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Processo n.º 427/09
 
           2.ª Secção
 
           Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro 
 
 ( Conselheiro  João Cura Mariano)
 
 
 Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
 
  
 
  
 I – Relatório
 
  
 
 1. Nos presentes autos, vindos do 1.º Juízo, 2.ª Secção dos Juízos Cíveis do 
 Porto, o Ministério Público interpôs recurso da decisão daquele tribunal, nos 
 termos do artigo 70.º, n.º 1, a), da LTC, na parte em que recusa a aplicação do 
 artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro, com a interpretação 
 defendida pelo Tribunal da Relação do Porto - segundo a qual compete aos Juízos 
 Cíveis do Porto preparar e julgar a acção declarativa proposta nos termos do 
 regime processual civil experimental, instituído pelo Decreto-Lei n.º 108/2006, 
 de 8 de Junho, quando o respectivo valor exceder a alçada do Tribunal da 
 Relação, e não tenha sido requerida a intervenção do tribunal colectivo -, com 
 fundamento em inconstitucionalidade por violação dos art.ºs 112.º, n.º 2 e 
 l65.º, alínea p), da CRP.
 
  
 
 2. O presente recurso emerge de acção declarativa que A., B. e C. propuseram 
 contra D., nos Juízes Cíveis do Porto. O réu contestou, deduzindo reconvenção.
 O recurso vem interposto do despacho, proferido em 2.4.2009, com o seguinte 
 teor:
 
 «A presente acção foi intentada à luz do regime processual experimental 
 aprovado pelo DL. nº 108/2006, de 08/06. 
 O regime processual experimental aplica-se, designadamente, de acordo com a al. 
 b) do artigo único da Portaria nº 955/2006, de 13/09, nos Juízos Cíveis do 
 Tribunal da Comarca do Porto. 
 Tal regime não afasta a aplicação das normas do Código de Processo Civil, já que 
 daquele regime não consta toda a regulamentação necessária à tramitação da 
 acção, havendo, assim, que recorrer ao Código de Processo Civil, enquanto 
 legislação subsidiária, no que não seja afastado pelo regime processual 
 experimental, nomeadamente às normas dos arts 305º e segs. do C.P.C. que regulam 
 o valor da causa. 
 Ora de acordo com o disposto no art. 308º, nº 2 do C.P.C., no caso de o Réu 
 deduzir reconvenção, o valor do pedido formulado pelo réu, quando distinto do 
 deduzido pelo Autor, soma-se ao valor deste e este aumento de valor produz 
 efeitos no que respeita aos actos e termos posteriores à reconvenção. 
 Nos presentes autos verifica-se que o Réu deduziu pedido reconvencional 
 distinto do deduzido pelos Autores, pelo que se soma ao valor deste. 
 Assim sendo, fixa-se o valor da causa em € 60.000,01. 
 A Jurisprudência do Tribunal da Relação do Porto tem vindo a sufragar o 
 entendimento de que a competência para preparar e julgar uma acção declarativa 
 proposta nos termos do regime processual civil experimental instituído pelo DL. 
 nº 108/2006, de 8/06, quando o respectivo valor exceder a alçada da Relação e 
 não tiver sido requerida a intervenção do tribunal colectivo, deve ser 
 atribuída, no Tribunal da Comarca do Porto, aos Juízos Cíveis. 
 Neste sentido foi já decidido nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 
 
 08/04/2008, 05/06/2008 e 30/09/2008, proferidos nos processos nºs 0820596, 
 
 0831362 e 0855853, respectivamente, disponíveis em www.dgsi.pt. 
 A referida Jurisprudência apoia-se nos seguintes argumentos: 
 O DL. nº 108/2006, de 08/06, que aprovou o regime processual experimental, não 
 estabeleceu qualquer limite de valor para as acções declarativas cíveis 
 instauradas ao abrigo de tal regime, pelo que as mesmas podem ter valor superior 
 
