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Processo n.º 100/03
 
 2.ª Secção
 Relator: Conselheiro Mário Torres
 
  
 
  
 
  
 
                Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
 
  
 
  
 
                1. Relatório
 
                Em acção de despejo instaurada na 4.ª Vara Cível da Comarca do 
 Porto, A. formulou, contra B., L.da, com fundamento no não pagamento das rendas 
 vencidas desde 1 de Outubro de 2000, pedido de condenação na entrega, 
 inteiramente devolutas de pessoas e bens, de três fracções autónomas por ele 
 arrendadas a essa ré e no pagamento das rendas vencidas e vincendas.
 
                A ré contestou, excepcionando a sua ilegitimidade, por, em 20 de 
 Maio de 1998, ter comunicado por fax ao autor, após conversações entre ambos, a 
 cedência do estabelecimento a C., L.da, comunicação que, recepcionada pelo 
 autor, foi por ele assinada e devolvida, tendo a ré formalizado o trespasse por 
 escritura pública celebrada em 17 de Setembro de 1998, tendo a partir desta data 
 a C. assumido a posição de arrendatária.
 
                O autor, na réplica, para além de ampliar a causa de pedir à não 
 comunicação do alegado trespasse, pediu a intervenção principal desta sociedade.
 
                Citada a C., veio esta interveniente contestar e reconvir, 
 corroborando a descrição dos factos feita pela ré B. e aduzindo, em suma, que 
 em 21 de Dezembro de 1999, acordou com o autor a compra e venda das fracções, 
 pelo preço de Esc. 190 000 000$00, montante em que seriam reduzidos os valores 
 até aí entregues a título de rendas, tendo no acto, como sinal e princípio de 
 pagamento, a C. entregue dois cheques pré‑datados, nos valores de Esc. 2 000 
 
 000$00 e 2 210 000$00, que posteriormente foram recebidos pelo autor. Apesar de 
 posteriormente ter efectuado entregas de valores no total de Esc. 3 912 500$00, 
 um representante do autor ter-lhe‑á comunicado, no decurso do ano de 2001, que o 
 referido acordo ficara sem efeito. Termina preconizando a improcedência da 
 acção e deduzindo reconvenção, visando a condenação do autor na execução 
 específica do contrato promessa de compra e venda ou, em alternativa, a 
 pagar‑lhe o valor das fracções à data da rescisão, com dedução do preço 
 convencionado, ou restituir‑lhe o sinal e a parte do preço que pagou em dobro.
 
                Após réplica do autor à contestação da interveniente e frustração 
 de tentativa de acordo, o autor veio requerer o despejo imediato do locado, ao 
 abrigo do artigo 58.° do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo 
 Decreto‑Lei n.º 321‑B/90, de 15 de Outubro (doravante designado por RAU), com 
 fundamento na falta de pagamento, quer pela primitiva ré, quer pela 
 interveniente, das rendas vencidas na pendência do processo, pretensão a que a 
 interveniente se opôs, aduzindo que, aquando da celebração do acordo tendo em 
 vista a venda das fracções em causa, o autor dispensou a interveniente do 
 pagamento da renda, conforme já alegado na artigo 13.º da contestação, para além 
 de que, face à posição do autor que considera ineficaz o trespasse efectuado, 
 encontra‑se por determinar quem é o actual arrendatário das fracções.
 
                Foi elaborada a base instrutória, com formulação de quesitos 
 relativos, designadamente, à alegada celebração de contrato promessa de compra 
 e venda entre o autor e a interveniente, à entrega por esta de valores por conta 
 do preço estipulado e à falta de colaboração do autor no sentido da celebração 
 do contrato definitivo de compra e venda (quesitos 14.º a 26.º). E, de seguida, 
 foi proferido despacho a decretar o despejo imediato da ré e da interveniente do 
 local em causa, do seguinte teor:
 
  
 
    “Incidente de despejo imediato de fls. 116 e seguintes:
 
    Vem o autor requerer este incidente, nos termos do artigo 58.º do RAU, 
 invocando completa falta de pagamento de rendas até 8 de Março de 2002.
 
