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Processo nº 637/04
 
 1ª Secção
 Relatora: Conselheira Maria João Antunes 
 
  
 
  
 
  
 Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional
 
  
 
  
 I. Relatório
 
 1. Nos presentes autos, em que é recorrente a Herança aberta por óbito de A.  e 
 mulher B. e são recorridos C. e D., foi interposto recurso para o Tribunal 
 Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei 
 de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do 
 acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de Abril de 2004. 
 
  
 
 2. A recorrente intentou acção declarativa de reivindicação contra os 
 recorridos, pedindo a entrega de uma fracção autónoma de prédio urbano, com 
 fundamento na caducidade do contrato de arrendamento para habitação, face à 
 morte da inquilina. Sustentou que sobre a ré C., filha da arrendatária, recaía a 
 obrigação de entregar o locado e que o réu D., filho da empregada doméstica da 
 arrendatária e com esta residente, se mantinha a ocupar o andar em causa 
 desprovido de qualquer título, por não ter direito à transmissão do 
 arrendamento.
 A acção foi julgada improcedente, por sentença de 9 de Outubro de 2002, que 
 reconheceu a transmissão do direito ao arrendamento a favor do réu D., por viver 
 em economia comum com a arrendatária. Inconformada, apelou a autora, 
 sustentando, nomeadamente, que:
 
  
 
 “1 - A al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, interpretada em termos absolutos, não 
 podia deixar de violar gravemente o direito de propriedade dos senhorios.
 
 2 - Na verdade, o Réu parece pretender que uma qualquer coabitação de uma pessoa 
 estranha ao arrendatário com o mesmo, pelo período de dois anos, permite a 
 transmissão, em caso de morte daquele, do contrato de arrendamento a este.
 
 3 - Isto, daria azo a que, por exemplo, uma qualquer anciã arrendatária de certa 
 idade pudesse aliciar uma jovem a com ela conviver ou até com ela partilhar as 
 refeições a troco da sua companhia, durante dois anos, ficando logo esta com o 
 direito a vir a ser legal arrendatária pelo resto da sua vida, renegando os 
 direitos dos senhorios proprietários, com uma compressão intolerável.
 
 4 - Ora a Constituição da República, na al. c) do nº 2 do art. 65º, determina ao 
 Estado, no campo do à habilitação [direito à habitação] o seguinte:
 
 «2. Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado:
 a) .........
 b) .........
 c)      Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o 
 acesso à habitação própria ou arrendada;»
 
 5 - E por sua vez, o nº 1 do art. 62º da mesma Lei Fundamental não pode deixar 
 de ser violada pela al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, na interpretação externa 
 que pretendem retirar da mesma os RR., estendendo o direito a puras coabitações.
 
 6 - Portanto, a referida norma da al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, na redacção 
 que lhe foi dada pelo art. 6º da Lei nº 6/2001 de 11/05, não pode deixar de 
 violar os comandos do art. 18º, nº 1 do art. 62º e a al. c) do nº 2 do art. 65º 
 todos da Constituição da República (…).
 n) E, pela sentença sub judice julgou-se improcedente a acção e declarou-se o 
 Réu D. com direito à transmissão, sem que se tenha provado a existência de 
 convivência em economia comum.
 o) Nesta decisão, fez-se errada interpretação dos comandos constantes daquela 
 al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, violando o nº 1 do art. 12º do Cód. Civil, 
 uma vez que a lei aplicável não podia deixar de ser a vigente à data do 
 arrendamento, por se estar perante uma relação contratual.
 p) Mesmo que assim não se entendesse, uma lei publicada em 11/05/2001, sem que 
 nele se determine efeitos retroactivos, a qual veio acrescentar a al. f) do nº 1 
 do art. 85º do RAU, para haver direito à transmissão, exige não só a convivência 
 em economia comum, mas também que ele tenha existido há mais de dois anos, mas 
 estes factos não podem ser do passado.
 q) Ao julgar-se improcedente a acção e atribuir-se o direito ao Réu D. ao 
 arrendamento, aplicando-se a al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, com efeitos 
 retroactivos, uma vez que quando a E. faleceu a lei tinha sido publicada à 
 poucos dias (11/05/2001), pelo que se fez errada interpretação dos comandos do 
 nº 2 do art. 12º do Cód. Civil.
 r) Finalmente, mesmo que assim não seja, os comandos constantes daquela al. f) 
 do nº 1 do art. 85º do RAU, pela redacção dada pelo artigo 6º da lei nº 6/2001, 
 de 11/05, que permite que um contrato de arrendamento se possa transmitir até ao 
 infinito, não deixa de ser inconstitucional.
 s) Assim, o art. 6º da Lei nº 6/2001 a al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, não 
 podem deixar de ofender o direito de propriedade e, além do mais, os artigos 18º 
 e 62º e a al. c) do nº 2 do art. 65º todos da Constituição da república”.
 
