presunção inilidível de que a insolvência é culposa.
 
  
 
  
 II- Fundamentação
 
  
 
             5. Após a resposta dos recorrentes às observações do Ministério 
 Público, ficou claro que o objecto do presente recurso é constituído pelas 
 normas do artigo 186.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do 
 C.I.R.E., estando dele excluída a alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º, preceito 
 aplicado na sentença de 1.ª instância, mas afastado pelo acórdão recorrido. 
 Aquelas normas foram efectivamente aplicados pela decisão recorrida, cuja ratio 
 decidendi integram, pelo que cumpre verificar se, pelas razões alegadas ou 
 quaisquer outras (artigo 79.º-C da LTC), são desconformes a regras ou princípios 
 da Constituição da República.
 
  
 
 6. Comecemos por evocar os preceitos em que se inserem as normas cuja 
 conformidade à Constituição é questionada.
 
  
 O artigo 186.º do CIRE dispõe o seguinte:
 
                                    
 
 “Artigo 186.º
 Insolvência culposa
 
  
 
 1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em 
 consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus 
 administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do 
 processo de insolvência. 
 
 2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma 
 pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: 
 
 
 a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo 
 ou em parte considerável, o património do devedor; 
 b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, 
 causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu 
 proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas; 
 c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento 
 por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação; 
 d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
 e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma 
 actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa; 
 f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em 
 proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na 
 qual tenham interesse directo ou indirecto; 
 g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração 
 deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com 
 grande probabilidade a uma situação de insolvência; 
 h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade 
 organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou 
 praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação 
 patrimonial e financeira do devedor; 
 i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de 
 colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 
 
 188.º 
 
 3 - Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito 
 ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido: 
 a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
 b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à 
 devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.”
 
  
 E o artigo 189.º do mesmo Código estabelece: 
 
  
 
 “Artigo 189.º
 Sentença de qualificação
 
  
 
 1 - A sentença qualifica a insolvência como culposa ou como fortuita.
 
 2 - Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:
 a) Identificar as pessoas afectadas pela qualificação;
 b) Decretar a inabilitação das pessoas afectadas por um período de 2 a 10 anos; 
 c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um 
 período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de 
 
 órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de 
 actividade económica, empresa pública ou cooperativa; 
 d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa 
 insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação 
 na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos. 
 
 3 - A inibição para o exercício do comércio tal como a inabilitação são 
 oficiosamente registadas na Conservatória do Registo Civil…”.
 
  
 
             7. Sustentam os recorrentes que o Governo, ao introduzir as 
 presunções de culpa constantes do n.º 2 do artigo 186.º com as consequências 
 previstas no n.º 2 do artigo 189.º do CIRE, excedeu os poderes conferidos pela 
 respectiva lei de autorização legislativa, ferindo as normas em causa de 
 inconstitucionalidade orgânica. 
 
             Vejamos, tendo presente que o recurso tem o objecto que foi 
 delimitado no n.º 5 do presente acórdão.
 
  
 
 7.1. Quanto ao vício de inconstitucionalidade orgânica imputado à norma da 
 alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, importa lembrar que o Tribunal já 
 apreciou questão semelhante no acórdão n.º 564/07 (disponível no site 
 
 www.tribunalconstitucional.pt), tendo decidido que o diploma que aprovou o 
 C.I.R.E. (Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março) ao estabelecer uma presunção 
 de culpa – o que nesse acórdão se apreciava era a presunção estabelecida no n.º 
 
 3 do artigo 186.º do CIRE, mas a ponderação efectuada é perfeitamente 
 transponível para a norma da alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo 186.º – não 
 extravazou, no aspecto considerado, do objecto, sentido e limites da lei de 
 autorização legislativa ao abrigo da qual foi editado: a Lei n.º 39/2003, de 22 
 de Agosto.
 
