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Processo n.º 642/06                      
 
 3ª Secção
 Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
 
  
 
  
 
  
 Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
 
  
 
          1. Por acórdão do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Torres Vedras de 22 
 de Novembro de 2005, de fls. 403, os arguidos A. e B. foram condenados pela 
 prática, em co-autoria material e na forma continuada, de um crime de abuso de 
 confiança fiscal, previsto e punido no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT (Regime 
 Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho), 
 nas penas de, respectivamente, 9 e 7 meses de prisão; os mesmos arguidos foram 
 ainda condenados, pela prática, em co-autoria material e na forma continuada, de 
 um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido no 
 artigo 107.º, n.º 1, do RGIT, nas penas de, respectivamente, 10 e 8 meses de 
 prisão; em cúmulo jurídico das referidas penas, A. foi condenada na pena única 
 de 14 meses de prisão e B.foi condenado na pena única de 12 meses de prisão.
 
          A execução das referidas penas foi suspensa pelo período de 4 anos, 
 
 'suspensão condicionada à obrigação de os arguidos procederem, no mesmo prazo, à 
 reposição aos ofendidos das prestações omitidas'.
 
          A arguida C., Lda., foi condenada pela prática de um crime de abuso de 
 confiança fiscal, cometido na forma continuada, previsto e punido no artigo 
 
 105.º, n.º 1, do RGIT, na pena de 200 dias de multa à taxa diária de 25 euros e 
 ainda, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, 
 cometido na forma continuada, previsto e punido no artigo 107.º, n.º 1, do RGIT, 
 na pena de 200 dias de multa à taxa diária de 25 euros. Em cúmulo jurídico, foi 
 condenada na pena única de 300 dias de multa à taxa diária de 25 euros.
 
          Finalmente, todos os arguidos foram solidariamente condenados a pagar 
 ao demandante Instituto da Segurança Social, IP, a quantia de 241.048,13 euros, 
 acrescida de juros vencidos desde Fevereiro de 2005 e vincendos até integral 
 pagamento. 
 
          Inconformados, os arguidos A. e B. recorreram para o Supremo Tribunal 
 de Justiça, Tribunal que, por acórdão de 31 de Maio de 2006, de fls. 516, 
 concedeu parcial provimento ao recurso e alterou a decisão recorrida, alargando 
 o prazo de suspensão da execução para 5 anos.
 
  
 
          Para o que agora releva, o Supremo Tribunal de Justiça  afirmou o 
 seguinte:
 
 «IV.  No plano do direito e a respeito da inconstitucionalidade material dos 
 artºs 105° e 107°, do RGIT (Regulamento Geral das Infracções Tributárias) (…), a 
 consciência colectiva adquiriu o sentimento de que o não pagamento de impostos é 
 ofensivo da igualdade tributária dos cidadãos, da proporcionalidade 
 contributiva, inviabilizando a fuga aos impostos a realização das finalidades do 
 Estado, fazendo-as recair agravadamente sobre outros, inscrevendo-se o direito 
 penal fiscal num movimento de eticização, obediente aos princípios da 
 legalidade, igualdade e justiça social, com apoio nos art.°s 101º a 104°, da 
 CRP. 
 O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e 
 outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza; a 
 tributação do património pessoal ou real deve concorrer para a igualdade entre 
 os cidadãos ( art.°s 103º nº 1 e 104° n° 3, da CRP). 
 Nestes termos é da maior evidência, quer no plano teórico quer no plano prático, 
 que o lançamento dos impostos, mostrando-se a coberto da tutela da lei ordinária 
 e sustentada pela lei fundamental, reclama para sua cobrança um regime punitivo 
 deferido ao Estado, sem o qual aquela superior e pública finalidade se mostraria 
 seriamente comprometida integrando-se, como se integra, o delito de fuga aos 
 impostos naquilo que se apelida de “delinquência patrimonial de astúcia” (cfr. 
 Ac. deste STJ, de 9.3.2005, P.° n.° 346/05, desta 3.ªSec.) O revigoramento do 
 direito a essa cobrança através do recurso a reacções sejam de índole criminal 
 ou contraordenacional, não surge desproporcionado (…).. 
 Nos termos do art. 2.° do RGIT as infracções tributárias dividem-se em crimes e 
 contra-ordenações, estas simples ou graves, nos termos do art. 23°, do RGIT. (…)
 V.  Transpondo o que se invoca para justificação do problema “desesperadamente 
 controverso” da justificação das escutas telefónicas, se poderá afirmar que, 
 sendo ou tendo sido causa de ruína nacional a fuga aos impostos, se assiste a um 
 momentoso “estado de necessidade” de punição, face à “dramatização” do fenómeno, 
 sensibilizando o legislador (…), apontando para a adopção de medidas severas. 
 Por isso o “jus puniendi” de que o Estado se mostra detentor na luta contra os 
 devedores de impostos e contribuições devidas à Segurança Social, quando aos 
 credores particulares do Estado lhes é denegada igual tutela, enquanto figura 
 incumpridora e em mora nas suas obrigações, não reveste qualquer tratamento 
 chocante, forma diferenciada ou desproporcionada, em colisão com os princípios 
 com dignidade constitucional sedeados ao nível da igualdade dos cidadãos e da 
 menor compressão dos direitos fundamentais – art.°s 13.° n.° 1 e 18.°, n.° 2, da 
 CRP. 
 Trata-se de assegurar tratamento diferenciado e desigual, de todos aceite, 
 justificado e inteiramente compreensível, numa área e a uma entidade vocacionada 
 
 à realização de fins públicos, de prossecução de incontornáveis interesses de 
 
 índole financeira, nacionais e comunitários, de subsistência colectiva, de justa 
 repartição dos rendimentos, objectivos ocupantes na pirâmide de interesses 
 posição de topo, superiorizando-se aos privados, que extrapolam, em muito, a 
 mera responsabilidade contratual, caso em que, se fosse essa tal natureza, então 
 existiria manifesto excesso se se privasse de liberdade o agente da infracção, 
 em derrogação do princípio estabelecido no art.° 1.º do Protocolo n.°4, 
 Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, proibindo a privação de 
 liberdade pela única razão de se não poder cumprir uma obrigação contratual. 
 Ora a obrigação em causa não emerge de um contrato, mas antes deriva da própria 
 lei estabelecendo a obrigação de pagamento de impostos, achando-se o seu devedor 
 em posição aproximada à de fiel depositário, no caso particular do IVA e do 
 Imposto sobre os Rendimentos Singulares, sendo de “levar em conta este aspecto 
 peculiar da posição dos responsáveis tributários, que não comporta uma pura 
 obrigação contratual porque decorre da lei”, além de que a impossibilidade de 
 incumprimento não é elemento constitutivo do crime de abuso de confiança fiscal 
 previsto no art.° 105.°, do RGIT (o mesmo se podendo dizer quanto ao art.° 24.°, 
 do RJIFNA) escreveu-se no Acórdão do TC n.° 312/00, in DR II Série, de 
 
 17.10.2000, seguido, de perto pelo AC. do TC n.° 54/2004, de 20.1.2004, P.° n.° 
 
 640/03, onde – como em outros, cfr. os n.°s 663/98 e 516 /00, in DR II Série, de 
 
 15.1.99 e 31.1.2001, daquele TC, respectivamente –, se teve como pressuposto 
 legal a falta dolosa de entrega de prestações à administração fiscal e a sua não 
 correspondência à consagração de um caso de prisão por dívidas. 
 O Estado, consoante a sensibilidade à natureza e grandeza dos interesses a 
 acautelar, ao seu grau e prática de ofensividade, na abertura e compreensão à 
 realidade (…) assim lhes confere tutela penal ou, reconhecendo a sua marca de 
 ausência de associalidade, descriminaliza ou, e ainda, atenta a sua repercussão 
 
 ética, mas de grau menor, relega para o mundo das contra-ordenações certos 
 comportamentos (…).
 
 É ao poder político-legislativo, segundo a premência, importância, gravidade e 
 reiteração de lesividade de interesses, que cabe definir a natureza do ilícito, 
 incumbindo ao poder judicial somente aplicar a lei, de que aquele é único fautor 
 e responsável.
 VI. A descriminalização é a forma mais radical de extinção do procedimento 
 criminal, por essa via se significando que, da parte do Estado, perdeu o facto a 
 carga de associalidade, da necessidade de intervenção, ainda que subsidiária, do 
 direito penal, e opera tanto por via de determinação expressa ou inferência 
 tácita da lei ou por manipulação dos elementos da factualidade típica.
 Vejamos o que o artº 24º do RJIFNA preceitua:
 
  
 
 '1. Quem se apropriar, total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida 
 nos termos da lei e que estava legalmente obrigada a entregar ao credor 
 tributário será punido com pena de prisão até 3 anos ou multa não inferior ao 
 valor da prestação em falta nem superior ao dobro, sem que possa ultrapassar o 
 limite máximo abstractamente estabelecido.
 