  
 
 3. O Tribunal da Relação de Coimbra decidiu julgar a apelação improcedente e 
 confirmar a sentença apelada. Interposto recurso de revista, alegou a 
 recorrente, para o que agora releva, o seguinte:
 
  
 
 “III - A constitucionalidade da norma constante da al. f) do n.º1 do art. 85º do 
 RAU
 Esta al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, interpretada em termos absolutos, não 
 podia deixar de violar gravemente o direito de propriedade dos senhorios, 
 previsto, além do mais, nos arts. 18º e 62º da Const. da Rep. e art. 17º da 
 Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão; art. 17º da Declaração Universal 
 dos Direitos do Homem e 1º do Protocolo, nº 1 Adicional à Convenção da Protecção 
 dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, por força do art. 8º e 16º 
 da Const. da Rep.
 Na verdade, o Recorrido parece pretender que uma qualquer coabitação de uma 
 pessoa estranha ao arrendatário com o mesmo, pelo período de dois anos, permite 
 a transmissão, em caso de morte daquele, do contrato de arrendamento a este, ou 
 seja sem qualquer manifestação pessoal do proprietário.
 O que não deixava de levar a que, por exemplo, uma qualquer anciã arrendatária 
 de certa idade pudesse aliciar uma jovem a com ela conviver ou até com ela 
 partilhar as refeições a troco da sua companhia, durante dois anos, ficando logo 
 esta com o direito a vir a ser legal arrendatária pelo resto da sua vida, 
 renegando os direitos dos senhorios proprietários, com uma compressão 
 intolerável.
 Pois não se pode esquecer que Constituição da República, na al. c) do nº 2 do 
 art. 65º, determina ao Estado, no campo do à habilitação [direito à habitação] o 
 seguinte: 
 
 «2. Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado:   
 a) .........
 b) .........
 c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o 
 acesso à habitação própria ou arrendada;»
 E por sua vez, o nº 1 daquele art. 62º da mesma Lei Fundamental não pode deixar 
 de ser violada pela al. f) do nº 1do art. 85º do RAU, na interpretação externa 
 que pretendem retirar da mesma o Recorrido, estendendo o direito a puras 
 coabitações.   
 Logo, a referida norma da al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, na redacção que lhe 
 foi dada pelo art. 6º da Lei nº 6/2001 de 11/05, não pode deixar de violar os 
 comandos do art. 18º, nº 1 do art. 62º e a al. c) do nº 2 do art. 65º todos da 
 Constituição da República, assim como as normas referidas no primeiro parágrafo 
 
 (…).
 l) E, pela sentença da 1ª Instancia julgou-se improcedente a acção e declarou-se 
 o Réu D. com direito à transmissão, sem que se tenha provado a existência de uma 
 verdadeira convivência em economia comum, e pelo Acórdão sub judice confirmou-se 
 a mesma. 
 m) Em tais decisões, fez-se errada interpretação dos comandos constantes daquela 
 al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, violando o nº 1 do art. 12º do (Cód. Civil, 
 uma vez que a lei aplicável não podia deixar de ser a vigente à data do 
 arrendamento, por se estar perante uma relação jurídica contratual ou locatícia.
 n) Mesmo que assim não se entendesse, uma lei publicada em 11/05/2001, sem que 
 nele se determine efeitos retroactivos, a qual veio acrescentar a al. f) do nº 1 
 do art. 85º do RAU, para haver direito à transmissão, exige não só uma 
 verdadeira convivência em economia comum, mas também que ele tenha existido há 
 mais de dois anos.
 
  o) Os factos que ofereçam respaldo a esta previsão, não podem ser do passado, 
 ou seja os mesmos tinham de se consubstanciar na vigência da Lei nº 6/2001 de 
 
 11/05, sob pena de retroactividade desta norma. 
 p) Ao julgar-se improcedente a acção e confirmou-se a mesma pelo Acórdão sub 
 judice atribuindo-se o direito ao Recorrido D. ao arrendamento, por aplicação da 
 al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, declaram-se efeitos retroactivos a esta, uma 
 vez que quando a E. faleceu a lei tinha sido publicada à poucos dias 
 
 (11/05/2001), pelo que se fez incorrecta interpretação dos comandos do nº 2 do 
 art. 12º do Cód. Civil conjugados com aquela al. f). 
 q) Finalmente, mesmo que assim não seja, os comandos constantes daquela al. f) 
 do nº 1 do art. 85º do RAU, pela redacção dada pelo artigo 6º da Lei nº 6/2001, 
 de 11/05, que permite que um contrato de arrendamento se possa transmitir até ao 
 infinito, não deixa de ser inconstitucional.
 r) Assim, o art. 6º da Lei nº 6/2001 a al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, (não 
 podem deixar de ofender o direito de propriedade e, além do mais, os artigos 18º 
 e 62º e a al. c) do nº 2 do art, 65º todos da Constituição da República e art. 
 
 17º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão; art. 17º da Declaração 
 Universal dos Direitos do Homem e 1º do Protocolo, nº 1 Adicional à Convenção da 
 Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, por força do art. 
 
 8º e 16º da Const. da Rep., pelo que deve ser julgada inconstitucional.
 