 à alçada da relação. 
 O regime processual experimental aplica-se, designadamente, nos Juízos Cíveis do 
 Tribunal da Comarca do Porto e nos Juízos de Pequena Instância Cível do 
 Tribunal da Comarca do Porto, de acordo com o disposto nas als. b) e c) do 
 artigo único da Portaria nº 955/2006, de 13/09. 
 Não está prevista a aplicação de tal regime nas Varas Cíveis do Tribunal da 
 Comarca do Porto. 
 O DL. nº 108/2006, de 08/06, não prevê que no decurso da acção declarativa cível 
 instaurada nos termos do regime processual experimental, esta passe a seguir, a 
 partir de determinado momento, a forma de processo comum ordinário. 
 Conclui, assim, que a acção cível instaurada nos termos do referido diploma 
 nunca poderá observar, em nenhum momento da sua tramitação, a forma de processo 
 comum ordinário, pelo que a competência originária para conhecer deste tipo de 
 acções pertence aos Juízos Cíveis do Tribunal da Comarca do Porto e só no caso 
 das partes terem requerido a intervenção do tribunal colectivo é que os Juízos 
 Cíveis deverão remeter o processo às Varas Cíveis para julgamento e posterior 
 devolução, de acordo com o art. 97º, nº 4 da L.O.F.T.J.. 
 Discordámos, com o devido respeito, da argumentação expendida, por se nos 
 afigurar que a mesma é susceptível de infringir o texto constitucional. 
 Com efeito, não se retira do teor do DL. nº 108/2008, de 08/06, que fosse 
 intenção do legislador alterar o regime da competência dos tribunais, que 
 continua a regular-se pelas mesmas normas pelas quais se regulava 
 anteriormente. 
 Do mesmo modo, não pretendeu a Portaria nº 955/2006, de 13/09, alterar a 
 competência dos Tribunais, mas apenas definir quais os tribunais em que seria 
 aplicado o regime processual experimental, mantendo os tribunais a que alude, a 
 competência que já detinham, tal como resulta, aliás, do respectivo preâmbulo. 
 De acordo com o disposto no art. 112º, nº 2 da Constituição da República 
 Portuguesa, as leis e os decretos-leis têm igual valor, sem prejuízo da 
 subordinação às correspondentes leis dos decretos-leis publicados no uso de 
 autorização legislativa. 
 Dispõe por sua vez o art. 165º, al. p) do mesmo diploma que é da exclusiva 
 competência da Assembleia da República legislar sobre organização e competência 
 dos tribunais, salvo autorização ao Governo. 
 Não pode, assim, o Governo, sem autorização legislativa, alterar as normas de 
 competência dos tribunais, aprovadas por Lei. 
 A organização e competência dos tribunais sempre seria, de resto, matéria de 
 reserva de “acto legislativo”, entendendo-se como tal, nos termos do art. 112º, 
 nº 1 da Constituição da República Portuguesa, as leis, os decretos-leis e os 
 decretos legislativos regionais e nunca matéria de simples portaria. 
 Todavia e se assim é, constata-se que a norma contida no artigo único da 
 Portaria nº 955/2006, de 13/09, quando interpretada no sentido defendido nos 
 Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto acima referidos, infringe o disposto 
 nos arts. 112º, nº 2 e 165º, al. p) da Constituição da República Portuguesa. 
 Na verdade, ao considerar-se, por não estar prevista a aplicação do regime 
 processual experimental nas Varas Cíveis do Tribunal da Comarca do Porto e por 
 não se prever, no DL. nº 108/2006, de 08/06, que no decurso da acção declarativa 
 cível instaurada nos termos do regime processual experimental, esta passe a 
 seguir, a partir de determinado momento, a forma de processo comum ordinário, 
 que a competência para conhecer das acções cíveis instauradas na Comarca do 
 Porto, de valor superior à alçada da Relação, na sequência da soma do valor dos 
 pedidos do autor e do reconvinte, pertence aos Juízos Cíveis e, só no caso das 
 partes terem requerido a intervenção do tribunal colectivo, é que as referidas 
 acções deverão ser remetidas às Varas Cíveis para julgamento e posterior 
 devolução, de acordo com o art. 97º, nº 4 da Lei de Organização e Funcionamento 
 dos Tribunais Judiciais, está a infringir-se, em nosso entender e ressalvando o 
 devido respeito por opinião contrária, a regra de competência estabelecida no 
 art. 97º, nº 1, al. a) da referida Lei. 
 Dispõe este último normativo que compete às Varas Cíveis a preparação e 
 julgamento das acções declarativas cíveis de valor superior à alçada do 
 tribunal da Relação em que a lei preveja a intervenção do tribunal colectivo. 
 E certo que o nº 4 do mencionado preceito refere que são ainda remetidos às 
 Varas Cíveis, para julgamento e ulterior devolução, os processos que não sejam 
 originariamente da sua competência, nos casos em que a lei preveja, em 
 determinada fase da sua tramitação, a intervenção do tribunal colectivo. 
 Afigura-se, no entanto, que tal disposição se encontra formulada para os 
 processos especiais, originariamente da competência dos Juízos Cíveis. 
 Ora o regime processual experimental não configura um processo especial, já que 
 nos Juízos Cíveis do Porto, tal regime aplica-se na falta de outra forma de 
 processo aplicável, tal como resulta desde logo do art. 1º do DL. nº 108/2006 e 
 não poderá considerar-se especial uma forma de processo que, num certo tribunal, 
 se aplica na falta de outras. 
 O regime processual experimental configura-se antes como um processo comum nos 
 Juízos Cíveis do Porto. 
 Assim sendo e na medida em que tal regime não visou alterar as regras de 
 competência e não afasta a aplicação das normas do Código de Processo Civil, às 
 quais terá de recorrer-se enquanto legislação subsidiária, nomeadamente às 
 normas dos arts. 98º, nº 2 e 305º e segs. do referido diploma, impõe-se uma 
 interpretação da norma contida no artigo único da Portaria nº 955/2006 conforme 
 com o disposto nos arts. 112º, nº 2 e 165º, al. p) da Constituição da República 
 Portuguesa. 
 Tal interpretação, em nosso entender e ressalvando sempre o devido respeito por 
 opinião contrária, apenas poderá ser feita no sentido de que, quando, por força 
 da reconvenção, o valor da acção instaurada nos Juízos Cíveis da Comarca do 
 Porto ultrapasse o valor para o qual detinham competência, os Juízos Cíveis 
 deixam de ser os competentes em razão do valor, devendo a acção ser remetida ao 
 tribunal competente, com a consequente alteração da forma do processo aplicável 
 nesse tribunal, no caso, o processo ordinário previsto no Código de Processo 
 Civil, aplicável nas Varas Cíveis do Porto.  
 Decisão: 
 Na sequência do exposto: 
 a) recusa-se a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, por infracção 
 do disposto nos arts. 112º, nº 2 e 165º, al. p) da Constituição da República 
 Portuguesa, da norma contida no artigo único da Portaria nº 955/2006, de 13/09, 
 com a interpretação defendida nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto acima 
 referidos e, consequentemente, 
 b) julga-se aplicável à presente acção a forma de processo comum ordinário, por 
 força do disposto nos arts. 461º e 462º do Código de Processo Civil e 
 determina-se, em conformidade, que a presente acção passe a prosseguir os seus 
 termos sob a referida forma de processo.»
 
