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Processo n.º 965/07
 
 2.ª Secção
 Relator: Conselheiro Mário Torres
 
 
 
           Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
 
  
 
  
 
                         1. A. apresentou reclamação para a conferência, ao 
 abrigo do n.º 3 do artigo 78.º‑A da Lei de Organização, Funcionamento e 
 Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de 
 Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro 
 
 (LTC), contra a decisão sumária do relator, de 29 de Outubro de 2007, que, no 
 uso da faculdade conferida pelo n.º 1 desse preceito, negou provimento ao 
 recurso interposto pelo recorrente, por não julgar inconstitucional a norma 
 constante do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção resultante da Lei 
 n.º 65/98, de 2 de Setembro.
 
  
 
                         1.1. A decisão sumária reclamada tem a seguinte 
 fundamentação:
 
  
 
 “1. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) 
 do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do 
 Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e 
 alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra 
 o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 5 de Setembro de 2007, que 
 negou provimento ao recurso por ele interposto contra o acórdão do Tribunal 
 Colectivo do Círculo Judicial de Vila Nova de Famalicão, de 9 de Janeiro de 
 
 2007, que o condenara, pela co‑autoria de um crime de lenocínio, previsto e 
 punido pelo artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de dois anos de 
 prisão.
 
             No requerimento de interposição de recurso, refere o recorrente:
 
  
 
             «Inconstitucionalidade do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, por 
 ofensa do princípio da fragmentariedade ou subsidiariedade do direito penal, 
 plasmado no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, e previsto no artigo 40.º, n.º 1, do 
 Código Penal, quando interpretado à letra prescindindo da exigência de prova de 
 uma situação de exploração de necessidade económica ou de abandono, bem como por 
 ofensa dos direitos à livre expressão da sexualidade, à vida privada, à 
 identidade pessoal, à liberdade de consciência, liberdade de escolha de 
 profissão e direito ao trabalho, previstos nos artigos 26.º, n.º 1, 27.º, n.º 
 
 1, 40.°, n.º 1, 47.º, n.º 1, e 58.º, n.º 1, da CRP.
 
             O arguido recorrente suscitou no decurso do processo a 
 inconstitucionalidade da actual norma do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, 
 quando interpretada literalmente sem exigir para o preenchimento do tipo a 
 verificação de uma situação de exploração de necessidade económica ou de 
 abandono das pessoas que se prostituem, carecendo, destarte, de ser 
 interpretada restritivamente, de modo a conformar‑se com a Constituição, no 
 sentido de se exigir para o preenchimento do tipo a verificação das sobreditas 
 circunstâncias.
 
             Na motivação de recurso interposto para o Supremo Tribunal de 
 Justiça, o arguido alegou que, conforme já invocava na contestação, 
 contrariamente ao doutamente explanado no acórdão proferido pelo Tribunal 
 Colectivo, a actual norma do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal protege 
 valores que nada têm que ver com direitos e bens consagrados 
 constitucionalmente, que não cabe ao Direito Penal proteger; sendo que as 
 alterações derivadas do Decreto‑Lei n.º 48/95 eliminaram do tipo legal a 
 exploração de situações de ‘abandono ou de necessidade económica’ das mulheres 
 em causa, não se podendo, por isso, concluir, como resulta do aresto posto em 
 crise, que ‘as situações de prostituição relativamente às quais existe um 
 aproveitamento económico por terceiros são situações cujo significado é o da 
 exploração da pessoa prostituída’.
 
             Com a actual incriminação, o bem jurídico protegido não é a 
 liberdade de expressão sexual da pessoa mas uma certa ideia de ‘defesa do 
 sentimento geral de pudor e de moralidade’, que não é encarada hoje como função 
 do direito penal, o que justifica uma eventual descriminalização, neste sentido 
 Figueiredo Dias, citado por Anabela Miranda Rodrigues, in Comentário 
 Conimbricense do Código Penal, tomo I, pág. 518, § 2.
 
             A incriminação do lenocínio prevista no artigo 170.º, n.º 1, 
 protege bens jurídicos transpersonalistas de étimo moralista por via do direito 
 penal, o que se tem hoje por ilegítimo. Nesta perspectiva, o crime de lenocínio 
 do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal constituirá um crime sem vítima, 
 salientando‑se aí que o bem jurídico protegido pela incriminação, já à luz do 
 direito anterior – e que a versão actual do Código não faz senão reforçar – não 
 
 é a liberdade sexual da pessoa, mas um bem jurídico transpessoal que não cabe ao 
 direito penal defender.
 
             O tipo legal de crime introduzido no n.º 1 do artigo 170.º do Código 
 Penal, com a revisão de 1998, protege bens jurídicos que não são eminentemente 
 pessoais, ficando deste modo previsto um tipo legal de crime que não se coaduna 
 com a sistematização do Código Penal, uma vez que se encontra inserto no 
 capitulo V – ‘dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual’.
 
             Na formulação de Anabela Miranda Rodrigues, in Comentário 
 Conimbricense do Código Penal, ‘uma proposta coerente com o pressuposto de que 
 se partiu – de só se considerar legítima a incriminação de condutas do foro 
 sexual se e na medida em que atentem contra um específico bem jurídico 
 eminentemente pessoal – leva a que o direito penal só deva intervir em dois 
 grupos de casos: quando está em causa o desenvolvimento sexual dos menores ..., 
 ou quando, em relação a adultos, se utilize a violência, ameaça grave, se 
 provoque o erro ou se aproveite o seu estado de pessoa indefesa. Tudo o mais – a 
 incriminação do lenocínio prevista no artigo 170.º, n.º 1 – é proteger bens 
 jurídicos transpersonalistas de étimo moralista por via do direito penal, o que 
 se tem hoje por ilegítimo – aproximando‑nos perigosamente de um direito penal de 
 
 “fachada”’.
 
             Acresce que a alteração verificada com a sobredita revisão do Código 
 Penal eleva à categoria de crimes condutas que se consubstanciam em simples 
 comparticipação em actos lícitos e livres.
 
             Pois, como parece decorrer da actual formulação do tipo do n.º 1 do 
 artigo 170.º do Código Penal, fomentar, favorecer ou facilitar a prática por 
 outrem da prostituição reconduz‑se a comparticipação numa conduta alheia, 
 desenvolvida livremente pela prostituta. Sendo, destarte, incriminado aquele que 
 auxilia, favorece ou facilita outrem à prática do exercício de um direito 
 próprio. Não servindo aqui o argumento esgrimido no acórdão da primeira 
 instância que existem outros casos em que a conduta não é incriminada e são 
 incriminados os terceiros participantes, como sucede com o auxílio ao suicídio 
 
 (artigo 135.º do Código Penal) ou com a incriminação da divulgação de 
 pornografia infantil (artigo 172.º, n.º 3, alínea e), do Código Penal), dado 
 que nestes casos os bens jurídicos protegidos são, no primeiro caso, a vida 
 humana, mais concretamente a vida de outra pessoa, à semelhança do que sucede 
 com o crime de homicídio a pedido da vítima, e, no segundo caso, dado que, 
 atenta a pouca idade da vítima que por via disso não dispõe de liberdade sexual 
 positiva, protege‑se assim a autodeterminação sexual, dado que tal conduta 
 típica prejudica, consequentemente, de modo grave o livre desenvolvimento da 
 sua personalidade.
 
             Assim, ao incriminar o fomento, favorecimento ou facilitação da 
 prostituição de pessoa livre e autodeterminada, o n.º 1 do artigo 170.º ofende 
 o princípio da fragmentariedade ou subsidiariedade do direito penal, plasmado no 
 artigo 18.º, n.º 2, da CRP e previsto no artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, 
 bem como os direitos à livre expressão da sexualidade, à vida privada, à 
 identidade pessoal, à liberdade de consciência, liberdade de escolha de 
 profissão e direito ao trabalho, previstos nos artigos 26.º, n.º 1, 27.º, n.º 
 
 1, 40.º, n.º 1, 47.º, n.º 1, e 58.º, n.º 1, da CRP.
 
             Direitos estes, de liberdade de escolha de profissão e direito ao 
 trabalho, que não impedem sejam exercidos, como efectivamente o são, na prática, 
 com auxílio e comparticipação de terceiros.
 
             Encontrando‑se, assim, aquela disposição normativa (artigo 170.º, 
 n.º 1, do Código Penal) inquinada de inconstitucionalidade material, que apenas 
 pode ser afastada através do recurso a uma interpretação restritiva do preceito 
 que repristine a exigência de que os actos descritos no tipo legal de crime 
 apenas sejam passíveis de o constituir quando reportando‑se a pessoas ‘em 
 situação de abandono ou de extrema necessidade económica’.
 
             Pelo que o recorrente deveria ser absolvido do crime de lenocínio, 
 seja pela declaração de inconstitucionalidade ou seja pela interpretação 
 restritiva do preceito legal.
 
             Não obstante o alegado, o Supremo Tribunal de Justiça, no douto 
 aresto ora recorrido, entendeu que a questão sobre a pretensa 
 inconstitucionalidade do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal já foi equacionada 
 e decidida pelo Tribunal Constitucional, designadamente no Acórdão n.º 144/2004, 
 de 10 de Março, processo n.º 566/2003, da 2.ª Secção, que considerou não ser 
 inconstitucional, nem admite interpretação restritiva no sentido de ser 
 tipicamente exigível a verificação de uma ‘situação de abandono ou de extrema 
 necessidade económica’.
 