             Como nesse acórdão se refere, o detalhe adiantado para o regime de 
 qualificação da insolvência na Lei n.º 39/2003 (designadamente no artigo 2.º 
 deste diploma legal) não significa que a lei de autorização tenha um carácter 
 esgotante da disciplina da matéria, de modo a retirar ao legislador autorizado 
 qualquer poder de ulterior conformação normativa. Condicionando e restringindo 
 mais fortemente o espaço de intervenção legislativa do Governo, essas 
 disposições, de acentuado carácter normativo-material, não o inibem da 
 enunciação de conteúdos concretizadores e integrativos da regulação já 
 configurada, nos seus traços fundamentais. 
 
             O estabelecimento de uma presunção de culpa pelo artigo 186.º, n.º 
 
 2, alínea a), do C.I.R.E. em face de determinado comportamento do administrador 
 da sociedade insolvente – “quando…tenham…destruído, danificado, inutilizado, 
 ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património 
 do devedor” – mantém incólume o regime substantivo fixado na lei de autorização, 
 adicionando-lhe uma norma de cariz processual, que em nada contende com aquele 
 regime, antes verdadeiramente se harmoniza com a sua razão inspiradora.
 
             Nem se diga que em parte alguma a Lei n.º 39/03 autorizou 
 explicitamente a criação desta presunção de culpa (supondo, agora, que de uma 
 presunção verdadeiramente se trate). Essa solução legislativa está 
 suficientemente coberta pelas autorizações genéricas contidas no artigo 1.º, n.º 
 
 3, alínea a), e no artigo 2.º, n.º 5, daquela lei, legitimadoras de 
 desenvolvimentos normativos compatíveis, como o é o prescrito no artigo 186.º, 
 n.º 2, alínea a), do CIRE, com a regulação pré-fixada.
 
  
 
 7.2. Os recorrentes não desenvolvem qualquer argumentação específica, no campo 
 da inconstitucionalidade orgânica, relativamente à norma da alínea b) do n.º 2 
 do artigo 189.º do CIRE. Assim, também não vislumbrando o Tribunal razões para 
 essa imputação, julga-se a arguição deste vício, quanto a esta norma, 
 manifestamente improcedente.
 
  
 
             Deste modo, concluindo-se pela não verificação da alegada 
 inconstitucionalidade orgânica, cumpre passar à apreciação do vício de 
 inconstitucionalidade material que os recorrentes imputam às mesmas normas.
 
  
 
             8. O acórdão recorrido interpretou a norma da alínea a) do n.º 2 do 
 artigo 186.º do CIRE como fazendo corresponder à demonstração de que o 
 administrador da sociedade insolvente destruiu, danificou, inutilizou, ocultou, 
 ou fez desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor – 
 conduta que considerou provada e imputou aos recorrentes – uma presunção 
 inilidível de culpa, conducente à qualificação da insolvência como culposa com 
 as consequências inerentes. Aliás, no mesmo sentido vai a generalidade da 
 doutrina (Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da 
 Recuperação de Empresas anotado, vol. II, pág. 14, Menezes Leitão, Código da 
 Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, pág. 175, 2ª ed., Carneiro da 
 Frada, A responsabilidade dos administradores na insolvência, in Estudos 
 Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Prof. Doutor António Sousa Franco, vol. 
 II, pág. 963).
 
             Este entendimento implica que se considere a situação de insolvência 
 da sociedade imputável ao administrador contra quem se prove uma das condutas 
 previstas, sem possibilidade de o interessado demonstrar (ou de o tribunal 
 verificar oficiosamente) que, apesar da prova do comportamento descrito na 
 norma, o juízo de censura não se justifica (sobre o funcionamento desta 
 presunção vide Carneiro da Frada, na ob. cit., pág. 965-966).
 
  
 
              As presunções legais são ilações que a lei tira de um facto 
 conhecido para firmar um facto desconhecido (artigo 349.º do Código Civil). 
 Mediante a demonstração de um determinado facto (o facto base da presunção), 
 cuja prova incumbe à parte que a presunção favorece e pode ser feita pelos meios 
 probatórios gerais, intervém a lei para concluir pela existência de outro facto 
 
 (o facto presumido). 
 
