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Processo nº 580/2007
 
 3ª Secção
 Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
 
 
 Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
 
 
 I
 Relatório
 
  
 
 1.  A. e marido, B., interpuseram, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º 
 da Lei nº 28/82, recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal 
 da Relação de Lisboa que, julgando improcedente o recurso de apelação por eles 
 apresentado, manteve a decisão proferida, em Fevereiro de 2006, pelo Tribunal 
 Judicial de Oeiras. Tal decisão declarara denunciado, a pedido do senhorio – que 
 afirmara necessitar do locado para sua própria habitação –, o contrato de 
 arrendamento outorgado por A., condenando em consequência os ora recorrentes ao 
 despejo da casa que habitavam. 
 No recurso de apelação que interpuseram junto do Tribunal da Relação, alegaram 
 A. e marido que, encontrando-se o segundo «doente e incapacitado para o 
 trabalho», e «sofrendo uma incapacidade de 70%», seria ao caso aplicável o 
 disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 107º do Regime de Arrendamento Urbano 
 
 (RAU), que prevê, como limitações ao direito de denúncia pelo senhorio, 
 situações de «invalidez», «incapacidade total para o trabalho» ou «deficiência 
 superior a dois terços» por parte do arrendatário; e que era inconstitucional, 
 por violação dos artigos 13º, 36º, 63º e 67º da CRP, a interpretação que a 
 decisão recorrida fizera da norma do RAU, interpretação essa segundo a qual 
 
 «[a]s circunstâncias referidas na alínea a) do nº 1 do artigo 107º do RAU se 
 reportam, como tem sido decidido pelos tribunais, [só] ao inquilino e não ao seu 
 cônjuge». (fls. 797 dos autos). 
 
  
 
 2.  À questão de constitucionalidade, assim suscitada, respondeu o Tribunal da 
 Relação de Lisboa:
 
  
 
 «Seguindo agora as normas da Constituição da República Portuguesa que a 
 recorrente invoca em sustento da sua tese. 
 Não acode violação de princípio constitucional da igualdade – art°13 da CRP, ao 
 distinguir-se aquilo que por opção legislativa foi tratado de diferente maneira. 
 
 
 Isto é, querendo o legislador limitar o senhorio no exercício da denúncia, 
 comparando a situação de necessidade daquele e do direito de propriedade que se 
 sobrepõe ao direito de locação, estabeleceu, com clareza, as circunstâncias em 
 que essa faculdade deve recuar, à luz dos interesses da pessoa do arrendatário, 
 pois que, afinal foi com ele que contratou, independentemente do seu estado 
 civil, contrato que, ademais, não carece da intervenção do cônjuge, em caso de 
 ser casado. 
 O argumento do litisconsórcio necessário dos cônjuges em acção de despejo tem na 
 génese a relevância do interesse comum ao casal e da própria restrição na 
 actuação de cada um dos cônjuges na relação jurídica do casamento, (veja-se o 
 exemplo paralelo nas acções dispositivas dos comproprietários) não servindo, por 
 conseguinte, para contextualizar a razão da interpretação do preceito em 
 análise. 
 O legislador é peremptório na sua opção legislativa, o contrato de arrendamento 
 para habitação é incomunicável ao cônjuge do arrendatário – art° 83 do RAU; 
 logo, aí se detecta razão bastante que justifica a diferenciação da pessoa do 
 arrendatário e do seu cônjuge no preceito ora em discussão, o art°107 do RAU. 
 Ora, reconhecendo embora, a ampla tutela legal da família constituída com base 
 no casamento, e do seu tratamento como realidade jurídica autónoma e consequente 
 em múltiplas situações, não existe na situação do preceito em análise, motivo 
 que evidencie que outra foi a intenção do legislador; isto é, o legislador quis 
 distinguir, a idade, a invalidez e a incapacidade mas por referência à pessoa do 
 arrendatário, como limites ao exercício da denúncia. 
 Igualar, como pretende a recorrente, os efeitos da situação da arrendatária à 
 circunstância da pessoa do seu marido, constituiria, salvo melhor opinião, 
 arbítrio do intérprete, derrubando a previsão de diferenciação de tratamento 
 jurídico, que não se ancora em fundamento razoável. 
 Hipotizando a situação da família constituída à margem do vínculo do matrimónio, 
 enfrentaríamos nova perplexidade na pretendida extensão do regime de limites do 
 art°107 do RAU, pois, apesar de a Constituição da República Portuguesa 
 reconhecer a família para além do casamento, e a lei ordinária atribuir efeitos 
 jurídicos paralelos às uniões de facto, seria, mais uma vez, inviável a 
 interpretação extensiva que a recorrente propõe como solução justa para o 
 litígio. 
 Por fim, noutra perspectiva, não poderá considerar-se violação do disposto no 
 art° 65 da Lei Fundamental, a propósito do direito à habitação, como direito 
 fundamental de natureza social, cuja efectividade está dependente da “ reserva 
 do possível”. 
 De igual modo, não cremos que, a interpretação do preceito propugnada na decisão 
 em recurso conflitue com o princípio – dever da protecção aos portadores de 
 deficiência a que se refere o art° 71, n° 2 da CRP, visto que, a prossecução 
 dessa obrigação do Estado há-de obter-se à custa de políticas adequadas que não 
 podem passar por contender com direitos de terceiro expressamente consagrados na 
 lei.» (fls. 941-43 dos autos)
 
  
 
  
 
             Foi portanto desta decisão – que assim aplicou norma cuja 
 inconstitucionalidade havia sido suscitada durante o processo – que recorreram 
 A. e marido. Nos termos do requerimento de recurso apresentado (fls. 953 dos 
 autos), pediram os recorrentes que o Tribunal apreciasse a constitucionalidade 
 da norma contida na alínea a) do nº 1 do RAU, quando interpretada no sentido «em 
 que apenas o cônjuge que outorgou o contrato de arrendamento pode invocar as 
 circunstâncias previstas no citado normativo». No seu entendimento, tal 
 interpretação da norma seria inconstitucional, por violação dos princípios 
 decorrentes dos artigos 13º, 36º, 63º (por lapso: referiam-se ao artigo 64º) e 
 
 67º da lei Fundamental. 
 
