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Processo n.º 650/2006
 
 2ª Secção
 Relatora: Conselheira Mª Fernanda Palma
 
  
 
  
 
  
 Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
 
  
 
  
 I
 RELATÓRIO
 
  
 
  
 
 1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade o 
 Tribunal Judicial da Comarca de Leiria proferiu a seguinte decisão, datada de 31 
 de Maio de 2006:
 
  
 
 “--- HOSPITAL A., S.A., com sede na Rua ..., Leiria, intentou a presente acção 
 declarativa de condenação, com processo sumário, contra B., residente na Rua 
 
 ..., Marinha Pequena, Marinha Grande, pedindo a condenação do réu no pagamento 
 da quantia de €:4.865,23, acrescida de €: 322,71 de juros de mora já vencidos e 
 dos vincendos à taxa legal, desde a citação até efectivo embolso. -----
 
 --- Para tanto alegou, em síntese, que no dia 15 de Maio de 2001 o réu deu 
 entrada no seu serviço de urgências para aí receber tratamento médico, tendo 
 ficado internado até ao dia 22 de Maio de 2001, pelo facto de naquele dia e em 
 circunstâncias desconhecidas, ter sofrido diversas lesões. -----
 
 --- Acrescentou que os tratamentos médicos ministrados ao réu importaram o 
 montante de €: 4.865,23, quantia que o réu não pagou da mesma forma que não 
 forneceu de quaisquer informações acerca das circunstâncias de tempo, modo e 
 lugar do acidente nem do seu número de beneficiário, razão pela qual é 
 responsável pelo pagamento da mencionada quantia. ------
 
 --- Regularmente citado, o réu deduziu contestação, alegando que nunca recebeu 
 qualquer notificação para fornecer as informações pretendidas pela autora e 
 acrescentando que, sendo beneficiário do Serviço Nacional de Saúde, não terá que 
 suportar o pagamento da quantia reclamada pela autora. ----------
 
 --- Dispensada a fase de saneamento e condensação do processo, instruíram as 
 partes o processo com os meios de prova que entenderam pertinentes. ------
 
 --- Procedeu-se a julgamento respeitando o formalismo legal aplicável, como da 
 respectiva acta consta, findo o qual, pelo despacho proferido a fls. 86 e 
 seguintes, o tribunal decidiu da matéria de facto controvertida. ----
 
 --- A instância permanece válida e regular, nada obstando à apreciação do mérito 
 da causa, consistindo a questão decidenda em aferir da responsabilidade do réu 
 pelo pagamento da quantia reclamada pela autora, a título de despesas 
 relacionadas com a prestação de cuidados de saúde. ------
 
 2.Fundamentos da Acção
 
 2.1. Os Factos
 
 --- Terminada a discussão da causa, este tribunal considerou provados os 
 seguintes factos: --------
 
 -- A) --
 
 --- No dia 15 de Maio de 2001, o réu deu entrada no serviço de urgências da 
 autora para aí receber tratamento médico, pelo facto de naquele dia e em 
 circunstâncias desconhecidas, ter sofrido diversas lesões, tendo ficado 
 internado até ao dia 22 de Maio de 2001 (cf. Artigos 1º) e 2º) da Petição 
 Inicial). ------
 
  
 
 -- B) --
 
 --- Os tratamentos médicos ministrados ao réu ascenderam ao montante de €: 
 
 4.865,23 (cf. Artigo 3º) da Petição Inicial). --
 
  
 
 -- c) --
 
 --- Através da carta constante de fls. 5, remetida para a residência do réu e aí 
 recebida por outrem que não o réu, a autora, através do seu mandatário, informou 
 o réu de             que só não seria proposta acção em tribunal “se a dívida se 
 mostrar paga (…) no prazo de dez dias, ou nos informar do que for conveniente, 
 nomeadamente se efectuaram a participação enviando-nos cópia da mesma, ou nos 
 forneçam a descrição do acidente mencionando o número de apólice válida que 
 possa regularizar o sinistro” (cf. Artigo 4º) da Petição Inicial). ------
 
 -- D) --
 
 --- O réu não forneceu o número de beneficiário nem quaisquer informações ao 
 Hospital da autora (cf. Artigo 5º) da Petição Inicial).------
 
 -- E) --
 
 --- Quando foi assinado o aviso de recepção relativo à carta mencionada no 
 artigo 4º) da Petição Inicial, o réu encontrava-se internando num Centro de 
 Recuperação, não contactando com o exterior, designadamente, com familiares (cf. 
 Artigo 11º) da Contestação). ------
 
 -- F) --
 
 --- O réu é beneficiário da Segurança Social desde Dezembro de 1990, sendo 
 titular do cartão de beneficiário com o número 111363975 cf. Artigo 13º) da 
 Contestação). ------
 
  
 
  
 
 2. Fundamentos da Acção (cont.)
 
 2.2. O Direito 
 
 --- Definida a factualidade apurada nestes autos, é tempo de proceder à 
 aplicação do direito, tendo presente o objecto da presente acção, acima 
 sucintamente delineado pela definição da questão decidenda. ------
 
  
 
 --- Nos termos do artigo 64º, da Constituição da República Portuguesa, todos têm 
 direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover, sendo tal 
 direito realizado, designadamente, através de um serviço nacional de saúde 
 universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos 
 cidadãos, tendencialmente gratuito, para o que incumbe prioritariamente ao 
 Estado garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição 
 económica, aos cuidados de medicina preventiva, curativa e de reabilitação. 
 