 2. Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação 
 tributária a que foi deduzida por conta daquela que, tendo sido recebida, haja 
 obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
 
 3. É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação tenha 
 natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.'
 
  
 Do artº 105 do RGIT respiga-se que:
 
  
 
 '1. Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, 
 prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado 
 a entregar é punido com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias.
 
 2. Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se, também, 
 prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, 
 tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei 
 o preveja.
 
 3. É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida 
 tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente'.
 
  
 O abuso de confiança fiscal contra a segurança social mostrava-se previsto nos 
 art.°s 27.º B e 6.º do Dec.°-Lei n.° 20-A/90, de 15/1, alterado pelo Dec.°-Lei 
 n.° 394/93, de 24/3 e Dec.°-Lei n.° 140/95, de 14/6, a que corresponde no quadro 
 do RGIT o art.° 107.°, cujo n.° 1 dispõe que as entidades empregadoras que, 
 tendo deduzido do valor das remunerações devidas aos trabalhadores e membros dos 
 
 órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o 
 entregam, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são 
 punidas com as penas previstas nos n.°s 1 e 5, do art.° 105.°”. 
 Do simples confronto entre os dois preceitos dos art.°s 24.° do RJIFNA e 105.°, 
 do RGIT, alcança-se, desde logo, a identidade da pena (prisão até 3 anos), e 
 que, ainda assim o escopo visado no tipo previsto no art.° 105.°, do RGIT, 
 continua a ser a punição do que, estando legalmente obrigado a entregar 
 prestação tributária à administração fiscal, deixe de o fazer. 
 No RJIFNA, segundo orientação pacífica, exigia-se a apropriação indevida por 
 inversão do título de posse, com censurável “animus rem sibi habendi”, a mutação 
 de possuidor precário “alieno domini” em possuidor “animo proprio”; no RGIT 
 basta-se a não entrega, mas subjacentemente, como se sublinhou no Ac. deste STJ, 
 de 24.3.2003, in CJ, STJ, Ano XXVIII, 1, 2003, 235, embora a tónica se tenha, na 
 lei nova, deslocado para a simples não entrega, continua a estar a presente a 
 ideia de apropriação, pois que quem recebe das mãos de terceiro prestações 
 tributárias, ficando investido na sua qualidade de depositário, e não as 
 entrega, em via de regra é porque delas se apropriou, conferindo-lhes um destino 
 não legal. 
 Dificilmente se concebe e acha explicação para diverso fim, a menos que a 
 contrariar as regras de experiência comum, conforme ao que é usual suceder, com 
 foros de normalidade e de probabilidade habitual, e a nortear a não entrega, que 
 não seja a apropriação. 
 
 ( … )
 O preceito do art.° 105.º, do RGIT, apresenta menor compreensão, menor 
 
 “exigência normativa”, abrangendo, claramente, não só as situações de indevida 
 apropriação mas também as de intencional não entrega, mostrando-se norteado por 
 uma comum filosofia de protecção dos interesses da administração fiscal, embora 
 mais exigente por alargamento da malha legal. 
 
 (…) O núcleo duro do tipo, conclui-se, acaba por manter-se idêntico, na 
 sequência de leis penais e o legislador por fidelizar-se às linhas programáticas 
 de combate à fuga de impostos e às contribuições à Segurança Social, sendo de 
 afastar a intercessão de uma relação de penalização – despenalização entre os 
 dois tipos legais em presença. 
 VII. O Colectivo configurou como crime continuado a descrita conduta dos 
 arguidos, nos termos do art.° 30.° n.° 2, do CP, esclarecendo que ela foi 
 facilitada àqueles pela ausência de atempada fiscalização tributária, criadora 
 de um clima favorecente de repetição, sem consequências agravadas, funcionando 
 como contramotivação ética. 
 E, em função desse designativo, prevalecendo-se de uma regra de contagem da 
 prescrição do procedimento criminal nos crimes perdurantes no tempo – art.°s 
 
 119.° n.° 2 b) e 2.° n.°1, ambos do CP – teve por consumados os ilícitos com a 
 prática do seu último acto, momento idóneo para escolha da lei aplicável, pelo 
 recurso à lei então vigente. 
 
 ( … )
 Nos termos do art.° 3.º, do CP, o crime considera-se praticado no momento em que 
 o agente actuou, mas a conduta dos arguidos desenvolve-se sob a égide do RJIFNA 
 e do RGIT, interessando indagar qual, dentre elas, na sucessão penal 
 estabelecida é a aplicável, no caso concreto, nos termos do art.° 2.°  n.º 4, do 
 CP. 
 O arguido sustenta, louvando-se na posição do Prof. Figueiredo Dias, in Direito 
 Penal, Parte Geral, TI, 2004, 183, que, sendo caso de crime duradouro – igual 
 solução devendo adoptar-se para o crime continuado –, no pressuposto de que o 
 momento decisivo para a consumação é o da prática do último facto integrado na 
 perduração ou continuação, segue-se que, registando-se alteração da lei penal, e 
 sendo mais desfavorável a lei nova, só aos factos praticados após a sua vigência 
 ela teria aplicação, não já às anteriores. 
 
 ( … )
 Já se teve ensejo de afirmar que entre os dois tipos legais de crime, quer o 
 previsto à face do RJIFNA quer o configurado no RGIT, não intercede uma relação 
 de descontinuidade normativo-típica; o legislador não criou, no RGIT, um tipo 
 legal novo, vocacionado para protecção de distintos interesses, mantendo, no 
 plano dos seus elementos típicos uma persistente identidade. 
 Relevou-se, agora, a exigência da retenção da prestação ficar a dever-se, não a 
 apropriação, para se cair na da sua não entrega nos cofres do Estado, num caso e 
 noutro, sempre dolosa, e em detrimento da Fazenda Nacional, mas sem alteração 
 significativa dos dados do problema.
 De realçar que do quadro factual resulta provado que os arguidos, na sua 
 qualidade de sócios gerentes da “C., Ldª”, não entregaram as prestações devidas 
 a título de impostos e de contribuições à Segurança Social, nem dentro ou fora 
 de 90 dias sobre o seu vencimento, concorrendo para que aquela empresa delas se 
 apropriasse, revertendo em favor daquela sociedade, nestes termos sequer se 
 colocando, como problemático, o preenchimento dos elementos do tipo ante as duas 
 leis em presença: é que tanto à face de uma como de outra é, categoricamente, 
 visível a sua ocorrência, a sua persistência.
 
 (…) Conclui-se que, tendo os actos lesivos do fisco sido praticados ao longo de 
 anos (1999 e 2002) em moldes reiterados, mantendo-se a penalização das suas 
 condutas, à face das leis em sucessão exclusivamente integrantes de crime, a 
 punibilidade por força da lei vigente na data da prática do último acto, já sob 
 a alçada da lei nova, embora iniciada à face da lei antiga, se mostra sem razão 
 para censura e sem afronta os direitos dos recorrentes – art.°s 2.° n.º 1 e 3, 
 do CP. 
 VIII.  Os recorrentes suscitam a desconformidade do art.° 14.°, do RGIT, 
 regulamentando a aplicação do instituto da suspensão da execução de pena de 
 prisão imposta às infracções tributárias, à Constituição, muito embora “se 
 conheça Jurisprudência que tem vindo a reconhecer a constitucionalidade desta 
 disposição” (sic), mas, dizem, cremos “que por razões idênticas às acima 
 apontadas na conclusões 16, 17 e 18, ela pode ser posta em crise (...)”. 
 Tais conclusões são as que encerram o privilégio do Estado-Fisco em mobilizar o 
 seu “jus puniendi”, pondo em campo o arsenal de meios sancionatórios de que está 
 
 “armado” (sic) em defesa dos seus créditos tributários, e “denegar o mesmo 
 tratamento aos credores privados, com muito menos meios de reacção 
 contrafáctica”, não dispensando tutela idêntica aos seus credores quando ele 
 próprio se acha em mora. 
 Não se detecta se os recorrentes intentam demonstrar que, também, os credores 
 privados deveriam dispor de medidas detentivas da liberdade, para cobrança dos 
 seus créditos, no retorno a um passado indesejável, de qualquer sorte essa 
 problemática escapa à questão que nos ocupa, nada tendo que ver como ela os 
 recorrentes, como igualmente deles se dissocia a falta de protecção que o Estado 
 proporciona aos seu credores quando ele próprio se toma um seu devedor relapso. 
 Igualmente se não vê como, pelo recurso ao instituto da suspensão da execução da 
 pena de prisão imposta ao devedor tributário, o Estado trate sem a 
 
 “superioridade ética” exigida no tratamento penal dos cidadãos, por forma a 
 actuar, então, “um encurtamento da diferença ética que deve persistir entre a 
 perseguição do crime e o próprio Estado”, violando o princípio da proibição do 
 excesso no uso de meios ou tratando desigualmente que o não deva. 
 Bem, ao invés, o tratamento penal despojado desse instituto é que se mostraria à 
 margem da superioridade ética que deve envolver o poder punitivo do Estado; sem 
 ele os arguidos corriam risco, quase imediato, de privação de liberdade. 
 