  
 
             3.  Admitido o recurso no Tribunal Constitucional, nele apresentaram 
 alegações recorrentes e recorrida.
 Disseram os primeiros, essencialmente, que a norma aplicada pelo Tribunal da 
 Relação, para além de «colocar direitos e situações de vida pendentes de acasos 
 do destino de modo aleatório», seria antes do mais lesiva do princípio da 
 igualdade contido no artigo 13º da CRP. Ao entender que as circunstâncias 
 pessoais (i.a. invalidez e incapacidade para o trabalho), previstas pelo RAU 
 como limitações ao direito do senhorio de denúncia do contrato de arrendamento, 
 seriam apenas aquelas que afectassem a pessoa do inquilino e não o seu cônjuge, 
 a referida norma ou interpretação normativa estaria, afinal, a eleger como 
 
 «elemento diferenciador da qualificação jurídica» um «acto» que seria «de relevo 
 mínimo» (ou seja, a outorga do contrato de arrendamento por apenas um dos 
 cônjuges), pelo que de tal interpretação normativa decorreria a criação «de uma 
 situação profundamente desigual para quem é igual». 
 Além disso – e por estar em causa a casa de morada de família – alegaram ainda 
 os recorrentes que a norma, com a interpretação que fora aplicada, lesaria ainda 
 os princípios da igualdade entre os cônjuges e da direcção conjunta da família, 
 inscritos no artigo 36º da CRP; os deveres (do Estado e da sociedade) de 
 protecção da família, inscritos no artigo 67º; e ainda – por ocorrer in casu 
 incapacidade de um dos cônjuges – o direito à protecção da saúde, decorrente do 
 artigo 64º (por lapso, referiu-se aqui o artigo 63º da CRP, relativo à segurança 
 social). 
 A recorrida contra-alegou, invocando a não violação, in casu, do princípio da 
 igualdade. Quanto à eventual lesão de outros direitos fundamentais – como o 
 direito à segurança social, à habitação e à protecção da família – sustentou 
 basicamente que, sendo aqueles direitos a prestações que reclamam, por parte do 
 Estado, a adopção de políticas públicas destinadas à sua concretização, a 
 adopção de tais políticas por parte do legislador não poderia deixar de ter em 
 conta a necessária conciliação entre os bens jurídicos protegidos por tais 
 direitos e os bens protegidos por outros princípios constitucionais, entre os 
 quais se incluiria a protecção devida à propriedade do senhorio. 
 
  
 Cumpre apreciar e decidir.
 
  
 
  
 II
 
  
 Fundamentos
 
  
 
 4.  A norma sob juízo
 
 4.1.  A dado passo das suas alegações, requerem os recorrentes ao Tribunal que, 
 
 «por ser este o Tribunal de recurso», conheça de factos que, no seu entender, 
 estariam «assentes» e não teriam sido conhecidos pelo Tribunal da Relação, de 
 modo a aplicar ao caso «a norma constante do artigo 107º, nº 1), alínea b) do 
 RAU.» (fls. 1000 dos autos) 
 Diz a Constituição da República, no artigo 221º, que o Tribunal Constitucional é 
 o tribunal ao qual compete especificamente administrar a justiça em matérias de 
 natureza jurídico-constitucional. Por isso mesmo, nos processos de fiscalização 
 concreta, os recursos [para o Tribunal] que sejam interpostos de decisões de 
 tribunais que recusem a aplicação de normas com fundamento na sua 
 inconstitucionalidade, ou de decisões que (como é o caso dos autos) apliquem 
 normas cuja inconstitucionalidade tenha sido alegada durante o processo, são 
 recursos restritos à questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade de 
 normas, consoante os casos (artigo 280º, nº 6 da CRP), questão essa que, aliás, 
 não pode ser outra que não a identificada no requerimento a que alude o artigo 
 
 75º-A da Lei nº 28/82. 
 Assim sendo – e situando-se o ‘pedido’ feito pelos recorrentes nas suas 
 alegações claramente fora do âmbito dos poderes cognitivos do Tribunal 
 Constitucional – o objecto do presente recurso restringe-se à questão colocada 
 no respectivo requerimento de interposição: é inconstitucional, por violação dos 
 princípios decorrentes dos artigos 13º, 36º, 67º e 64º da Constituição, o 
 disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 107º do Regime de Arrendamento Urbano 
 
 (RAU), na interpretação que lhe foi dada pela decisão recorrida?
 
  
 
 4.2.  Incluído na subsecção relativa às limitações ao direito de denúncia, e sob 
 a simples epígrafe «Limitações», dispõe do seguinte modo, o artigo 107º do RAU: 
 
  
 
 1. O direito de denúncia do contrato de arrendamento, facultado ao senhorio 
 pelas alíneas a) e b) do n.° 1 do artigo 69.°, não pode ser exercido quando no 
 momento em que deva produzir efeitos ocorra alguma das seguintes circunstâncias: 
 
 
 a)  Ter o arrendatário 65 ou mais anos de idade ou, independentemente desta, se 
 encontre na situação de reforma por invalidez absoluta, ou, não beneficiando de 
 pensão de invalidez, sofra de incapacidade total para o trabalho, ou seja 
 portador de deficiência a que corresponda incapacidade superior a dois terços; 
 b)  Manter-se o arrendatário no local arrendado há 30 ou mais anos, nessa 
 qualidade, ou por um período de tempo mais curto previsto em lei anterior e 
 decorrido na vigência desta. 
 
 2. Para efeitos da alínea b) do número anterior, considera-se como tendo a 
 qualidade de arrendatário o cônjuge a quem tal posição se transfira, nos termos 
 dos artigos 84.° e 85.°, contando‑se a seu favor o decurso do tempo de que o 
 transmitente já beneficiasse.
 