             Neste sentido, é duvidoso que na previsão do n.º 2 do artigo 186.º 
 do CIRE se instituam verdadeiras presunções. Na verdade, o que o legislador faz 
 corresponder à prova da ocorrência de determinados factos não é a ilação de que 
 um outro facto (fenómeno ou acontecimento da realidade empírico-sensível) 
 ocorreu, mas a valoração normativa da conduta que esses factos integram. Neste 
 sentido, mais do que perante presunções inilidíveis, estaríamos perante a 
 enunciação legal (não importa aqui averiguar se mediante enunciação taxativa ou 
 concretizações exemplificativas) de situações típicas de insolvência culposa. 
 
  
 
             De todo o modo, numa ou noutra perspectiva (presunção inilidível de 
 culpa, factos-índice ou tipos secundários de insolvência culposa), o legislador 
 prescinde de uma autónoma apreciação judicial acerca da existência de culpa como 
 requisito da adopção das medidas restritivas previstas no artigo 189.º do CIRE 
 contra os administradores julgados responsáveis pela insolvência. Ora, mais do 
 que a determinação da natureza da norma (estabelecimento de uma presunção juris 
 et de jure ou qualificação jurídica dos factos tipificados), o que é decisivo 
 para a questão de constitucionalidade suscitada é que, perante a prova de 
 determinados comportamentos dos administradores da sociedade insolvente, se 
 conclui pela verificação desse requisito, sem necessidade, nem sequer 
 possibilidade, de um juízo casuístico efectuado pelo julgador perante todo o 
 circunstancialismo do caso concreto.
 
             É esta consequência jurídica, esta limitação do campo de valoração 
 judicial autónoma do significado normativo da conduta prevista e, 
 correspondentemente, do âmbito da defesa potencial do interessado, que importa 
 confrontar com as normas e princípios constitucionais alegadamente violados.
 
  
 
             A garantia da via judiciária para defesa dos direitos e interesses 
 legalmente protegidos envolve, não apenas a atribuição aos interessados de um 
 direito de acção judicial, mas também o direito a um processo equitativo (n.º 4, 
 do artigo 20.º, da C.R.P.). Neste direito inclui-se a proibição da indefesa, ou 
 seja, a exigência de que o processo seja estruturado de tal modo que não impeça 
 as partes de apresentar as suas razões de facto e de direito, de oferecer as 
 suas provas e de controlar as provas do adversário e de discretear sobre os 
 resultados de umas e outras (cf., referindo outros, acórdão n.º 658/06, 
 
 www.tribunalconstitucional.pt).
 
  
 
             Isso não obsta, porém, a que o legislador estabeleça presunções 
 iuris et iure, com as consequentes limitações ao âmbito da prova dos factos que 
 as poderiam infirmar, desde que as mesmas visem atingir um fim legítimo e não se 
 revelem desproporcionadas. 
 
             Ora, o estabelecimento da presunção em análise tem a vantagem de 
 evitar a subjectividade inerente a um juízo de censura ético-jurídico, ao mesmo 
 tempo que supera as dificuldades de apuramento de todo o circunstancialismo que 
 envolveu a situação de insolvência.       São objectivos perfeitamente 
 legítimos, alicerçados não só em razões de segurança jurídica, mas também de 
 justiça material, que justificam uma limitação ao âmbito de apreciação e, 
 consequentemente, ao objecto de prova, mediante a imposição normativa (ex vi 
 legis) de uma conclusão jurídica, perante a verificação de certos factos que o 
 interessado pode discutir nos termos gerais. 
 