    Ouvidas a ré e a interveniente (demandada a título subsidiário) nem uma nem 
 outra fizeram prova do pagamento ou depósito de qualquer das rendas em causa, 
 invocando esta última a circunstância de estar alegada a dispensa de pagamento 
 de rendas.
 
    Cumpre decidir.
 
    É fundamento de despejo imediato a não comprovação do pagamento das rendas 
 vencidas após o termo do prazo da contestação quando seja causa de pedir da 
 acção a falta de pagamento de rendas.
 
    O arrendatário, a título de réu principal ou subsidiário, apenas pode fazer 
 prova documental do pagamento ou do depósito das rendas respectivas.
 
    Não lhe é permitido invocar quaisquer circunstâncias modificativas ou 
 impeditivas do pagamento, sendo as mesmas a apreciar e a decidir na acção.
 
    Nenhum dos ouvidos fez tal prova.
 
    Assim, nos termos da norma referida, decreto o despejo imediato da ré e da 
 interveniente do locado, sendo este constituído pelas fracções descritas em A) e 
 B) da matéria assente.”
 
  
 
                A interveniente interpôs recurso de agravo deste despacho para o 
 Tribunal da Relação do Porto, terminando as respectivas alegações com a 
 formulação das seguintes conclusões:
 
  
 
    “1. A douta decisão recorrida, ao considerar que, no âmbito do incidente 
 previsto no artigo 58.º do RAU, a recorrente «apenas pode fazer prova 
 documental do pagamento ou de depósito das rendas respectivas», não lhe sendo 
 
 «permitido invocar quaisquer circunstâncias modificativas ou impeditivas do 
 pagamento», fez incorrecta interpretação do citado preceito, contrariando a 
 jurisprudência que vem sendo seguida a propósito, designadamente a constante do 
 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Maio de 1998, in Colectânea de 
 Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1998, tomo 2, pág. 81, 
 e do Acórdão da Relação do Porto, de 17 de Maio de 1994, Boletim do Ministério 
 da Justiça, n.° 437, pág. 577.
 
    2. Perante a actual redacção do artigo 58.° do RAU não é mais aceitável a 
 conclusão que prevalecia no domínio de aplicação do anterior artigo 979.º do 
 CPC, nos termos da qual a única defesa relevante que o arrendatário pode 
 produzir é demonstrar que pagou ou depositou a renda.
 
    3. Da actual redacção do artigo 58.° do RAU resulta que este artigo pressupõe 
 que as rendas deviam ser pagas e não o foram; isto é o mesmo que dizer que não 
 se justifica o despejo imediato previsto no artigo 58.° do RAU quando se discute 
 se aquele que se arroga o direito de receber renda está, ou não, em situação de 
 poder exigi‑la.
 
    4. A providência do artigo 58.° do RAU pressupõe que se encontra assente a 
 relação processual entre demandante e demandado.
 
    5. Nos presentes autos, é o próprio autor que põe em causa a validade do 
 arrendamento em relação à recorrente C., não a reconhecendo como actual legítima 
 arrendatária, sustentando expressamente que o trespasse realizado é ineficaz em 
 relação a si (cfr. artigos 4.º, 13. °, 14. ° e 15. ° da réplica).
 
    6. Daí que, não sendo à recorrente reconhecida pelo senhorio a qualidade de 
 actual arrendatária, não se lhe pode impor uma obrigação (pagar rendas) que 
 apenas sobre o detentor de tal posição impende.
 
    7. A dar‑se como assente (?) a validade do arrendamento nos termos em que o 
 autor configurou a presente acção, então a obrigação de pagar as rendas recairia 
 sobre a ré B. – que, nos termos da petição inicial, é a única entidade 
 reconhecida pelo autor como legítima arrendatária (cfr. artigos 4.°, 13.º e 15.º 
 da réplica).
 
    8. Sendo controversos os termos que assumiu a relação locatícia estabelecida 
 entre as partes, o que foi levado à base instrutória dos presentes autos, 
 nomeadamente por indefinição quanto à identidade do actual arrendatário e actual 
 montante das rendas, não é possível impor a qualquer uma das rés uma obrigação 
 
 (pagamento de rendas) sem previamente se apurar quem possui legitimidade para 
 suportar tal obrigação e qual o actual montante mensal da renda.
 