  
 Como já se sabe, sustenta o recorrente que é inconstitucional, pelos motivos já 
 apontados, o disposto apenas na alínea a) do nº 1 do preceito, quando entendido 
 de forma a que as características pessoais aí enunciadas – e que consubstanciam 
 os fundamentos da excepção ao direito de denúncia do arrendamento por parte do 
 senhorio, sempre que este necessite do prédio para sua habitação – valham apenas 
 para quem outorgou o contrato de arrendamento, e não sejam, portanto, extensivas 
 ao seu cônjuge. 
 Assim equacionada, a questão de constitucionalidade reporta-se a um elemento de 
 um sistema que, tendo entre nós raízes fundas, merece ser compreendido na sua 
 globalidade. 
 O «sistema», que foi o que durante décadas inspirou o nosso regime jurídico do 
 arrendamento para habitação, resultou da conjunção de três ‘princípios’ 
 essenciais. O primeiro – qualificado por alguns como sendo a matriz da chamada 
 legislação vinculística do arrendamento – não só constava do artigo 1095º do 
 Código Civil, na sua versão primitiva, como já decorria de legislação avulsa 
 emitida desde as primeiras décadas do século XX. Determinava o artigo 1095º do 
 Código Civil: «Nos contratos de arrendamento a que esta secção se refere 
 
 [arrendamentos de prédios urbanos] o senhorio não goza do direito de denúncia, 
 considerando-se o contrato renovado se não for denunciado pelo arrendatário nos 
 termos do artigo 1055º». O artigo 1055º atribuía tanto a locador quanto a 
 locatário o direito de denúncia do contrato, que podia ser exercido sem qualquer 
 fundamento, uma vez cumpridos os requisitos formais, que aí se fixavam, de 
 comunicação prévia à outra parte. Da titularidade deste direito, e nos contratos 
 de arrendamento urbano, estava pois excluído o senhorio. Aí, a denúncia ad nutum 
 era – e era-o desde há décadas – um direito exclusivo do arrendatário. 
 A este primeiro «princípio» do «sistema – e primeiro, na ordem lógica das coisas 
 
 – veio o Código Civil acrescentar um outro. No artigo 1096º permitia-se, porém, 
 a denúncia fundamentada do contrato de arrendamento por parte do senhorio, sendo 
 que um dos fundamentos previstos era, justamente, o da «necessidade do prédio 
 para sua habitação ou para nele construir a sua residência». Mas também aqui não 
 inovava o Código: desde a década de cinquenta que se regulava, por lei, o 
 exercício do direito de denúncia, com este fundamento, do contrato de 
 arrendamento por parte do senhorio (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil 
 Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, 1968, pp. 372 e ss.). 
 Entrada em vigor a Constituição de 1976 – e depois de um interregno agora de 
 recordação inútil, que durou de 1974 a 1976 – mantiveram-se no direito 
 infraconstitucional estes dois ‘princípios’, enquanto elementos estruturantes do 
 sistema de arrendamento urbano. Em 1979, porém, a lei (Lei nº 55/79, de 15 de 
 Setembro, artigo 2º) veio acrescentar ao «sistema» um outro dado: o direito de 
 denúncia do contrato de arrendamento por parte do senhorio, e fundamentado na 
 sua necessidade do prédio para habitação, nunca poderia ser exercido, caso o 
 inquilino tivesse 65 anos ou mais de idade (alínea a) do nº 1 do artigo 2º) ou 
 se mantivesse «na unidade predial há vinte anos nessa qualidade» (alínea b) do 
 nº 1). Desde essa altura que se deixou claro que, «[p]ara efeitos da alínea b) 
 
 …. [s]e considera como tendo a qualidade de inquilino o cônjuge a quem tal 
 posição se transfira» (itálico nosso). 
 Foi esta solução que, com algumas alterações – em que se contam, sobretudo a 
 previsão de condições de «invalidez» ou de «incapacidade para o trabalho» do 
 inquilino como limitações ao direito de denúncia por parte do senhorio 
 acrescentadas à previsão da idade (Lei nº 46/85, artigo 41º), e o alongamento do 
 prazo de manutenção do arrendatário no local arrendado de 20 para 30 anos –  se 
 veio a manter na redacção do artigo 107º do Regime de Arrendamento Urbano (RAU), 
 aprovado pelo Decreto-Lei nº 321/B/90. 
 
  
 
  
 
 4.3.  Não está agora em causa a questão de saber se este sistema de vinculismo 
 arrendatício, com raízes tão fundas entre nós, se manterá ainda, no seu núcleo 
 essencial, face às alterações introduzidas pela Lei nº 6/2006, de 27 de 
 Fevereiro, que aprovou o Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU). A questão – 
 que se coloca sobretudo face ao disposto na alínea c) do artigo 1101º do Código 
 Civil, na sua versão actual – não é pertinente in casu, por força das 
 disposições conjugadas dos artigos 59º, nº1; 60º, nº 1, 26º nº 4 alínea a) e 28º 
 do NRAU. Pertinente é, no entanto, ponderar o seguinte. 
 Todo o paradigma vinculístico que acabámos de descrever – e que culmina com a 
 previsão das chamadas «limitações ao direito de denúncia» previstas no artigo 
 
 107º do RAU – foi densamente escrutinado pela jurisprudência do Tribunal 
 Constitucional. Na verdade, o Tribunal disse, antes do mais, por que razão não 
 era inconstitucional a «matriz» do regime vinculístico, que vedava ao senhorio – 
 mas concedendo-a ao arrendatário – a possibilidade da denúncia ad nutum do 
 contrato de arrendamento (vejam-se, quanto a este ponto, e entre outros, os 
 Acórdãos nºs 151/92, 263/00, 570/01, 543/01, todos disponíveis em 
 
 www.tribunalconstitucional.pt). Depois, o Tribunal disse também por que razão 
 não era inconstitucional a excepção a este princípio, fundada na necessidade, 
 por parte do senhorio, do prédio para habitação própria (veja-se, quanto a este 
 ponto, sobretudo o Acórdão nº 151/92, mas também o nº 405/00 e o 420/00). 
 Finalmente, o Tribunal disse por que razão não era inconstitucional a excepção à 
 excepção, ou seja, por que razão se deveria entender que não lesava a Lei 
 Fundamental a previsão das «limitações ao direito de denúncia», constantes por 
 
 último do artigo 107º do RAU (Acórdão nº 425º/87, DR, IIº Série, nº 3, 5-1-1988, 
 pp. 96-98).
 
