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Processo n.º 585/09
 
 2ª Secção
 Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
 
 
 Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
 
 
 
             I – Relatório
 
  
 
 1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Comarca do Alentejo Litoral 
 
 (Alcácer do Sal), em que é recorrente A., SA, e recorrida B., foi interposto 
 recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do 
 artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal 
 Constitucional (LTC), para apreciação da constitucionalidade das normas «que se 
 obtêm, pela interpretação, do artigo 12.° da Lei n.° 24/2007, de 18 de Julho 
 
 (define direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como 
 auto-estradas concessionadas, itinerários principais e itinerários 
 complementares) e, ainda, as constantes dos artigos 4.° a 12.° da mesma Lei, na 
 medida em que, com as normas directamente visadas, tenham relações sistemáticas 
 de implicação.»
 
  
 
 2. A recorrente apresentou alegações onde conclui o seguinte:
 
 « I — Quanto à matéria em discussão: 
 
 1ª  No dia 19-Nov.-2005, o veículo XX, na sequência de um embate com um cão na 
 A2, com danos matérias, foi demandada a concessionária A.. 
 
  
 
 2ª  Verificou-se que a auto-estrada estava devidamente vedada e que a A. fizera 
 as  patrulhas regulamentares, nada tendo detectado de anormal. 
 
 3ª A 1ª Instância entendeu que A., enquanto Ré, não ilidiu uma presunção de 
 incumprimento que, sobre ela, empenderia, condenando-a, 
 
 4ª Fazendo aplicação retro activa da Lei n° 24/2007, de 18 de Julho. 
 II— Quanto à Lei n°24/2007, de 18 de Julho: 
 
 5ª  A A. é uma sociedade concessionária da construção, manutenção e exploração 
 de auto-estradas, caindo nos deveres previstos nas bases anexas ao Decreto-Lei 
 n.° 294/97, de 24 de Outubro. 
 
 6 ª  Na sequência de obras de alargamento na Ai, a Assembleia da República 
 aprovou a Resolução n.° 14/2004, de 31 de Janeiro (DR I Série-A, n.° 137, de 
 
 31-Jan.- 2004, p. 550), na qual pede ao Governo a alteração das bases da 
 concessão, de modo a suspender as portagens nas vias em obras e a melhor 
 informar os utentes da sua ocorrência. 
 
 7ª   Seguiram-se negociações entre o Governo e as concessionárias: 
 inconclusivas, por falta de disponibilidades orçamentais. 
 
 8ª   Posto o que foram, no Parlamento, apresentados dois projectos de Lei: 
 Projecto n.° 145/X (PCP) e n.° 164/X (BE); veio a ser aprovado o primeiro 
 
 (Decreto n.° 122/X), o qual deu azo à Lei n.° 24/2007, de 18 de Julho, 
 destinada, no fundo, a conseguir sem contrapartidas, o que não fora possível 
 pela negociação. 
 
 9ª  A Lei n.° 24/2007 veio, no essencial, fixar um esquema mais denso e mais 
 gravoso, para as concessionárias, na hipótese de obras nas auto-estradas: sem 
 compensação. 
 
 10ª Além disso, adoptou um sistema que pode conduzir, na hipótese de obras, à 
 suspensão das taxas e ao afastamento do princípio do equilíbrio financeiro: 
 também sem compensação. 
 
 11ª Finalmente e perante um certo tipo de acidentes (entre os quais os derivados 
 do atravessamento de animais) estabeleceu uma denominada “presunção de 
 incumprimento”, contra as concessionárias: igualmente sem compensação. 
 III — Quanto aos juízos de inconstitucionalidade 
 A - Primeiro fundamento: violação dos princípios do Estado de direito 
 democrático e da separação de poderes (artigo 2.º) 
 
 12ª A Lei n.° 24/2007 vem invadir os poderes nucleares do Governo enquanto órgão 
 superior da administração pública — 182.° — incumbido da direcção da 
 administração directa do Estado — 199.°, d). 
 
 13ª Com efeito, cabe apenas ao Governo negociar os contratos públicos de 
 concessão, tanto mais que apenas ele tem os meios técnicos e humanos necessários 
 para o efeito; nesse sentido, de resto, o próprio Parlamento adoptou a já 
 referida Resolução n.° 14/2004. 
 
 14ª A Lei n.° 24/2007 traduz, logo por aí, uma intromissão do Parlamento na área 
 própria do Governo, pondo em crise o princípio da separação dos poderes e 
 violando o artigo 2.° da Constituição. 
 
 15ª Além disso, a Lei n.° 24/2007, designadamente através do seu artigo 12.°/1, 
 veio interferir na composição de litígios já em curso, surgidos entre 
 particulares. 
 
 16ª Tais litígios só podem ser dirimidos pelos tribunais (202.°/2), sob pena de 
 se pôr também em causa o direito de acesso aos mesmos, para defesa dos direitos 
 
 (20.°/1). 
 