             Afigura‑se‑nos, todavia, que, como assertivamente refere o 
 Conselheiro Eduardo Maia Costa, no seu voto de vencido, cujo fundamentação, 
 por corresponder à única possível de forma a coadunar o tipo legal de crime com 
 a Constituição, se tem aqui por integralmente reproduzida, exaustivamente 
 esgrime argumentos que implicam a necessária interpretação restritiva do artigo 
 
 170.º, n.º 1, do Código Penal, sob pena de violação do artigo 18.º, n.º 2, da 
 CRP.
 
             Com efeito, como refere o Conselheiro Eduardo Maia Costa, é sem 
 dúvida o Parecer de M. Costa Andrade e Maria João Antunes que analisa mais 
 exaustivamente a questão agora em análise, concluindo, a partir do conceito de 
 bem jurídico nos crimes sexuais, pela violação frontal pelo artigo 170.º, n.º 1, 
 do Código Penal do artigo 18.º, n.º 2, da CRP.
 
             De acordo com o referido pelo Conselheiro Eduardo Maia Costa, é 
 notória a preocupação do Tribunal Constitucional, nos acórdãos referidos no 
 douto aresto do STJ, de justificar a incriminação do artigo 170.º, n.º 1, do CP 
 com a violação de um bem jurídico, mas acaba por vacilar entre a protecção da 
 dignidade humana (sem especificação de qual o bem jurídico subjacente) e a 
 protecção do risco de verificação de situações de exploração da pessoa que se 
 prostitui, concebendo assim, de certa forma, a infracção como crime de perigo 
 abstracto.
 
             Constituindo a motivação fundamental do legislador com as 
 alterações introduzidas pela reforma penal de 1998 a luta contra a exploração 
 de pessoas, então haverá sempre que obter prova dessa situação, e não que 
 presumi‑la, recuando a protecção penal de forma a abranger situações que nela 
 manifestamente não cabem, por não se verificar a violação do bem jurídico dos 
 crimes sexuais: a violação da liberdade, ou autodeterminação, sexual. A 
 exploração só existe nas situações em que quem pratica a prostituição o faz com 
 uma vontade condicionada, com o consentimento viciado ou pela extrema 
 necessidade económica ou por uma situação de abandono, pois, então (e só 
 então), a decisão não é verdadeiramente livre, e, portanto, o bem jurídico 
 protegido é ofendido. A protecção do ‘risco’ de exploração acaba por ‘renegar’ o 
 pretenso bem jurídico subjacente ao crime.
 
             A perspectiva da prostituição em que assentam os acórdãos 
 proferidos pelo Tribunal Colectivo e pelo Supremo Tribunal de Justiça denuncia 
 um pré‑compreensão estigmatizante e redutora do fenómeno, de rejeição do mesmo 
 em nome de ‘valores’, não vertidos em bens jurídicos concretos.
 
             Na verdade, não obstante as acções de auxílio remunerado à prática 
 de actos constitutivos da prostituição terem sido criminalizados com a entrada 
 em vigor do Decreto‑Lei n.º 44 579, de 18 de Setembro de 1962, e legislação 
 subsequente, a prática de tais actos não diminuiu, pelo contrário, cada vez se 
 torna mais visível nas cidades, vilas e estradas de Portugal. A prostituta que 
 pratica voluntária e livremente os actos sexuais de relevo contra remuneração é, 
 na opinião de uma corrente de pensamento, atentatória da dignidade da pessoa 
 humana e, não obstante a ideia da dignidade humana se ter enraizado na nossa 
 cultura por influência do Cristianismo, não se concebe que, quando esses actos 
 são praticados livre e voluntariamente, fora de qualquer coacção ou exploração 
 de uma situação de necessidade, atentem contra a dignidade da pessoa humana. 
 Com efeito, enquanto o tratamento explícito dos antigos pensadores cristãos se 
 processava em termos ontológicos, os modernos, de um modo geral, estudam a 
 Pessoa e os seus direitos mais nas suas manifestações mundanas e 
 intersubjectivas do que na sua relação com o ser, mais, portanto, o homem 
 entendido como natureza em devir e plurifacetada.
 
             A prática da prostituição é uma realidade que ninguém pode 
 escamotear, ao serem proibidos estabelecimentos comerciais que tinham por 
 objecto facilitar a prática da prostituição, passaram os mesmos a ser 
 clandestinos, aumentou a prostituição de rua e surgiu uma nova forma de a 
 praticar e favorecer, em apartamentos privados, com anúncios a ocuparem cada 
 vez maior número de páginas nos jornais diários de maior tiragem. 
 Reconduzindo‑se, destarte, à prática de uma actividade que de facto existe e 
 movimenta milhões de euros por ano, sobre os quais não incide qualquer imposto 
 ou taxa. Associado a esta actividade sem o devido licenciamento, a segurança, 
 higiene e, sobretudo, a saúde dos utentes, maioritariamente casados, que 
 consequentemente presenteiam os respectivos cônjuges com doenças sexualmente 
 transmissíveis, está seriamente ameaçada, o que não sucederia se a referida 
 actividade se encontrasse regulamentada, sendo que o controlo médico seria uma 
 sua consequência. Sem qualquer hipocrisia diríamos que a prostituição praticada 
 na rua e em apartamentos mediante anúncio em jornais diários ofende a moral e 
 moralidade sexual da sociedade, o que não sucederia com a prática de tais actos 
 em estabelecimentos comerciais para tal licenciados em que as prostitutas e/ou 
 prostitutos exerceriam aí uma actividade também ela regulamentada. Os 
 benefícios compensariam a coragem política de regulamentar uma actividade que 
 desde sempre existiu e que, em Portugal, há quatro décadas atrás encontrava‑se 
 regulamentada. Existindo de facto, por que razão não podem as prostitutas 
 exercer os direitos fundamentais contidos nos artigos 47.º e 58.º da CRP, ou 
 seja, liberdade de escolha de profissão e direito ao trabalho?
 
             O argumento do aproveitamento económico por terceiros como 
 
 ‘utilização de uma dimensão especificamente íntima de outro não para fins dele 
 próprio, mas para fins de terceiro’ denuncia, objectivamente, uma condenação 
 tipicamente moral do fenómeno da prostituição, uma perspectiva que considera 
 chocante e indigna a ‘venda do corpo’, ainda que voluntária, consciente e 
 praticada por adultos, uma posição que nada tem a ver com o bem jurídico 
 protegido, tal como é entendido pelo legislador. Por isso, tenta‑se presumir 
 
 (ou melhor ficcionar) uma situação de exploração, de aproveitamento, de 
 extorsão, quando intervêm terceiros.
 
             Ao ser interpretada no sentido explanado nos arestos do Tribunal 
 Colectivo e Supremo Tribunal de Justiça, a norma, ao ser interpretada à letra, 
 prescindindo da exigência de prova de uma situação de exploração de necessidade 
 económica ou de abandono, é inconstitucional, por ofender o princípio da 
 fragmentariedade ou subsidiariedade do direito penal, plasmado no artigo 18.º, 
 n.º 2, da CRP e previsto no artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, bem como os 
 direitos à livre expressão da sexualidade, à vida privada, à identidade pessoal, 
 
 à liberdade de consciência, liberdade de escolha de profissão e direito ao 
 trabalho, previstos nos artigos 26.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, 40.º, n.º 1, 47.º, 
 n.º 1, e 58.º, n.º 1, da CRP. Direitos estes, de liberdade de escolha de 
 profissão e direito ao trabalho, que não impedem sejam exercidos, como 
 efectivamente o são, na prática, com auxílio e comparticipação de terceiros.
 
             Encontrando‑se assim, reafirma‑se, aquela disposição normativa 
 
 (artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal) inquinada de inconstitucionalidade 
 material, que apenas pode ser afastada através do recurso a uma interpretação 
 restritiva do preceito, que repristine a exigência de que os actos descritos no 
 tipo legal de crime apenas sejam passíveis de o constituir quando reportando‑se 
 a pessoas ‘em situação de abandono ou de extrema necessidade económica’. 
 Ademais, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias já considerou como uma 
 prestação de serviços remunerada e abrangida pelo conceito de ‘actividades 
 económicas’.
 
             Resultando dos autos, na matéria de facto provada, a inexistência 
 de qualquer facto que revele ou porventura indicie vagamente alguma situação de 
 exploração, nenhuma suspeita razoável se pode formar de que ocorresse um 
 aproveitamento de situações de carência económica ou de abandono em que as 
 prostitutas se encontrassem.
 
             De facto, a única conclusão que se extrai da matéria de facto é que 
 a prática da prostituição era inteiramente livre da parte das prostitutas que 
 ali exerciam o seu modo de vida, à sua ocupação de onde retiravam os proventos 
 necessários à sua subsistência, por elas livremente escolhida.
 
             Perante tal quadro factual, a única conclusão possível seria e é a 
 da exclusão da ilicitude, pois, não obstante se tratar de uma empresa de 
 diversão nocturna que assentava a sua actividade económica na organização da 
 actividade de prostituição por parte de um grupo de mulheres que a ela se 
 dedicava por escolha livre e informada. Constituindo uma actividade 
 profissional e com intuito lucrativo que recaem, numa interpretação literal, 
 inequivocamente, na previsão contida no artigo 170.º, n.º 1, na redacção actual, 
 todavia, tal incriminação, para se conformar com a Constituição, deve ser 
 interpretada no sentido de se exigir a concreta verificação de uma situação de 
 exploração de necessidade económica ou de abandono das pessoas que se 
 prostituem.
 