  
 
 4. Em 22 de Abril de 2004, foi proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça o 
 acórdão que constitui a decisão recorrida nos presentes autos, o qual confirmou 
 as decisões das outras instâncias. Para além de se pronunciar no sentido da não 
 inconstitucionalidade da norma da alínea f) do nº 1 do artigo 85º do RAU, o 
 acórdão recorrido argumentou, para o que agora releva, pela forma seguinte:
 
  
 
 «Em correspondência parcial com o que se dispunha no art. 1109° do C.Civil, veio 
 o art. 76°, n° 1, al. a), do RAU estabelecer que podem residir no arrendado 
 todos os que vivam com o arrendatário em economia comum.
 Por sua vez, o art. 90°, n° 1, al. a), do mesmo diploma, conferia às pessoas 
 naquela situação, quando convivessem com o arrendatário há mais de cinco anos, o 
 direito a novo arrendamento, no caso de caducidade do contrato por morte deste, 
 salvo se habitassem o local arrendado por força de negócio jurídico não 
 directamente respeitante à habitação.
 Todavia, revogando parcial e tacitamente o disposto naquele art. 90°, n° 1, al. 
 a), veio o art. 85°, n° 1, al. f) (alínea aditada pela Lei n° 6/2001, de 11 de 
 Maio) conferir às pessoas que vivessem em economia comum com o arrendatário há 
 mais de dois anos, o direito à transmissão do arrendamento, que, nessa medida, 
 não caducaria por falecimento do inquilino (…). 
 Ora, as normas citadas apropriaram-se do conceito de economia comum que vinha do 
 antecedente, se bem que estabelecendo uma presunção juris et de jure de vivência 
 em economia comum com o arrendatário a favor dos seus parentes ou afins na linha 
 recta ou até ao 3° grau da linha colateral, ainda que pagassem alguma 
 retribuição, e bem assim a favor das pessoas relativamente às quais, por força 
 de lei ou negócio jurídico que não respeite directamente à habitação, haja 
 obrigação de convivência ou de alimentos (Cfr. arts. 1109°, n° 2, do C.Civil e 
 
 76°, n° 2, do RAU).
 Sem embargo de se haver consignado no art. 2° (daquela Lei n° 6/2201) que se 
 entende por “economia comum a situação de pessoas que vivam em comunhão de mesa 
 e habitação há mais de dois anos e tenham estabelecido uma vivência em comum de 
 entreajuda ou partilha de recursos” (n° 1) e que “o disposto na presente lei é 
 aplicável a agregados constituídos por duas ou mais pessoas, desde que pelo 
 menos uma delas seja maior de idade” (nº 2).
 Por isso, e no que respeita às restantes pessoas (que não gozam da presunção de 
 convivência em economia comum) só terão as mesmas direito à transmissão do 
 arrendamento, que não caducará por morte do arrendatário, se alegarem e provarem 
 que com o arrendatário viviam, há mais de dois anos, em situação de economia 
 comum (art. 6° da Lei n° 6/2001, de 11 de Maio, que introduziu no texto do n° 1 
 do art. 85° do RAU, a alínea f), abrangendo, com a intenção de proteger as 
 pessoas que vivem em economia comum – art. 1º, n° 1 - tal situação).
 Já há muito se vem entendendo que “viver em economia comum será conviver com 
 interdependência de cómodos, de meios e interesses o que não exige seja um só a 
 suportar as despesas, pois todos podem contribuir para estas numa união de 
 interesses” (…).
 Conviver “é, efectivamente, viver em intimidade com alguém, sob o mesmo tecto” 
 
 (…), embora o conceito de economia comum se não esgote nem deva ter-se como 
 demonstrado com esta simples definição (…). 
 Na verdade, “comungar da mesma economia comum implica uma ligação mais profunda 
 entre as pessoas”, traduzindo um estado de facto que supõe a existência de um 
 animus ou espírito de ligação à coisa e às pessoas affectio, e que determina, em 
 
 última análise, o desejo de ligação ou de abandono definitivo da casa onde se 
 habita (…).
 A economia comum pressupõe, assim, “uma comunhão de vida, com base num lar em 
 sentido familiar e moral, uma vivência em conjunto com uma especial affectio ou 
 ligação entre as pessoas… com sujeição a uma economia doméstica, contribuindo 
 todos, ou só alguns para os gastos comuns” (…).
 Dado o exposto, e atentos os factos provados, não pode deixar de concluir-se que 
 o réu D. vivia em economia comum com a falecida arrendatária (e isso apesar de 
 ser filho da empregada doméstica, se bem que num estado cultural e 
 civilizacional em que as “criadas” se integravam na família alargada dos 
 patrões): nasceu quando a E. era septuagenária e viúva, estando os seus filhos 
 casados e ausentes de casa, tendo esta aceitado ser madrinha dele e chamando a 
 si a tarefa de lhe ensinar as primeiras regras de comportamento; reside no 
 locado, com a falecida arrendatária, ininterruptamente, desde o seu nascimento, 
 há mais de 19 anos (juntamente com a sua mãe, empregada doméstica da falecida 
 E.) com ela partilhando o espaço habitacional daquela fracção, desfrutando do 
 seu enlevo e carinho, que se lhe afeiçoou como se de um neto consanguíneo se 
 tratasse; iniciado o ensino básico, era a sua madrinha, professora primária, que 
 o acompanhava nos trabalhos escolares, esclarecendo dúvidas e estabelecendo 
 horários e metas de estudo; era a E. que lhe pagava os livros e demais material 
 escolar de que carecia, encargo que assumiu durante toda a vida académica do réu 
 D. e até à sua morte; presenteava o afilhado nas épocas festivas de Natal, 
 Páscoa e nos aniversários; estavam ligados por um forte vínculo afectivo, que 
 levou o réu D., desde menino, a tratá-la como avó; terminada a escola, fazia 
 companhia à madrinha, acarinhando-a, animando-a, mormente nos momentos de 
 tristeza e abatimento de pessoa idosa; chegado à adolescência era o réu D. que, 
 a pedido da E., se ocupava da contabilidade doméstica e era ele que efectuava os 
 pagamentos com o dinheiro que a madrinha lhe dava; era frequente acompanhar a E. 
 em curtos passeios a pé pelas redondezas, sobretudo aos fins-de-semana; nos 
 períodos de doença da madrinha era o D. que passava horas à sua cabeceira, mesmo 
 durante a noite, dava-lhe os remédios, mimava-a e incutia-lhe ânimo; nos últimos 
 anos de vida, a nonagenária movimentava-se com dificuldade e já não saía de 
 casa, sendo o D. que levava a madrinha a fazer leves exercícios físicos para 
 impedir a paralisação dos membros; o réu (sua mãe) e a E. tomavam as refeições 
 em conjunto, à mesma mesa, desenvolvendo-se entre ambos uma relação de avó e 
 neto, cimentada pela vivência em comum e pela partilha de interesses, alegrias e 
 tristezas.
 Parece, pois, indubitável, que entre a E. e o réu foi estabelecida (e manteve-se 
 durante 19 anos) uma relação de convivência quase familiar, uma espécie de 
 adopção de facto, que, sem qualquer dúvida, se integra no conceito de economia 
 comum, susceptível, agora, de justificar a transmissão, para o réu, do 
 arrendamento».
 