 17ª A Lei n.° 24/2007 equivale a uma intromissão do Parlamento no núcleo do 
 poder judicial; põe em causa, num ponto estruturante do nosso ordenamento, o 
 princípio da separação de poderes, violando, também por aqui, o artigo 2° da 
 Constituição. 
 B - Segundo fundamento: violação do principio da igualdade (artigo 13.º) 
 
 18ª O Direito assenta no postulado básico de tratar o igual de modo igual e o 
 diferente de modo diferente, de acordo com a medida da diferença: a essa luz, as 
 soluções desarmónicas são, já por si, contrárias ao princípio da igualdade. 
 
 19ª Direito civil, na sequência de um esforço milenário de equilíbrio, distingue 
 a responsabilidade obrigacional da aquiliana: a obrigacional, emergente da 
 violação de deveres concretos pré-existentes, prevê uma presunção de culpa, 
 perante o incumprimento (mais severo); a aquiliana, correspondente à 
 inobservância de deveres gerais de respeito. não comporta tal presunção (mais 
 leve): artigos 799.°/1 e 487.°/1, do Código Civil. 
 
 20ª A cominação de um ou outro tipo de responsabilidade não é arbitrária: 
 depende da materialidade em jogo, sob pena de atingir a igualdade. 
 
 21ª No caso de acidentes em auto-estrada, mostrando-se cumpridos os deveres 
 específicos a cargo da A., apenas queda verificar se, com violação do dever 
 genérico de respeito, foram violados direitos dos utentes: a responsabilidade é, 
 pela natureza das coisas, aquiliana. 
 
 22ª A “presunção de incumprimento”, ao interferir (e na medida em que interfira) 
 nessa questão, viola o artigo 13°/1, da Constituição. Sem conceder, 
 
 23ª A igualdade constitucional projecta-se no princípio da igualdade rodoviária: 
 nas diversas vias e aos vários utentes aplicam-se regras genéricas e nunca ad 
 hominem. 
 
 24ª Daí que não seja compaginável, nas auto-estradas, uma regra de maior 
 protecção (ou menor risco) dos utentes, em função de gerar coordenadas 
 jurídicas: ser ou não um lanço concessionado; haver ou não portagem; estar em 
 causa o condutor ou o passageiro, como exemplos: seria violado o artigo 13.°/1. 
 Sem conceder, 
 
 25ª O artigo 12.°/1 da Lei n.° 24/2007 veio, de facto, fixar uma presunção de 
 
 “não- cumprimento” (e, não, de culpa); com isso estabelece, de facto, um regime 
 de imputação objectiva: mesmo cumprindo todos os seus deveres, a concessionária 
 ainda será responsabilizada pelo resultado, numa manifestação de puro risco. 
 
 26ª A responsabilidade pelo risco é expoliativa: só se admite em casos 
 especiais, para o futuro, com limitação das indemnizações e acompanhamento por 
 seguros. In casu, nada disso foi ponderado: há nova via de 
 inconstitucionalidade, por discriminação subjectiva, atingindo-se o artigo 
 
 13.°/1 da Lei Fundamental. Sem conceder, 
 
 27ª A Lei n.° 24/2007, em vários dos seus preceitos, designadamente o artigo 
 
 12.°/l. veio atingir selectivamente os direitos das concessionárias; fé-lo fora 
 de quaisquer pressupostos tributários, violando, também por aqui, a igualdade 
 prevista no artigo 13.°/1, da Constituição. 
 C — Terceiro fundamento: violação da tutela da propriedade privada 
 
 28ª A recorrente A. detém um acervo patrimonial enquanto parte num contrato de 
 concessão; tal acervo, ainda que contratual, é protegido pela Constituição, por 
 reconduzir-se a uma noção ampla de propriedade (artigo 62.°/1, da Constituição). 
 
 
 
 29ª A Lei n.° 24/2007, em vários dos seus preceitos e, designadamente, no seu 
 artigo 12.°, veio atingir direitos patrimoniais pré-existentes, sem compensação: 
 violou a propriedade privada. 
 
 30ª No caso do artigo 12.° em causa, esse fenómeno mais flagrante se toma: foi 
 criada, com referência a situações pré existentes, uma situação objectiva de 
 risco, que é substancialmente amputante de valores patrimoniais: a violação do 
 artigo 62.°/1, da Constituição, surge apodíctica. 
 IV — Quanto à relevância nos autos: 
 
 31ª A Lei n.° 24/2007 levou o Tribunal de primeira Instância a abdicar da sua 
 judicação: não atentou nos factos apurados, designadamente nos que traduziram, 
 por parte da A., o cumprimento das suas obrigações. 
 
 32ª Além disso, a douta sentença ora recorrida fez, da Lei n.° 24/2007, uma 
 aplicação retroactiva, o que mais ampliou as apontadas inconstitucionalidades. 
 
 33ª A não se aplicar a Lei n.° 24/2007, a saída para o litígio em discussão 
 seria a inversa. 
 Nestes termos e naqueles que, suprindo, os Venerandos Conselheiros 
 Constitucionais queiram subscrever, deve ser declarada a inconstitucionalidade 
 material da Lei n.° 24/2007 e, designadamente, do seu artigo 12.°, por violação, 
 inter alia, dos artigos 2.°, 13.°/1 e 62.°/1, da Constituição, assim se dando 
 provimento ao presente recurso.»
 