 ( … )
 X. A suspensão da execução da pena, nos termos do art.° 14.°, do RGIT, por prazo 
 que pode atingir os 5 anos, condicionada ao pagamento da prestação tributária, 
 acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o 
 juiz o entenda, do pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a 
 pena de multa – n.° 1. 
 O juiz pode, em caso de incumprimento, exigir garantias de cumprimento, 
 prorrogar o prazo de suspensão até metade do inicialmente previsto, mas sem 
 exceder o prazo máximo ou revogar a suspensão – n.° 2 als. a), b) e c). 
 Essa exigência de pagamento, à margem da condição económico-pessoal do 
 responsável tributário, nada tem de desmedida, justificando-se pela necessidade 
 da eficácia do sistema penal tributário e o tratamento diferenciado – 
 desligadamente de outros interesses a ponderar, ao invés do que sucede na 
 sujeição a deveres impostos como condição de suspensão da execução da pena, nos 
 termos do art.° 51.°, n.° 1, do CP, aqui se cuidando “ao mesmo tempo da vítima e 
 do delinquente” – Cons.° Manso Preto, Textos – Centro de Estudos Judiciários, 
 
 1990-91, 173 –, face ao interesse preponderantemente público, a acautelar. 
 E semelhante inconsideração de possibilidade, pressuposta legalmente, mesmo 
 assim tem sido havida como conforme à CRP porque a lei não exclui a suspensão, 
 porque mesmo parecendo impossível a satisfação da prestação não é de excluir 
 que, por mudança de fortuna, o devedor esteja em condições de arcá-la, porque só 
 o incumprimento doloso determina a revogação, por fim porque sempre restam, em 
 casos de dificuldades de cumprimento, alternativas, já que no regime rege o 
 princípio “rebus sic stantibus”, norteado pelos princípios da culpa e da 
 adequação, não se apresentando com a rigidez que aparenta. 
 Os Acs. do TC, de 21.5.2003, sob os n.°s 256/03, in P.° n.° 647/02, de 7.7.2003, 
 
 335/03, P.° n.° 282/03, de 20.1.2004 e 54/2004, in P.° n.° 640/03 (este citando 
 os Acs. n.°s 312/00, in DR., II Série, de 17.10.2000, 389/01, DR., II Série, 
 
 683/98, in DR., II Série, de 15.1.98 e 516/00, DR, II Série, de 31.1.2001), 
 inscrevem-se numa linha de orientação uniforme daquele Tribunal em favor da 
 conformidade constitucional e que a argumentação dos recorrentes não comporta 
 virtualidade para afastar em sede de conformação da lei tributária ao diploma 
 fundamental. 
 
          (…)»
 
  
 
          2. Ainda inconformados, A. e B. recorreram para o Tribunal 
 Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei 
 nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo a apreciação das seguintes normas:
 
 '- as dos artigos 114.º, 105.º e 107.º do Regime Geral das Infracções 
 Tributárias (RGIT);
 
 - as dos artigos 119.º, n.º 2, alínea b), artigo 2.º, n.º 1, do Código Penal;
 
 - as dos artigos 105.º e 107.º do RGIT;
 
 - a do artigo 14.º do RGIT;
 Com a interpretação que lhes foi dada e com que forma aplicadas na decisão 
 recorrida'.
 
          Dizem ainda que, em seu entender, 'As normas e princípios 
 constitucionais que foram violados são as dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 13.º e 
 
 29.º da Constituição, tal como referido nas conclusões 15 a 18, 30 a 38 e 48 e 
 
 49 do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça'
 
  
 O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do 
 artigo 76º da Lei nº 28/82). .
 
  
 
          3. Notificados para o efeito, os recorrentes apresentaram as suas 
 alegações, que concluíram da seguinte forma:
 
          «…
 
          4. As disposições dos artigos 114.º e 105.º e 107.º do RGIT, ao 
 sancionar um facto como ilícito contra-ordenacional e ao tratá-lo ao mesmo tempo 
 como ilícito criminal, violam o disposto nos artigos 18.º, n.º 2, 2.º e 13.º da 
 CRP, incorrendo, por via disso, em inconstitucionalidade material: tratam como 
 ilícito criminal um facto a que não reconhecem a marca constitucionalmente 
 exigida da dignidade penal, pois, de outro modo, não o tratariam também como 
 ilícito contra-ordenacional;
 
          5. Acresce que as disposições em causa criam um privilégio do 
 Estado-Fisco, que vê os seus créditos garantidos pelo jus puniendi de que o 
 próprio Estado está armado, sem suficiente justificação ética, pois não pode o 
 Estado mobilizar o arsenal de meios sancionatórios criminais em defesa da 
 efectivação tempestiva dos seus créditos tributários ou da segurança social e 
 denegar o mesmo tratamento aos credores privados, apesar de tudo com muito menos 
 meios de reacção contrafáctica.
 
          6. Mais incriminando e punindo estes seus devedores em mora, o Estado 
 não dispensa idêntica tutela privilegiada aos seus credores quando se constitui 
 ele próprio em devedor em mora – escolhas que não são legitimadas à vista dos 
 princípios de igualdade e proporcionalidade e onde falta a “superioridade ética” 
 do Estado, imanente ao Estado de Direito, tudo com violação dos princípios 
 constitucionais contidos nos artigos 2.º e 13.º da CRP.
 
          (…)
 
          8. A decisão recorrida entendeu também que as datas a considerar para 
 efeitos de determinação da lei aplicável ao que considerou ser um crime 
 continuado eram as da prática do último acto – Maio de 2002 e Outubro de 2001, 
 respectivamente – e que, assim, as disposições aplicáveis eram as dos artigos 
 
 105.º e 107.º da nova lei, ou seja, do RGIT, pelo que não se trataria de um caso 
 de sucessão de leis no tempo, mas de considerar-se que, estando em causa um 
 crime continuado, ele apenas se consumou com a prática do último acto e que, 
 assim, aplicável seria, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º/ CP, a lei então 
 vigente, que era a Lei Nova.
 
          9. Discorda-se, com o devido respeito, desse entendimento, pois não 
 pode dizer-se que a alínea b) do n.º 2 do artigo 119.º/CP, regulando o momento a 
 partir do qual corre o prazo de prescrição do procedimento criminal, no crime 
 continuado, disponha sobre a sua consumação.
 
          10. E o n.º 1 do artigo 2.º/CP, sobre a aplicação no tempo da lei 
 penal, dispõe que as penas são determinadas pela lei vigente no “momento da 
 prática do facto”. 
 
          11. Ora, o artigo 3.º/CP, precisamente sob a epígrafe “momento da 
 prática do facto”, dispõe que o facto se considera praticado no momento em que o 
 agente actuou!
 
          12. Sucede que, no caso concreto dos autos, os agentes actuaram entre 
 
 1999 e 2002 e entre 1999 e 2001, ou seja, ao longo do tempo em que duas leis 
 diferentes vigoraram, sucessivamente, o que sempre coloca o problema de 
 determinar-se qual a lei aplicável.
 
          13. A melhor doutrina é a de que qualquer agravação da lei ocorrida 
 antes do término da consumação só pode valer para aqueles elementos típicos do 
 comportamento verificados após o momento da modificação legislativa – o que não 
 foi feito na decisão recorrida, que valorou todos os actos à luz da Lei Nova.
 
          14. A Lei Nova, no pressuposto de que o momento decisivo é o da 
 consumação da conduta e esta só se verifica com a prática do último acto, só 
 poderia aplicar-se às condutas praticadas sob a sua vigência e não às 
 anteriores, sob pena de retroactividade da lei penal menos favorável e da 
 consequente inconstitucionalidade das disposições dos artigos 119.º, n.º 2, al. 
 b)/CP e 2.º, n.º 1/CP e dos artigos 105.º e 107.º do RGIT quando aplicadas com 
 tal alcance e sentido, como o foram no acórdão recorrido.
 
          15. De facto, no caso concreto, e na solução jurídica encontrada, o 
 douto acórdão acabou por valorar à luz da Lei Nova – menos exigente quanto aos 
 elementos do tipo objectivo dos crimes em causa e, por isso, menos favorável que 
 a lei antiga – também as condutas ocorridas antes da sua entrada em vigor!
 