    9. Por outro lado, na sua defesa, a recorrente veio alegar factos que 
 colocam em causa o direito que o autor se arroga de receber rendas, 
 nomeadamente por ter sido este que a dispensou do respectivo pagamento (artigo 
 
 13.° da contestação) e ainda porque se recusou a dar quitação (artigo 31.° da 
 contestação).
 
    10. Assim sendo, é inaceitável que o arrendatário, não tendo pago por razões 
 unicamente imputáveis ao senhorio, esteja obrigado a ir pagar ou depositar, com 
 indemnização, as rendas em questão.
 
    11. É que o incidente previsto no artigo 58.º do RAU, «porque é de uma nova 
 acção – incidental embora – que se trata, ao arrendatário está aberta a 
 possibilidade de se opor ao seu senhorio do mesmo modo e nos exactos termos em 
 que se lhe oporia numa acção autónoma» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 
 de 11 de Novembro de 1995, in Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo 
 Tribunal de Justiça, 1995, tomo 3, pág. 59).
 
    12. Aliás, o entendimento do despacho recorrido viola as disposições dos 
 artigos 2.°, 9.°, alínea b), 13.°, 18.° e 20.°, n.ºs 1 e 4, da Lei Fundamental, 
 colidindo directamente contra princípios constitucionais como o do Estado de 
 direito democrático, princípio da igualdade, do acesso ao direito e tutela 
 jurisdicional efectiva.”
 
  
 
                Por acórdão de 14 de Novembro de 2002, este Tribunal da Relação 
 negou provimento ao agravo, desenvolvendo, para tanto, a seguinte 
 fundamentação:
 
  
 
 “III – Temos, portanto, que, na situação em presença, o autor pretende, através 
 do incidente a que se reporta o artigo 58.° do RAU, obter o despejo imediato das 
 fracções objecto do contrato de arrendamento, invocado como causa de pedir na 
 acção em que o aludido incidente foi deduzido.
 Com efeito, do indicado normativo da codificação locatícia urbana decorre que, 
 durante a pendência de qualquer acção de despejo que haja sido instaurada, 
 devem continuar a ser pagas ou depositadas as rendas devidas, constituindo a 
 omissão de tal pagamento fundamento para a dedução de uma nova acção, agora de 
 natureza incidental, a qual é enxertada na acção principal, independentemente 
 de, nesta, ser idêntica ou diversa a causa de pedir que haja sido aduzida pelo 
 senhorio, como fundamento para a resolução do contrato de arrendamento 
 celebrado.
 Na verdade, a obrigação de pagamento da renda convencionada ou fixada, imposta 
 ao locatário como contrapartida da obrigação que impende sobre o locador de 
 proporcionar àquele o gozo da coisa, constitui um dos requisitos do contrato de 
 locação em geral – artigos 1022.° e 1038.°, alínea a), do Código Civil – e, na 
 concreta situação em apreço, do contrato de arrendamento urbano – artigos 1.º e 
 