             Assim, e em conclusão,
 
             O artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal encontra‑se inquinado de 
 inconstitucionalidade material, que apenas pode ser afastada através do 
 recurso a uma interpretação restritiva do preceito que repristine a exigência de 
 que os actos descritos no tipo legal de crime apenas sejam passíveis de o 
 constituir quando reportando‑se a pessoas ‘em situação de abandono ou de extrema 
 necessidade económica’.
 
             Nestes termos e nos demais de direito, sempre com o douto 
 suprimento de Vossas Excelências, deverá o presente recurso merecer provimento, 
 decretando‑se a inconstitucionalidade do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, 
 por ofensa do princípio da fragmentariedade ou subsidiariedade do direito penal, 
 plasmado no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, bem como os direitos à livre expressão 
 da sexualidade, à vida privada, à identidade pessoal, à liberdade de 
 consciência, liberdade de escolha de profissão e direito ao trabalho, previstos 
 nos artigos 26.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, 40.º, n.º 1, 47.º, n.º 1, e 58.º, n.º 1, 
 da CRP, com todas as consequências legais.»
 
  
 
             2. Estão reunidos os requisitos de admissibilidade do recurso 
 interposto, já que, por um lado, o recorrente suscitou, de modo adequado, na 
 motivação do recurso interposto para o STJ, a questão da inconstitucionalidade 
 da norma do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, na dimensão identificada no 
 transcrito requerimento de interposição de recurso, e, por outro lado, o acórdão 
 recorrido fez efectiva aplicação, como ratio decidendi, da norma impugnada. Ao 
 pronunciar‑se sobre essa questão, o acórdão ora recorrido, após referenciar a 
 jurisprudência do Tribunal Constitucional e do próprio STJ sobre a 
 constitucionalidade da norma em causa, ponderou:
 
  
 
             «Não se ignora o carácter fragmentário, subsidiário, do direito 
 penal de hoje, assumindo‑se funcionalisticamente como ultima ratio de 
 salvaguarda e tutela de bens jurídicos fundamentais à convivência comunitária, 
 sendo o crime entendido numa perspectiva teleológico‑racional, em que numa 
 sociedade livre, secularizada e pluralista, a legitimação do direito penal 
 assenta na necessidade de protecção de bens jurídicos fundamentais da pessoa e 
 da comunidade.
 
             Mas o direito penal não pode arredar‑se da sociedade que serve, 
 axiologicamente fundada na matriz constitucional.
 
             A axiologia jurídico‑constitucional é a barreira intransponível da 
 dogmática jurídico‑penal, e os bens jurídicos de tutela penal são afinal 
 explicitação referenciadora da axiologia constitucional, em que a norma penal 
 garante a sua protecção, restabelecendo a confiança da comunidade na 
 estabilização contrafáctica da norma violada.
 
             Por outro lado, há que não esquecer ‘que a extensão, o sentido e, 
 enfim, a aplicação do direito penal ficam em última análise dependentes da 
 teleologia, das valorações e das proposições político‑criminais inerentes ao 
 sistema’ (Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 
 
 2001, p. 26).
 
             Pesquisando a evolução legislativa, a partir de 1982, verifica‑se:
 
  
 
             Versão originária (1982)
 
             Artigo 215.º
 
             Lenocínio
 
             ‘1 – Quem fomentar, favorecer ou facilitar a prática de actos 
 contrários ao pudor ou à moralidade sexual, ou de prostituição relativamente:
 
             a) A pessoa menor ou portadora de anomalia psíquica;
 
             b) A qualquer pessoa, explorando situação de abandono ou de extrema 
 necessidade económica;
 
             será punido com prisão até 2 anos e multa até 100 dias.
 
             2 – Na mesma pena incorre quem explorar o ganho imoral de 
 prostituta, vivendo, total ou parcialmente, a expensas suas.’
 
  
 
             Artigo 216.º
 
             Lenocínio agravado
 
             ‘Relativamente aos comportamentos descritos no artigo anterior, a 
 pena será:
 
             a) A de prisão de 2 a 4 anos e multa até 150 dias se o agente os 
 realizar com intenção lucrativa;
 
             b) A de prisão de 2 a 6 anos e multa até 180 dias se os realizar 
 profissionalmente;
 
             c) A de prisão de 2 a 8 anos e multa até 200 dias se usar fraude, 
 violência ou ameaça grave;
 
             d) A de prisão de 2 a 8 anos e multa até 200 dias se a vítima for 
 cônjuge, ascendente, descendente, filho adoptivo, enteado ou tutelado do agente, 
 ou lhe foi entregue em vista da sua educação, direcção, assistência, guarda ou 
 cuidado.’
 
  
 
             Versão revista (1995)
 
             Artigo 170.º
 
             Lenocínio
 
             ‘1 – Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, 
 favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a 
 prática de actos sexuais de relevo, explorando situações de abandono ou de 
 necessidade económica, é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.
 
             2 – Se o agente usar de violência, ameaça grave, ardil ou manobra 
 fraudulenta, ou se aproveitar de incapacidade psíquica da vítima, é punido com 
 pena de prisão de 1 a 8 anos.’
 
  
 
             Versão da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro
 
             Artigo 170.º
 
             (…)
 
             ‘1 – Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, 
 favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a 
 prática de actos sexuais de relevo é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 
 anos.
 
             2 – …’
 
  
 
             Versão da Lei n.º 99/2001, de 25 de Agosto
 
             Artigo 170.º
 
             (…)
 
             ‘1 – …
 
             2 – Se o agente usar de violência, ameaça grave, ardil, manobra 
 fraudulenta, de abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência 
 hierárquica, económica ou de trabalho, ou se aproveitar de incapacidade psíquica 
 da vítima ou de qualquer outra situação de especial vulnerabilidade, é punido 
 com pena de prisão de 1 a 8 anos.1
 
  
 
             Como escreve Anabela Rodrigues, in Comentário Conimbricense do 
 Código Penal – Parte Especial, tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 518 (I. A 
 construção do tipo e o bem jurídico – 1. O artigo 170.º, n.º 1, e o problema da 
 eventual descriminalização da conduta nele contida § 1.): ‘Com a entrada em 
 vigor do CP de 1982, operou‑se a revogação da disposição legal incriminadora 
 contida no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 44 579, de 19 de Setembro de 
 
 1962, de acordo com a qual bastava que o agente “favorecesse” ou “de algum modo 
 facilitasse” o exercício da prostituição para poder ser punido pela prática do 
 crime de lenocínio (sobre esta concepção de lenocínio cf. Beleza dos Santos, 
 RLJ, 60.º, p. 97; era também esta concepção tradicional a vazada no ProjPE, 
 artigo 263.º, n.º 1, Actas, 1979, p. 212). Não se exigia, como o passou a fazer 
 o artigo 215.º, n.º 1, alínea b), do referido CP de 1982, que o agente, ao 
 
 “fomentar, favorecer ou facilitar”, na linguagem do legislador de então, “a 
 prática de actos contrários ao pudor ou à moralidade sexual” (…) por qualquer 
 pessoa, estivesse a explorar uma “situação de abandono ou extrema necessidade 
 económica” em que tais pessoas se encontrassem. Esta orientação manteve‑se na 
 versão do CP de 1995 que, com as transformações devidas no teor verbal da 
 incriminação (cf. comentário ao artigo 169.º), continuou a exigir, para que de 
 lenocínio se pudesse falar, que o agente fomentasse, favorecesse ou facilitasse 
 
 “o exercício da prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo, explorando 
 situações de abandono ou de necessidade económica” (artigo 170.º, n.º 1). É, de 
 novo, a primitiva orientação que, de alguma forma, consagra agora a Lei n.º 
 
 65/98, de 2 de Setembro, deixando de exigir a verificação deste elemento 
 típico e alargando, assim, o âmbito da incriminação.’
 
             É diversa a doutrina sobre o crime de lenocínio (v., v. g., Beleza 
 dos Santos, ‘O Crime de Lenocínio’, in Revista de Legislação e de 
 Jurisprudência, ano 60.º, n.ºs 2332 a 2344, 2346, 2347, 2349 e 2351 a 2353; 
 Código Penal: Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, 
 
 1993, maxime Acta n.º 24, pp. 229 a 270; Karl Prelhaz Natscheradetz, Direito 
 Penal Sexual: Conteúdo e Limites (Dissertação), Almedina; Sénio Alves dos Reis, 
 Crimes Sexuais: Notas e Comentário aos artigos 163.º a 179.º do Código Penal, 
 Almedina, 1995, pp. 67 a 70; José António Rodrigues Marques, ‘O Crime de 
 Lenocínio no Direito Penal Português’, Estudos Comemorativos do 150.º 
 Aniversário do Tribunal da Boa Hora, Ministério da Justiça, 1995, pp. 175 a 
 
 183; Teresa Beleza, ‘Sem Sombra de Pecado. O Repensar dos Crimes Sexuais na 
 Revisão do Código Penal’, in Jornadas de Direito Criminal/Revisão do Código 
 Penal, I volume, Centro de Estudos Judiciários, 1996, pp. 157 a 183; Anabela 
 Miranda Rodrigues, Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, 
 tomo I, Coimbra Editora, 1999, pp. 518 a 532; ‘O papel dos sistemas legais e a 
 sua harmonização para a erradicação das redes de tráfico de pessoas’, in 
 Revista do Ministério Público, n.º 84 (Out./Dez. 2000), pp. 15 a 29).
 