  
 
 3. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional 
 apresentou alegações, onde concluiu do seguinte modo:
 
 «A norma constante do artigo único da Portaria nº 955/2006, de 13 de Setembro, 
 na interpretação segundo a qual compete aos Juízos Cíveis do Porto preparar e 
 julgar a acção declarativa proposta nos termos do regime processual civil 
 experimental, instituído pelo Decreto-Lei nº 108/2006 de 08 de Junho, quando o 
 respectivo valor exceder a alçada do Tribunal da Relação e não tenha sido 
 requerida a intervenção do Tribunal Colectivo – concretizando o disposto, 
 nomeadamente, nos artigos 1º e 21º do Decreto-Lei nº 108/2006 – ao alterar 
 inovatoriamente o âmbito da competência reservada às varas cíveis pelo artigo 
 
 97º, nº 1, alínea a), da lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, sem que existisse 
 credencial parlamentar bastante, é organicamente inconstitucional, por violação 
 do artigo 165º, nº 1, alínea p), da Constituição.»
 
  
 
 4. Em Secção, foi proferido o Acórdão n.º 565/2007, que determinou a notificação 
 das partes para se pronunciarem sobre a possibilidade de não conhecimento do 
 objecto do recurso, por não estar em causa uma verdadeira recusa de aplicação de 
 norma.
 