          16. O artigo 14.º do RGIT dispõe que: “a suspensão da execução da pena 
 de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao 
 limite de cinco anos subsequente à condenação, da prestação tributária e 
 acréscimos legais…”
 
          17. Embora se conheça a jurisprudência que tem vindo a reconhecer a 
 constitucionalidade desta disposição, cremos que, por razões idênticas às acima 
 apontadas nas conclusões 5, 6 e 7 ela pode ser posta em crise, porque também 
 aqui aplicáveis e do que resulta também a inconstitucionalidade material daquela 
 disposição.»
 
  
 
          Por seu turno, o Ministério Público concluiu as sua alegações nos 
 seguintes termos:
 
  
 
          «1 – Não há diminuição de dignidade penal pelo facto de uma mesma 
 conduta, tida por criminosa, poder simultaneamente integrar uma 
 contra-ordenação, nem são violadas normas ou princípios constitucionais pela 
 circunstância dos artigos 105.º e 107.º do RGIT criminalizarem situações de não 
 entrega dolosa de prestações tributárias e relativas à segurança social, face, 
 designadamente, às finalidades visadas pelo credor Estado nas áreas de 
 redistribuição de riqueza através da recolha de impostos e de protecção social, 
 sendo ainda certo que não se mostra ultrapassada a margem de discricionariedade 
 que é reconhecida ser concedida ao legislador ordinário pela Lei Fundamental.
 
          2 – Não se verifica ter a decisão recorrida interpretado e aplicado as 
 normas dos artigos 2.º, n.º 1, e 119.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal, de 
 forma a merecer qualquer censura constitucional.
 
          3 – A norma do artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao condicionar sempre a 
 suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento, em prazo a fixar até ao 
 limite de cinco anos, de prestação tributária e legais acréscimos, não é 
 inconstitucional.
 
          4 – Termos em que não deverá proceder o presente recurso.»
 
  
 
          4. A fls. 593 foi proferido o seguinte despacho:
 
  
 
          '1. A. e B. recorreram para o Tribunal Constitucional do acórdão do 
 Supremo Tribunal de Justiça, de fls. 516, nos seguintes termos:
 
 «(…)
 b) – As normas jurídicas cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada 
 são:
 
 - as dos artigos 114.º, 105.º e 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias 
 
 (RGIT);
 
 - as dos artigos 119.º, n.º 2, alínea b), artigo 2.º, n.º 1, do Código Penal;
 
 - as dos artigos 105.º e 107.º do RGIT;
 
 - a do artigo 14.º do RGIT,
 com a interpretação que lhes foi dada e com que forma aplicadas na decisão 
 recorrida.
 
          (…)
 
          2. Relativamente às normas contidas no segundo grupo de preceitos, como 
 explicam no requerimento de interposição de recurso e repetem nas alegações, a 
 inconstitucionalidade consiste, em seu entender, no seguinte:
 
          'A Lei Nova, no pressuposto de que o momento decisivo é o da consumação 
 da conduta e esta só se verifica com a prática do último acto, só poderia 
 aplicar-se às condutas praticadas sob a sua vigência e não às anteriores, sob 
 pena de retroactividade de lei penal menos favorável e da consequente 
 inconstitucionalidade das disposições dos artigos 119º, n.º 2, al. b)/CP e 2º, 
 n.º 1/CP e dos artigos 105º e 107º do RGIT quando aplicadas com tal alcance e 
 sentido, como o foram no acórdão recorrido'.
 
          Ora o acórdão recorrido afirma o seguinte, a fls. 536:
 
          «Já se teve ensejo de afirmar que entre os dois tipos legais de crime, 
 quer o previsto à face do RGIFNA, quer o configurado no RGIT, não intercede uma 
 relação de descontinuidade normativo-típica; o legislador não criou, no RGIT, um 
 tipo legal novo, vocacionado para protecção de distintos interesses, mantendo, 
 no plano dos seus elementos típicos uma persistente identidade.
 
          Revelou-se, agora, a exigência da retenção da prestação ficar a 
 dever-se, não a apropriação, para se cair na da sua não entrega nos cofres do 
 Estado, num caso e noutro, sempre dolosa, e em detrimento da Fazenda Nacional, 
 mas sem alteração significativa dos dados do problema.
 
          De realçar que do quadro factual resulta provado que os arguidos, na 
 sua qualidade de sócios gerentes da “C., Lda.”, não entregaram as prestações 
 devidas a título de impostos e de contribuições à Segurança Social, nem dentro 
 ou fora de 90 dias sobre o seu vencimento, concorrendo para que aquela empresa 
 delas se apropriasse, revertendo em favor daquela sociedade, nestes termos 
 sequer se colocando, como problemático, o preenchimento do tipo ante as duas 
 leis em presença: é que tanto à face de uma como de outra é, categoricamente, 
 visível a sua ocorrência, a sua persistência.»
 
          Parece, assim, que, do ponto de vista do acórdão recorrido, não releva, 
 para o efeito pretendido pelos recorrentes, a opção pela aplicação da lei antiga 
 ou da lei nova, já que, em qualquer caso, ocorreria 'o preenchimento do tipo 
 ante as duas leis em presença'.
 
          Isto significa – e cumpre recordar que, no âmbito do recurso de 
 constitucionalidade, o Tribunal Constitucional não pode, como se sabe, apreciar 
 o modo como foi interpretada e aplicada a lei ordinária para determinar se 
 poderia ou deveria tê-lo sido de outra forma –, que é possível que o Tribunal  
 venha a concluir no sentido da inutilidade do conhecimento do respectivo objecto 
 na parte correspondente.
 Com efeito, e como o Tribunal Constitucional já observou inúmeras vezes, o 
 recurso de constitucionalidade tem natureza instrumental, o que implica que é 
 condição de conhecimento do seu objecto a possibilidade de repercussão do 
 julgamento que nele venha a ser efectuado na decisão recorrida (ver, por 
 exemplo, o acórdão deste Tribunal com o nº nº 463/94, publicado no Diário da 
 República, II Série, de 22 de Novembro de 1994).
 
          Ora, no caso presente, admite-se que, ainda que o Tribunal 
 Constitucional se pronunciasse no sentido da inconstitucionalidade, nenhuma 
 repercussão teria tal julgamento no acórdão recorrido.
 
          3. É, pois, possível que o Tribunal Constitucional venha a não conhecer 
 parcialmente do presente recurso, nos termos expostos.
 
          Assim, nos termos do disposto no artigo 69º da Lei nº 28/82 e no n.º 1 
 do artigo 704º do Código de Processo Civil, notifique as partes para se 
 pronunciarem, querendo.'
 
  
 
          Nenhuma das partes se pronunciou, não obstante terem sido ambas 
 notificadas.
 
  
 
          5. Passando à análise do objecto do recurso, tal como vem definido no 
 respectivo requerimento de interposição, cumpre começar por verificar que, nos 
 termos e pelas razões constantes do despacho de fls. 593, acabado de 
 transcrever, o Tribunal Constitucional não pode conhecer da questão colocada 
 pelos recorrentes relativamente às normas conjugadas dos artigos 119.º, n.º 2, 
 al. b) e 2.º, n.º 1 do Código Penal com as dos artigos 105.º e 107.º do RGIT.
 
  
 
          6. Os recorrentes sustentam que as normas dos artigos 114º, 105º e 107º 
 do RGIT violam o disposto nos artigos 2º, 13º e 18º, n.º 2 da Constituição por 
 sancionaram o mesmo facto, simultaneamente, como ilícito criminal e como ilícito 
 contra-ordenacional, nos termos expostos.
 