  Quanto ao primeiro ponto, o Tribunal demonstrou, essencialmente, a natureza não 
 arbitrária – porque racionalmente fundada numa ponderação possível das 
 diferenças – de um regime jurídico infraconstitucional que, preocupando-se 
 sobretudo com a manutenção da relação jurídica do arrendamento se fosse essa a 
 vontade do arrendatário, tratava desigualmente, nessa relação, senhorio e 
 inquilino. Quanto ao segundo ponto, o Tribunal disse que, havendo porém conflito 
 ou colisão entre dois direitos iguais – o direito à habitação do inquilino e o 
 direito à habitação do senhorio – , seria «inteiramente razoável» que se 
 
 «sacrificasse o direito do inquilino à habitação», por deter, nestes casos de 
 colisão, o senhorio, proprietário, um «melhor direito» (Acórdãos do Tribunal 
 Constitucional, 21º Vol., p. 658). Finalmente, e quanto às «limitações do 
 direito de denúncia» constantes do artigo 107º do RAU (sobretudo, as constantes 
 da sua alínea a)) disse o Tribunal que elas se justificavam, por se apresentar 
 aqui o inquilino «mais carecido [do que o senhorio] do amparo da lei», em 
 virtude de lhe não poder ser imposta uma «mudança de vida» que poderia levá-lo 
 
 «a sentir-se completamente perdido e desenraizado» (Acórdãos do Tribunal 
 Constitucional, 48º Vol., p. 231). 
 Relativamente à questão colocada nos autos – a de saber se não imporá a 
 Constituição uma «leitura» da alínea a) do nº 1 do artigo 107º do RAU diversa da 
 adoptada pela decisão recorrida, por decorrer da CRP uma necessária extensão das 
 condições pessoais aí prescritas (enquanto fundamento de limitação do direito de 
 denúncia do senhorio) ao cônjuge do inquilino – não se pronunciou ainda o 
 Tribunal. 
 Sustenta o recorrente, antes do mais, que uma tal «leitura» – diversa da 
 adoptada pela decisão recorrida – não pode deixar de ser imposta pelo princípio 
 constitucional da igualdade. 
 Vejamos então. 
 
  
 
  
 
 5.  O Princípio da Igualdade
 
 5.1.  Duas dimensões da igualdade 
 
 É conhecida, e abundante, a jurisprudência do Tribunal relativa à densificação 
 do princípio constitucional da igualdade. 
 Como sempre se tem dito – e como foi repetido, em síntese expressiva de todo o 
 acervo jurisprudencial anterior, pelo Acórdão nº 232/2003 (disponível em 
 
 www.tribunalconstitucional.pt) – enquanto vínculo específico do poder 
 legislativo (pois só essa sua ‘qualidade’ agora nos interessa), o princípio da 
 igualdade não tem uma dimensão única. Na realidade, ele desdobra-se em duas 
 
 «vertentes» ou «dimensões»: uma, a que se refere especificamente o nº 1 do 
 artigo 13º, tem sido identificada pelo Tribunal como proibição do arbítrio 
 legislativo; outra, a referida especialmente no nº 2 do mesmo preceito 
 constitucional, tem sido identificada como proibição da discriminação. Em ambas 
 as situações está em causa a dimensão negativa do princípio da igualdade. Do que 
 se trata – tanto na proibição do arbítrio quanto na proibição de discriminação – 
 
 é da determinação dos casos em que merece censura constitucional o 
 estabelecimento, por parte do legislador, de diferenças de tratamento entre as 
 pessoas. Mas enquanto, na proibição do arbítrio, tal censura ocorre sempre que 
 
 (e só quando) se provar que a diferença de tratamento não tem a justificá-la um 
 qualquer fundamento racional bastante, na proibição de discriminação a censura 
 ocorre sempre que as diferenças de tratamento introduzidas pelo legislador 
 tiverem por fundamento algumas das características pessoais a que alude – em 
 elenco não fechado – o nº 2 do artigo 13º. É que a Constituição entende que tais 
 características, pela sua natureza, não poderão ser à partida fundamento idóneo 
 das diferenças de tratamento legislativamente instituídas. 
 Ao invocar, in casu, a violação do princípio da igualdade, os recorrentes estão 
 justamente a afirmar que, na norma sob juízo (lida, evidentemente, de acordo com 
 a interpretação que lhe foi dada pela decisão recorrida ) o legislador 
 estabeleceu diferenças de regime que não deveria ter estabelecido. A dimensão do 
 princípio que entendem ter sido lesada é, portanto, essa sua dimensão negativa 
 ou proibitiva, cuja dupla «vertente» se acabou de analisar. E – embora o não 
 digam expressamente – entendem ainda os recorrentes que no caso foi ofendida 
 tanto a proibição do arbítrio quanto a proibição da discriminação. 
 Com efeito, invoca-se, por um lado, a violação do princípio geral da igualdade, 
 contido no artigo 13º da CRP. Como decorre do relato atrás feito, a sustentar a 
 invocação está o argumento segundo o qual, na alínea a) do nº 1 do artigo 107º 
 do RAU, o legislador teria eleito, «como elemento diferenciador de qualificação 
 jurídica», um «acto de relevo mínimo» – a saber: o ter sido apenas um dos 
 cônjuges a outorgar o contrato de arrendamento – , pelo que dessa eleição 
 resultaria «uma situação profundamente desigual para quem é igual». O que se 
 contesta aqui, portanto, é a racionalidade ou razão de ser da «diferença» 
 instituída: ao afirmar que o fundamento da diferença é de «relevo mínimo», os 
 recorrentes estão justamente a perguntar ao Tribunal se será, ou não, arbitrária 
 a diversidade de regimes que decorrerá da alínea a) do nº 1 do artigo 107º do 
 RAU, na leitura que dele fez a decisão recorrida. O «parâmetro» constitucional 
 invocado é, pois, o decorrente do nº 1 do artigo 13º da CRP. 
 Contudo – e por outro lado – os recorrentes sustentam que, in casu, lesado terá 
 sido, também, o princípio de igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges, 
 decorrente do artigo 36º da CRP. Ora, não sendo tal princípio mais do que a 
 concretização de uma das proibições de discriminação contida no nº 2 do artigo 
 
 13º ( a saber: a proibição da discriminação em função do sexo), a sua invocação, 
 nos autos, revela que a outra dimensão do princípio da igualdade também foi 
 considerada. Do que aqui se trata é de determinar se o parâmetro constitucional 
 fixado no nº 2 do artigo 13º da CRP – e concretizado no artigo 36º enquanto 
 proibição de discriminação no seio da sociedade conjugal – terá sido, ou não, 
 lesado. 
 Assim sendo, importa distinguir.
 