 -----
 
 --- Como é sabido, garante-se no preceito constitucional citado o direito à 
 protecção da saúde na sua feição de direito social, ali se consagrando um 
 direito positivo dos cidadãos que, pela sua própria estrutura, exige prestações 
 do Estado e impõe aos entes públicos a realização de determinadas tarefas, 
 designadamente, a criação e manutenção do serviço nacional de saúde. -------  
 
 --- Na verdade, a principal obrigação do Estado para realizar o direito à 
 protecção da saúde consiste na criação de um serviço nacional de saúde, o qual, 
 de acordo com as características contidas no próprio texto constitucional, 
 deverá ser universal, porque dirigido à generalidade dos cidadãos, geral, ou 
 seja, deve abranger todos os serviços públicos de saúde e todos os domínios e 
 prestações médicos, e tendencialmente gratuito, pois que o cidadão deverá ter 
 direito a esse serviço sem qualquer encargo ou através do pagamento de taxas, as 
 quais, em qualquer caso, não podem impedir o acesso ao serviço nacional de saúde 
 em virtude de condições económicas ou sociais (vd. Gomes Canotilho, Vital 
 Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 
 
 342). -----
 
 --- Por outro lado, o direito à protecção da saúde consagrado na citada norma 
 encerra, ainda, uma dimensão objectivo-programática, a qual impõe sobre o Estado 
 o dever de cumprir adequadamente às imposições constitucionais, sob pena de 
 incorrer numa inconstitucionalidade por omissão. -----
 
 --- Ora, ao nível da legislação ordinária, encontramos vários diplomas legais 
 que mais não são do que o resultado do cumprimento, pelo Estado, das imposições 
 decorrentes do texto constitucional citado. ------
 
 --- Assim, impõe-se, desde logo, destacar a Lei número 48/90, de 24 de Agosto (a 
 Lei de Bases da Saúde), em cuja Base I se estabelece: -----
 
 1- A protecção da saúde constitui um direito dos indivíduos e da comunidade que 
 se efectiva pela responsabilidade conjunta dos cidadãos, da sociedade e do 
 Estado, em liberdade de procura e de prestação de cuidados, nos termos da 
 Constituição e da lei. 
 
 2 - O Estado promove e garante o acesso de todos os cidadãos aos cuidados de 
 saúde nos limites dos recursos humanos, técnicos e financeiros disponíveis. 
 
 3 - A promoção e a defesa da saúde pública são efectuadas através da actividade 
 do Estado e de outros entes públicos, podendo as organizações da sociedade civil 
 ser associadas àquela actividade. 
 
 4 - Os cuidados de saúde são prestados por serviços e estabelecimentos do 
 Estado ou, sob fiscalização deste, por outros entes públicos ou por entidades 
 privadas, sem ou com fins lucrativos. 
 
 --- Por outro lado, importa, ainda, citar a Base IV da Lei citada, nos termos da 
 qual: -----
 
 1 - O sistema de saúde visa a efectivação do direito à protecção da saúde. 
 
 2 - Para efectivação do direito à protecção da saúde, o Estado actua através de 
 serviços próprios, celebra acordos com entidades privadas para a prestação de 
 cuidados e apoia e fiscaliza a restante actividade privada na área da saúde. 
 
 3 - Os cidadãos e as entidades públicas e privadas devem colaborar na criação de 
 condições que permitam o exercício do direito à protecção da saúde e a adopção 
 de estilos de vida saudáveis. 
 
  
 
 --- Atentos os contornos do caso destes autos, importará também atentar no 
 capítulo III, da citada Lei de Bases da Saúde, onde, com interesse, se definem 
 as seguintes bases: -----
 Base XXIV (características)
 O Serviço Nacional de Saúde caracteriza-se por: a) Ser universal quanto à 
 população abrangida; b) Prestar integradamente cuidados globais ou garantir a 
 sua prestação; c)Ser tendencialmente gratuito para os utentes, tendo em conta as 
 condições económicas e sociais dos cidadãos; d) Garantir a equidade no acesso 
 dos utentes, com o objectivo de atenuar os efeitos das desigualdades 
 económicas, geográficas e quaisquer outras no acesso aos cuidados; e) Ter 
 organização regionalizada e gestão descentralizada e participada. 
 
  
 Base XXV (Beneficiários) 
 
 1 - São beneficiários do Serviço Nacional de Saúde todos os cidadãos 
 portugueses. 
 
 2 - São igualmente beneficiários do Serviço Nacional de Saúde os cidadãos 
 nacionais de Estados membros das Comunidades Europeias, nos termos das normas 
 comunitárias aplicáveis. 
 
 3 - São ainda beneficiários do Serviço Nacional de Saúde os cidadãos 
 estrangeiros residentes em Portugal, em condições de reciprocidade, e os 
 cidadãos apátridas residentes em Portugal. 
 