  
 
 5. Foi então interposto recurso para este Tribunal, mediante requerimento do 
 qual se extrai o seguinte:
 
  
 
 «(…) que[r] na al. D) das suas alegações de recurso de Apelação, dirigidas ao 
 Superior Tribunal da Relação de Coimbra, quer no item III, da al. b) sobre as 
 questões jurídicas da rubrica C) das alegações apresentadas neste Superior 
 Tribunal, dirigidas ao Supremo, a recorrente arguiu a inconstitucionalidade da 
 norma constante da al. f) do n° 1 do art. 85° do RAU, por ofender, além do mais 
 os artigos 18°, 62° e 65° todos da Constituição da República.
 E no Acórdão subjudice foi esta questão analisada, tendo merecido a negação do 
 provimento, o qual não podem aceitar.
 Face ao exposto, requer a V.Exa. que seja admitido o competente recurso para o 
 Tribunal Constitucional, seguindo-se os consabidos termos».
 
  
 
 6. Notificada para alegar, a recorrente sustentou e concluiu, nomeadamente, que:
 
  
 
 « (…) como já se demonstrou em anteriores alegações, não existia nenhuma norma 
 que permitisse aquela transmissão, naquelas condições, ou seja aplicar a quem 
 
 “vivesse em economia comum há mais de dois anos”. Pois aquela norma da al. e) 
 foi criada e publicada antes de perfazer um mês após o falecimento da 
 arrendatária, e por isso, não deixa de se estar a aplicar retroactivamente, sem 
 que a lei, sequer o determine, uma vez que levou em conta o espaço de tempo 
 decorrido sem que a norma estivesse em vigor.
 Ora a aplicação da al. e) do nº 1 do artigo 85ºdo RAU, criada pela Lei nº 
 
 6/2001, não pode deixar de ser, não só ilegal, como também inconstitucional, 
 como aliás o declara o Dr. Pinto Furtado, quando sobre esta questão, diz:
 
 «Convém, quanto à facti species da al. e) do art. 85-1 RAU, enfrentar o problema 
 da sua aplicação no tempo. Constituindo um alargamento do espaço vinculístico, 
 não deve aplicar-se, se bem nos parece, aos contratos existentes à data da sua 
 inovação legislativa, operada, aliás, quando não subsistiam já condições 
 excepcionais que requeressem a imposição assintáctica de um vínculo conjuntural 
 de interesse público. A nova providência legal estabeleceu-se, com efeito, 
 estritamente para atender a uma exigência de justiça distributiva no confronto 
 entre união legal e união de facto – devendo, por conseguinte, reger unicamente 
 para o futuro. Não se contempla aqui o conteúdo de uma relação, 
 independentemente do facto que lhe seu origem (2ª parte do nº 2 do art. 12 CC), 
 mas o efeito de um facto que é previsto de novo (1ª parte do mesmo número); 
 logo, não deve ter tal previsão eficácia retroactiva.
 Acresce que a interpretação da lei no sentido da sua aplicação imediata aos 
 contratos existentes, além de liminarmente violar o princípio da lei do 
 contrato, seria ainda materialmente inconstitucional, à luz das ideias que a seu 
 tempo tivemos ensejo de enunciar acerca do vinculismo arrendatício …»
 
 (Manual do Arrendamento Urbano, 3ª Edição, pág. 503)
 