  
 
 5. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional 
 apresentou resposta nos seguintes termos:
 
 «1º
 O Senhor Juiz, na decisão recorrida, recordou qual a interpretação das normas 
 objecto do recurso, que o Tribunal da Relação do Porto, vem levando a cabo.
 
 2º
 Segundo essa jurisprudência, a competência para preparar e julgar a acção 
 declarativa proposta nos termos do regime processual civil experimental 
 instituído pelo Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho, quando o respectivo 
 valor exceder a alçada da Relação e não tiver sido requerida a intervenção do 
 tribunal colectivo, deve ser atribuída, no Tribunal da Comarca do Porto, aos 
 Juízos Cíveis.                                
 
 3º
 Ora, o Senhor Juiz só não acolhe e aplica uma tal interpretação, exclusivamente, 
 porque entende que ela é inconstitucional. 
 
 4º
 Ou seja, perante duas interpretações, uma eventualmente “mais correcta” do ponto 
 de vista da interpretação do direito ordinário - e que ele seguiria -, leva a 
 uma solução inconstitucional.
 
 5º
 Poderá argumentar-se que a interpretação “mais correcta” será sempre a mais 
 respeitadora dos princípios constitucionais.
 
 6º
 Ora, se tal entendimento é perfeitamente compreensível nos casos de 
 inconstitucionalidade material, já não o será tão facilmente, nos casos de 
 inconstitucionalidade orgânica, como se verifica no presente processo.
 
 7º
 Se assim não for, então, sempre que se esteja perante um recurso interposto ao 
 abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º da LTC, o Tribunal terá de 
 ponderar se o facto de haver duas interpretações possíveis e o juiz desaplicar 
 uma com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, isso constituirá uma 
 verdadeira recusa de aplicação.
 
 8º
 Na verdade, parece-nos que o ter-se recorrido à jurisprudência de um Tribunal 
 Superior, não altera substancialmente os dados desta questão.
 
 9º
 Por outro lado, vendo a questão do ponto de vista da instrumentalidade do 
 recurso de constitucionalidade, a solução não é diferente.
 
 10º
 Efectivamente, neste momento, há processos nos Juízos Cíveis do Porto, aos quais 
 está a ser aplicada a forma de processo comum, diferentemente do que ocorre na 
 maioria dos outros processos.
 
 11º
 
 À pergunta sobre o que está na origem desta divergência, a resposta só pode ser 
 uma: a recusa, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, de uma 
 determinada interpretação normativa.
 
  
 
 12º
 Conhecendo o Tribunal da questão e se não julgar a norma inconstitucional, ao 
 processo volta a ser aplicável o regime do processo civil experimental.
 
 13º
 Desta forma, a última palavra sobre a questão da inconstitucionalidade, deverá 
 pertencer ao próprio Tribunal Constitucional.»
 
  
 
 6. Tendo o primitivo relator ficado vencido, quanto à questão do conhecimento do 
 objecto do recurso, houve lugar à mudança de relator.
 
  
 
                                                       
 II – Fundamentação
 
  
 
 7. Questão prévia: do conhecimento do objecto do recurso
 
  
 O presente recurso foi interposto, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, 
 a), da LTC, do despacho proferido neste processo em 2-4-2009.
 O despacho recorrido recusou a interpretação do artigo único da Portaria n.º 
 
 955/2006, de 13 de Setembro, sustentada nas decisões do Presidente do Tribunal 
 da Relação do Porto, proferidas na resolução de conflitos de competência em 
 
 8-4-2008, 5-6-2008 e 30-9-2008 (acessíveis em www.dgsi.pt).
 Da leitura destas decisões, verifica-se que, mediante a interpretação do 
 disposto no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho, do qual o 
 artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro, é uma simples 
 concretização, se considerou que os Juízos Cíveis do Tribunal da Comarca do 
 Porto eram competentes para preparar e julgar as acções declarativas cíveis 
 propostas nestes juízos, às quais tenha sido fixado um valor superior à alçada 
 do Tribunal da Relação, quando não tenha sido requerida a intervenção do 
 tribunal colectivo.
 