  
 
 --- Ora, com vista à regulamentação da citada Lei de Bases da Saúde, foi 
 aprovado o Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, publicado em anexo ao 
 Decreto-lei número 11/93, de 15 de Janeiro, Estatuto que, nos termos do artigo 
 
 2º, deste diploma, se aplica às instituições e serviços que constituem o Serviço 
 nacional de Saúde e às entidades particulares e profissionais em regime liberal 
 integradas na rede nacional de prestação de cuidados de saúde, quando 
 articuladas com o Serviço Nacional de Saúde. -----
 
 --- De acordo com os artigos 1º e 2º, do referido Estatuto, o Serviço Nacional 
 de Saúde é um conjunto ordenado e hierarquizado de instituições e de serviços 
 oficiais prestadores de cuidados de saúde, funcionando sob a superintendência ou 
 a tutela do Ministério da Saúde, sendo seu objectivo a efectivação, por parte do 
 Estado, da responsabilidade que lhe cabe na protecção da saúde individual e 
 colectiva. ----
 
 --- Por outro lado, importará atender ainda ao disposto no artigo 23º, do 
 referido Estatuto, no qual, sob a epígrafe “Responsabilidade pelos encargos”, se 
 estabelece: -----
 
  I - Além do Estado, respondem pelos encargos resultantes da prestação de 
 cuidados de saúde prestados no quadro do Serviços Nacional de Saúde: 
 a) Os utentes não beneficiários do SNS e os beneficiários na parte que lhes 
 couber, tendo em conta as suas condições económicas e sociais; 
 b) Os subsistemas de saúde, neles incluídas as instituições particulares de 
 solidariedade social, nos termos dos seus diplomas orgânicos ou estatutários; 
 c) As entidades que estejam a tal obrigadas por força de lei ou de contrato; 
 d) As entidades que se responsabilizem pelo pagamento devido pela assistência em 
 quarto particular ou por outra modalidade não prevista para a generalidade dos 
 utentes; 
 e) Os responsáveis por infracção às regras de funcionamento do sistema ou por 
 uso ilícito dos serviços ou material de saúde. 
 
 2 - São isentos de pagamento de encargos os utentes que se encontrem em 
 situações clínicas ou pertençam a grupos sociais de risco ou financeiramente 
 mais desfavorecidos, constantes de relação a estabelecer em decreto-lei. 
 
 3 - A demonstração das condições económicas e sociais dos utentes é feita 
 segundo regras a estabelecer em portaria do Ministro da Saúde, podendo ser 
 considerados os elementos definidores da sua situação fiscal. 
 
  
 
 --- Decorrendo, pois, da Constituição e da Lei que o cidadão português é, como 
 simples decorrência dessa cidadania, beneficiário do Serviço Nacional de Saúde, 
 sentiu-se necessidade de estabelecer um sistema de identificação dos utentes 
 daquele Serviço, o qual, assegurando a definição exacta da situação de cada 
 utente, tinha como objectivo garantir a concretização dos direitos dos seus 
 titulares, designadamente, o acesso a actividades de protecção da saúde, à 
 prestação de cuidados e ao fornecimento de medicamentos, quer pelos serviços 
 próprios do Serviço Nacional de Saúde quer pela entidades privadas com ele 
 convencionadas. ------
 
 --- Assim, para responder a tal necessidade, o Decreto-lei número 198/95, de 29 
 de Julho, criou o cartão do utente do Serviço Nacional de Saúde, podendo ler-se 
 no respectivo Preâmbulo: -----
 
 “Importa, por isso, unificar, no respeito pelos princípios da universalidade e 
 da equidade, o sistema de identificação dos utentes do Serviços Nacional de 
 Saúde, através da instituição de um cartão, de emissão gratuita e natureza 
 substitutiva, em termos idênticos aos existentes para utentes de subsistemas. 
 
 -----
 
 “Prossegue-se, deste modo, a mais fácil identificação pessoal nos serviços de 
 saúde, sem necessidade de apresentação de qualquer outro documento. Para além 
 disso, esta medida, representa um benefício acrescido para o seu titular, na 
 medida em que elimina circuitos e procedimentos burocráticos e simplifica a 
 atribuição da isenção das taxas moderadoras e o reconhecimento de outras 
 situações de isenção. A natureza do cartão do utente promove, ainda, a 
 movimentação mais fácil no âmbito dos serviços de saúde, pela eliminação de 
 circuitos e de documentos, substituíveis por este cartão.
 
 “Doutra parte, a existência de um cartão de identificação uniforme garante ao 
 respectivo titular o conhecimento adequado e actualizado dos respectivos 
 direitos, designadamente, no que respeita à identificação de terceiros 
 responsáveis, à isenção de taxas e comparticipação especial de medicamentos.  
 
 “O cartão de identificação do utente é, pois, para o seu titular, um instrumento 
 de participação esclarecida no processo de efectivação do direito à protecção da 
 saúde(…)” 
 
  
 
 --- Em perfeita sintonia com o espírito de tal diploma legal, estabelecia-se no 
 seu artigo 2º, que: ------
 
 1- O cartão de identificação do utente constitui um meio facultativo, com 
 natureza substitutiva, de comprovação da identidade do seu titular perante a 
 instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde e as entidades 
 privadas na área da saúde.
 
 2- O cartão de identificação do utente é de emissão gratuita e substitui, para 
 os efeitos referidos no número anterior, qualquer outro cartão ou documento de 
 identificação do seu titular.
 