  
 Pois esta al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, interpretada em termos absolutos, 
 não podia deixar de violar gravemente o direito de propriedade dos senhorios, 
 previsto, além do mais, nos arts. 18º e 62º da Const. da Rep. e art. 17º da 
 Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão; art. 17º da Declaração Universal 
 dos Direitos do Homem e 1º do Protocolo, nº 1 Adicional à Convenção da Protecção 
 dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, por força do art. 8º e 16º 
 da Const. da Rep.
 Na verdade, o Recorrido parece pretender que uma qualquer coabitação de uma 
 pessoa estranha ao arrendatário com o mesmo, pelo período de dois anos, permite 
 a transmissão, em caso de morte daquele, do contrato de arrendamento a este, ou 
 seja sem qualquer manifestação pessoal do proprietário e até acontecido antes da 
 norma entrar em vigor.
 O que não deixava de levar a que, por exemplo, uma qualquer anciã arrendatária 
 de certa idade pudesse aliciar um jovem a com ela conviver ou até com ela 
 partilhar as refeições a troco da sua companhia, durante dois anos, ficando logo 
 esta com o direito a vir a ser legal arrendatária pelo resto da sua vida, 
 renegando os direitos dos senhorios à propriedade, com uma compressão 
 intolerável.
 Pois não se pode esquecer que Constituição da República, na al. c) do nº 2 do 
 art. 65º, determina ao Estado, no campo do à habilitação [direito à habitação] o 
 seguinte:
 
 «2. Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado:
 
             a).........
 
             b).........
 c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o 
 acesso à habitação própria ou arrendada;»     
 
  
 Pelo que a al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, na interpretação externa que se 
 retirou da mesma o Recorrido, estendendo o direito a puras coabitações, não pode 
 deixar de violar o nº 1 do art. 62º daquela Lei Fundamental.
 Logo, a referida norma da al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, na redacção que lhe 
 foi dada pelo art. 6º da Lei nº 6/2001 de 11/05, não pode deixar de violar os 
 comandos do art. 18º, nº 1 do art. 62º e a al. c) do nº 2 do art. 65º todos da 
 Constituição da República, assim como as normas referidas no primeiro parágrafo 
 
 (…).
 E - CONCLUSÕES
 a) Em tais decisões, fez-se errada interpretação dos comandos constantes daquela 
 al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, violando o nº 1 do art. 12º do Cód. Civil, 
 uma vez que a lei aplicável não podia deixar de ser a vigente à data do 
 arrendamento, por se estar perante uma relação jurídica contratual ou locatícia.
 b) Mesmo que assim não se entendesse, uma lei publicada em 11/05/2001, sem que 
 nele se determine efeitos retroactivos, a qual veio acrescentar a al. f) do nº 1 
 do art. 85º do Rau, para haver direito à transmissão, exige não só uma 
 verdadeira convivência em economia comum, mas também que ele tenha existido há 
 mais de dois anos.
 c) Os factos que ofereçam respaldo a esta previsão, não podem ser do passado, ou 
 seja os mesmos tinham de se consubstanciar na vigência da Lei nº 6/2001 de 
 
 11/05, sob pena de retroactividade desta norma.
 d) Ao julgar-se improcedente a acção e confirmou-se a mesma pelo Acórdão sub 
 judice atribuindo-se o direito ao Recorrido D. ao arrendamento, por aplicação da 
 al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, declaram-se efeitos retroactivos a esta, uma 
 vez que quando a E. faleceu a lei tinha sido publicada à poucos dias 
 
 (11/05/2001), pelo que se fez incorrecta interpretação dos comandos do nº 2 do 
 art. 12º do Cód. Civil conjugados com aquela al. f), a qual nem sequer deve ser 
 considerado vigente.
 e) Finalmente, mesmo que assim não seja, os comandos constantes daquela al. f) 
 do nº 1 do art. 85º do RAU, pela redacção dada pelo artigo 6º da Lei nº 6/2001, 
 de 11/05, que permite que um contrato de arrendamento se possa transmitir até ao 
 infinito, não deixa de ser inconstitucional.
 f) Assim, o art. 6º da Lei nº 6/2001 a al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, não 
 podem deixar de ofender o direito de propriedade e, além do mais, os artigos 18º 
 e 62º e a al. c) do nº 2 do art. 65º todos da Constituição da República e art. 
 
 17º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão; art. 17º da Declaração 
 Universal dos Direitos do Homem e 1º do Protocolo, nº 1 Adicional à Convenção da 
 Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, por força do art. 
 
 8º e 16º da Const. da Rep., pelo que deve ser julgada inconstitucional».
 
  
 
 7. Os recorridos contra-alegaram, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, 
 no que concerne ao juízo de não inconstitucionalidade aí formulado.
 
  
 
 8. Em cumprimento do disposto no artigo 704º, nº 1, do Código de Processo Civil, 
 aplicável por força do artigo 69º da LTC, a recorrente e os recorridos foram 
 notificados da possibilidade de ser proferida decisão de não conhecimento do 
 objecto do recurso, por falta de um dos requisitos do recurso de 
 constitucionalidade previsto na alínea b), do nº 1, do artigo 70º da LTC: a 
 aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja 
 constitucionalidade foi questionada pela recorrente.
 A recorrente respondeu, nos seguintes termos:
 
  
 