             Na previsão normativa em apreciação, o facto que o legislador 
 considerou suficiente para impor a qualificação da insolvência como culposa foi 
 a destruição, danificação, inutilização, ocultação, ou desaparecimento, no todo 
 ou em parte considerável, do património do devedor. Ora, a prática de actos que 
 determinem a perda ou subtracção de parte considerável dos bens que constituíam 
 o património do comerciante em quebra, caracterizando-se a situação de 
 insolvência por uma incapacidade do devedor de cumprimento das suas obrigações 
 vencidas (artigo 3.º do C.I.R.E.), é determinante dessa insolvabilidade, num 
 juízo de adequação social‑normativo (Carneiro da frada, ob. cit. pág. 966). 
 Perante tais factos, credencia-se como razoável e adequado que, sem mais, o 
 legislador considere a situação de insolvência culposa, para os referidos 
 efeitos (Repare-se que a qualificação atribuída não é vinculativa para efeitos 
 da decisão de causas penais ou de responsabilidade civil – cfr. artigo 185.º do 
 C.I.R.E.). São tão flagrantemente reprováveis e aptos para causar a situação de 
 insolvência que a indiscutibilidade do inerente juízo de culpa se revela 
 adequada aos fins em vista com a qualificação da falência.
 
  
 
             Pode, pois, concluir-se que os objectivos visados com o 
 estabelecimento da automática inerência do juízo normativo de culpa à prova da 
 verificação da situação descrita no artigo 186.º, n.º 2, alínea a), do C.I.R.E., 
 são legítimos e que essa automaticidade ex vi legis se revela adequada, 
 necessária e razoável, como meio de atingir esses objectivos, sem que o núcleo 
 essencial da exigência constitucional do processo equitativo seja atingido, pelo 
 que a respectiva norma não se mostra ferida de inconstitucionalidade.
 
  
 
             Por último, não sendo a norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 286.º 
 do C.I.R.E. que estabelece as consequências da responsabilidade pela falência 
 culposa – estas são cominadas no artigo 189.º do C.I.R.E. – não se vislumbra 
 fundamento mínimo para sustentar a discussão acerca da alegada violação, por 
 aquela norma do direito ao trabalho (artigo 58.º, n.º 1 da CRP), do direito à 
 livre escolha da profissão (artigo 47.º, n.º 1, da CRP), do direito à iniciativa 
 económica privada (artigo 61.º da CRP) ou do direito de propriedade (artigo 62.º 
 da CRP).
 
  
 
             O recurso improcede, pois, quanto à norma da alínea a) do n.º 2 do 
 artigo 186.º do CIRE. 
 
  
 
             9. O artigo 189.º, nº 2, alínea b), do C.I.R.E., passou a incluir a 
 inabilitação nas medidas aplicáveis aos administradores de sociedade comercial 
 responsáveis pela insolvência culposa, cumulativamente com a inibição para o 
 exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de 
 sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade 
 económica, empresa pública ou cooperativa (artigo 189.º, n.º 2, alínea c), do 
 C.I.R.E).
 
  
 
             Apreciando a constitucionalidade desta imposição de inabilitação 
 disse o Tribunal no acórdão n.º 564/2007:
 
  
 
 '8. É manifestamente infundada a imputação de violação de qualquer das normas 
 constitucionais invocadas no recurso. De facto, não se vê que o decretamento da 
 inabilitação, como efeito necessário de uma situação de insolvência, afecte uma 
 posição jurídica contemplada pelo âmbito normativo de protecção dos artigos 
 