 É a esta interpretação que a alínea a) da decisão recorrida se reporta, quando 
 determina a “recusa de aplicação” da “interpretação defendida nos Acórdãos do 
 Tribunal da Relação do Porto”. 
 Todavia, e não obstante o conteúdo deste enunciado decisório, constata-se não 
 ter havido uma autêntica recusa de aplicação por inconstitucionalidade, no 
 sentido exigido pela alínea a) do artigo 70.º da LTC, para se poder dar por 
 verificado o fundamento de recurso aí previsto.
 Na verdade, a decisão do tribunal filia-se, em primeira linha, num entendimento 
 divergente, no exclusivo plano do direito ordinário, do alcance dos preceitos 
 legais pertinentes. Para o tribunal recorrido, e contrariamente à interpretação 
 rejeitada, “quando, por força da reconvenção, o valor da acção instaurada nos 
 Juízos Cíveis da Comarca do Porto ultrapasse o valor para o qual detinham 
 competência, os Juízos Cíveis deixam de ser competentes em razão do valor, 
 devendo a acção ser remetida ao tribunal competente, com a consequente alteração 
 da forma do processo aplicável nesse tribunal, no caso, o processo ordinário 
 previsto no Código de Processo Civil, aplicável nas Varas Cíveis do Porto”.
 O tribunal considera esta interpretação a que resulta da aplicação dos normais 
 cânones hermenêuticos. É o que se infere, com clareza, do seguinte trecho:
 
 «Com efeito, não se retira do teor do DL n.º 108/2008, de 08/06, que fosse 
 intenção do legislador alterar o regime da competência dos tribunais, que 
 continua a regular-se pelas mesmas normas pelas quais se regulava anteriormente.
 Do mesmo modo, não pretendeu a Portaria n.º 955/2006, de 13/09, alterar a 
 competência dos Tribunais, mas apenas definir quais os tribunais em que seria 
 aplicado o regime processual experimental, mantendo os tribunais a que alude, a 
 competência que já detinham, tal como resulta, aliás, do respectivo preâmbulo».
 Suplementarmente, como razão adicional para o afastamento da interpretação do 
 Tribunal da Relação do Porto, invoca o tribunal recorrido que ela está ferida de 
 inconstitucionalidade, por infringir o disposto nos artigos 112.º, n.º 2, e 
 
 165.º, n.º 1, alínea p), da CRP.
 O que importa sublinhar é que, contrariamente ao afirmado na resposta do 
 representante do Ministério Público, não é só porque entende que essa 
 interpretação é inconstitucional que a sentença recorrida a não acolhe e aplica. 
 Não o faz, antes disso, porque entende que a interpretação que está de acordo 
 com a intenção do legislador e com o teor do preâmbulo da Portaria n.º 955/2006 
 
 é a de que não houve intenção de alterar a competência dos Tribunais.  
 
    Tendo perfilhado esta interpretação – cuja correcção não cabe a este Tribunal 
 sindicar – o tribunal recorrido não tinha mais do que aplicá-la, no pleno 
 exercício da sua competência própria e ao abrigo da garantia de independência 
 que lhe está constitucionalmente assegurada. O Juiz da causa não precisava de 
 recorrer a uma “aparente” recusa de aplicação, por inconstitucionalidade, de uma 
 interpretação alternativa (ainda que também emita sobre ela essa apreciação) – 
 interpretação que não é a sua –, pela única razão de que se trata daquela a que 
 um tribunal superior adere. Só seria assim se ele estivesse obrigado a seguir 
 essa interpretação – o que, evidentemente, não acontece, no nosso quadro 
 constitucional. Só nessas circunstâncias, e como último recurso para evitar a 
 eficácia, no que diz respeito ao caso em juízo, de uma interpretação tida por 
 inconstitucional, estava ele habilitado a exercitar o poder-dever que o artigo 
 
 204.º da Constituição lhe confere.
 Um tribunal de instância pode provocar a apreciação, pelo Tribunal 
 Constitucional, e mediante o recurso obrigatório do Ministério Público, de uma 
 interpretação que ele próprio faça – interpretação que seria a inevitável ratio 
 decidendi da questão em juízo, não fora a decisão de inconstitucionalidade que 
 sobre ela recai. O que não pode é, através de uma artificiosa recusa de 
 aplicação, que consta da decisão, mas não é apoiada pela fundamentação, pôr o 
 Tribunal Constitucional a decidir a constitucionalidade de uma interpretação que 
 não é a sua, mas a de um outro tribunal.
 E foi isto o que o tribunal recorrido fez. 
 Não estão, pois, preenchidos os pressupostos do recurso previsto na alínea a) da 
 LTC, conclusão a que também chegou, em caso em tudo idêntico, a decisão sumária 
 emitida no processo n.º 617/2009.  
 