          No âmbito de vigência do RJIFNA, o Tribunal Constitucional teve já 
 oportunidade de se  pronunciar sobre a admissibilidade constitucional desta 
 mesma possibilidade, embora, no caso, sob a perspectiva da alegação de violação 
 do princípio ne bis in idem, consagrado no n.º 5 do artigo 29º da Constituição  
 
 (acórdão n.º 244/99, Diário da República, II série, de, 12 de Julho de 1999).
 Tratava-se, então, da apreciação da norma constante do artigo 14º do RJIFNA, 
 cujo texto – “Se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e 
 contra-ordenação previstos neste Regime Jurídico, será o agente punido apenas 
 pelo crime' –  corresponde ao que hoje consta do n.º 3 do artigo 2º do RGIT ('Se 
 o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contra-ordenação, o agente será 
 punido a título de crime, sem prejuízo da aplicação das sanções acessórias 
 previstas para a contra-ordenação').
 O Tribunal  considerou, então, que tal norma do artigo 14º do RJIFNA havia sido 
 implicitamente aplicada com o 'sentido de permitir a cumulação da punição a 
 título de crime e a título de contra-ordenação, pelas normas do RJIFNA, pelos 
 mesmos factos', e que, a ser esse o seu sentido, seria efectivamente violado o 
 referido princípio, princípio que, afirmou-se, 'pode ter aplicação, por 
 analogia, em hipóteses de concurso de crimes e contra-ordenações, quando os bens 
 jurídicos tutelados pelas respectivas normas sejam idênticos'. E disse-se ainda 
 que 'no fundo, é o reconhecimento de que estão em causa os mesmos bens jurídicos 
 nas infracções correspondentes a factos que, pelo mesmo diploma, o RJIFNA, 
 
 'constituem simultaneamente crime e contra-ordenação' que justifica o artigo 
 
 14º, e não qualquer desvio às regras de concurso de crimes (…)'.
 Assim, o Tribunal  recorreu ao n.º 3 do artigo 80º da Lei nº 28/82 e interpretou 
 
 'a norma constante do artigo 14º do RJIFNA como apenas permitindo a pronúncia, 
 em alternativa, pelo crime de fraude fiscal ou pelas contra-ordenações referidas 
 no despacho respectivo, previstas e punidas pelos artigos do mesmo RJIFNA que 
 indica, na medida em que correspondam aos mesmos factos'.
 
  
 
 7. No presente recurso, a questão de constitucionalidade não é suscitada nesta 
 perspectiva. A verdade, todavia, é que os recorrentes incluem no objecto do 
 recurso o artigo 114º do RGIT, preceito manifestamente não aplicado no acórdão 
 recorrido, mas cuja invocação torna necessário relembrar a interpretação então 
 definida.
 No fundo, os agora recorrentes consideram que, ao admitir a hipótese de o mesmo 
 facto ser havido como crime ou como contra-ordenação, a lei, por um lado, 
 reconhece a falta de dignidade penal do mesmo, assim violando o artigo 2º e o 
 n.º 2 do artigo 18º da Constituição e, por outro, cria um privilégio 
 injustificado para os créditos de que é titular o Estado, agora ofendendo o 
 artigo 13º, também da Constituição. 
 O Tribunal Constitucional já por diversas vezes afirmou que cabe no âmbito da 
 liberdade de conformação do legislador a determinação das condutas que devem ser 
 criminalizadas. Necessário é, naturalmente, que a opção se não faça em violação 
 das regras e princípios constitucionais relevantes na matéria. Assim, por 
 exemplo, no acórdão n.º 134/2001 (www.tribunalconstitucional.pt), neste ponto 
 transcrevendo o acórdão n.º 604/99 (Diário da República, II série, de 26 de Maio 
 de 2000), relembrou-se o seguinte:
 
 «Como se observou noutro aresto (…), o nº 1142/96, “se é sabido que o direito 
 penal de um Estado de Direito visa a protecção de bens jurídicos essenciais ao 
 viver comunitário, só estes assumindo dignidade penal, o certo é que a 
 Constituição não contém qualquer proibição de criminalização, e, observados que 
 sejam certos princípios, como sejam o princípio da justiça, o princípio da 
 humanidade e o princípio da proporcionalidade [...] 'o legislador goza de ampla 
 liberdade na individualização dos bens jurídicos carecidos de tutela penal (e, 
 assim, na decisão de quais os comportamentos lesivos de direitos ou interesses 
 jurídico-constitucionalmente protegidos que devem ser defendidos pelo recurso a 
 sanções penais)', (na linguagem do acórdão nº 83/95, publicado no Diário da 
 República, II Série, nº 137, de 16 de Junho de 1995, que seguiu na linha dos 
 acórdãos nºs. 634/93 e 650/93, publicados no Diário da República, II Série, 
 Suplemento, nº 76, de 31 de Março de 1994).
 
 'É evidente  –  lê-se no citado acórdão nº 634/83  –  que o juízo sobre a 
 necessidade do recurso aos meios penais cabe, em primeira linha, ao legislador, 
 ao qual se há-de reconhecer, também nesta matéria, um largo âmbito de 
 discricionariedade. A limitação da liberdade de conformação legislativa, nestes 
 casos, só pode, pois, ocorrer quando a punição criminal se apresente como 
 manifestamente excessiva'».
 Ora, tal como se concluiu no acórdão n.º 604/99 e se reproduziu no acórdão n.º 
 
 134/2001, também as normas em apreciação no presente recurso não infringem os 
 limites constitucionalmente impostos à criminalização, não envolvendo, como ali 
 se escreveu, 'uma situação reconduzível, pela sua excessividade, à violação do 
 princípio da proporcionalidade e ao desrespeito do artigo 18º da CR'.
 Com efeito, e tal como o acórdão recorrido claramente explica e o Tribunal 
 Constitucional já também afirmou, as condutas incriminadas (actualmente) pelos 
 artigos 105º (abuso de confiança fiscal) e 107º (abuso de confiança contra a 
 segurança social) põem em causa interesses de tal forma relevantes que legitimam 
 a opção do legislador.
 Assim, e por exemplo, no acórdão n.º 312/2000 (Diário da República, II série, de 
 
 17 de Outubro de 2000) escreveu-se, a propósito do crime de abuso de confiança 
 fiscal, então previsto no artigo 24º do RJIFNA: 
 
          «5. – No caso em apreço nos presentes autos, deve entender-se que a 
 norma penal incriminadora do crime de abuso de confiança fiscal não viola o 
 princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de 
 não poder cumprir uma obrigação contratual, princípio implicado no direito à 
 liberdade e segurança (artigo 27º, n.º1, da Constituição).
 
          Antes de mais, importa analisar os valores e os bens jurídicos em causa 
 na criminalização das infracções fiscais.
 
          O entendimento tradicional do nosso direito penal é o de que só certas 
 formas de ofensas aos bens jurídicos tutelados que se revestem de particular 
 gravidade, pelo alarme social que a sua prática justificadamente causa, 
 necessitam da intervenção do direito penal, assim realizando o princípio 
 constitucional da necessidade da pena.
 
          No caso das infracções fiscais, a publicação em 1988 e 1989 dos Regimes 
 Jurídicos dos imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), do 
 imposto sobre os rendimentos das pessoas colectivas (IRC), da contribuição 
 autárquica (CA) e do Estatuto dos Benefícios Fiscais induziu a reforma do 
 tratamento normativo das infracções fiscais não aduaneiras, tendo o Governo 
 pedido e obtido autorização da Assembleia da República para legislar em tal 
 matéria, relativamente a todos os impostos, contribuições parafiscais e demais 
 prestações tributárias e, bem assim, quanto aos benefícios fiscais.
 
          A autorização concedida permitia ao Governo, em matéria penal, adaptar 
 os princípios gerais, os pressupostos da punição, as formas do crime e as causas 
 de suspensão do procedimento e da extinção da responsabilidade criminal, podendo 
 tipificar novos ilícitos penais e definir novas penas, tomando como referência o 
 Código Penal, mas podendo alargar ou restringir a respectiva dosimetria. 
 Define-se, em seguida, o sentido da autorização através da definição dos tipos 
 de ilícito e dos respectivos elementos do tipo, bem como dos valores máximos e 
 mínimos das penas e coimas. Seguidamente, prevê-se na lei de autorização 
 legislativa a adequação do processo penal aos novos tipos de ilícito (penal e 
 contraordenacional) criados.
 
          A Lei de Autorização n.º89/89, de 11 de Setembro veio a dar origem ao 
 Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, posteriormente alterado, na parte 
 agora em causa, pelo Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, aprovado na 
 sequência da Lei n.º 61/93, de 20 de Agosto.
 
          Este tratamento sistemático da punição das infracções fiscais não 
 aduaneiras mostra bem o relevo que o legislador pretendeu atribuir à defesa dos 
 interesses subjacentes a tal normação e cuja violação a mesma pretende evitar – 
 os interesses da Fazenda Nacional.
 
          Num Estado de direito, social e democrático, a assunção pelo Estado da 
 realização do bem estar social, através da concretização de uma democracia 
 económica, social e cultural, com respeito pelos direitos e liberdade 
 fundamentais, legitima-se pela necessidade de garantir a todos uma existência em 
 condições de dignidade.
 
          A realização destas exigências não só confere ao imposto um carácter de 
 meio privilegiado ao dispor de um Estado de direito para assegurar as 
 necessárias prestações sociais, como também alarga o âmbito do que é digno de 
 tutela penal.(…)
 
          De facto, um Estado para poder cumprir as tarefas que lhe incumbem tem 
 de recorrer a meios que só pode exigir dos seus cidadãos. Esses meios ou 
 instrumentos de realização das suas finalidade são os impostos, cuja cobrança é 
 condição da posterior satisfação das prestações sociais. Compreende-se, assim, 
 que o dever de pagar impostos seja um dever fundamental (cf. Casalta Nabais, “O 
 dever fundamental de pagar impostos”, Livraria Almedina, 1998, pág. 186,ss) e 
 que a violação deste dever, essencial para a realização dos fins do Estado possa 
 ser assegurado através da cominação de sanções criminais.
 