  
 
 --- A norma citada foi, todavia, objecto de profunda alteração, por força da 
 entrada em vigor do Decreto-lei número 52/2000, de 7 de Abril, cujo artigo único 
 atribuiu ao citado artigo 2º, do Decreto-lei número 198/95, de 29 de Julho, a 
 seguinte redacção: -----
 
 1- O cartão de identificação do utente deve ser apresentado sempre que os 
 utentes utilizem os serviços das instituições e serviços integrados no Sistema 
 Nacional de Saúde ou com ele convencionado.
 
 2- A não identificação dos utentes nos termos do número anterior não pode, em 
 caso algum, determinar a recusa de prestações de saúde.
 
 3- Aos utentes não é cobrada, com excepção das taxas moderadoras, quando 
 devidas, qualquer importância relativa às prestações de saúde quando devidamente 
 identificados nos termos deste diploma ou desde que façam prova, nos dez dias 
 seguintes à interpelação para pagamento dos encargos com os cuidados de saúde 
 prestados, de que são titulares ou requereram a emissão do cartão de 
 identificação de utente do Serviço Nacional de saúde. 
 
  
 
 --- A dimensão da alteração legislativa operada pelo mencionado Decreto-lei 
 número 52/2000, de 7 de Abril, surge particularmente impressiva quando se atente 
 no respectivo preâmbulo, no qual se refere: ----- 
 
 “O sistema de saúde português necessita, para ser mais eficaz e eficiente, de 
 conhecer toda a população e as suas características.
 
 “A identificação dos utilizadores do Serviço Nacional de Saúde foi instituída 
 pelo Decreto-Lei número 198/95, de29 de Julho.
 
 “De facto, o conhecimento inequívoco de cada utente no sistema, a referenciação 
 com identificação única inter e intra-estabelecimentos de saúde, a medição de 
 frequência de utilização e o acesso a diferente tipologia de serviços de saúde 
 potenciam uma melhor prestação de cuidados de saúde, para além de constituírem 
 uma mais-valia global em termos de planeamento e estatística da saúde.
 
 “Urge, por isso, promover a generalização do uso do cartão de utente no sistema 
 de saúde.
 
 “Esclarece-se que a não exibição do cartão não pode em circunstância alguma pôr 
 em causa o direito à protecção na saúde constitucionalmente garantido, evitando 
 que o problema burocrático ou administrativo da identificação do utente do 
 Serviço Nacional de Saúde impeça a realização das prestações de saúde.
 
 “Todavia, torna-se necessário associar consequências à não identificação do 
 cartão e que assentam no pressuposto que o utente não identificado não é 
 beneficiário do Serviço Nacional de Saúde, associando o ónus do pagamento 
 directo do utente pelos encargos decorrentes de cuidados de saúde, quando não se 
 apresente devidamente identificado nas instituições e serviços prestadores ou 
 não indique terceiro, legal ou contratualmente responsável. Esta 
 responsabilização prática das instituições e serviços integrados no Serviço 
 Nacional de Saúde fica agora mitigada pela possibilidade de o utente se eximir 
 da responsabilidade pelos cuidados de saúde prestados requerendo o respectivo 
 documento de identificação.”
 
  
 
 --- Assim, da conjugação do artigo único do citado Decreto-lei número 52/2000 
 com o respectivo preâmbulo, conclui-se que tal diploma legal tem na sua base a 
 seguinte principiologia: a) Ao utente que apresentar o cartão de utente do SNS 
 ou que faça prova, no prazo de 10 dias sobre a interpelação para o pagamento dos 
 encargos com os cuidados de saúde prestados, de que requereu a emissão do 
 cartão, não é cobrada (com excepção das taxas moderadoras) qualquer importância 
 relativa a prestações de saúde; b) Os utentes que não forem titulares do cartão 
 ou que não requererem a sua emissão deverão pagar os cuidados de saúde 
 prestados. ------ 
 
 --- Ora, sem descurar que uma interpretação ou aplicação mais restritiva da 
 norma introduzida pelo referido diploma no Decreto-lei número 198/95, de 20 de 
 Julho (condicionadora da gratuitidade da prestação de cuidados de saúde à 
 apresentação do cartão ou à prova da requisição da sua emissão), é susceptível 
 de aspoletar algumas objecções ao nível da constitucionalidade material do 
 preceito, na medida em que  poderá colidir com a consagração constitucional do 
 
 “direito à saúde” (vd. artigo 64º da Constituição da República Portuguesa, acima 
 citado), o certo é que o próprio diploma que consagrou tal norma – o Decreto-lei 
 número 52/2000 - suscita algumas dúvidas do ponto de vista da sua 
 constitucionalidade formal.----
 
 --- Na verdade, com a introdução da norma referida no Ordenamento Jurídico 
 Português, o legislador afastou-se claramente do espírito que presidira à 
 promulgação do Decreto-lei 198/95, de 29 de Julho, que assentava na criação de 
 um sistema de identificação dos utentes do Serviço Nacional de Saúde, elevando o 
 cartão de utente do Serviço Nacional de Saúde a condição da gratuitidade da 
 prestação dos cuidados de saúde. Resumindo: por força do Decreto-lei número 
 
 52/2000, o cartão de utente do serviço nacional de saúde deixou de ser um 
 simples documento de identificação (como o era à luz da redacção originária do 
 Decreto-lei número 198/95, de 29 de Julho), para passar a ser condição da 
 gratuitidade da prestação de cuidados de saúde pelas instituições e serviços 
 integrados no Serviço Nacional de Saúde ou com ele convencionados. -----
 