 30.º, n.º 4, 47.º, 58.º, n.ºs 1 e 2, 61.º e 62.º da CRP, colidindo com os bens 
 aí constitucionalmente garantidos.
 Já a diferente conclusão temos que chegar, no que toca à violação do artigo 18.º 
 e do artigo 26.º da CRP, na parte em que este reconhece o direito à capacidade 
 civil.
 De facto, a inabilitação a que a insolvência pode conduzir só pode ser a 
 correspondente ao instituto jurídico civilístico com essa designação, previsto 
 nos artigos 152.º e seguintes do Código Civil – neste sentido, CARVALHO 
 FERNANDES, “A qualificação da insolvência e a administração da massa insolvente 
 pelo devedor”, Themis, ed. esp., 2005, 97.  Trata-se, pois, de uma situação de 
 incapacidade de agir negocialmente, traduzindo a inaptidão para, por acto 
 exclusivo (sem carecer do consentimento de outrem), praticar “actos de 
 disposição de bens entre vivos e todos os que, em atenção às circunstâncias de 
 cada caso, forem especificados na sentença” (artigo 153.º, n.º 1, do Código 
 Civil).
 Ora, o reconhecimento constitucional da capacidade civil, como decorrência 
 imediata da personalidade e da subjectividade jurídicas, cobre, tanto a 
 capacidade de gozo, como a capacidade de exercício ou de agir. É certo que, 
 contrariamente à personalidade jurídica, a capacidade, em qualquer das suas duas 
 variantes, é algo de quantificável, um posse susceptível de gradações, de 
 detenção em maior ou menor medida. Mas a sua privação ou restrição, quando 
 afecte sujeitos que atingiram a maioridade, será sempre uma medida de carácter 
 excepcional, só justificada, pelo menos em primeira linha, pela protecção da 
 personalidade do incapaz. É “em homenagem aos interesses da própria pessoa 
 profunda” (ORLANDO DE CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil, polic., Coimbra, 
 
 1981, 83), quando inabilitada, por razões atinentes à falta de atributos 
 pessoais, para uma autodeterminação autêntica na condução de vida e na gestão 
 dos seus interesses, que a incapacidade, em qualquer das suas formas, pode ser 
 decretada.
 Daí que, para além do disposto no n.º 4 do artigo 26.º da Constituição, as 
 restrições à capacidade civil, incluindo a capacidade de agir, só sejam 
 legítimas quando os seus motivos forem “pertinentes e relevantes sob o ponto de 
 vista da capacidade da pessoa”, não podendo também a restrição “servir de pena 
 ou de efeito de pena” (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República 
 Portuguesa anotada, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 465).
 Nenhuma destas duas condições está aqui preenchida. De facto, neste âmbito, a 
 inabilitação não resulta de uma situação de incapacidade natural, de um modo de 
 ser da pessoa que a torne inapta para a gestão autónoma dos seus bens, mas de um 
 estado objectivo de impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas 
 
 (artigo 3.º, n.º 1, do CIRE), imputável a uma actuação culposa do devedor ou dos 
 seus administradores. Forma de conduta que, só por si, não é, evidentemente, 
 indiciadora de qualquer característica pessoal incapacitante.
 Em vez de acorrer em tutela de um “sujeito deficitário”, precavendo os seus 
 interesses, a inabilitação é, no quadro da insolvência, uma resultante forçosa 
 de uma dada situação patrimonial, efectivada com total abstracção de 
 características da personalidade do inabilitado, que possam ter conduzido a essa 
 situação.
 Que essa correlação inexiste, prova-o, além do mais, o facto de a inabilitação 
 ser decretada por um prazo fixo, sem possibilidade de levantamento, previsto no 
 regime comum, para o caso de desaparecimento das causas de incapacidade natural 
 que, nesse regime, a fundaram.
 E nem se diga que a figura é instrumentalizada para defesa dos interesses dos 
 credores, pois a inabilitação em nada contribui para a consecução da finalidade 
 do processo de insolvência. Este, nos termos do artigo 1.º do CIRE, «é um 
 processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do 
 património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos 
 credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência 
 
 (…).» 
 Para atingir essa finalidade, já existe um mecanismo adequado no processo, 
 tendente à conservação dos bens penhorados. Trata-se da transferência para o 
 administrador da insolvência dos poderes de administração e disposição dos bens 
 integrantes da massa insolvente (artigo 81.º, n.º 1, do CIRE). 
 Mas esta limitação de actuação negocial não pode ser confundida com uma 
 incapacidade, quer pela sua causa e função, quer pelos efeitos dos actos 
 praticados pelo insolvente em contravenção daquela norma: esses actos estão 
 feridos de ineficácia (n.º 6 do artigo 81.º), não de anulabilidade, como seria o 
 caso se fosse a incapacidade a qualificação apropriada. Assim se protege, na 
 justa medida, os interesses dos credores.
 Foi por reconhecer que a situação não pode ser qualificada de incapacidade que o 
 Acórdão n.º 414/2002 deste Tribunal se pronunciou pela conformidade 
 constitucional do, entre outros, artigo 147.º do anterior Código dos Processos 
 Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, a que corresponde, no actual 
 Código, o artigo 81.º, n.º 1. Diz-se aí que essa norma não viola o artigo 26.º 
 da CRP porque «tão pouco afecta o seu [do falido] direito à capacidade civil, 
 mesmo entendido o sentido constitucional deste direito de uma forma ampla (há 
 unanimidade na doutrina, no sentido de que não se trata de uma situação de 
 