 “a) Se bem entendemos o Despacho acima referido, este Tribunal, como é habitual, 
 uma vez mais, quer deixar de julgar a questão de fundo.
 b) Aliás o patrono da Herança já está habituado a tal comportamento deste 
 Superior Tribunal, que devia ser chamado um Conselho Constitucional e não um 
 Tribunal, face a tal comportamento.
 c) Na verdade, como se pode ver pelo Despacho, o tribunal sabe qual é a 
 pretensão da Recorrente Herança, pois é nítido e expresso o que se desejava 
 saber, uma vez que esta tem direito a ser vencida, mas também convencida de que 
 a al. f) do art. 85° do RAU, introduzida pela Lei n° 6/2001 de 11/05 a este 
 artigo é ou não constitucional, ou seja se não viole o art. 62° da Const. 
 República.
 d) Na verdade, nos autos sub judice verifica-se que a arrendatária faleceu em 
 
 05/06/2001, e com data de 11/05/2001 foi publicada a Lei n° 6/2001, a qual veio 
 introduzir a referida al. f) do art. 85° da RAU, que proclamou:
 
 «f) Pessoas que com ele vivessem em economia comum há mais de dois anos.»
 
  
 e) Ora, se tem de existir uma convivência em economia comum há mais de dois 
 anos, e a arrendatária faleceu em 05/06/2001 e a lei foi publicada em 
 
 11/05/2001, não deixa de se estar a aplicar retroactivamente uma Lei, não só 
 quanto à matéria do contrato de arrendamento, mas também levar à consideração um 
 espaço de tempo em que a lei não era vigente, violando-se, além do mais, o art. 
 
 62° da Constituição da República, pois aqueles dois anos só podiam ser contados 
 após a data de falecimento da arrendatária (11/05/2001).
 f) A questão colocada é liminarmente explícita e compreensível e a Herança tinha 
 direito a saber se tal interpretação violava ou não os próprios comandos 
 apontados, ou os princípios constitucionais.
 g) Aliás, o direito de propriedade encontra-se inserido no TÍTULO III que tem 
 por epígrafe “Direitos e Deveres Económicos, Sociais e Culturais”, e os Profs. 
 Jorge Miranda e Rui Medeiros, em anotação ao art. 62° da Constituição, referem:
 
  
 
 «1°) O direito de propriedade é deslocado do elenco dos direitos, liberdades e 
 garantias para os direitos económicos, sociais e culturais – O que, sem bulir 
 com a sua estrutura essencial, tem assinaláveis repercussões sistemáticas.»
 
 (Constituição Portuguesa Anotada - Tomo I, pág. 626)
 
  
 
             Para depois concluírem:
 
 «Há uma garantia institucional da propriedade no sentido de que seria 
 inconstitucional a lei ordinária reduzir os direitos das pessoas sobre as coisas 
 ao usufruto ou a outros direitos reais menores; a lei civil tem de conter um 
 direito de propriedade com o feixe de poderes de uso, fruição e disposição que 
 lhe são inerentes na tradição jurídica e cultural do nosso país (artigo 2167° do 
 Código Civil de 1867 e artigo 1305° do Código de 1966).»
 
 (Ibidem, pág. 627)
 
  
 h) Isto não deixaria de ser suficiente para que se julgasse a questão, mas nesta 
 república “terceiro-mundista”, que alguns já apelidam das “bananas”, cultiva-se 
 o sindroma de matar processos, sem se julgar o fundo das questões.
 i) Aliás as reformas processuais têm apontado no sentido inverso, ou seja de que 
 
 é necessário acabar com as chamadas “incompetências”, para através destas não se 
 conhecerem o fundo das pretensões, mas ninguém leva esta ideia a preceito, 
 veja-se o que está a acontecer na Nova Ordem jurídica do processo 
 administrativo.
 j) E este Superior Tribunal é um exemplo acabado desta ideia, como se pode 
 verificar pelo que aconteceu nos Processos n° 466/05, 2ª Secção e Processo n° 
 
 754/05 da 3ª Secção, etc. , etc.
 i) Pelo que há que aceitar esta realidade, que nada tem a ver com a “justiça” 
 que se deve processar, pois o art. 204° da Constituição da República proclama:
 
  
 
 «Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que 
 infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.»
 
  
 m) Aliás desde há muito o Prof. Vital Moreira defende o que pedimos para 
 transcrever:
 
 «... segundo o artigo 51°, n° 5, da Lei n° 28/82, o Tribunal Constitucional pode 
 declarar a inconstitucionalidade com fundamento “em normas ou princípios 
 constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada” estando portanto 
 obrigado a apreciar todos os fundamentos que eventualmente sejam invocados na 
 discussão no próprio Tribunal).»
 
  
 Portanto estão criadas todas as condições para este tribunal julgar a questão de 
 fundo, mas contra factos não existem argumentos e não deixamos de estar perante 
 mais um não conhecimento do fundo da questão”.
 
  
 Tendo havido mudança de relator, em consequência de alteração da composição do 
 Tribunal, cumpre apreciar e decidir.
 
  
 II. Fundamentação
 
 1. Atendendo ao conteúdo do requerimento de interposição de recurso para o 
 Tribunal Constitucional, a recorrente pretende a apreciação da norma constante 
 da alínea f) do nº 1 do artigo 85º do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), por 
 ofender, além do mais os artigos 18º, 62º e 65º da Constituição da República.
 