          No caso em apreço, a obrigação em causa não é meramente contratual, mas 
 antes deriva da lei – que estabelece a obrigação de pagamento dos impostos em 
 questão. Por outro lado, nestas situações, o devedor tributário encontra-se 
 instituído em posição que poderemos aproximar da do fiel depositário. Na 
 verdade, no IVA e no imposto sobre os rendimentos singulares (IRS), os 
 respectivos valores, são deduzidos nos termos legais, devendo depois o 
 respectivo montante ser entregue ao credor tributário que é o Estado.
 Perante a norma em questão há assim que levar em conta este aspecto peculiar da 
 posição dos responsáveis tributários, que não comporta uma pura obrigação 
 contratual porque decorre da lei fiscal.
 Finalmente, relevar-se-á que a impossibilidade do cumprimento não é elemento do 
 crime de abuso de confiança fiscal; a não entrega atempada da prestação, torna 
 possível a instauração do procedimento criminal nos termos do nº 5 do artigo 
 
 24º, mas o que importa para a punibilidade do comportamento, como se referiu, é 
 a apropriação dolosa da referida prestação.
 Tem assim de se concluir que a norma constante do artigo 24º do RJIFNA não viola 
 o princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de 
 não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo direito à liberdade e 
 segurança consagrado no artigo 27º, nº 1, da Constituição, em consonância com o 
 previsto no artigo 1º do Protocolo nº 4 adicional à Convenção Europeia dos 
 Direitos do Homem.»
 
  
 Este mesmo entendimento foi posteriormente perfilhado pelo acórdão n.º 389/2001 
 
 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) e pelo acórdão n.º 516/2000 
 
 (Diário da República, II série, de 31 de Janeiro de 2001), no qual estava em 
 causa a norma do artigo 27º-B do RJIFNA (Abuso de confiança em relação à 
 segurança social), posteriormente seguido pelos acórdãos n.ºs 427/2002 e 
 
 494/2004 (ambos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt): 
 
  
 
          «7.Os fundamentos utilizados no citado acórdão nº 312/00 são 
 transponíveis para o presente processo: em primeiro lugar, porque as sanções 
 estabelecidas para o abuso de confiança fiscal e para o abuso de confiança em 
 relação à segurança social são as mesmas – as que constam da norma do artigo 24º 
 do RJIFNA, apreciada naquele acórdão; em segundo lugar, porque as considerações 
 feitas a propósito da tipificação do crime abuso de confiança fiscal valem 
 igualmente para o crime de abuso de confiança em relação à segurança social.
 
          Assim, e resumidamente:
 
          A solução de punir criminalmente as infracções às normas reguladoras 
 dos regimes de segurança social revela a importância atribuída à defesa dos 
 interesses públicos subjacentes à legislação em causa, em consonância aliás com 
 a incumbência atribuída ao Estado, pelo artigo 63º, nº 2, da Constituição da 
 República Portuguesa, de “organizar, coordenar e subsidiar um sistema de 
 segurança social”.
 
          Nos termos do artigo 27º-B do RJIFNA – e do mesmo modo que perante a 
 norma apreciada no acórdão nº 312/00 –, são elementos constitutivos do crime de 
 abuso de confiança em relação à segurança social: a apropriação, total ou 
 parcial, pelas entidades empregadoras, das contribuições que tenham deduzido do 
 valor das remunerações pagas aos trabalhadores e que por estes sejam legalmente 
 devidas; a não entrega do respectivo montante às instituições de segurança 
 social, no prazo de 90 dias. Não estando expressamente prevista a punição por 
 negligência, os factos integradores do crime só podem ser punidos se praticados 
 com dolo (artigo 13º do Código Penal); se não se provar o dolo mas apenas a 
 negligência, pode existir a contraordenação prevista no artigo 29º, nº 2, do 
 RJIFNA.
 A obrigação em causa não é meramente contratual, antes deriva da lei – que impõe 
 a entrega pelas entidades empregadoras às instituições de segurança social do 
 montante das contribuições que aquelas entidades tenham deduzido do valor das 
 remunerações pagas aos trabalhadores e que por estes sejam legalmente devidas. 
 Nestas situações, as entidades empregadoras encontram-se instituídas “em posição 
 que poderemos aproximar da do fiel depositário”.
 A mera impossibilidade do cumprimento não é elemento do crime de abuso de 
 confiança em relação à segurança social. A não entrega atempada da prestação 
 torna possível a instauração do procedimento criminal nos termos do nº 5 do 
 artigo 24º do RJIFNA, mas o que importa para a punibilidade do comportamento, 
 como se referiu, é a apropriação dolosa da referida prestação.
 
          A situação pode aproximar-se do crime de abuso de confiança previsto e 
 punido pelo Código Penal (artigos 205º a 207º), que é um crime contra o 
 património, cuja consumação ocorre com a apropriação ilegítima de coisa móvel 
 alheia entregue por título não translativo de propriedade.
 
 8.Concluindo, pois:
 A Constituição não contém, para este tipo de casos, proibição de criminalização 
 e reconhece a necessidade de, em Estado de direito democrático, se protegerem 
 penalmente os bens e interesses jurídicos essenciais à vida em comunidade.
 
          A proibição de “prisão por dívidas” é indiscutivelmente princípio 
 decorrente da Constituição da República Portuguesa (cf. acórdão nº 440/87, 
 Acórdãos do Tribunal Constitucional, 10º vol., p. 521 ss). 
 Porém, como se escreveu no acórdão nº 663/98 (Diário da República, II Série, nº 
 
 12, de 15 de Janeiro de 1999, p. 592 ss), “a privação da liberdade não é 
 proibida se outros factos se vêm juntar à incapacidade de cumprir uma obrigação 
 contratual”. Nestes casos, e no caso de a impossibilidade de cumprir não ser 
 devida a negligência, o direito penal pode prever tipos de crimes puníveis com 
 prisão.
 
  
 
          Por outro lado, entre nós sempre se entendeu que o princípio da 
 proibição de “prisão por dívidas” só se aplicava aos “devedores de boa fé”, dele 
 se excluindo os casos de provocação dolosa de incumprimento (cfr. o mencionado 
 acórdão nº 663/98) e considera-se que as razões aduzidas para a proibição da 
 
 «prisão por dívidas» não se aplicam quando a obrigação não deriva de contrato 
 mas da lei (neste sentido e desenvolvidamente, o acórdão nº 663/98 e, mais 
 recentemente, o acórdão nº 312/00).
 
          A norma constante do artigo 27º-B do RJIFNA não viola portanto o 
 princípio segundo o qual ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única 
 razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo direito à 
 liberdade e segurança consagrado no artigo 27º, nºs 1 e 2, da Constituição da 
 República Portuguesa. 
 
          Não existe na solução da lei qualquer medida discriminatória, 
 desnecessária ou excessiva, susceptível de constituir violação do artigo 18º, nº 
 
 2, da Constituição ou de contrariar o direito à segurança social consagrado no 
 artigo 63º da Constituição.»
 
  
 
          Por fim, no acórdão n.º 54/2004 (disponível em 
 
 www.tribunalconstitucional.pt) o Tribunal veio considerar estas considerações 
 acabadas de transcrever plenamente transponíveis para a incriminação hoje 
 constante do artigo 105º do RGIT, orientação que novamente se reitera e que vale 
 igualmente para o artigo 107º do RGIT.
 
          
 
  
 
          8. Os recorrentes apontam ainda a violação do princípio da igualdade, 
 quando sustentam que  as normas em análise criam para o Estado um privilégio 
 inadmissível, nos termos já indicados.
 Como se sabe, o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, que «É 
 sabido que o princípio da igualdade, tal como tem sido entendido na 
 jurisprudência deste Tribunal, não proíbe ao legislador que faça distinções – 
 proíbe apenas diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem 
 uma justificação razoável, segundo critérios objectivos e relevantes. É esta, 
 aliás, uma formulação repetida frequentemente por este Tribunal (cf., por 
 exemplo, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 39/88, 325/92, 210/93, 302/97, 12/99 e 
 
 683/99, publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional, respectivamente, 
 vols. 11º, pp. 233 e ss., 23º, pp. 369 e ss., 24º, pp. 549 e ss., 36º, pp. 793 e 
 ss., e no Diário da República, 2ª série, de 25 de Março de 1999 e de 3 de 
 Fevereiro de 2000).
 Como princípio de proibição do arbítrio no estabelecimento da distinção, tolera, 
 pois, o princípio da igualdade a previsão de diferenciações no tratamento 
 jurídico de situações que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista, 
 idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa justificação ou sob um ponto 
 de vista que possa ser considerado relevante.
 