  
 
 5.2.  Da igualdade enquanto proibição do arbítrio 
 Como já foi referido, sustenta o recorrente que a alínea a) do nº 1 do artigo 
 
 107º do RAU – na interpretação adoptada pela decisão recorrida – lesa desde logo 
 o princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio (artigo 13º, nº 1 da 
 CRP), por ter nela o legislador escolhido «como elemento diferenciador da 
 qualificação jurídica» um «acto de relevo mínimo», do qual resultaria «uma 
 situação profundamente desigual para quem é igual». 
 
 É claro, como também já foi visto, que o «acto de relevo mínimo» a que se refere 
 o recorrente é a outorga, por apenas um dos cônjuges (facultada nos termos do 
 artigo 1690º, nº 1 do Código Civil) do contrato de arrendamento. Alega-se não 
 ser este um fundamento razoável bastante para que se trate desigualmente o que é 
 igual. Mas não é claro qual é a situação de desigualdade que, no entender do 
 recorrente, daí resulta, e em que será tratado, sem razão e «de forma 
 profundamente desigual», quem é igual. A clarificação é, no entanto, 
 absolutamente necessária. 
 Com efeito, a norma sob juízo insere-se num «regime» – dotado enquanto tal de 
 unidade de sentido – que foi adoptado pelo legislador tendo em conta, não uma, 
 mas três «situações de desigualdade». Antes do mais, o legislador fixou estes 
 limites ao direito de denúncia do senhorio (quando exercido por necessidade do 
 prédio para habitação) porque partiu do princípio segundo o qual seriam aqui 
 desiguais a situação do senhorio e a situação do inquilino. Em segundo lugar, o 
 legislador fixou este regime – e não outro – porque partiu do princípio segundo 
 o qual, nas relações apenas entre inquilinos, seriam desiguais a situação 
 daqueles que apresentassem as características referidas na alínea a) do nº 1 do 
 artigo 107º do RAU e aqueles outros que estivessem na situação referida na 
 alínea b). (Na verdade – e como já se viu – para os segundos vale aquilo que, de 
 acordo com a interpretação normativa feita pela decisão recorrida, não vale para 
 os primeiros: diz o nº 2 do artigo 107º do RAU que, «[p]ara efeitos da alínea b) 
 do número anterior [se] considera como tendo a qualidade de arrendatário o 
 cônjuge a quem tal posição se transfira…»). Finalmente, o legislador fixou este 
 regime (ainda na interpretação que dele foi feita pelo tribunal a quo) porque 
 partiu do princípio segundo o qual, nas relações apenas entre cônjuges, e em 
 caso de idade, invalidez ou incapacidade de um deles, só o cônjuge arrendatário 
 mereceria a «protecção» conferida pelo sistema vinculístico do RAU. 
 O regime fundado na alínea a) do nº 1 do artigo 107º do RAU – a não ser 
 arbitrário, como alega o recorrente – só poderá vir a ser compreendido à luz de 
 todo este «sistema de diferenças»: o fundamento racional bastante que se procura 
 há-de justificar (ou não) este sistema, assim mesmo considerado. Ora, a verdade 
 
 é que todo ele partiu da consideração, por parte do legislador, de um ponto de 
 semelhança.
 O ponto de partida da aplicação do que vem dispor o artigo 107º do RAU é o de 
 que senhorio e inquilino se encontram em situação semelhante no que respeita ao 
 direito à habitação constitucionalmente consagrado: ambos pretendem o imóvel 
 arrendado para sua habitação. O ‘bem’ pretendido é no entanto um bem escasso. 
 Como o imóvel é só um, e não poderá por isso ser usufruído por ambos 
 pretendentes em lapsos de tempo coincidentes, o exercício do direito à habitação 
 de um vem necessariamente excluir o direito à habitação do outro. Coube, por 
 isso, ao legislador a escolha entre dois ‘interesses’ conflituantes e que 
 merecem igual ponderação. 
 Como o Tribunal já disse (cfr. supra, ponto 4.3), em situações normais o 
 legislador resolveu o conflito protegendo os interesses do senhorio, titular do 
 
 «melhor direito». Não assim em situações especiais de carência do inquilino, que 
 são justamente aquelas que vêm identificadas na alínea a) e na alínea b) do nº 1 
 do artigo 107º do RAU. No entanto, entre elas, há ainda que distinguir. 
 A alínea b) do n.º 1, do artigo 107.º do RAU estabelece uma excepção ao direito 
 de denúncia do contrato de arrendamento, que é facultado ao senhorio quando este 
 necessita do prédio para habitação, nos casos em que o arrendatário se mantenha 
 no local arrendado há 30 ou mais anos, nessa qualidade, ou por um período de 
 tempo mais curto previsto em lei anterior e decorrido na vigência desta.
 Atentando ao que vem dispor esta norma verifica-se que, nesta situação, o 
 inquilino permanece no local arrendado um lapso de tempo que é considerado, pelo 
 legislador infra-constitucional, como sendo bastante para justificar o seu 
 