 É o seguinte o teor deste artigo, na redacção introduzida pela Lei nº 6/2001, de 
 
 11 de Maio (que adopta medidas de protecção das pessoas que vivam em economia 
 comum):
 
  
 
 “Artigo 85º
 Transmissão por morte
 
  
 
 1. O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário 
 ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver:
 a) Cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto;
 b) Descendente com menos de um ano de idade ou que com ele convivesse há mais de 
 um ano;
 c) Pessoa que com ele viva em união de facto há mais de dois anos, quando o 
 arrendatário não seja casado ou esteja separado judicialmente de pessoas e bens;
 d) Ascendente que com ele convivesse há mais de um ano;
 e) Afim na linha recta, nas condições referidas nas alíneas b) e c);
 f) Pessoas que com ele vivessem em economia comum há mais de dois anos.
 
 2. (…).
 
 3. (…).
 
 4. A transmissão a favor dos parentes ou afins também se verifica por morte do 
 cônjuge sobrevivo quando, nos termos deste artigo, lhe tenha sido transmitido o 
 direito ao arrendamento” (itálico aditado).
 
  
 
 2. Das peças processuais indicadas no requerimento de interposição de recurso, 
 em cumprimento do disposto no artigo 75º-A, nº 2, da LTC, resulta que a 
 recorrente questionou a constitucionalidade da alínea f) do nº 1 do artigo 85º 
 do RAU, quando interpretada no sentido de o arrendamento para habitação não 
 caducar por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida 
 a sua posição contratual, se lhe sobreviver pessoa que com ele coabitasse há 
 mais de dois anos.
 Nas alegações do recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra, pode 
 ler-se que:
 
  
 
 “(…) o Réu parece pretender que uma qualquer coabitação de uma pessoa estranha 
 ao arrendatário com o mesmo, pelo período de dois anos, permite a transmissão, 
 em caso de morte daquele, do contrato de arrendamento a este;
 
 (…) Isto, daria azo a que, por exemplo, uma qualquer anciã arrendatária de certa 
 idade pudesse aliciar uma jovem a com ela conviver ou até com ela partilhar as 
 refeições a troco da sua companhia, durante dois anos, ficando logo esta com o 
 direito a vir a ser legal arrendatária pelo resto da sua vida, renegando os 
 direitos dos senhorios proprietários, com uma compressão intolerável;
 
 (…) por sua vez, o nº 1 do art. 62º da mesma Lei Fundamental não pode deixar de 
 ser violada pela al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, na interpretação externa que 
 pretendem retirar da mesma os RR., estendendo o direito a puras coabitações; E, 
 pela sentença sub judice julgou-se improcedente a acção e declarou-se o Réu 
 D.com direito à transmissão, sem que se tenha provado a existência de 
 convivência em economia comum” (itálico aditado).
 
  
 
  Nas alegações do recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, alega a 
 recorrente, de novo, que:
 
  
 
 “(…) o Recorrido parece pretender que uma qualquer coabitação de uma pessoa 
 estranha ao arrendatário com o mesmo, pelo período de dois anos, permite a 
 transmissão, em caso de morte daquele, do contrato de arrendamento a este, ou 
 seja sem qualquer manifestação pessoal do proprietário.
 O que não deixava de levar a que, por exemplo, uma qualquer anciã arrendatária 
 de certa idade pudesse aliciar uma jovem a com ela conviver ou até com ela 
 partilhar as refeições a troco da sua companhia, durante dois anos, ficando logo 
 esta com o direito a vir a ser legal arrendatária pelo resto da sua vida, 
 renegando os direitos dos senhorios proprietários, com uma compressão 
 intolerável;
 
 (…) por sua vez, o nº 1 daquele art. 62º da mesma Lei Fundamental não pode 
 deixar de ser violada pela al. f) do nº 1do art. 85º do RAU, na interpretação 
 externa que pretendem retirar da mesma o Recorrido, estendendo o direito a puras 
 coabitações (…).
 E, pela sentença da 1ª Instancia julgou-se improcedente a acção e declarou-se o 
 Réu D. com direito à transmissão, sem que se tenha provado a existência de uma 
 verdadeira convivência em economia comum, e pelo Acórdão sub judice confirmou-se 
 a mesma”.
 
  
 Abonam, ainda, no sentido de que a recorrente pretendeu questionar a 
 constitucionalidade da alínea f) do nº 1 do artigo 85º do RAU, quando 
 interpretada no sentido apontado, as alegações produzidas neste Tribunal:
 
  
 
 “Na verdade, o Recorrido parece pretender que uma qualquer coabitação de uma 
 pessoa estranha ao arrendatário com o mesmo, pelo período de dois anos, permite 
 a transmissão, em caso de morte daquele, do contrato de arrendamento a este, ou 
 seja sem qualquer manifestação pessoal do proprietário e até acontecido antes da 
 norma entrar em vigor.
 O que não deixava de levar a que, por exemplo, uma qualquer anciã arrendatária 
 de certa idade pudesse aliciar um jovem a com ela conviver ou até com ela 
 partilhar as refeições a troco da sua companhia, durante dois anos, ficando logo 
 esta com o direito a vir a ser legal arrendatária pelo resto da sua vida, 
 renegando os direitos dos senhorios à propriedade, com uma compressão 
 intolerável (…).
 Pelo que a al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, na interpretação externa que se 
 retirou da mesma o Recorrido, estendendo o direito a puras coabitações, não pode 
 deixar de violar o nº 1 do art. 62º daquela Lei Fundamental” (itálico aditado).
 