 (…) O princípio da igualdade apresenta-se, assim, como um limite à liberdade de 
 conformação do legislador. 
 
 (…) Todavia, a vinculação jurídico-material do legislador a este princípio não 
 elimina a liberdade de conformação legislativa, pois lhe pertence, dentro dos 
 limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as 
 relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar 
 igual ou desigualmente.
 Só existe violação do princípio da igualdade enquanto proibição de arbítrio 
 quando os limites externos da discricionariedade legislativa são afrontados por 
 carência de adequado suporte material para a medida legislativa adoptada.
 Por outro lado, as medidas de diferenciação devem ser materialmente fundadas sob 
 o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da 
 solidariedade, não se baseando em qualquer razão constitucionalmente imprópria» 
 
 (Acórdão n.º 187/2001 (Diário da República, II Série, de 26 de Junho de 2001).
 Considera-se, todavia, que a justificação atrás apresentada para não julgar 
 contrária à Constituição a incriminação constante dos artigos 105º e 107º do 
 RGIT vale ainda para afastar qualquer violação do princípio da igualdade, não 
 sendo claramente arbitrário distinguir, para este efeito, os créditos 
 correspondentes ao incumprimento de obrigações fiscais ou a dívidas  à segurança 
 social com os créditos da titularidade de particulares.
 
  
 
 9. Finalmente, os recorrentes sustentam que é inconstitucional o artigo 14.º do 
 RGIT, ao condicionar a suspensão da execução da pena ao pagamento da prestação 
 tributária e acréscimos legais, por violação do disposto nos artigos 2.º, 13.º e 
 
 18.º, n.º 2, da Constituição.
 Não apresentam, todavia, uma justificação autónoma para o efeito, limitando-se a 
 remeter para a argumentação expendida a propósito da questão tratada nos pontos 
 anteriores. 
 Como os próprios recorrentes observam, o Tribunal Constitucional já por diversas 
 vezes se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade da norma do artigo 
 
 14.º do RGIT – cfr. Acórdãos n.º 256/03, n.º 335/03 e n.º 500/05, o primeiro 
 publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Julho de 2003, e os outros 
 disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). 
 Assim, no acórdão n.º 335/03 escreveu-se o seguinte: 
 
  
 
 «7. O artigo 14º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado 
 pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, dispõe como segue:
 
  
 
 “Artigo 14º
 Suspensão da execução da pena de prisão
 
 1 – A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao 
 pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à 
 condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos 
 benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de 
 quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.
 
 2 – Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal 
 pode:
 a)        Exigir garantias de cumprimento;
 b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas 
 sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível;
 c) Revogar a suspensão da pena de prisão.”
 
  
 
 8. O Tribunal Constitucional teve, muito recentemente, oportunidade de se 
 pronunciar sobre a questão de constitucionalidade que agora, mais uma vez, vem 
 colocada à sua consideração. Fê-lo, concretamente, no Acórdão n.º 256/03 (ainda 
 inédito), onde concluiu pela não inconstitucionalidade daquele artigo 14º do 
 RGIT (bem como do artigo 11º, n.º 7 do RJIFNA, preceito que antecedeu este 
 artigo 14º). Para decidir dessa forma, o Tribunal escudou-se na seguinte 
 fundamentação:
 
 “[...]
 
 10.4. Comparando o artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA com o (posterior) artigo 14º do 
 RGIT, verifica-se que ambos condicionam a suspensão da execução da pena de 
 prisão ao pagamento das quantias em dívida. 
 Não sendo pagas tais quantias, o primeiro preceito remetia (em parte) para o 
 regime do Código Penal relativo ao não cumprimento culposo das condições da 
 suspensão; já o segundo preceito – que englobou tal regime do Código Penal – é 
 mais dúbio, porque não faz referência à necessidade de culpa do condenado. 
 De qualquer modo, deve entender-se que a já referida aplicação subsidiária do 
 Código Penal, prevista no artigo 3º, alínea a), do RGIT (cfr. os artigos 55º e 
 
 56º do referido Código), bem como a circunstância de só o incumprimento culposo 
 conduzir a um prognóstico desfavorável relativamente ao comportamento do 
 delinquente implicam a conclusão de que o artigo 14º, n.º 2, do RGIT, quando se 
 refere à falta de pagamento das quantias, tem em vista a falta de pagamento 
 culposa (refira-se, a propósito, na sequência de Jorge de Figueiredo Dias, 
 Direito Penal Português / Parte Geral, II – As Consequências Jurídicas do Crime, 
 Aequitas, 1993, pp. 342-343, que pressuposto material de aplicação da suspensão 
 da execução da pena de prisão é a existência de um prognóstico favorável a esse 
 respeito). 
 
 [...]
 
 10.7. A questão que ora nos ocupa tem algumas afinidades com uma outra que já 
 foi discutida no Tribunal Constitucional.
 Assim, no acórdão n.º 440/87, de 4 de Novembro (publicado em Acórdãos do 
 Tribunal Constitucional, 10º volume, 1987, p. 521), o Tribunal Constitucional 
 não julgou inconstitucional a norma do artigo 49º, n.º 1, alínea a), do Código 
 Penal de 1982 (versão originária), na parte em que ela permite que a suspensão 
 da execução da pena seja subordinada à obrigação de o réu “pagar dentro de certo 
 prazo a indemnização devida ao lesado”. Nesse acórdão, depois de se ter 
 salientado que se deve considerar como princípio consagrado na Constituição a 
 proibição da chamada “prisão por dívidas”, entendeu-se, para o que aqui releva, 
 o seguinte:
 
 “(...)nos termos do artigo 50º, alínea d), do actual Código Penal, o tribunal 
 pode revogar a suspensão da pena, «se durante o período da suspensão o condenado 
 deixar de cumprir, com culpa, qualquer dos deveres impostos na sentença», v.g., 
 o de «pagar dentro de certo prazo a indemnização devida ao lesado» [artigo 49º, 
 n.º 1, alínea a), primeira parte]. Nunca, porém, se poderá falar numa prisão em 
 resultado do não pagamento de uma dívida: – a causa primeira da prisão é a 
 prática de um «facto punível» (artigo 48º do Código). Como se escreveu no 
 acórdão recorrido, «o que é vedado é a privação da liberdade pela única razão do 
 não cumprimento de uma obrigação contratual, o que é coisa diferente».
 Aliás, a revogação da suspensão da pena é apenas uma das faculdades concedidas 
 ao tribunal pelo citado artigo 50º para o caso de, durante o período da 
 suspensão, o condenado deixar de cumprir, com culpa, qualquer dos deveres 
 impostos na sentença: – na verdade, «conforme os casos», pode o tribunal, em vez 
 de revogar a suspensão, «fazer-lhe [ao réu] uma solene advertência [alínea a)], 
 exigir-lhe garantias do cumprimento dos deveres impostos» [alínea b)] ou 
 
 «prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas 
 não por menos de um ano» [alínea c)].” 
 Por outro lado, no acórdão n.º  596/99, de 2 de Novembro (publicado no Diário da 
 República, II Série, n.º 44, de 22 de Fevereiro de 2000, p. 3600), o Tribunal 
 Constitucional não considerou inconstitucional, designadamente por violação do 
 artigo 27º, n.º 1, da Constituição, a norma constante do artigo 51º, n.º 1, 
 alínea a), do Código Penal, na parte em que permite ao juiz condicionar a 
 suspensão da execução da pena de prisão à efectiva reparação dos danos causados 
 ao ofendido. Foram os seguintes os fundamentos dessa decisão:
 
 “(...) 8. A alegada inconstitucionalidade do artigo 51º, nº 1, alínea a) do 
 Código Penal, na redacção do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março.
 Dispõe o artigo 51º, nº 1, alínea a) do Código Penal que «a suspensão da 
 execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres 
 impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente pagar 
 dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a 
 indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução 
 idónea».
 Trata-se mais uma vez, no entender do recorrente, da previsão de uma situação de 
 
 «prisão por dívidas», proibida pela Constituição.
 Desde logo deve notar-se que tem inteira razão o Ministério Público quando 
 refere que, a proceder, a argumentação do recorrente acabaria por redundar em 
 seu próprio prejuízo, «na medida em que a considerar-se inconstitucional a norma 
 ora objecto de recurso, estaria afastada a possibilidade de suspensão da 
 execução da pena – que só se justifica pela ‘condição’ estabelecida naquele 
 preceito – restando-lhe o inexorável cumprimento da pena de prisão que a decisão 
 recorrida, em primeira linha, lhe impôs...».
 