  
 
 3. A recorrida não contra-alegou.
 
  
 
 4. O presente recurso emerge de acção declarativa de condenação com processo 
 sumaríssimo, intentada por B. contra A., SA, na qual a autora pede a condenação 
 da ré no pagamento de indemnização por ter sofrido um acidente de viação, em 
 virtude de choque entre o seu veículo e um canídeo, ocorrido em auto-estrada de 
 que é concessionária a ré.
 Por sentença do Tribunal da Comarca do Alentejo Litoral (Alcácer do Sal), a 
 acção foi julgada parcialmente procedente e a ré condenada a pagar à autora a 
 quantia de €3472,66, acrescida de juros legais.
 
 É desta sentença que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade.
 
  
 
 5. Ocorrida mudança de relator, por o primitivo relator ter cessado funções 
 neste Tribunal, cumpre apreciar e decidir.
 
  
 
  
 II − Fundamentação
 
  
 A) Delimitação do objecto do recurso
 
  
 
 6. No requerimento de interposição do recurso, a recorrente afirma pretender a 
 apreciação da constitucionalidade das normas “resultantes da interpretação do 
 artigo 12.° da Lei n.° 24/2007, de 18 de Julho”, e, ainda, das “constantes dos 
 artigos 4.° a 12.° da mesma Lei, na medida em que, com as normas directamente 
 visadas, tenham relações sistemáticas de implicação”.
 Nas conclusões das alegações de recurso, termina pedindo que seja declarada a 
 
 «inconstitucionalidade material da Lei n.° 24/2007 e, designadamente, do seu 
 artigo 12.°, por violação, inter alia, dos artigos 2.°, 13.°, n.º 1, e 62.°, n.º 
 
 1, da Constituição».
 O recurso de constitucionalidade, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do 
 artigo 70.º da LTC, apenas pode ter por objecto normas ou interpretações 
 normativas, cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada pela recorrente 
 perante o tribunal recorrido, e que tenham por efectivamente aplicadas na 
 decisão recorrida, como sua ratio decidendi.
 Acresce que o objecto do recurso é delimitado no respectivo requerimento de 
 interposição, não podendo ser alargado na fase das alegações. 
 Por isso, não podem integrar o presente recurso todas as normas da Lei n.º 
 
 24/2007 não referidas nesse requerimento (que, como vimos, alude apenas aos 
 artigos 4.º a 12.º da lei). Não pode igualmente ser apreciada a questão da 
 alegada “aplicação retroactiva” da Lei n.º 24/2007 (a que a recorrente, se 
 refere, pela primeira vez, nas alegações do presente recurso), por não ter sido 
 suscitada perante o tribunal recorrido nem ter sido incluída no objecto do 
 recurso tal como delimitado no respectivo requerimento de interposição.
 No caso em apreço, a sentença recorrida, ao apreciar os pressupostos da 
 responsabilidade civil, de que depende o direito de indemnização, considerou 
 aplicável ao caso o disposto no artigo 12.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 
 
 24/2007. Pelo que o objecto do recurso terá que se considerar limitado à 
 apreciação da constitucionalidade desta norma.
 
  
 B) Mérito do recurso
 
  
 
 7. O artigo 12.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 24/2007 reza assim:
 
 «Artigo 12.º
 Responsabilidade
 
 1 — Nas auto -estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente 
 rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do 
 cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a 
 respectiva causa diga respeito a:
 a) (…);
 b) Atravessamento de animais;
 c) (…).
 
 2 — (…).
 
 3 — (…):
 a) (…);
 b) (…);
 c) (…).»
 
  
 A norma do n.º 1 deste artigo 12.º foi já apreciada por esta 2.ª Secção do 
 Tribunal Constitucional, nos Acórdãos n.ºs 596/2009 e 597/2009 (este restrito à 
 alínea b) daquele preceito legal), ambos de 18.11.2009.
 Nestes arestos, motivados por recursos igualmente interpostos pela aqui 
 recorrente, o Tribunal, apreciando casos idênticos ao dos presentes autos, 
 pronunciou-se unanimemente pela não inconstitucionalidade da norma em causa, 
 considerando, além do mais, que a mesma não violava os princípios do Estado de 
 direito e da separação de poderes, nem o princípio da igualdade, nem a tutela da 
 propriedade privada. 
 Não colocando o presente caso qualquer questão nova que deva ser apreciada, 
 reitera-se aqui esta jurisprudência, inteiramente aplicável ao caso em apreço.
 
  
 III − Decisão
 
  
 Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
 a)      Não julgar inconstitucional a norma do artigo 12.º, n.º 1, alínea b), da 
 Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho;
 b)      Consequentemente, negar provimento ao recurso.
 Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) UCs.
 Lisboa, 2 de Dezembro de 2009
 Joaquim de Sousa Ribeiro
 João Cura Mariano
 Benjamim Rodrigues
 Rui Manuel Moura Ramos