  
 Ora, a decisão recorrida – o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de 
 Abril de 2004 – interpretou a alínea f) do nº 1 do artigo 85º do RAU no sentido 
 de o arrendamento para habitação não caducar por morte do primitivo arrendatário 
 ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver 
 pessoa que com ele vivesse em economia comum há mais de dois anos, aplicando-a 
 ao caso dos autos depois de dar como provada a situação de economia comum. É 
 demonstrativo desta mesma interpretação, o cuidado posto na definição do 
 conceito de “economia comum” e a consequente não sobreposição deste ao de 
 
 “coabitação” (cf. supra ponto 4. do Relatório).
 Com efeito, resulta do teor da decisão recorrida que, para os efeitos previstos 
 na Lei nº 6/2001, “entende-se que vivem em economia comum as pessoas ‘que vivam 
 em comunhão de mesa e habitação há mais de dois anos e tenham estabelecido uma 
 vivência em comum de entreajuda ou partilha de recursos’ (art. 2º, nº 1). Pode 
 tratar-se de familiares ou de estranhos, de pessoas de sexo diferente ou do 
 mesmo sexo, de duas ou de mais de duas pessoas, desde que pelo menos uma delas 
 seja maior (…). Por falta de uma ‘vivência em comum de entreajuda ou partilha de 
 recursos’ não há ‘vida em economia comum’ nas situações previstas, 
 designadamente, nas als. a) e b) do art. 3º Note-se que a ‘entreajuda’ e a 
 
 ‘partilha de recursos’ estão postas em alternativa na definição da lei. Não se 
 exige pois que as pessoas ponham em comum os seus rendimentos e recursos; é 
 suficiente uma vivência em comum de ‘entreajuda’, em que as pessoas vivem em 
 comunhão de mesa e habitação contribuindo para os respectivos encargos” (Pereira 
 Coelho/Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, 2001, p. 117; 
 itálico aditado).
 
  
 
 3. Assim sendo, na medida em que a decisão recorrida não interpretou e aplicou a 
 alínea f) do nº 1 do artigo 85º do RAU no sentido de o arrendamento para 
 habitação não caducar por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem 
 tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver pessoa que com ele 
 coabitasse há mais de dois anos, não se verifica um dos requisitos do recurso de 
 constitucionalidade que a recorrente pretendeu interpor, o que obsta ao 
 conhecimento do objecto do mesmo.
 Conforme jurisprudência reiterada e uniforme do Tribunal Constitucional, um dos 
 requisitos do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 do 
 artigo 70º da LTC é “a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, 
 da norma cuja constitucionalidade é questionada pela recorrente”. E bem se 
 compreende que assim seja, pois a “exigência, de que a norma aplicada constitua 
 o fundamento da decisão recorrida, resulta do facto de só nesse caso a decisão 
 da questão de constitucionalidade poder reflectir-se utilmente no processo. 
 Sendo a referência à norma questionada mero obter dictum, ou existindo na 
 decisão recorrida outro fundamento, por si só, bastante para essa decisão, a 
 intervenção do Tribunal Constitucional na apreciação da conformidade 
 constitucional da norma impugnada não se reflectirá utilmente no processo, uma 
 vez que sempre a decisão recorrida seria a mesma, ainda que a norma questionada 
 seja declarada inconstitucional” (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 
 
 497/99, não publicado, e, no mesmo sentido, entre outros, os Acórdãos nºs 
 
 367/94, Diário da República, II Série, de 7 de Setembro de 1994, 496/99, não 
 publicado, 674/99, Diário da República, II Série, de 25 de Fevereiro de 2000, 
 
 155/2000, Diário da República, II Série, de 9 de Outubro de 2000, e 418/01, não 
 publicado).
 
  
 
 4. Destaque-se, ainda, que a recorrente não contraria o conteúdo do despacho 
 pelo qual foi notificada da possibilidade de ser proferida decisão de não 
 conhecimento do objecto do recurso, incidindo a resposta sobre matéria de 
 aplicação da lei no tempo. Nesta peça processual, a recorrente retomou o 
 problema da declaração de efeitos retroactivos à alínea f) do nº 1 do artigo 85º 
 do RAU a que as instâncias procederam ao julgar improcedente a acção, por si já 
 abordado, do ponto de vista jurídico-constitucional, nas alegações produzidas 
 neste Tribunal. Sucede, porém, que tal questão não integra o objecto do presente 
 recurso (artigos 70º, nº 1, alínea b), 71º, nº 1, e 72º, nº 2, da LTC), uma vez 
 que não foi enunciada no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal 
 Constitucional (peça processual que fixa o objecto deste, impedindo que o 
 recurso de constitucionalidade seja posteriormente ampliado), nem de forma 
 directa nem por remissão para as alegações do recurso de apelação ou para as 
 alegações do recurso de revista.
 
  
 III. Decisão
 Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.
 Custas pela recorrente, fixando-se em 15 (quinze ) unidades de conta a taxa de 
 justiça.
 Lisboa,  17 de  Janeiro de 2006
 Maria João Antunes
 Carlos Pamplona de Oliveira
 Maria Helena Brito
 Rui Manuel Moura Ramos
 Artur Maurício