 --- Dizendo isto, é manifesto que o diploma em questão veio materialmente 
 desenvolver a própria Lei de Bases da Saúde, designadamente, a sua BASE XXV, 
 acima citada, na medida em que introduziu uma importante precisão na parte 
 relativa à definição dos beneficiários do Serviço Nacional de Saúde, impondo 
 
 àqueles que se enquadrem em tal categoria a obtenção de um cartão de 
 identificação, sem o qual deixarão na prática de ser beneficiários de tal 
 serviço e deverão suportar o pagamento dos cuidados que lhes forem prestados 
 pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde ou com ele 
 convencionados.-
 
 --- Por outro lado, veio ainda tal diploma alterar, ainda que não expressamente, 
 o próprio Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, na medida em que, para além das 
 pessoas indicadas no artigo 23º, de tal Estatuto, acima citado, passarão a 
 responder pelos encargos resultantes da prestação de cuidados de saúde todos 
 aqueles que, independentemente de serem ou não beneficiários do Serviço Nacional 
 de Saúde (ou seja, independentemente de se enquadrarem na definição da Base XXV 
 da Lei de Bases da Saúde), não façam prova, nos dez dias seguintes à 
 interpelação para pagamento dos encargos com os cuidados de saúde prestados, de 
 que são titulares ou requereram a emissão do cartão de identificação de utente 
 do Serviço Nacional de Saúde. ------
 
 --- Ora, no artigo 198º, número 1, da Constituição da República Portuguesa, 
 estabelece-se o seguinte: -----  
 
 1. Compete ao Governo, no exercício de funções legislativas:
 a) Fazer decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República;
 b) Fazer decretos-leis em matérias de reserva relativa da Assembleia da 
 República, mediante autorização desta;
 c) Fazer decretos-leis de desenvolvimento dos princípios ou das bases gerais dos 
 regimes jurídicos contidos em leis que a eles se circunscrevam.
 
 2. É da exclusiva competência legislativa do Governo a matéria respeitante à sua 
 própria organização e funcionamento.
 
 3. Os decretos-leis previstos nas alíneas b) e c) do n.º 1 devem invocar 
 expressamente a lei de autorização legislativa ou a lei de bases ao abrigo da 
 qual são aprovados.
 
  
 
 --- Nestes termos, e por contender directamente com a Lei de Bases da Saúde, nos 
 termos que se acabam de descrever, matéria esta que é da reserva (relativa) da 
 Assembleia da República, ao Governo apenas estava deferida a faculdade de 
 legislar sobre a matéria versada pelo Decreto-lei número 52/2000, de 7 de Abril 
 
 (condições de acesso à prestação gratuita de cuidados de saúde no âmbito do 
 Serviço Nacional de Saúde), através de decreto-lei de desenvolvimento, com 
 referência à Lei de Bases da Saúde, e não mediante decreto-lei independente 
 
 (neste sentido, Gomes Canotilho, Vital Moreira, op. cit., p. 778), sendo certo 
 que, por força do citado artigo 198º, número 3, da Constituição da República 
 Portuguesa, se impunha ao órgão legiferante a invocação expressa da Lei de Bases 
 da Saúde, ao abrigo da qual o diploma mencionado deveria ter sido aprovado. 
 
 -----
 
 --- Todavia, analisando o diploma em questão, na sua forma, é manifesto que se 
 não trata de um decreto-lei de desenvolvimento, tendo o Governo expressamente 
 invocado o artigo 198º, alínea a), da Constituição da República Portuguesa (o 
 que dá ao diploma em apreço a configuração de um decreto-lei independente), sem 
 qualquer menção à Lei de Bases da Saúde, cujo regime veio, não obstante e como 
 acima se deixou dito, desenvolver. ----- 
 
 --- Ora, nos termos do artigo 277º, número 1, da Constituição da República 
 Portuguesa, são inconstitucionais as normas que infrinjam o disposto na 
 Constituição ou os princípios nela consignados. ---
 
 --- Da citada norma resulta, pois, que a inconstitucionalidade de uma norma 
 consiste na ofensa da disciplina constitucional em qualquer dos seus aspectos - 
 incompetência, vício de forma ou de procedimento, contradição entre o conteúdo 
 da norma e o conteúdo normativo da Constituição -, podendo dizer-se, com Gomes 
 Canotilho e Vital Moreira (op. cit., p. 992),  que uma norma será 
 inconstitucional sempre que viole qualquer dos aspectos constitucionalmente 
 vinculados. -----
 
 --- Por outro lado, tal inconstitucionalidade poderá ser declarada pelos 
 tribunais comuns, no âmbito da chamada fiscalização concreta da 
 constitucionalidade, prevista no artigo 280º, número 1, alínea a), da 
 Constituição da República Portuguesa, também designada por processo incidental 
 ou acção judicial de inconstitucionalidade, a qual encerra um direito de 
 fiscalização dos juízes (judicial review) relativamente a normas a aplicar a um 
 caso concreto. -----
 
 --- Tal fiscalização concreta da constitucionalidade, que deve ser levantada num 
 feito submetido a julgamento, perante um tribunal, poderá ser suscitada a 
 instâncias de parte, ex officio pelo juiz e pelo Ministério Público, quando seja 
 parte no processo. -----
 