             Há hoje quem entenda dever encontrar‑se descriminalizado o referido 
 artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, porquanto, como sintetiza Anabela 
 Rodrigues, ibidem § 2, p. 519: ‘Com esta incriminação o bem jurídico protegido 
 não é, como devia, a liberdade de expressão sexual da pessoa, mas persiste aqui 
 uma certa ideia de “defesa do sentimento geral de pudor e de moralidade”, que 
 não é encarada hoje como função do direito penal e, de qualquer modo, não 
 presidiu ao novo enquadramento dos “crimes contra a liberdade sexual” no título 
 mais vasto dos crimes contra as pessoas e como uma forma que assumem os 
 atentados contra a liberdade (…)’.
 
             Nesta ordem de ideias, mesmo quando o artigo 170.º, n.º 1, exigia a 
 verificação de situações ‘de abandono ou de necessidade económica’, 
 pressupunha situações de ‘miséria e de exclusão social’, que, no dizer de 
 Figueiredo Dias, não justificaria a intervenção do Direito Penal, por se tratar 
 
 ‘de um problema social e de polícia’, o que conduzia à descriminalização.
 
             Nesta perspectiva, seria contraditória a solução actual ao eliminar 
 a verificação do elemento ‘exploração de situações de abandono ou de 
 necessidade económica’, resultando num alargamento da incriminação.
 
             Verdadeiramente digno de tutela penal seria o comportamento 
 tipificado no artigo 170.º, n.º 2, do Código Penal.
 
             Com o devido respeito, não perfilhamos tal entendimento.
 
             Não é exclusivamente o aspecto estrito de liberdade e 
 autodeterminação sexual, como bem pessoal, que subjaz à criminalização.
 
             Embora a vítima do crime de lenocínio, constante do artigo 170.º do 
 Código Penal, possa ser, em qualquer das formas, qualquer pessoa adulta, homem 
 ou mulher, tem sido a nível da vítima mulher que o tema intensamente tem 
 incidido.
 
             Em anotação ao artigo 170.º, escreve Maia Gonçalves (in Código Penal 
 Português, anotado e comentado, 17.ª edição, p. 598, nota 3): ‘Integra-se na 
 orientação seguida pelo Código, na sequência da Convenção Internacional sobre a 
 Repressão do Tráfico de Seres Humanos, de 2 de Dezembro de 1949, de, em matéria 
 de prostituição e de actos contrários à moralidade sexual, só punir quando forem 
 postos em causa, por forma relevante, os valores da comunidade e as concepções 
 
 ético‑sociais dominantes, e de que a reacção criminal contra a prostituição 
 deve dirigir‑se menos à prostituta do que à engrenagem de que ela tantas vezes é 
 vítima.’
 
             Aliás, já o Decreto‑Lei n.º 44 579, de 19 de Setembro de 1962 (que 
 proibia o exercício da prostituição a partir de 1 de Janeiro de 1963), 
 explicitava no preâmbulo:
 
  
 
             ‘Não se espera que as medidas preconizadas levem ao 
 desaparecimento de prostitutas, pois as continuará a haver em Portugal, como, 
 na prática, as há por todo o Mundo, no momento presente. Mas, além do mais, 
 dar‑se‑á o grande passo de proibir e colocar sob a alçada da lei toda a 
 complicada engrenagem que actualmente as explora, o que já se afigura muito 
 importante.’
 
  
 
             Na actualidade, o crime de lenocínio surge ainda como dimensão do 
 tráfico de pessoas, em que o tráfico de mulheres é um fenómeno em crescimento, 
 nomeadamente na União Europeia.
 
             Como refere Anabela Rodrigues, in ‘O papel dos sistemas legais e a 
 sua harmonização para a erradicação das redes de tráficos de pessoas’, Revista 
 do Ministério Público, ano 21.º, n.º 84, p. 21 e seguintes:
 
  
 
             ‘As forças judiciais e policiais de vários Estados‑membros têm 
 também notado o aparecimento de grandes redes criminosas neste domínio.
 
             Aparentemente existem ligações com outras formas de criminalidade.
 
             Os elevados ganhos conseguidos pelas organizações criminosas 
 envolvidas no tráfico de mulheres levam obviamente a actividades de 
 branqueamento de capitais e implicam a criação de empresas fictícias envolvidas 
 em actividades ilícitas. Algumas fontes também têm indicado que as mulheres 
 vítimas de tráfico são frequentemente deslocadas de um Estado‑membro para outro 
 de forma a satisfazer clientes com novas prostitutas e a dificultar que as 
 vítimas sejam detectadas pela polícia ou pelos serviços sociais.
 
             (…)
 
             Depois de as mulheres serem transportadas para o país de destino 
 existem várias formas para as forçar a iniciarem e /ou continuarem uma 
 actividade de prostituição.’
 
  
 
             Na União Europeia, os Estados‑membros aprovaram a Acção Comum de 
 Fevereiro de 1997 com vista a ‘aperfeiçoar as disposições penais dos 
 Estados‑membros e a sua cooperação judicial no contexto do combate ao tráfico 
 de seres humanos’.
 
             No que diz respeito às medidas a adoptar no plano nacional, os 
 principais elementos contidos nesta Acção Comum são os seguintes:
 
             – Criminalização de comportamentos tais como a exploração sexual de 
 uma pessoa com fins lucrativos utilizando coação, ou falsas promessas, ou abuso 
 de autoridade ou outra pressão que não permitia uma verdadeira opção a essa 
 pessoa;
 
             – Tráfico de pessoas para obtenção de ganhos com vista a uma 
 exploração sexual. (idem, ibidem).
 
             Como refere a mesma Distinta Professora, ‘No âmbito da 
 incriminação, no Código Penal, do tráfico de pessoas (artigo 169.º) e do 
 lenocínio (artigo 170.º), a recente alteração ao CP (Lei n.º 65/98, de 2 de 
 Setembro) veio retirar dos tipos legais o elemento “exploração de situação de 
 abandono ou necessidade”. Esta alteração correspondeu às exigências de alargar, 
 tornando‑a mais fácil, a incriminação de certas condutas ligadas ao tráfico de 
 pessoas para fins de exploração sexual.» (idem, ibidem, p. 26).
 
             Aliás, bem se compreende o alargamento de tal incriminação uma vez 
 que as exigências probatórias são elevadas, é normalmente escassa a colaboração 
 das vítimas, não sendo também ‘descurável a circunstância de que algumas das 
 vítimas, por ânsia de lucro ou necessidade de sustento de dependências tóxicas, 
 preexistentes ou entretanto adquiridas, vencida a relutância inicial, adiram ou 
 se conformem com a situação de exploração a que são submetidas e se neguem assim 
 a qualquer acção de colaboração com as autoridades’ – Euclides Dâmaso Simões, 
 
 ‘Tráfico de Seres Humanos, A lei portuguesa e a importância da cooperação 
 judiciária internacional’, in Polícia e Justiça, III série, n.º 4, pp. 260 e 
 
 261 (v. ainda a análise deste autor na sequência da Convenção de Palermo e 
 Protocolo Adicional à mesma, ratificados por Portugal e publicados no Diário da 
 República, de 2 de Abril de 2004, bem como a Decisão Quadro 19-72002, da União 
 Europeia).
 
             Como se disse em determinada altura, na discussão parlamentar, na 
 Assembleia da República, aquando da revisão do Código Penal:
 
  
 
             ‘O ritmo de mutações sociais que hoje vivemos traz consigo novas 
 formas de criminalidade e agravamento quantitativo e qualitativo de certas 
 formas de comportamentos criminosos a exigirem resposta não só dos aparelhos de 
 investigação criminal como dos próprios textos básicos de política criminal.
 
             (…)
 
             Especial atenção devem merecer por parte do Estado a protecção de 
 certo tipo de vítimas, particularmente indefesas face às agressões, as mais 
 diversas, de que podem ser objecto. Daí o essencial das alterações que agora 
 propomos e que, aliás, colhem consenso, muitas delas, nas bancadas da oposição.
 
             Assim, no que respeita à parte especial, as alterações propostas 
 visam basicamente: (…) a intensificação do combate aos crimes de exploração 
 sexual de pessoas objecto de prostituição e de tráfico; (…)
 
             (…)
 
             Nos crimes de tráfico de pessoas e de lenocínio alargar‑se a 
 incriminação, retirando‑se das descrições típicas a exigência de exploração 
 de situações de abandono ou de necessidade. Na verdade, bastará, nestes casos, 
 o constrangimento à prostituição ou à actividade sexual de relevo em país 
 estrangeiro, através de violência, ameaça grave, ardil ou manobra fraudulenta 
 ou a exploração sexual de outra pessoa (desenvolvida profissionalmente ou com 
 intenção lucrativa) para que as condutas já possuam indispensável relevância 
 
 ético‑penal, e para que, como tal, devam ser punidas.’ (Diário da Assembleia da 
 República, I Série, n.º 48, de 13 de Março de 1998, pp. 1625 e 1626).
 
  
 
             Nesta sequência, a diferença entre o crime de tráfico de pessoas 
 
 (artigo 169.º do Código Penal) e o crime de lenocínio, nas várias modalidades, 
 será de ordem territorial.
 
             Salienta Maia Gonçalves (ibidem, p. 596, nota 2) em anotação ao 
 artigo 169.º (tráfico de pessoas) do Código Penal: ‘É elemento típico deste 
 crime a circulação de pessoas para país estrangeiro para a prática da 
 prostituição ou de actos sexuais de relevo, não estando, portanto, aqui 
 incriminada a circulação dentro do mesmo país, para as aludidas práticas. Neste 
 caso, a incriminação só será possível através dos artigos 170.º (…), se se 
 verificarem os outros elementos constitutivos desses crimes’.
 