 “enraizamento”. De acordo com as palavras já usadas pelo Tribunal, considera-se 
 que há aqui uma “permanência inquestionavelmente duradoura” 
 que justifica o tratamento desigual entre senhorio e inquilino (Cfr. , entre 
 outros, os acórdãos n.º 201/2007 e 97/2000, ambos disponíveis em 
 
 www.tribunalconstitucional.pt). Com efeito, as circunstâncias de facto que 
 contextualizam a posição do senhorio (o titular do imóvel mas que o nele não 
 habita) e do arrendatário por um lapso de tempo prolongado (o que efectivamente 
 habita o prédio) são realmente diferentes, na medida em que o inquilino tem uma 
 situação de vivência estável naquela habitação, coisa que não sucederá com o 
 senhorio. São memórias, vivências, hábitos sociais – ou seja, todo o acervo de 
 factualidade que compõe a designação social de «lar»-  que, em suma, explica  a 
 razão de ser desta excepção ao direito de denúncia do senhorio. Como tal acervo 
 de factualidade será, por princípio, comum a ambos os cônjuges, compreende-se o 
 disposto no nº 2 do artigo 107º do RAU, que manda que nestes casos (ou seja, nos 
 casos previstos na alínea b) do seu nº 1) se considere «arrendatário» não apenas 
 o cônjuge que outorgou o contrato, mas ainda aquele «a quem tal posição se 
 transfira». 
 De muito diferente maneira se passam as coisas, quanto à alínea a) do nº 1 do 
 artigo 107º do RAU.
 
  Como já se viu, a referida alínea vem consagrar uma excepção ao direito de 
 denúncia do contrato de arrendamento, que é facultado ao senhorio quando este 
 necessita do prédio para habitação, nos casos em que o arrendatário tenha 65 ou 
 mais anos de idade ou, independentemente desta, se encontre na situação de 
 reforma por invalidez absoluta, ou, não beneficiando de pensão de invalidez, 
 sofra de incapacidade total para o trabalho, ou seja portador de deficiência a 
 que corresponda incapacidade superior a dois terços.
 Ao contrário do que sucede na alínea b) do mesmo preceito, verifica-se, neste 
 caso, que a diferença entre a situação do inquilino e a situação do senhorio não 
 se prende com a “estabilidade” do vínculo contratual e com questões de vivência 
 e de contextualização social no local arrendado. Qual será, então – e onde 
 residirá -,  o “grau de diferença” aqui existente? 
 Nestes casos, a diferença residirá na asserção segundo a qual a senioridade e a 
 incapacidade total para o trabalho vêm dificultar sobremaneira a capacidade que 
 aquele inquilino tem de procurar nova habitação. Senhorio e inquilino serão, aos 
 olhos do legislador ordinário, diferentes, na medida em que o segundo, por força 
 da sua idade ou da sua invalidez, tem uma dificuldade acrescida em procurar nova 
 habitação para residir. Sendo este o escopo da norma, não se vê como pode ser 
 considerada arbitrária a sua redacção (e consequente interpretação) literal, que 
 prevê que a condição de «invalidez» valha apenas para o arrendatário e não seja, 
 enquanto tal, extensiva ao seu cônjuge. Como se sabe, o juízo de 
 inconstitucionalidade por violação do princípio inscrito no nº 1 do artigo 13º 
 da CRP só ocorrerá nos casos em que as diferenças de regimes instituídas pelo 
 legislador ordinário se não sustentem em qualquer fundamento razoável, ou não 
 sejam inteligíveis a partir de um critério racional bastante. Não é esse o caso 
 da norma sob juízo, na interpretação que dela fez o tribunal a quo. 
 
 5.3.  Da igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges
 Diferente da proibição do arbítrio é a proibição da discriminação, consagrada no 
 nº 2 do artigo 13º da CRP. Como já se viu, o legislador constituinte não quis 
 aqui, apenas, impedir que o legislador ordinário estabelecesse entre as pessoas 
 diferenças de tratamento que não fossem racionalmente fundadas. Mais do que 
 isso, o que se pretendeu foi proibir que o legislador ordinário estabelecesse 
 diferenças de tratamento que fossem «fundadas» em certas características 
 pessoais, tidas pela Constituição – à partida – como inidóneas para «justificar» 
 qualquer diferença. Não vale a pena, agora, voltar a sublinhar por que motivo é 
 meramente exemplificativo o elenco dessas «características pessoais» (que não 
 podem nunca ser fundamento de diferenças in pejus entre as pessoas) que o nº 2 
 do preceito constitucional consagra (quanto a este ponto, e entre outros, 
 veja-se o Acórdão nº 69/2008, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). O 
 que vale a pena é atentar no seguinte. 
 Como a Constituição entendeu que o sexo é justamente uma daquelas «categorias» 
 ou «características» pessoais que não podem nunca ser fundamento de diferenças – 
 pelo menos de diferenças in pejus – entre as pessoas, os seus princípios 
 relativos à liberdade de constituir família e de contrair casamento, contidos no 
 artigo 36º, são todos eles inspirados pela necessária indiferenciação do 
 estatuto jurídico do cônjuge-marido e do cônjuge-mulher, necessária 
 indiferenciação essa que há-de vincular o legislador ordinário e que assume 
 especial formulação no nº 3 do artigo 36º. Nessa medida, o princípio que aí vem 
 enunciado – o princípio da igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges – 
 não é mais do que a concretização de uma das proibições de discriminação, 
 fixadas no nº 2 do artigo 13º. 
 Ora, é justamente este o princípio que os recorrentes invocam para fundamentar a 
 inconstitucionalidade da norma contida na alínea a) do nº 1 do artigo 107º do 
 RAU, na interpretação que lhe foi dada pela decisão recorrida. Subjacente à 
 invocação estará portanto o argumento segundo o qual – e no domínio específico 
 das relações entre cônjuges – a norma sob juízo introduzirá uma «diferença» – a 
 saber: entre o cônjuge arrendatário, ao qual se não aplica nenhuma das condições 
 aí previstas, e o cônjuge não arrendatário, esse sim ‘portador’ de condição de 
 invalidez ou deficiência – que será em si contrária à proibição de discriminação 
 contida no nº 3 do artigo 36º. Levado o argumento às suas últimas consequências, 
 o que se está a afirmar é que a Constituição exige, aqui, que se «equiparem» 
 plenamente as «condições» de ambos os cônjuges, de tal modo que a «condição» do 
 cônjuge arrendatário seja extensível ao cônjuge inválido, mas não arrendatário. 
 Não se vê, porém, como extrair do artigo 36º da Constituição semelhante 
 imposição. Na verdade, a única exigência que do princípio constitucional se 
 retira é a de que se não venham a estabelecer, no plano mais recôndito da vida 
 familiar, elos de subordinação e dependência (juridicamente tutelados) de um 
 cônjuge em relação ao outro. É esta, aliás, a imposição que o Código Civil 
 cumpre, quando em harmonia com o princípio da direcção conjunta da família 
 