 --- Como requisitos objectivos desse controlo concreto da constitucionalidade 
 das normas, importa enunciar, com interesse para os presentes autos, os 
 seguintes: 1) que se trate de uma questão de constitucionalidade, ou seja, que 
 se coloque perante o tribunal comum uma questão de conformidade ou 
 desconformidade de um concreto acto normativo a aplicar a um caso submetido a 
 julgamento, questão que deverá ser suscitada e julgada independentemente do seu 
 acolhimento ou rejeição trazer benefícios a qualquer das partes processuais; 2) 
 que a questão da constitucionalidade seja relevante para a decisão da causa, 
 i.é, terá que tratar-se de uma questão prévia relevante para a decisão da 
 questão principal, exigindo-se, por um lado, que tal questão seja relevante do 
 ponto de vista da decisão do feito submetido a julgamento e que, por outro lado, 
 concluindo-se pela inconstitucionalidade da norma, esta seja efectivamente 
 desaplicada no caso sub lite com esse fundamento; 3) que a questão da 
 inconstitucionalidade tenha por objecto normas que tenham que ser aplicadas na 
 causa, com o sentido de limitar a fiscalização da constitucionalidade a actos 
 normativos, normas, sejam materiais ou processuais, que podem incidir sobre o 
 mérito da causa, ou apenas sobre meios probatórios ou pressupostos processuais, 
 podendo lesar ou não direitos fundamentais ou interesses legítimos das partes 
 
 (vd. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, ed. Almedina, Coimbra, 1992, p. 
 
 1059 e sgts.). ------  
 
 --- Ora, vertendo tais requisitos ao caso destes autos, poder-se-á imediatamente 
 concluir que os mesmos se acham aqui integralmente verificados. ------
 
 --- Com efeito, a questão que se acaba de suscitar é uma efectiva questão de 
 constitucionalidade (formal), colocando-se em causa a conformidade do artigo 
 
 único do Decreto-lei número 52/2000, de 7 de Abril, com a Constituição, em 
 virtude de tal diploma ter desenvolvido, ainda que não assumidamente, a Base XXV 
 da Lei de Bases da Saúde, concretizando os termos em que os beneficiários do 
 Serviços Nacional de Saúde podem aceder gratuitamente à prestação de cuidados de 
 saúde, sem fazer qualquer referência à lei de bases que poderia sustentar a sua 
 aprovação (Lei de Bases da Saúde). ------
 
 --- Por outro lado, trata-se de uma questão relevante do ponto de vista da 
 decisão da causa, uma vez que o pedido formulado pela autora se funda na 
 circunstância de o réu não ter feito prova da qualidade de beneficiário do 
 Serviço Nacional de Saúde, no prazo previsto no citado artigo 2º, do Decreto-lei 
 número 198/95, de 29 de Julho, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-lei 
 número 52/2000, de 7 de Abril. Assim, é manifesto que, concluindo-se pela 
 inconstitucionalidade de tal norma e consequente desaplicação ao caso, tal 
 conduzirá à manifesta improcedência da acção. -----
 
 --- Na verdade, afastada a aplicação do referido diploma, passarão a valer os 
 princípios gerais da Lei de Bases da Saúde e do Estatuto do Serviço Nacional de 
 Saúde (Base XXV, da Lei de Bases da Saúde, e artigo 23º, número 1, alínea a), do 
 Estatuto do Serviço Nacional de Saúde), à luz dos quais, a acção só seria 
 procedente e o réu condenado a pagar à autora a quantia peticionada, caso esta 
 tivesse alegado e provado que o mesmo não é beneficiário do serviço nacional de 
 saúde (o que não foi alegado nem provado). -----
 
 --- Finalmente, é manifesto que se está in casu perante uma eventual 
 desconformidade de um acto normativo (Decreto-lei) com a Constituição, que teria 
 que ser aplicado ao caso submetido a julgamento, pelo que se conclui pela 
 verificação do último requisito acima enunciado. -----
 
 --- Assim, e por tudo o que se deixa exposto, impõe-se declarar a 
 inconstitucionalidade do artigo único do Decreto-lei 52/2000, de 7 de Abril. 
 
 -----
 
 --- Declarada a inconstitucionalidade de tal norma, o artigo 2º, do Decreto-lei 
 número 198/95, de 29 de Julho, passará a valer com a sua redacção originária, 
 acima transcrita (1- O cartão de identificação do utente constitui um meio 
 facultativo, com natureza substitutiva, de comprovação da identidade do seu 
 titular perante a instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de 
 Saúde e as entidades privadas na área da saúde.2- O cartão de identificação do 
 utente é de emissão gratuita e substitui, para os efeitos referidos no número 
 anterior, qualquer outro cartão ou documento de identificação do seu titular), a 
 qual nenhuma relevância tem do ponto de vista da decisão da causa. -----
 
 --- Nestes termos, estando o Hospital A., S.A., integrado no Serviço Nacional de 
 Saúde (cf. artigo 2, número 2, do Decreto-lei número 297/2002), a apreciação do 
 pedido formulado nestes autos passa necessariamente pela análise do artigo 23º, 
 número 1, alínea a), do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, conjugado com a 
 Base XXV, da Lei de Bases da Saúde. ----
 