             Dâmaso Simões (ibidem, p. 265) assinala: ‘(…) sempre deveria 
 perspectivar‑se a hipótese de aplicação do regime plasmado no artigo 170.º do 
 Código Penal para o crime de lenocínio, primordialmente vocacionado, a meu ver, 
 para os casos de “tráfico nacional” (isto é, de arrastamento para a prática de 
 prostituição ou de actos sexuais de relevo dentro do País, sem cruzamento de 
 fronteiras).’
 
             O artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal insere‑se, pois numa opção de 
 política criminal, tendo em conta a necessidade de combater o tráfico de 
 pessoas para exploração sexual, assentando o bem jurídico na protecção da 
 dignidade da pessoa no modo de explicitação comunitária da sua liberdade e 
 autodeterminação sexual.
 
             E, como refere Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, p. 
 
 24:
 
  
 
             ‘Parafraseando uma afirmação antecipadora de Kohlrausch, dir‑se‑á 
 que uma ciência jurídico‑penal que nada tenha a oferecer às necessidades 
 correctamente entendidas da política criminal não só se torna em peça decorativa 
 inútil, como é falsa.
 
             A esta luz, numa palavra, todas as categorias e todos os conceitos 
 da dogmática jurídico‑penal devem apresentar‑se funcionalmente determinados 
 pelas (e ligados às) finalidades eleitas pela política criminal. (…)’
 
  
 
             E, mais adiante, a pág. 25, escreve o mesmo Ilustre Professor: ‘(…) 
 as finalidades e as proposições político‑criminais devem, elas também, ser 
 procuradas e estabelecidas no interior do quadro de valores e de interesses que 
 integram o consenso comunitário mediado e positivado pela Constituição do 
 Estado. Somente desta maneira poderá de resto a política criminal, como deve, 
 conceder uma importância primária à protecção dos direitos, das liberdades e 
 das garantias da pessoa – de toda e qualquer pessoa, só por o ser.’
 
             O artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal protege um bem jurídico, de 
 natureza constitucional, que é a dignidade da pessoa humana, constitutiva de 
 um dos princípios fundamentais da República Portuguesa, conforme artigo 1.º da 
 Constituição da República. Assumindo‑se o artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal 
 como uma dimensão de tutela jurídico‑penal da garantia da dignidade humana, 
 constitucionalmente consagrada e protegida constitucionalmente pelo artigo 
 
 26.º, n.º 2, da Constituição, aqui na vertente da dignidade ínsita à 
 auto‑expressividade sexual, co‑determinando tal inciso, 
 axiológico‑normativamente, a expressividade comunitária do modo de exercício 
 do direito à liberdade e autodeterminação sexual, ou, dito de outro modo, 
 vinculando esse exercício de autodeterminação sexual, com projecção e 
 relevância ético‑sociais, à dignidade da pessoa, de forma a que esta não 
 constitua mera mercadoria, res possidendi, mero instrumento de prestação sexual, 
 ainda que com o consentimento da vítima, explorada profissionalmente ou com 
 intenção lucrativa por outrem.
 
             Para se verificar o crime de lenocínio, previsto e punido no artigo 
 
 170.º, n.º 1, do Código Penal, basta que – como, aliás, da sua redacção resulta 
 
 – o agente pratique alguma das condutas ali previstas (fomentar, favorecer ou 
 facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos 
 sexuais de relevo), ‘profissionalmente ou com intenção lucrativa’.
 
             Não é elemento típico do crime previsto e punido no n.º 1 do artigo 
 
 170.º do Código Penal a existência de uma situação de exploração de 
 necessidade económica ou de abandono da vítima.
 
             Nem a exigência dessa situação tem o mínimo apoio literal no n.º 1 
 do artigo 170.º do Código Penal (v., aliás, artigos 1.º do Código Penal e 9.º, 
 n.ºs 2 e 3, do Código Civil).
 
             A existência de uma situação de exploração de necessidade económica 
 ou de abandono da vítima constitui, outrossim, uma circunstância qualificativa 
 do crime de lenocínio, como resulta do n.º 2 do mesmo artigo 170.°
 
             Também a Proposta de Lei (de alteração do Código Penal) n.º 98/X, no 
 seu artigo 169.º, n.º 1, não contempla a exigência de tal situação de 
 exploração, a qual continua a integrar uma das qualificativas do crime, nos 
 termos do n.º 2, alíneas c) e d), do referido artigo 169.º
 
             O artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal não é assim, 
 inconstitucional, nem admite interpretação restritiva no sentido de ser 
 tipicamente exigível o que a lei eliminou.
 
             A admitir‑se uma interpretação restritiva, em tal âmbito, seria 
 fazer entrar pela janela o que se fez sair pela porta (revisão de 1998).
 
             Uma interpretação restritiva do referido artigo 170.º, n.º 1, do 
 Código Penal, no sentido de que a inexistência de uma situação de exploração de 
 necessidade económica ou de abandono da vítima se traduz em descriminalização 
 da conduta do agente ainda que verificada a factualidade típica descrita no 
 mesmo n.º 1, é que será inconstitucional, porque contende com a definição dos 
 pressupostos do crime, que é da reserva relativa de competência legislativa da 
 Assembleia da República, nos termos do artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da 
 Constituição da República.»
 
  
 
             3. A questão que constitui objecto do presente recurso já foi 
 objecto de anteriores decisões do Tribunal Constitucional, o que possibilita a 
 prolação de decisão sumária, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º‑A da LTC.
 
             Na verdade, pelos Acórdãos n.ºs 144/2004, 196/2004, 303/2004, 
 
 170/2006, 396/2007 e 522/2007 (os dois primeiros, da 2.ª Secção, subscritos pelo 
 ora relator; os terceiro, quinto e sexto da 1.ª Secção; e o quarto da 3.ª 
 Secção), o Tribunal Constitucional pronunciou‑se reiteradamente no sentido da 
 não inconstitucionalidade da norma em causa.
 
             No Acórdão n.º 144/2004 foram tratadas as alegadas violações do 
 princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18.º, n.º 2, e dos artigos 
 
 41.º (liberdade de consciência) e 47.º, n.º 1 (liberdade de profissão), da 
 Constituição da República Portuguesa (CRP), explanando‑se, a esse propósito, o 
 seguinte:
 
  
 
             «4.  Está em causa, no presente processo, a eventual 
 inconstitucionalidade da norma contida no artigo 170.º, n.º 1, do Código 
 Penal, por violação dos artigos 41.º e 47.º, n.º 1, conjugados com o artigo 
 
 18.º, n.º 2, da Constituição.
 
             Tem o citado artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, o seguinte teor: 
 
 ‘Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou 
 facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos 
 sexuais de relevo é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.’
 
  
 
             5.  O ponto de vista que a recorrente apresenta ao Tribunal 
 Constitucional consubstancia‑se no seguinte:
 
             – os bens jurídicos protegidos pela norma em crise são, em primeira 
 linha, ‘sentimentalismos transpessoais’, valores de ordem moral e não bens 
 pessoais como a liberdade e autodeterminação sexual;
 
             – não sendo a prostituição em si punível, incriminar‑se a 
 actividade comercial ou lucrativa que tem por base a prostituição ou ‘actos 
 similares’ corresponde a privar os cidadãos de exercer uma actividade 
 profissional por imposição de regras morais.
 
             A pergunta a que importa responder é, portanto, a de saber se fere 
 alguma norma ou princípio constitucional a incriminação das condutas que 
 constituem a factualidade típica do artigo 170.º
 
  
 
             6.  Não se terá, aqui, de responder à questão geral sobre se o 
 Direito Penal pode, constitucionalmente, tutelar bens meramente morais, questão 
 que não pode ser resolvida sem o esclarecimento prévio do que se entende por 
 bens puramente morais e que não pode deixar de tomar em consideração que há 
 valores e bens tidos como morais e que relevam, inequivocamente, no campo do 
 Direito. A relação entre o Direito e a Moral ou o Ethos tem sido objecto de uma 
 controvérsia muito importante, sendo uma das questões fundamentais da Filosofia 
 do Direito. Com efeito, desde a tradição liberal radicada em Stuart Mill (On 
 liberty, 1859) ou mesmo do pensamento de Kant (Metaphysik der Sitten, 1797), em 
 que o Direito se situa apenas no plano do dano ou do prejuízo dos interesses ou 
 da violação dos deveres (externos) para com os outros até às concepções de uma 
 total fusão entre o Direito e a Moral, em que se reconhece que o Direito tem 
 legitimidade para impor colectivamente valores morais (assim, por exemplo, no 
 pensamento anglo‑saxónico, Patrick Devlin, em The Enforcement of Morals, 1965, 
 em nome da manutenção da identidade da sociedade), tem‑se mantido acesa a 
 discussão. Apesar das duas posições extremas – a da separação absoluta entre o 
 Direito e a Moral e a da total coincidência entre Direito e Moral – é amplamente 
 aceite que o Direito e a Moral, embora a partir de perspectivas diferentes, 
 fazem parte de uma unidade mais vasta (assim, Arthur Kaufmann, Recht und 
 Sittlichkeit, 1964, p. 9, e, de modo introdutório à questão, J. Baptista 
 Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1990, p. 59 e 
 seguintes).
 