                                                       
 III - Decisão
 Pelo exposto, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
 Sem custas.
 
  
 Lisboa, 16 de Dezembro de 2009
 Joaquim de Sousa Ribeiro
 Benjamim Rodrigues
 João Cura Mariano (vencido de acordo com a declaração junta)
 Rui Manuel Moura Ramos
 
  
 
  
 DECLARAÇÃO  DE  VOTO
 
  
 Votei vencido por interpretar de modo diferente da posição que fez vencimento o 
 conteúdo da decisão recorrida.
 Da leitura que fiz desse despacho, entendi que o juiz a quo recusou 
 expressamente, por considerar violadora de parâmetro constitucional, a 
 interpretação normativa sustentada pela jurisprudência do Tribunal da Relação do 
 Porto sobre a questão em causa, e só perante a constatação desse vício é que 
 procurou efectuar uma interpretação conforme à Constituição que pudesse aplicar, 
 após ter assumido tal recusa.
 Esta última interpretação normativa só é assumida pelo julgador, após ter 
 recusado seguir a interpretação dominante, com fundamento na sua 
 inconstitucionalidade, pelo que não estamos perante uma recusa artificial de 
 aplicação de normas, mas sim face a uma verdadeira recusa que não podia deixar 
 de ser sindicada pelo Tribunal Constitucional.
 Conhecendo do recurso, confirmaria o juízo de inconstitucionalidade adoptado 
 pela decisão recorrida relativamente à interpretação do disposto no artigo 21.º, 
 do Decreto-lei n.º 108/2006, de 8 de Junho, do qual o artigo único da Portaria 
 n.º 955/2006, de 13 de Setembro é uma simples concretização, segundo o qual os 
 Juízos Cíveis do Tribunal da Comarca do Porto eram competentes para preparar e 
 julgar as acções declarativas cíveis propostas nestes juízos, às quais tenha 
 sido fixado um valor superior à alçada do Tribunal da Relação, quando não tenha 
 sido requerida a intervenção do tribunal colectivo.
 Na verdade, o Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho, em mais uma tentativa de 
 simplificar e flexibilizar o processo civil, criou um novo regime aplicável a 
 todas as acções declarativas cíveis, a que não corresponda processo especial, e 
 ainda às acções especiais para o cumprimento de obrigações pecuniárias 
 emergentes de contratos (artigo 1.º).
 Este regime, nas palavras de LUÍS LAMEIRAS, “surge, portanto, com uma vocação 
 universal, destinada a abraçar a generalidade dos processos declarativos cíveis, 
 antes cobertos pelo procedimento declarativo comum” (In. “Comentário ao Regime 
 Processual Experimental”, pág. 10, da ed. de 2007, da Almedina).
 O processo civil declarativo comum deixa de ter várias formas (ordinário, 
 sumário e sumaríssimo) para obedecer a um regime único.
 Contudo, conforme consta da declaração preambular deste diploma, de forma a 
 permitir testar e aperfeiçoar o funcionamento deste novo regime, optou-se, num 
 primeiro momento, por circunscrever a sua aplicação a um conjunto de tribunais 
 a determinar por Portaria, tendo em consideração a elevada movimentação 
 processual que apresentem, atentos os objectos de acção predominantes.
 Daí que o artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro, dando 
 cumprimento ao disposto no n.º 1, do artigo 21.º, do Decreto-Lei n.º 108/2006, 
 de 8 de Junho, tenha determinado que este novo regime só era aplicável em alguns 
 Juízos Cíveis, nomeadamente nos do Tribunal da Comarca do Porto.
 Nos casos como o presente, em que numa acção instaurada num destes Juízos Cíveis 
 
 é-lhe fixado um valor superior ao da alçada do Tribunal da Relação, mormente por 
 força de dedução de pedido reconvencional, tem alguma jurisprudência entendido 
 que a competência para apreciar essa acção se mantém nesses Juízos Cíveis, uma 
 vez que a sua tramitação deve continuar a obedecer ao novo regime processual 
 experimental (vide as decisões do Presidente do Tribunal da Relação do Porto 
 proferidas em 8-4-2008, 5-6-2008 e 30-9-2008, acessíveis em www.dgsi.pt).
 Foi esta interpretação do disposto no artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 
 