 --- Ora, nos termos do artigo 23º, número 1, alínea a), do Estatuto do Serviço 
 Nacional de Saúde, além do Estado, respondem pelos encargos resultantes da 
 prestação de cuidados de saúde prestados no quadro do Serviços Nacional de 
 Saúde, os utentes não beneficiários do SNS e os beneficiários na parte que lhes 
 couber, tendo em conta as suas condições económicas e sociais. -----
 
 --- Por outro lado, para os efeitos da norma citada deverão considerar-se 
 beneficiários do Serviço Nacional de Saúde todos os cidadãos portugueses, bem 
 como os cidadãos nacionais de Estados membros das Comunidades Europeias, nos 
 termos das normas comunitárias aplicáveis, e, ainda, os cidadãos estrangeiros 
 residentes em Portugal, em condições de reciprocidade, e os cidadãos apátridas 
 residentes em Portugal (cf. Base XXV, da Lei de Bases da Saúde). -----
 
 --- Nessa medida, a procedência do pedido formulado pela autora dependia da 
 alegação e prova de que o réu, por não se integrar em nenhuma das hipóteses 
 previstas na Base XXV, da Lei de Bases da Saúde, não é beneficiário do Serviço 
 Nacional de Saúde, pois que, atento o disposto no artigo 23º, do Estatuto do 
 Serviço Nacional de Saúde, só nesse circunstancialismo fáctico poderia ser 
 responsabilizado pelo pagamento das despesas hospitalares reclamadas nestes 
 autos. ------
 
 --- Ora, no caso destes autos, a autora não alegou nem provou que o réu não 
 fosse beneficiário daquele serviço, de onde se conclui que, julgada 
 inconstitucional a norma do artigo único do Decreto-lei número 52/2000, de 7 de 
 Abril, não existe fundamento para deslocar do Estado para o réu a obrigação de 
 suportar o pagamento das despesas hospitalares reclamadas pela autora. -------
 
 --- Responsabilidade pelas Custas: Assim, deverá a presente acção ser julgada 
 improcedente, absolvendo-se o réu do pedido formulado pela autora. Face a tal 
 desfecho, deverá a autora ser condenada nas custas, às quais, com o seu 
 decaimento, deu causa - cf. artigo 446º, números 1 e 2, do Código de Processo 
 Civil. ------
 
 3. Decisão 
 
 --- Nestes termos e com tais fundamentos, este tribunal decide declarar 
 inconstitucional a norma do artigo único do Decreto-lei número 52/2000, de 7 de 
 Abril, por violação do artigo 198º, números 1 e 3, da Constituição da República 
 Portuguesa. ------
 
  
 
 --- Mais, decide este tribunal julgar a presente acção improcedente, por não 
 provada, e, consequentemente, absolver o réu do pedido.”
 
                  2. O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade 
 obrigatório para apreciação de conformidade à Constituição do Decreto-Lei n.º 
 
 52/2000, de 7 de Abril, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei do 
 Tribunal Constitucional.
 
  
 
                  Junto do Tribunal Constitucional o Ministério Público 
 apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
 
  
 
 “1 – O estabelecimento, pelo Decreto-Lei nº 52/00, de um dever acessório de 
 identificação dos utentes do Sistema Nacional de Saúde, através da titularidade 
 e apresentação do respectivo cartão, tem uma natureza meramente “secundária” ou 
 
 “procedimental”, não respeitando à matéria da definição das “bases gerais” da 
 saúde, não contendendo com as normas da Lei de Bases da Saúde que delimitam os 
 beneficiários do Serviço Nacional de Saúde – situando-se, deste modo, no âmbito 
 da competência legislativa própria do Governo.
 
 2 – Face ao artigo 64º da Constituição da República Portuguesa, o direito – 
 universal e geral – à protecção da saúde – embora dependente de uma interposição 
 concretizadora do legislador – implica que as prestações positivas alcançadas do 
 serviço nacional de saúde se configurem como “tendencialmente gratuitas”, o que 
 seguramente implica que o encargo suportado pelo utente, no caso de indivíduos 
 economicamente carenciados, não possa corresponder à integralidade do custo de 
 tais prestações ou cuidados de saúde.
 
 3 – Constitui restrição desproporcionada e excessiva a tal “direito social” a 
 que se traduz em sancionar o incumprimento do dever acessório de identificação 
 do utente através do cartão, a realizar no prazo peremptório de 10 dias, 
 contados da interpelação, com o integral pagamento dos serviços prestados, 
 independentemente da situação económica do utente e da relevância concreta desse 
 incumprimento, nomeadamente da efectiva possibilidade de a Administração o poder 
 identificar cabalmente através dos elementos fornecidos e disponíveis.
 
 4 – É, pois, materialmente inconstitucional a norma constante do nº 3 do artigo 
 
 2º do Decreto-Lei nº 198/95, enquanto considera precludido o direito à 
 
 “gratuitidade tendencial” dos serviços prestados, ínsito no artigo 64º, nº 2, 
 alínea a) da Constituição da República Portuguesa, apenas pelo facto de o utente 
 não ter cumprido o dever acessório de demonstração da titularidade do respectivo 
 cartão, no prazo peremptório de 10 dias, subsequentes à interpelação para 
 pagamento dos encargos com os cuidados de saúde prestados.”
 
  
 
  
 
                  O recorrido não contra-alegou.
 