 “incapacidade”) […]».
 Nada acrescentando à defesa da integridade da massa insolvente, não se vê também 
 que a inovação introduzida pelo artigo 189.º, n.º 2, alínea b), possa contribuir 
 eficazmente para a defesa dos interesses gerais do tráfego, resguardando a 
 posição de eventuais credores futuros do inabilitado. Pois, na verdade, e de 
 acordo com o regime da inabilitação, estes não terão legitimidade para arguir a 
 invalidade dos actos celebrados pelo inabilitado sem o consentimento do curador. 
 Essa legitimidade, por força do disposto no artigo 125.º do Código Civil, 
 aplicável, com as devidas adaptações, por remissão dos artigos 156.º e 139.º do 
 mesmo Código – v., por todos, C. MOTA PINTO, Teoria geral do direito civil, 4.ª 
 ed. por A.PINTO MONTEIRO/P. MOTA PINTO, Coimbra, 2005, 243 – cabe apenas ao 
 curador, ao próprio inabilitado, uma vez readquirida a capacidade plena, e aos 
 seus herdeiros.
 A inabilitação prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE só pode, 
 pois, ter um alcance punitivo, traduzindo-se numa verdadeira pena para o 
 comportamento ilícito e culposo do sujeito atingido. 
 Sintomaticamente, a sua duração é fixada dentro de uma moldura balizada por um 
 mínimo e um máximo, tal como as penas do foro criminal. E os critérios para a 
 sua determinação, em concreto, não andarão longe dos que operam nesta área 
 
 (designadamente, o grau de culpa e a gravidade das consequências lesivas), pois 
 não se vê que outros possam ser utilizados.
 Essa “pena” fere o sujeito sobre quem recai com uma verdadeira capitis 
 diminutio, sujeitando-o à assistência de um curador (artigo 190.º, n.º 1). Ele 
 perde a legitimidade para a livre gestão dos seus bens, mesmo os não apreendidos 
 ou apreensíveis para os fins da execução, situação que se pode prolongar para 
 além do encerramento do processo (artigo 233.º, n.º 1, alínea a)). 
 Consequência que, tendo também presente a globalidade dos efeitos da 
 insolvência, e em particular a inibição para o exercício do comércio, não pode 
 deixar de ser vista como inadequada e excessiva.
 O que tudo leva a concluir pela desconformidade do artigo 189.º, n.º 2, alínea 
 b), do CIRE, com o artigo 26.º, conjugado com o artigo 18.º, da Constituição da 
 República.”
 
 É esta jurisprudência que se reitera.
 
 10. Decisão
 Pelo exposto, concedendo provimento parcial ao recurso, decide-se:
 a) Não julgar inconstitucional a norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º do 
 Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei 
 n.º 53/2004, de 18 de Março;
 b) Julgar inconstitucional a norma do artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do mesmo 
 diploma, por ofensa ao artigo 26.º, conjugado com o artigo 18.º, da Constituição 
 da República, no segmento em que consagra o direito à capacidade civil; 
 c) Ordenar a reforma do acórdão recorrido em conformidade com o juízo de 
 inconstitucionalidade ora formulado.
 Lisboa, 26 de Novembro de 2008
 Vítor Gomes
 Ana Maria Guerra Martins
 Carlos Fernandes Cadilha
 Maria Lúcia Amaral
 Gil Galvão