 (artigo 1671º, nº 2), prevê os efeitos pessoais e patrimoniais do casamento, 
 onde avulta, no âmbito dos primeiros, o princípio da reciprocidade dos vínculos 
 decorrentes dos deveres dos cônjuges (artigo 1672º) e, no âmbito dos segundos, o 
 princípio geral da administração conjunta ou de mão comum dos bens do casal 
 
 (artigo 1678º, nº 3). Nada permite concluir que, no sentido desta exigência 
 constitucional – assim cumprida pelo legislador ordinário – se encontre uma 
 injunção específica que obrigue o intérprete a «ler» a norma contida na alínea 
 a) do nº 1 do artigo 107º do RAU de modo diverso do que foi adoptado pela 
 decisão recorrida. Só se poderia concluir diferentemente se se provasse que tal 
 norma, com a interpretação que dela foi feita, incorporaria em si uma 
 
 «discriminação» constitucionalmente proibida, por ser contrária ao princípio de 
 não subordinação e dependência (de um cônjuge em relação ao outro) que se 
 inscreve no âmago do programa contido no nº 3 do artigo 36º da Constituição. 
 Ora, é bem evidente que tal prova não pode ser feita. Como acabou de se ver no 
 ponto anterior, a norma é justificada por uma teleologia que exclui toda e 
 qualquer dimensão «discriminatória». 
 
  
 
 6. Da protecção da família e da protecção da saúde
 
 6.1.  Alegam por último os recorrentes que é ainda inconstitucional a norma sob 
 juízo por violação dos direitos consagrados nos artigos 67º e 64º da 
 Constituição (por lapso, referiram-se aqui ao artigo 63º, relativo à segurança 
 social). Deve no entanto dizer-se desde já que também quanto a este ponto não 
 procedem as razões invocadas. 
 No artigo 67º a Constituição reconhece que a «família», enquanto elemento 
 fundamental da sociedade, tem «direito à protecção» da sociedade e do Estado (nº 
 
 1) ; e que, por isso, deve este último, em relação a ela, adoptar certos 
 procedimentos e certas políticas que visem a realização de determinados fins 
 
 (todas as alíneas 
 do nº 2).
 Sustenta o recorrente que, por assim ser – e por a Constituição consagrar este 
 direito à protecção da família –, será inconstitucional a norma sob juízo: a 
 interpretação que dela se fez, diz-se, não protege suficientemente a casa de 
 morada de família, pelo que o seu resultado estará em contradição com o disposto 
 no artigo 67º da CRP. A alegação ignora, porém, a natureza do direito que nesta 
 disposição constitucional se consagra. Ao contrário do que sucede no artigo 36º 
 
 – também ele, como já vimos, alusivo à instituição «família» – a Constituição 
 não prevê aqui nenhuma liberdade fundamental, que, nos termos do nº 1 do artigo 
 
 18º, seja directamente aplicável e tenha, por isso, um conteúdo determinado e 
 determinável a nível constitucional (e não legal). O artigo 67º não diz respeito 
 
 à liberdade de constituir ou não constituir família, liberdade que impõe ao 
 Estado, e a todos os membros da comunidade política, um dever de não fazer, de 
 não perturbar, de não obstaculizar. O que o artigo 67º faz, pelo contrário, é 
 impor ao Estado deveres de agir, de prestar e de realizar, deveres esses que 
 são, antes do mais, cumpridos pelo legislador ordinário, quando este adopta 
 políticas públicas adequadas à realização dos fins que a Constituição fixou. É 
 claro que tais deveres podem deixar de ser cumpridos, ou podem ser cumpridos de 
 modo insuficiente ou deficitário. No entanto, para que tal suceda, necessário é 
 que se prove que o legislador, nas escolhas que fez, se afastou de forma 
 manifesta e evidente do cumprimento das tarefas que, positivamente, lhe haviam 
 sido constitucionalmente atribuídas.
 Ora, é evidente que tal, in casu, não sucedeu. 
 A legislação vinculística do arrendamento – em cujo espírito se inscreve, como 
 já vimos, a norma sob juízo – terá sido adoptada, seguramente, para a realização 
 de múltiplos fins e no contexto de políticas públicas de escopo variável. Certo 
 
 é que num desses fins se inscreveu primordialmente a necessária protecção das 
 famílias e das suas moradas: a prevalência da vontade do arrendatário na 
 manutenção do vínculo do arrendamento, independentemente da vontade do senhorio, 
 não terá tido outra justificação maior que não essa – a da protecção da 
 
 «família», nos termos do artigo 67º da Constituição. Contudo, sendo essa 
 finalidade isso mesmo – algo a realizar por uma política legislativa – para a 
 prosseguir o legislador não pôde deixar de fazer escolhas; de resolver 
 conflitos; de procurar harmonizar diferentes bens jurídicos em concorrência. 
 Como vimos (supra, ponto 5.2.), o regime contido na alínea a) do nº 1 do artigo 
 
 107º do RAU justifica-se precisamente por, nele, o legislador ter feito uma 
 ponderação entre dois bens igualmente merecedores de protecção: o da (eventual) 
 protecção da casa de morada de família do inquilino e o da (eventual) protecção 
 da casa de morada de família do senhorio. A forma por que o fez, não sendo 
 seguramente a única constitucionalmente possível, correspondeu no entanto ao 
 cumprimento do programa da Constituição. Sobretudo, correspondeu ao dever de 
 realização do bem jurídico protegido pelo seu artigo 67º. 
 