             Assim, tanto quem procure em valores morais a legitimação do 
 Direito, como quem acentue a distinção entre Moral e Direito, reconhecerá, 
 inevitavelmente, que existem bens e valores que participam das duas ordens 
 normativas [partindo de concepções diversas sobre o Direito, mas coincidindo 
 neste último ponto, cf. Radbruch, Filosofia do Direito (trad. port. de L. Cabral 
 de Moncada), 6.ª ed., 1979; e Kelsen, Teoria Pura do Direito (trad. port. de 
 Baptista Machado), 1979 – este último, apesar da separação radical entre Direito 
 e Moral, não deixa de reconhecer que o Direito pode tutelar valores morais, sem 
 que, por isso, Direito e Moral se confundam; também Hart o reconhece em 
 
 ‘Positivism and the Separation of Law and Morals’, Harvard Law Review, 1958; ver 
 ainda, do mesmo autor, Conceito de Direito (trad. port. de A. Ribeiro Mendes), 
 
 1986]. Mesmo as posições mais favoráveis à autonomia do Direito não negam que 
 possam existir valores morais tutelados também pelo Direito, segundo a lógica 
 deste e por força dos seus critérios (sobre toda a problemática da relação entre 
 a Moral e o Direito, veja‑se, por exemplo, Arthur Kaufmann, Rechtsphilosophie, 
 
 2.ª ed., 1997, Kurt Seelmann, Rechtsphilosophie, 1994). Porém, questão prévia a 
 tal problemática e decisiva no presente caso é a de saber se a norma do artigo 
 
 170.º, n.º 1, do Código Penal apenas protege valores que nada tenham a ver com 
 direitos e bens consagrados constitucionalmente, não susceptíveis de protecção 
 pelo Direito, segundo a Constituição portuguesa.
 
             Ora, a resposta a esta última questão é negativa, na medida em que 
 subjacente à norma do artigo 170.º, n.º 1, está inevitavelmente uma perspectiva 
 fundamentada na História, na Cultura e nas análises sobre a Sociedade segundo a 
 qual as situações de prostituição relativamente às quais existe um 
 aproveitamento económico por terceiros são situações cujo significado é o da 
 exploração da pessoa prostituída (cf. sobre a prostituição, nas suas várias 
 dimensões, mas caracterizando‑o como ‘fenómeno social total’ e, depreende‑se, um 
 fenómeno de exclusão, José Martins Bravo da Costa, ‘O crime de lenocínio. 
 Harmonizar o Direito, compatibilizar a Constituição’, em Revista Portuguesa de 
 Ciência Criminal, ano 12, n.º 3, 2002, p. 211 e seguintes; do mesmo autor e 
 Lurdes Barata Alves, Prostituição 2001 – O Masculino e o Feminino de Rua, 2001). 
 Tal perspectiva não resulta de preconceitos morais mas do reconhecimento de que 
 uma Ordem Jurídica orientada por valores de Justiça e assente na dignidade da 
 pessoa humana não deve ser mobilizada para garantir, enquanto expressão de 
 liberdade de acção, situações e actividades cujo ‘princípio’ seja o de que uma 
 pessoa, numa qualquer dimensão (seja a intelectual, seja a física, seja a 
 sexual), possa ser utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. 
 A isto nos impele, desde logo, o artigo 1.º da Constituição, ao fundamentar o 
 Estado Português na igual dignidade da pessoa humana. E é nesta linha de 
 orientação que Portugal ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as 
 Formas de Discriminação contra as Mulheres (Lei n.º 23/80, em Diário da 
 República, I Série, de 26 de Julho de 1980), bem como, em 1991, a Convenção para 
 a Supressão do Tráfico de Pessoas e de Exploração da Prostituição de Outrem 
 
 (Diário da República, I Série, de 10 de Outubro de 1991).
 
             É claro que a esta perspectiva preside uma certa ideia cultural e 
 histórica da pessoa e uma certa ideia do valor da sexualidade, bem como o 
 reconhecimento do valor científico das análises empíricas que retratam o ‘mundo 
 da prostituição’ (e note‑se que neste terreno tem sido longo o percurso que 
 conduziu o pensamento sociológico desde a caracterização da prostituição como 
 anormalidade ou doença – assim, C. Lombroso e G. Ferro, La femme criminelle et 
 la prostituée, 1896, e, no caso português, os estudos de Tovar de Lemos, A 
 prostituição. Estudo anthropologico da prostituta portuguesa, 1908, e, sobre as 
 concepções da ciência acerca da prostituição no início do século, cf. Maria 
 Rita Lino Garnel, ‘A loucura da prostituição’, em Themis, ano III, n.º 5, 2002, 
 p. 295 e seguintes – até ao reconhecimento de que as prostitutas são vítimas de 
 exploração e produto de uma certa exclusão social). Mas tal horizonte de 
 compreensão dos bens relevantes é sempre associado a ideias de autonomia e 
 liberdade, valores da pessoa que estão directamente em causa nas condutas que 
 favorecem, organizam ou meramente se aproveitam da prostituição.
 
             Não se concebe, assim, uma mera protecção de sentimentalismos ou de 
 uma ordem moral convencional particular ou mesmo dominante, que não esteja 
 relacionada, intrinsecamente, com os valores da liberdade e da integridade moral 
 das pessoas que se prostituem, valores esses protegidos pelo Direito enquanto 
 aspectos de uma convivência social orientada por deveres de protecção para com 
 pessoas em estado de carência social. A intervenção do Direito Penal neste 
 domínio tem, portanto, um significado diferente de uma mera tutela jurídica de 
 uma perspectiva moral, sem correspondência necessária com valores essenciais do 
 Direito e com as suas finalidades específicas num Estado de Direito. O 
 significado que é assumido pelo legislador penal é, antes, o da protecção da 
 liberdade e de uma ‘autonomia para a dignidade’ das pessoas que se prostituem. 
 Não está, consequentemente, em causa qualquer aspecto de liberdade de 
 consciência que seja tutelado pelo artigo 41.º, n.º 1, da Constituição, pois a 
 liberdade de consciência não integra uma dimensão de liberdade de se aproveitar 
 das carências alheias ou de lucrar com a utilização da sexualidade alheia. Por 
 outro lado, nesta perspectiva, é irrelevante que a prostituição não seja 
 proibida. Na realidade, ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num 
 certo sentido, uma expressão da livre disponibilidade da sexualidade 
 individual, o certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa 
 de poder exprimir já uma interferência, que comporta riscos intoleráveis, dados 
 os contextos sociais da prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se 
 prostitui (colocando‑o em perigo), na medida em que corresponda à utilização de 
 uma dimensão especificamente íntima do outro não para os fins dele próprio, 
 mas para fins de terceiros. Aliás, existem outros casos, na Ordem Jurídica 
 portuguesa, em que o autor de uma conduta não é incriminado e são incriminados 
 os terceiros comparticipantes, como acontece, por exemplo, com o auxílio ao 
 suicídio (artigo 135.º do Código Penal) ou com a incriminação da divulgação de 
 pornografia infantil (artigo 172.º, n.º 3, alínea e), do Código Penal), sempre 
 com fundamento na perspectiva de que a autonomia de uma pessoa ou o seu 
 consentimento em determinados actos não justifica, sem mais, o comportamento do 
 que auxilie, instigue ou facilite esse comportamento. É que relativamente ao 
 relacionamento com os outros há deveres de respeito que ultrapassam o mero não 
 interferir com a sua autonomia, há deveres de respeito e de solidariedade que 
 derivam do princípio da dignidade da pessoa humana.
 
  
 
             7.  Por outro lado, que uma certa ‘actividade profissional’ que 
 tenha por objecto a específica negação deste tipo de valores seja proibida 
 
 (neste caso, incriminada) não ofende, de modo algum, a Constituição. A 
 liberdade de exercício de profissão ou de actividade económica tem obviamente, 
 como limites e enquadramento, valores e direitos directamente associados à 
 protecção da autonomia e da dignidade de outro ser humano (artigos 47.º, n.º 1, 
 e 61.º, n.º 1, da Constituição). Por isso estão particularmente condicionadas, 
 como objecto de trabalho ou de empresa, actividades que possam afectar a vida, a 
 saúde e a integridade moral dos cidadãos (artigo 59.º, n.º 1, alíneas b) e c), 
 ou n.º 2, alínea c), da Constituição). Não está, assim, de todo em causa a 
 violação do artigo 47.º, n.º 1, da Constituição. Nem também tem relevância 
 impeditiva desta conclusão a aceitação de perspectivas como a que aflora no 
 pronunciamento do Tribunal de Justiça das Comunidades (Sentença de 20 de 
 Novembro de 2001, Processo n.º 268/99), segundo a qual a prostituição pode ser 
 encarada como actividade económica na qualidade de trabalho autónomo (cf., em 
 sentido crítico, aliás, Massimo Luciani, ‘Il lavoro autonomo della prostituta’, 
 em Quaderni Costituzionali, anno XXII, n.º 2, giugno 2002, p. 398 e seguintes). 
 Com efeito, aí apenas se considerou que a permissão de actividade das pessoas 
 que se prostituem nos Estados membros da Comunidade impede uma discriminação 
 quanto à autorização de permanência num Estado da União Europeia, daí não 
 decorrendo qualquer consequência para a licitude das actividades de 
 favorecimento à prostituição.
 
  
 
             8.  As considerações antecedentes não implicam, obviamente, que haja 
 um dever constitucional de incriminar as condutas previstas no artigo 170.º, n.º 
 
 1, do Código Penal. Corresponde, porém, a citada incriminação a uma opção de 
 política criminal (note‑se que tal opção, quanto às suas fronteiras, é passível 
 de discussão no plano de opções de política criminal – veja‑se Anabela 
 Rodrigues, Comentário Conimbricense, I, 1999, p. 518 e seguintes), 
 justificada, sobretudo, pela normal associação entre as condutas que são 
 designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social das 
 pessoas que se dedicam à prostituição, fazendo desta um modo de subsistência. O 
 facto de a disposição legal não exigir, expressamente, como elemento do tipo uma 
 concreta relação de exploração não significa que a prevenção desta não seja a 
 motivação fundamental da incriminação a partir do qual o aproveitamento 
 económico da prostituição de quem fomente, favoreça ou facilite a mesma 
 exprima, tipicamente, um modo social de exploração de uma situação de carência e 
 desprotecção social.
 