 13 de Setembro, o qual se limitou a concretizar a previsão contida no n.º 1, do 
 artigo 21.º, do Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho, que a decisão recorrida 
 recusou, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica.
 Na verdade, ao considerar-se que os Juízes Cíveis do Tribunal da Comarca do 
 Porto mantém a competência para apreciar acções cujo valor processual foi 
 fixado, posteriormente à sua instauração, em montante superior à alçada do 
 Tribunal da Relação, está a ampliar-se o âmbito da competência destes Juízos, 
 aos quais, segundo os artigos 97.º, n.º 1, a), e n.º 3, e 99.º, da Lei de 
 Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), está subtraída a 
 competência para preparar e julgar acções declarativas cíveis de valor superior 
 
 à alçada do Tribunal da Relação, mesmo quando a fixação desse valor só ocorre no 
 decurso do processo já pendente nos Juízos cíveis.
 Nos termos do artigo 165.º, n.º 1, p), da C.R.P., é da exclusiva competência da 
 Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre a 
 organização e competência dos tribunais.
 O Tribunal Constitucional tem dito que esta reserva relativa abrange «para além 
 da definição das matérias cujo conhecimento cabe aos tribunais judiciais e a 
 daquelas cuja conhecimento cabe aos tribunais administrativos e fiscais … a 
 distribuição das matérias da competência dos tribunais judiciais pelos 
 diferentes tribunais de competência genérica e de competência especializada ou 
 específica» (v.g. os Acórdãos n.ºs 36/87, em ATC, 9.º vol., pág. 243, 356/89, em 
 ATC, 13.º vol. I, pág. 443, 72/90, em ATC, 15.º vol, pág. 67, 271/92, em ATC, 
 
 22.º vol. pág. 807, 163/95, em ATC, 30.º vol, pág. 849, 198/95, no D.R., II 
 Série, de 22-6-1995, e 268/97, no BMJ n.º 465, pág. 252).
 Quer as Varas, quer os Juízos cíveis, são tribunais da mesma competência 
 especializada em questões de natureza civil, tendo uma competência específica 
 definida essencialmente pelo valor processual das causas civis.
 A interpretação sindicada intromete-se na definição desta denominada competência 
 intrajudicial ou funcional das Varas e Juízos cíveis, em que estão em causa as 
 condições da intervenção dum tribunal de estrutura colectiva ou de estrutura 
 singular, fundamentalmente assente no critério do valor da causa.
 Não há razão para que esta repartição de competências entre tribunais da mesma 
 especialidade, tendo como critério essencial o valor da causa, e que se 
 diferenciam pela sua estrutura e pelas condições de acesso exigidas aos juízes 
 que os integram, também não se inclua na reserva relativa da Assembleia da 
 República definida na alínea p), do n.º 1, do artigo 165.º, da C.R.P., uma vez 
 que também ela respeita à organização e competência dos tribunais.
 Sendo estes um órgão de soberania (artigo 110.º, da C.R.P.), compreende-se que a 
 organização judiciária e a repartição das competências por todos os diferentes 
 tipos de tribunais que integram essa organização, para além do estatuído na 
 própria Constituição (artigos 209.º e seg.), seja tarefa reservada ao legislador 
 parlamentar.
 Ora, verifica-se que a interpretação sob fiscalização consagra uma regra de 
 repartição de competências entre as Varas e os Juízos cíveis que altera os 
 termos em que a Assembleia da República regulou tal matéria na LOFTJ, tendo essa 
 interpretação sido extraída do disposto no artigo 21.º, do Decreto-Lei n.º 
 
 108/2006, de 8 de Junho, concretizado pelo artigo único da Portaria n.º 
 
 955/2006, de 13 de Setembro.
 Não tendo aquele diploma do Governo sido emitido ao abrigo de autorização 
 concedida pela Assembleia da República, a referida interpretação normativa 
 infringe o disposto no artigo 165.º, n.º 1, p), da C.R.P., pelo que deveria ser 
 confirmada a recusa da sua aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, 
 julgando-se improcedente o recurso.
 
  
 João Cura Mariano