             
 
 6.2.  Invocam por último os recorrentes a violação, por parte da norma sub 
 judice, do «direito à protecção da saúde», consagrado no artigo 64º da CRP. Na 
 verdade, estando em causa, no caso, uma disposição legislativa que visa proteger 
 situações de invalidez e incapacidade para o trabalho, mais do que o bem 
 jurídico «saúde» – que de facto é protegido pelo direito consagrado no artigo 
 
 64º – deverá ser convocado, como parâmetro constitucional da validade do direito 
 infraconstitucional, o bem jurídico tutelado pelo artigo 71º, referente 
 especificamente a «cidadãos portadores de deficiência». 
 A norma contida no artigo 71º da CRP – como norma especial face à norma geral do 
 artigo 64º – é aquela que mais directamente é cumprida pela alínea a) do nº 1 do 
 artigo 107º do RAU: ao prever, como limites ao direito de denúncia do senhorio, 
 a condição de invalidez e incapacidade para o trabalho do inquilino, o 
 legislador do RAU não fez mais do que dar concretização ao «programa» previsto 
 no nº 2 do artigo 71º, segundo o qual «o Estado [se] obriga a realizar uma 
 política nacional de (…) reabilitação e integração dos cidadãos portadores de 
 deficiência e de apoio às suas famílias (…)». Mais uma vez, a forma como a norma 
 do RAU realizou esta «política» não era a única constitucionalmente possível; 
 inquestionável é, porém, que ela se coadunou com o «valor» constitucional de 
 protecção à deficiência, consagrado no artigo 71º da CRP. 
 Este «valor», que obriga o Estado a proteger especialmente os cidadãos 
 portadores de deficiência, anda, no sistema da Constituição, estreitamente 
 associado ao princípio da igualdade. Com efeito, um tal princípio não tem apenas 
 a dimensão negativa alegada pelos recorrentes, e que analisámos no ponto 5. Mais 
 do que isso – e como disse o Tribunal, por exemplo, no Acórdão nº 412/2002 – a 
 igualdade tem ainda uma vertente positiva, pois pode abranger, para além das 
 proibições de diferenciação, autorizações – dirigidas ao legislador ordinário – 
 para que este estabeleça diferenças favoráveis a certos grupos de pessoas «como 
 forma de compensar as desigualdades de oportunidades» (Acórdãos do Tribunal 
 Constitucional, 54º Vol., p. 417). Ao obrigar o Estado a realizar uma política 
 nacional de protecção à deficiência, o artigo 71º da CRP está a autorizar a 
 criação, por via legislativa, de um «estatuto especial» do cidadão deficiente, 
 que – correspondendo a uma «necessidade de diferenciação positiva» – o venha a 
 compensar das desigualdades de oportunidades que marcaram a sua condição 
 existencial. Nesta perspectiva, a norma contida no nº 1, alínea a) do artigo 
 
 107º do RAU integra, plenamente, tal estatuto. Assim sendo, a referida norma não 
 apenas concretiza o programa contido no artigo 71º da CRP, como corresponde ao 
 cumprimento da dimensão positiva do princípio da igualdade. 
 No entanto, de nenhum destes parâmetros constitucionais, aplicáveis ao caso, se 
 pode extrair a conclusão segundo a qual o legislador deveria ter tido em 
 consideração, ao limitar o direito de denúncia do senhorio do contrato de 
 arrendamento, não apenas a condição de invalidez do inquilino, mas também a 
 condição de invalidez do seu cônjuge. 
 Tal conclusão se não pode extrair, antes do mais, do prescrito pelo artigo 71º, 
 nº 2 da CRP. Embora aí se diga que o Estado «[se] obriga a realizar uma política 
 nacional de «integração dos cidadãos portadores de deficiência e de apoio às 
 suas famílias», daí se não retira que tivesse o legislador o dever de considerar 
 como extensiva ao inquilino a situação de invalidez do seu cônjuge. Os motivos 
 são os mesmos que foram invocados quanto ao «direito à protecção da família»: 
 tratando-se estes (o do artigo 71º quanto o do artigo 64º) de direitos que se 
 cumprem através da adopção, por parte da lei ordinária, de políticas públicas 
 adequadas à realização de certos fins, nunca é mecânico o modo [legislativo] da 
 sua concretização. Ao legislador será sempre confiada a tarefa de,  no desenho e 
 consecução dessas políticas, conciliar interesses e harmonizar bens jurídicos 
 conflituantes. Ora, já vimos que foi justamente isso que o legislador do RAU 
 fez, ao regular como regulou os limites ao direito de denúncia do senhorio. 
 Por outro lado, correspondendo o valor constitucional «protecção dos 
 deficientes» a uma forma de discriminação positiva, autorizada pela CRP em 
 função da «dimensão positiva» do princípio da igualdade, o modo pelo qual o 
 poder legislativo democrático concretiza tal autorização não pode deixar de 
 incluir uma ampla margem de liberdade conformadora dos vários valores e 
 interesses em presença. Por isso, também aqui nada permite concluir pela 
 existência de um dever constitucional, oponível ao legislador, de estender a 
 condição de invalidez para além dos limites literais do preceito contido na 
 alínea a) do nº 1 do artigo 107º do RAU. Ora, foram justamente esses os limites 
 que a decisão recorrida, na sua interpretação, acolheu. 
 Por todos estes motivos, improcedem igualmente estas últimas razões invocadas 
 pelos recorrentes. 
 
  
 III
 Decisão
 
  
 Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide não conceder provimento ao 
 recurso, mantendo-se a decisão recorrida quanto à questão de 
 constitucionalidade. 
 
  
 Custas pelo recorrente, fixadas em 20 uc de taxa de justiça. 
 
  
 
  
 Lisboa, 26 de Novembro de 2008
 Maria Lúcia Amaral
 Vítor Gomes
 Ana Maria Guerra Martins
 Carlos Fernandes Cadilha
 Gil Galvão