             Tal opção tem o sentido de evitar já o risco de tais situações de 
 exploração, risco considerado elevado e não aceitável, e é justificada pela 
 prevenção dessas situações, concluindo‑se pelos estudos empíricos que tal risco 
 
 é elevado e existe, efectivamente, no nosso país, na medida em que as situações 
 de prostituição estão associadas a carências sociais elevadas (sobre a 
 realidade sociológica da prostituição, cf., por exemplo, Almiro Simões 
 Rodrigues, ‘Prostituição: – Que conceito? – Que realidade?’, em Infância e 
 Juventude, Revista da Direcção‑Geral dos Serviços Tutelares de Menores, n.º 2, 
 
 1984, p. 7 e seguintes, e José Martins Barra da Costa e Lurdes Barata Alves, 
 Prostituição 2001 ..., ob. cit., supra), não é tal opção inadequada ou 
 desproporcional ao fim de proteger bens jurídicos pessoais relacionados com a 
 autonomia e a liberdade. Ancora‑se esta solução legal num ponto de vista que tem 
 ainda amparo num princípio de ofensividade, à luz de um entendimento compatível 
 com o Estado de Direito democrático, nos termos do qual se verificaria uma opção 
 de política criminal baseada numa certa percepção do dano ou do perigo de certo 
 dano associada à violação de deveres para com outrem – deveres de não 
 aproveitamento e exploração económica de pessoas em estado de carência social 
 
 [cf., com interesse para a questão da construção do conceito de dano nesta área 
 e independentemente da posição sobre a pornografia aí defendida, matéria que 
 não tem relevância no contexto do presente acórdão, Catherine Mackinnen, 
 
 ‘Pornography: On Morality in and Politics’, em Toward a Feminist Theory of 
 State, 1989, que defende a incriminação da pornografia em face da sua 
 ofensividade contra a imagem da mulher e a construção da respectiva identidade 
 como pessoa. Também sobre tal lógica de construção do dano, cf. Sandra E. 
 Marshall, ‘Feminism, Pornography and the Civil Law’, em Recht und Moral (org. 
 Heike Jung e outros), 1991, p. 383 e seguintes, defendendo a autora que, na 
 pornografia, o dano consistiria na negação da humanidade da mulher, sendo 
 relevante para o tema do presente Acórdão a perspectiva de que ‘a perda da 
 autonomia não é um assunto meramente subjectivo ... a autonomia é negada mesmo 
 que não se reconheça. Aqui pode ser traçado um paralelo com a escravatura ... A 
 própria condição da escravatura requer que o escravo não se veja a si próprio 
 como alguém que possui ou a quem falta autonomia ... Isto pode ser formulado 
 dizendo que uma tal pessoa não se pode ver a si própria completamente. Como item 
 da propriedade não possui um em si mesma’]. O entendimento subjacente à lei 
 penal radica, em suma, na protecção por meios penais contra a necessidade de 
 utilizar a sexualidade como modo de subsistência, protecção directamente 
 fundada no princípio da dignidade da pessoa humana. Questão diversa que não 
 está suscitada nos presentes autos é a que se relaciona com a possibilidade 
 processual de contraprova do perigo que serve de fundamento à incriminação em 
 casos como o presente ou ainda, naturalmente, com a prova associada à 
 aplicação dos critérios de censura de culpa do agente e da atenuação ou 
 eventual exclusão de culpabilidade, em face das circunstâncias concretas do 
 caso.
 
  
 
             9.  Em face do exposto, não se pode considerar que estejam violados 
 pela norma em crise quaisquer normas ou princípios constitucionais.”
 
  
 
             Este entendimento foi reiterado no Acórdão n.º 196/2004, que 
 expressamente considerou a fundamentação expendida no Acórdão n.º 144/2004 
 inteiramente transponível para o recurso então em apreço, «e, designadamente, 
 para o confronto da norma em causa com os outros parâmetros invocados pelo agora 
 recorrente: os artigos 58.º (direito ao trabalho), 26.º, n.º 1 (direitos à 
 livre expressão da sexualidade, à vida privada e à identidade pessoal), e 27.º, 
 n.º 1 (direito à liberdade), da Constituição da República», aduzindo, 
 complementarmente, que:
 
  
 
             «Não se vê que, pelo confronto com estes direitos 
 constitucionalmente consagrados, haja de chegar‑se a solução diversa daquela 
 por que se concluiu nesse aresto, no qual se confrontou já a norma em questão, 
 designadamente, com o artigo 18.º da Constituição (confronto no qual se centra 
 também o parecer jurídico junto aos autos), concluindo pela inexistência de 
 inconstitucionalidade.
 
             Assim, no presente caso há apenas que, remetendo para os 
 fundamentos desse Acórdão n.º 144/2004 (…), reiterar o juízo de não 
 inconstitucionalidade do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção 
 resultante da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, e, consequentemente, negar 
 provimento ao recurso.»
 
  
 
             Esta orientação foi continuada pelos Acórdãos n.ºs 303/2004 (que, 
 além de remeter para a fundamentação dos dois anteriores acórdãos, 
 inovatoriamente se pronunciou pela não violação do artigo 1.º da CRP), 170/2006, 
 
 396/2007 e 522/2007.
 
             É esse entendimento que ora se reitera.
 
             Refira‑se, por último, que a recente revisão do Código Penal, 
 operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, manteve, no artigo 169.º 
 
 (correspondente ao anterior artigo 170.º), n.º 1, a incriminação de «quem, 
 profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar 
 o exercício por outra pessoa de prostituição», sem restringir a incriminação às 
 hipóteses de exploração de «situações de abandono ou de necessidade económica».
 
  
 
             4. Em face do exposto, decide‑se, ao abrigo do artigo 78.º‑A, n.º 1, 
 da LTC:
 
             a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 170.º, 
 n.º 1, do Código Penal, na redacção resultante da Lei n.º 65/98, de 2 de 
 Setembro; e, consequentemente,
 
             b) Negar provimento ao recurso, confirmando‑se a decisão recorrida, 
 na parte impugnada.”
 
  
 
                         1.2. A reclamação para a conferência apresentada pelo 
 recorrente é do seguinte teor:
 
  
 
             “O ora reclamante reitera todos os fundamentos por si invocados nas 
 alegações de recurso, designadamente que, apesar de o Supremo Tribunal de 
 Justiça, no douto aresto ora recorrido, entender que a questão sobre a pretensa 
 inconstitucionalidade do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, já foi 
 equacionada e decidida pelo Tribunal Constitucional designadamente no Acórdão 
 n.º 144/2004, de 10 de Março, processo n.º 566/2003, da 2.ª Secção, que 
 considerou não ser inconstitucional, nem admite interpretação restritiva no 
 sentido de ser tipicamente exigível a verificação de uma «situação de abandono 
 ou de extrema necessidade económica». Todavia, que como assertivamente refere o 
 Conselheiro Eduardo Maia Costa, no seu voto de vencido, cujo fundamentação, por 
 corresponder à única possível de forma a coadunar o tipo legal de crime com a 
 Constituição, se tem aqui por integralmente reproduzida, exaustivamente esgrime 
 argumentos que implicam a necessária interpretação restritiva do artigo 170.º, 
 n.º 1, do Código Penal, sob pena de violação do artigo 18.º, n.º 2, da CRP.
 
             Com efeito, como refere o Conselheiro Eduardo Maia Costa, é sem 
 dúvida o Parecer de M. Costa Andrade e Maria João Antunes que analisa mais 
 exaustivamente a questão agora em análise, concluindo, a partir do conceito de 
 bem jurídico nos crimes sexuais, pela violação frontal pelo artigo 170.º, n.º 1, 
 do Código Penal do artigo 18.º, n.º 2, da CRP.
 
             De acordo com o referido pelo Conselheiro Eduardo Maia Costa, é 
 notória a preocupação do Tribunal Constitucional, nos acórdãos referidos no 
 douto aresto do STJ, de justificar a incriminação do artigo 170.º, n.º 1, do 
 Código Penal com a violação de um bem jurídico, mas acaba por vacilar entre a 
 protecção da dignidade humana (sem especificação de qual o bem jurídico 
 subjacente) e a protecção do risco de verificação de situações de exploração da 
 pessoa que se prostitui, concebendo assim, de certa forma, a infracção como 
 crime de perigo abstracto.
 
             Constituindo a motivação fundamental do legislador com as alterações 
 introduzidas pela reforma penal de 1998, a luta contra a exploração de pessoas, 
 então haverá sempre que obter prova dessa situação, e não que presumi‑la, 
 recuando a protecção penal de forma a abranger situações que nela 
 manifestamente não cabem, por não se verificar a violação do bem jurídico dos 
 crimes sexuais: a violação da liberdade, ou autodeterminação, sexual. A 
 exploração só existe nas situações em que quem pratica a prostituição o faz com 
 uma vontade condicionada, com o consentimento viciado ou pela extrema 
 necessidade económica ou por uma situação de abandono, pois, então (e só 
 então), a decisão não é verdadeiramente livre, e, portanto, o bem jurídico 
 protegido é ofendido. A protecção do «risco» de exploração acaba por «renegar» o 
 pretenso bem jurídico subjacente ao crime.
 