  
 
                  3. Cumpre apreciar.
 
  
 II
 FUNDAMENTAÇÃO
 
  
 
  
 
                  4. Na perspectiva da decisão recorrida, o artigo 2.º da 
 Decreto-Lei n.º 198/95, de 29 de Julho, na redacção do Decreto-Lei n.º 52/2000, 
 de 7 de Abril, preceito que condiciona o pagamento dos cuidados de saúde 
 prestados à apresentação do cartão de identificação de utente do Sistema 
 Nacional de Saúde (no momento do atendimento ou no prazo de 10 dias a contar da 
 interpelação para pagamento dos encargos, bastando então a prova da requisição 
 do cartão, é formalmente inconstitucional, já que, sendo o cartão condição de 
 gratuitidade da prestação dos cuidados de saúde, estar-se-ia perante um 
 desenvolvimento material da Lei de Bases da Saúde, desenvolvimento realizado por 
 decreto-lei desprovido de credencial bastante (artigo 190.º , n.ºs 1 e 3 da 
 Constituição).
 
  
 
                  Cabe, no entanto, realçar que a exigência da apresentação do 
 cartão ou da prova de o mesmo ter sido requerido não consubstancia encargo 
 excessivamente oneroso, já que, mesmo os utentes que não são titulares do cartão 
 podem requerê-lo e fazer respectiva prova, tendo desse modo acesso aos cuidados 
 de saúde (quanto aos cuidados de saúde, têm sempre acesso, mesmo que incumpram a 
 exigência) tendencialmente gratuitos.
 
  
 
                  Assim, verifica-se que a exigência da apresentação de cartão, 
 ou da prova de que foi requerido, constitui uma mera condição procedimental do 
 exercício do direito à assistência médica, não se traduzindo num critério de 
 definição do leque de utentes do Serviço Nacional de Saúde. Com efeito, mesmo na 
 vigência da norma que consagra esta exigência (o regime anterior estabelecia o 
 carácter facultativo da utilização do cartão), todos os cidadãos continuam a ter 
 acesso tendencialmente gratuito ao Serviço Nacional de Saúde (cfr. princípios da 
 universalidade e da tendencial gratuitidade, consagrados na Base XXIV, alíneas 
 a) e c), da Lei de Bases da Saúde – Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto).
 
  
 
                  Deste modo, o diploma em apreciação não inova em matéria 
 abrangida pela Lei de Bases da Saúde, regulando apenas a prova da titularidade 
 do utente do Serviço Nacional de Saúde, pelo que não contende com o disposto no 
 n.º 3 do artigo 198.º da Constituição, já que não está em causa a reserva de 
 competência relativa da Assembleia da República [artigo 165.º, n.º 1, alínea f), 
 da Constituição].
 
  
 
                  Os fundamentos do juízo de inconstitucionalidade da decisão 
 recorrida improcedem, portanto.
 
  
 
                  5. Contudo, importa apreciar a conformidade à Constituição do 
 preceito em questão, utilizando como parâmetro de constitucionalidade o 
 princípio da proporcionalidade e o direito à saúde (artigos 18.º e 64.º da 
 Constituição).
 
  
 
                  Para o efeito, cabe ter presente que o regime em causa pode ter 
 por consequência a necessidade do pagamento pelo utilizador dos serviços 
 prestados.
 
  
 
                  Por outro lado, a Lei não prevê a forma pela qual a 
 interpelação para pagamento dos encargos decorrentes dos serviços prestados 
 
 (termo a quo do prazo de 10 dias para apresentar o cartão) tem lugar.
 
  
 
                  Sublinhe-se, também, que a lei não permite a valoração de uma 
 eventual ausência de culpa do utente no incumprimento do  dever acessório em 
 questão.
 
  
 
                  Por último, no caso dos autos a Administração tinha 
 conhecimento do número Nacional de utente do recorrente através dos elementos 
 fornecidos e disponívies.
 
                  Ora, uma norma que impõe ao utente economicamente carenciado o 
 efectivo pagamento dos serviços clínicos prestados como mera consequência do 
 incumprimento de um ónus procedimental ou formal, de natureza manifestamente 
 secundária, afigura-se incompatível com o princípio da proporcionalidade e com o 
 carácter universal e tendencialmente gratuito do Serviço Nacional de Saúde, 
 expressão constitucional da consagração constitucional do direito à saúde 
 
 (artigos 2.º, 18.º e 64.º da Constituição).
 
  
 
                  6. Conclui-se, assim, pela inconstitucionalidade da norma 
 desaplicada, ainda que com fundamento diverso do da decisão recorrida.
 
  
 
  
 III
 DECISÃO
 
  
 
  
 
                  7. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide 
 confirmar, com fundamento diverso – a violação conjugada dos artigos 2.º, 18.º e 
 
 64.º da Constituição –  o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão 
 recorrida, relativo à norma do artigo 2.º, n.º 3 do Decreto-Lei nº 52/2000, de 7 
 de Abril, interpretada no sentido de obrigar o pagamento dos serviços prestados 
 apenas pelo facto de o utente não ter cumprido o ónus de demonstração de 
 titularidade do cartão de utente no prazo de 10 dias subsequentes à interpelação 
 para pagamento dos encargos com os cuidados de saúde prestados.
 Lisboa, 30 de Janeiro de 2007
 Maria Fernanda Palma
 Paulo Mota Pinto
 Mário José de Araújo Torres
 Benjamim Rodrigues
 Rui Manuel Moura Ramos