 É, no entanto, manifestamente improcedente a alegação de que a norma que se 
 extrai do artigo 51º, nº 1, alínea a) do Código Penal, traduz uma violação do 
 princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de 
 não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo direito à liberdade e 
 
 à segurança (artigo 27º, n.º 1 da Constituição).
 Na realidade, e mais uma vez, não se trata aqui da impossibilidade de 
 cumprimento como única razão da privação da liberdade, mas antes da consideração 
 de que, em certos casos, a suspensão da execução da pena de prisão só permite 
 realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição se a ela – 
 suspensão da execução – se associar a reparação dos danos provocados ao lesado, 
 traduzida no pagamento (ou prestação de garantia de pagamento) da indemnização 
 devida.(...).”
 Apesar da afinidade com a questão de que ora cumpre apreciar, nos arestos 
 citados não estava em causa o problema da conformidade constitucional (à luz dos 
 princípios da adequação e da proporcionalidade) da imposição de uma obrigação 
 que, no próprio momento em que é imposta, pode ser de cumprimento impossível 
 pelo condenado, mas um outro (que Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 353, 
 aliás, considerou absolutamente infundado), que era o de “saber se o 
 condicionamento da suspensão pelo pagamento da indemnização não configuraria, 
 quando aquele pagamento não viesse a ser feito, uma (inconstitucional) prisão 
 por dívidas”. 
 De qualquer modo, dos arestos citados extrai-se uma ideia importante para a 
 resolução da presente questão: é ela a de que não faz sentido analisá-la à luz 
 da proibição da prisão por dívidas. Na verdade, mesmo que se considere – e é 
 isso que importa determinar – desproporcionada a imposição da totalidade da 
 quantia em dívida como condição de suspensão da execução da pena, o certo é que 
 o motivo primário do cumprimento da pena de prisão não radica na falta de 
 pagamento de tal quantia, mas na prática de um facto punível.
 
 10.8. A questão em análise tem também algumas afinidades com a questão da 
 conformidade constitucional do estabelecimento dos limites da pena de multa em 
 função do valor da prestação em falta, analisada pelo Tribunal Constitucional a 
 propósito dos artigos 24º, n.º 1, e 23º, n.º 4, do RJIFNA (cfr., por exemplo, os 
 acórdãos n.ºs 548/01, de 7 de Dezembro, e 432/02, de 22 de Outubro, 
 respectivamente publicados no Diário da República, II Série, n.º 161, de 15 de 
 Julho de 2002, p. 12639, e n.º 302, de 31 de Dezembro de 2002, p. 21183).
 Neste último aresto, disse-se nomeadamente o seguinte:
 
 “(...) Por outro lado – e sendo certo que o legislador goza de ampla margem de 
 liberdade na fixação dos limites  mínimo  e máximo das molduras penais –, não se 
 afigura que o critério da vantagem patrimonial pretendida pelo agente, adoptado 
 na norma em apreço, se revele ofensivo dos princípios da necessidade, 
 proporcionalidade e adequação das penas. Contrariamente ao que sustenta o 
 recorrente, a adopção de um tal critério não significa que a pena aplicável ao 
 crime de fraude fiscal prossiga o fim da retaliação ou da expiação. É que a 
 conduta que lhe subjaz é tanto mais grave e socialmente mais lesiva quanto mais 
 elevado for o montante envolvido: como tal, é ainda a protecção de um bem 
 jurídico o que se visa e não a mera censura do agente. (...).”
 Desta passagem retira-se uma importante consideração para o problema que nos 
 ocupa.
 
 É ela a de que, podendo a realização dos fins do Estado – dependente do 
 cumprimento do dever de pagar impostos – justificar a adopção do critério da 
 vantagem patrimonial no estabelecimento dos limites da pena de multa, não há 
 qualquer motivo para censurar, como desproporcionada, a obrigação de pagamento 
 da quantia em dívida como condição da suspensão da execução da pena. As razões 
 que, relativamente à generalidade dos crimes, subjazem ao regime constante do 
 artigo 51º, n.º 2, do Código Penal [...] não têm necessariamente de assumir 
 preponderância nos crimes tributários: no caso destes crimes, a eficácia do 
 sistema fiscal pode perfeitamente justificar regime diverso, que exclua a 
 relevância das condições pessoais do condenado no momento da imposição da 
 obrigação de pagamento e atenda unicamente ao montante da quantia em dívida.
 
 [...]
 
 10.9. As normas em apreço não se afiguram, portanto, desproporcionadas, quando 
 apenas encaradas na perspectiva da automática correspondência entre o montante 
 da quantia em dívida e o montante a pagar como condição de suspensão da execução 
 da pena, atendendo à justificável primazia que, no caso dos crimes fiscais, 
 assume o interesse em arrecadar impostos.
 Cabe, todavia, questionar se não existirá desproporção quando, no momento da 
 imposição da obrigação, o julgador se apercebe de que o condenado muito 
 provavelmente não irá pagar o montante em dívida, por impossibilidade de o 
 fazer.
 Esta impossibilidade, que não chegou a ser declarada pelo tribunal recorrido – 
 pois que este analisou a questão em abstracto, sem averiguar se o ora recorrente 
 efectivamente estava impossibilitado de cumprir [...] –, não altera, todavia, a 
 conclusão a que se chegou.
 Em primeiro lugar, porque perante tal impossibilidade, a lei não exclui a 
 possibilidade de suspensão da execução da pena. 
 Dir-se-á que tal exclusão se encontra implícita na lei, atendendo a que não 
 seria razoável que a lei permitisse ao juiz condicionar a suspensão da execução 
 da pena de prisão ao cumprimento de um dever que ele próprio sabe ser de 
 cumprimento impossível.
 Todavia, tal objecção não procede, pois que traz implícita a ideia de que o juiz 
 necessariamente elabora um prognóstico quanto à possibilidade de cumprimento da 
 obrigação, no momento do decretamento da suspensão da execução da pena. Ora, 
 nada permite supor a existência de um tal prognóstico: sucede apenas que a lei – 
 bem ou mal, mas este aspecto é, para a questão de constitucionalidade que nos 
 ocupa, irrelevante –, verificadas as condições gerais de suspensão da execução 
 da pena (nas quais não se inclui a possibilidade de cumprimento da obrigação de 
 pagamento da quantia em dívida), permite o decretamento de tal suspensão. O 
 juízo do julgador quanto à possibilidade de pagar é, para tal efeito, 
 indiferente.
 Em segundo lugar, porque mesmo parecendo impossível o cumprimento no momento da 
 imposição da obrigação que condiciona a suspensão da execução da pena, pode 
 suceder que, mais tarde, se altere a fortuna do condenado e, como tal, seja 
 possível ao Estado arrecadar a totalidade da quantia em dívida.
 A imposição de uma obrigação de cumprimento muito difícil ou de aparência 
 impossível teria assim esta vantagem: a de dispensar a modificação do dever 
 
 (cfr. artigo 51º, n.º 3, do Código Penal) no caso de alteração (para melhor) da 
 situação económica do condenado. E, neste caso, não se vislumbra qualquer razão 
 para o seu tratamento de favor, nem à luz do princípio da culpa, nem à luz dos 
 princípios da proporcionalidade e da adequação.
 Em terceiro lugar, e decisivamente, o não cumprimento não culposo da obrigação 
 não determina a revogação da suspensão da execução da pena. Como claramente 
 decorre do regime do Código Penal para o qual remetia o artigo 11º, n.º 7, do 
 RJIFNA, bem como do n.º 2 do artigo 14º do RGIT, a revogação é sempre uma 
 possibilidade; além disso, a revogação não dispensa a culpa do condenado (supra, 
 
 10.4.).
 Não colidem, assim, com os princípios constitucionais da culpa, adequação e 
 proporcionalidade, as normas contidas no artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA, e no 
 artigo 14º do RGIT.
 
 [...]”.
 Esta conclusão, e a fundamentação que a sustenta, além de aplicáveis ao caso que 
 ora nos ocupa, merecem concordância, pelo que, reiterando-a, importa concluir, 
 uma vez mais, pela não inconstitucionalidade do artigo 14º do RGIT.»
 
 É esta orientação que, mais uma vez, se reitera.
 
  
 
  
 
  
 
  
 
  
 
          10. Assim, decide-se:
 a) Não conhecer do objecto do recurso na parte respeitante à conjugação das 
 normas dos artigos 119.º, n.º 2, al. b) e 2.º, n.º 1 do Código Penal com as dos 
 artigos 105.º e 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela 
 Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho;.
 
          b) Quanto ao mais, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão 
 recorrida no que respeita às questões de constitucionalidade.
 
  
 
          Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs. 
 Lisboa, 30 de Janeiro de 2007
 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
 Vítor Gomes
 Bravo Serra
 Gil Galvão
 Artur Maurício