             A perspectiva da prostituição em que assentam os acórdãos proferidos 
 pelo Tribunal Colectivo e pelo Supremo Tribunal de Justiça denuncia um 
 pré‑compreensão estigmatizante e redutora do fenómeno, de rejeição do mesmo em 
 nome de «valores», não vertidos em bens jurídicos concretos.
 
             Na verdade, não obstante as acções de auxílio remunerado à prática 
 de actos constitutivos da prostituição terem sido criminalizados com a entrada 
 em vigor do Decreto‑Lei n.º 44 579, de 18 de Setembro de 1962, e legislação 
 subsequente, a prática de tais actos não diminuiu, pelo contrário, cada vez se 
 torna mais visível nas cidades, vilas e estradas de Portugal. A prostituta que 
 pratica voluntária e livremente os actos sexuais de relevo contra remuneração é, 
 na opinião de uma corrente de pensamento, atentatória da dignidade da pessoa 
 humana e, não obstante a ideia da dignidade humana se ter enraizado na nossa 
 cultura por influência do Cristianismo, não se concebe que, quando esses actos 
 são praticados livre e voluntariamente, fora de qualquer coacção ou exploração 
 de uma situação de necessidade, atentem contra a dignidade da pessoa humana. Com 
 efeito, enquanto o tratamento explícito dos antigos pensadores cristãos se 
 processava em termos ontológicos, os modernos, de um modo geral, estudam a 
 Pessoa e os seus direitos mais nas suas manifestações mundanas e 
 intersubjectivas do que na sua relação com o ser, mais, portanto, o homem 
 entendido como natureza em devir e plurifacetada.
 
             A prática da prostituição é uma realidade que ninguém pode 
 escamotear, ao serem proibidos estabelecimentos comerciais que tinham por 
 objecto facilitar a prática da prostituição, passaram os mesmos a ser 
 clandestinos, aumentou a prostituição de rua e surgiu uma nova forma de a 
 praticar e favorecer, em apartamentos privados, com anúncios a ocuparem cada 
 vez maior número de páginas nos jornais diários de maior tiragem. 
 Reconduzindo‑se, destarte, à prática de uma actividade que de facto existe e 
 movimenta milhões de euros por ano, sobre os quais não incide qualquer imposto 
 ou taxa. Associado a esta actividade sem o devido licenciamento, a segurança, 
 higiene e, sobretudo, a saúde dos utentes, maioritariamente casados que 
 consequentemente presenteiam os respectivos cônjuges com doenças sexualmente 
 transmissíveis, está seriamente ameaçada, o que não sucederia se a referida 
 actividade se encontrasse regulamentada, sendo que o controlo médico seria uma 
 sua consequência. Sem qualquer hipocrisia diríamos que a prostituição praticada 
 na rua e em apartamentos mediante anúncio em jornais diários, ofende a moral e 
 moralidade sexual da sociedade, o que não sucederia com a prática de tais actos 
 em estabelecimentos comerciais para tal licenciados em que as prostitutas e/ou 
 prostitutos exerceriam aí uma actividade também ela regulamentada. Os 
 benefícios compensariam a coragem política de regulamentar uma actividade que 
 desde sempre existiu e que, em Portugal, há quatro décadas atrás encontrava‑se 
 regulamentada. Existindo de facto, por que razão não podem as prostitutas 
 exercer os direitos fundamentais contidos nos artigos 47.º e 58.º da CRP, ou 
 seja, liberdade de escolha de profissão e direito ao trabalho?
 
             O argumento do aproveitamento económico por terceiros como 
 
 «utilização de uma dimensão especificamente íntima de outro não para fins dele 
 próprio, mas para fins de terceiro» denuncia, objectivamente, uma condenação 
 tipicamente moral do fenómeno da prostituição, uma perspectiva que considera 
 chocante e indigna a «venda do corpo», ainda que voluntária, consciente e 
 praticada por adultos, uma posição que nada tem a ver com o bem jurídico 
 protegido, tal como é entendido pelo legislador. Por isso, tenta‑se presumir 
 
 (ou melhor ficcionar) uma situação de exploração, de aproveitamento, de 
 extorsão, quando intervêm terceiros.
 
             Ao ser interpretada no sentido explanado nos arestos do Tribunal 
 Colectivo e Supremo Tribunal de Justiça, a norma, ao ser interpretada à letra, 
 prescindindo da exigência de prova de uma situação de exploração de necessidade 
 económica ou de abandono, é inconstitucional por ofender o princípio da 
 fragmentariedade ou subsidiariedade do direito penal, plasmado no artigo 18.º, 
 n.º 2, da CRP e previsto no artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, bem como os 
 direitos à livre expressão da sexualidade, à vida privada, à identidade pessoal, 
 
 à liberdade de consciência, liberdade de escolha de profissão e direito ao 
 trabalho, previstos nos artigos 26.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, 40.º, n.º 1, 47.º, 
 n.º 1 e 58.º, n.º 1, da CRP. Direitos estes, de liberdade de escolha de 
 profissão e direito ao trabalho, que não impedem sejam exercidos, como 
 efectivamente o são, na prática, com auxílio e comparticipação de terceiros.
 
             Encontrando‑se assim, reafirma‑se, aquela disposição normativa 
 
 (artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal) inquinada de inconstitucionalidade 
 material, que apenas pode ser afastada através do recurso a uma interpretação 
 restritiva do preceito que repristine a exigência de que os actos descritos no 
 tipo legal de crime apenas sejam passíveis de o constituir quando reportando‑se 
 a pessoas «em situação de abandono ou de extrema necessidade económica». 
 Ademais, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias já considerou como uma 
 prestação de serviços remunerada e abrangida pelo conceito de «actividades 
 económicas».
 
             Resultando dos autos, na matéria de facto provada, a inexistência de 
 qualquer facto que revele ou porventura indicie vagamente alguma situação de 
 exploração, nenhuma suspeita razoável se pode formar de que ocorresse um 
 aproveitamento de situações de carência económica ou de abandono em que as 
 prostitutas se encontrassem.
 
             De facto, a única conclusão que se extraí da matéria de facto é que 
 a prática da prostituição era inteiramente livre da parte das prostitutas que 
 ali exerciam o seu modo de vida, a sua ocupação de onde retiravam os proventos 
 necessários à sua subsistência, por elas livremente escolhida.
 
             Perante tal quadro factual, a única conclusão possível seria e é a 
 da exclusão da ilicitude, pois, não obstante se tratar de uma empresa de 
 diversão nocturna que assentava a sua actividade económica na organização da 
 actividade de prostituição por parte de um grupo de mulheres que a ela se 
 dedicava por escolha livre e informada. Constituindo uma actividade profissional 
 e com intuito lucrativo que recai, numa interpretação literal, inequivocamente 
 na previsão contida no artigo 170.º, n.º 1, na redacção actual, todavia, tal 
 incriminação, para se conformar com a Constituição, deve ser interpretada no 
 sentido de se exigir a concreta verificação de uma situação de exploração de 
 necessidade económica ou de abandono das pessoas que se prostituem.
 
             Assim, e em conclusão,
 
             O artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, encontra‑se inquinado de 
 inconstitucionalidade material, que apenas pode ser afastada através do recurso 
 a uma interpretação restritiva do preceito que repristine a exigência de que os 
 actos descritos no tipo legal de crime apenas sejam passíveis de o constituir 
 quando reportando‑se a pessoas «em situação de abandono ou de extrema 
 necessidade económica».
 
             Nestes termos e nos demais de direito, sempre com o douto suprimento 
 de Vossas Excelências, deverá a presente reclamação, e consequentemente o 
 recurso, merecer provimento, decretando‑se a inconstitucionalidade do artigo 
 
 170.º, n.º 1, do Código Penal por ofensa do princípio da fragmentariedade ou 
 subsidiariedade do direito penal, plasmado no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, bem 
 como dos direitos à livre expressão da sexualidade, à vida privada, à identidade 
 pessoal, à liberdade de consciência, liberdade de escolha de profissão e direito 
 ao trabalho, previstos nos artigos 26.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, 40.º, n.º 1, 47.º, 
 n.º 1, e 58.º, n.º 1, da CRP, com todas as consequências legais.”
 
  
 
                         1.3. O representante do Ministério Público no Tribunal 
 Constitucional apresentou resposta em que considera a reclamação 
 
 “manifestamente improcedente”, por “a reiteração da tese do recorrente em nada 
 afecta[r] os fundamentos da decisão reclamada e da corrente jurisprudencial 
 que lhe subjaz”.
 
  
 
                         Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
 
  
 
                         2. Na presente reclamação, que, aliás, constitui 
 substancialmente mera reprodução do aduzido no requerimento de interposição de 
 recurso, o recorrente não avança um único argumento novo que não tivesse sido 
 considerado na anterior jurisprudência deste Tribunal sobre a questão.
 
                         Aderindo‑se a essa jurisprudência, essencialmente por 
 não se considerar constitucionalmente proibida a incriminação do lenocínio nos 
 termos constantes da norma impugnada, impõe‑se a confirmação da decisão sumária 
 reclamada.
 
  
 
                         3. Em face do exposto, acorda‑se em:
 
                         a) Não julgar inconstitucional a norma constante do 
 artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção resultante da Lei n.º 65/98, 
 de 2 de Setembro; e, consequentemente,
 
                         b) Indeferir a presente reclamação, confirmando a 
 decisão sumária reclamada.
 
                         Custas pelo reclamante, fixando‑se a taxa de justiça em 
 
 20 (vinte) unidades de conta.
 Lisboa, 5 de Dezembro de 2007.
 Mário José de Araújo Torres 
 João Cura Mariano
 Rui Manuel Moura Ramos