 8.°, n.° 1, alínea c), do RAU –, requisito esse, aliás, representativo do 
 sinalagma funcional em que se desdobra o negócio jurídico bilateral em que foram 
 intervenientes senhorio e inquilino – vide Das Obrigações em Geral, do Prof. 
 Antunes Varela, vol. I, 8.ª edição, pág. 396.
 Temos, pois, que, no aludido normativo locatício – artigo 58.° do RAU –, aliás 
 analogamente ao já antecedentemente estatuído no artigo 979.° do Código de 
 Processo Civil de 1961, consagra‑se a atribuição ao senhorio, e no decurso da 
 tramitação de uma qualquer acção de despejo pelo mesmo instaurada, da 
 possibilidade de utilização da faculdade de obtenção daquele desiderato por via 
 incidental, desde que se verifique a existência cumulativa de dois pressupostos 
 fundamentais, traduzidos na falta de pagamento pelo inquilino das rendas 
 devidas pela ocupação e uso do imóvel e na circunstância de tais rendas se terem 
 vencido na pendência da lide – n.° 2 daquele artigo 58.° e Código Civil Anotado, 
 dos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, vol. II, 4.ª edição, pág. 586.
 Com efeito, salvo convenção em contrário, no domínio do arrendamento urbano, há 
 lugar ao vencimento das rendas locatícias, no primeiro dia útil do mês do 
 calendário gregoriano imediatamente anterior àquele a que as mesmas digam 
 respeito – artigo 20.° do RAU –, donde portanto decorre que, para que possa 
 haver lugar a rendas vencidas no decurso de uma acção de despejo, torna-se 
 necessário, sob o ponto de vista do obrigado ao pagamento daquelas – 
 arrendatário –, que se verifique a existência de um arrendamento pelo mesmo não 
 impugnado na acção instaurada, impugnação essa respeitante, quer quanto ao 
 conteúdo do objecto do contrato, quer quanto à titularidade do direito, 
 relativamente àquele que se arroga, para o recebimento das referidas rendas, a 
 assunção da qualidade de senhorio – Arrendamento Urbano, do Cons. Aragão Seia, 
 
 6.ª edição, pág. 367.
 Na verdade, a consagração, por via legislativa, do referido despejo incidental, 
 constitui «a única forma de evitar que alguém possa, gratuitamente, desfrutar de 
 imóveis, durante o longo período que pode levar à conclusão de um despejo e numa 
 situação que já não seria reparada por nenhuma condenação em indemnização ou em 
 rendas vencidas, sempre que o despejado não tivesse bens bastantes» – n.° 11 do 
 preâmbulo do Decreto‑Lei n.° 321‑B/90, de 15 de Outubro.
 Por outro lado, confinando‑se a tramitação processual do aludido incidente à 
 petição do senhorio e à resposta do arrendatário, o único meio de defesa de que 
 este pode lançar mão, a fim de obviar ao decretamento do despejo imediato do 
 arrendado, encontra‑se limitado à alegação do pagamento ou do depósito do 
 quantitativo invocado pelo senhorio como encontrando‑se em dívida – artigo 
 
 58.°, n.° 3, do RAU –, já que a alegação de quaisquer circunstâncias 
 modificativas ou impeditivas da efectivação do atempado pagamento pelo 
 arrendatário das rendas vencidas na pendência da acção, inclusive a mora 
 accipiendi do senhorio – Boletim do Ministério da Justiça, n.º 484, pág. 355 –, 
 têm como necessário pressuposto da sua relevância a possibilidade de produção de 
 prova sobre tais factos, possibilidade essa, porém, que se não coaduna com os 
 meios probatórios estabelecidos pelo legislador, relativamente a tal 
 procedimento incidental.
 Com efeito, a prova a produzir, tendente à caducidade do despejo peticionado 
 pelo senhorio, embora pelo legislador haja sido consagrada a sua efectivação 
 por qualquer meio – artigo 58.°, n.° 3, do RAU e Novo Regime do Arrendamento 
 Urbano, do Prof. Menezes Cordeiro e Dr. Francisco Fraga, pág. 105 –, 
 contrariamente, aliás, ao que se dispunha no artigo 979.°, n.° 2, do Código de 
 Processo Civil, quanto à exclusividade da prova do pagamento das rendas vencidas 
 no decurso da acção ter de revestir a forma de documento, reconduz‑se, todavia, 
 e em última análise, apenas àquela prova documental.
 Assim, e desde logo, se não sofre dúvidas que a prova do pagamento ou do 
 depósito das rendas em mora resulta, necessariamente, do competente recibo ou 
 do duplicado da guia do respectivo depósito bancário, por outro lado, a 
 obrigatoriedade legal da apresentação da prova daqueles indicados factos 
 extintivos do direito peticionado ter de acompanhar a resposta do arrendatário 
 
 – artigo 58.°, n.° 3, do RAU –, constitui factor manifestamente obstaculizante 
 de que sobre os mesmos possa ser produzido qualquer outro meio de prova, com 
 excepção, a priori, da confissão extrajudicial do senhorio, a qual, porém, tem 
 igualmente de revestir a forma escrita, dado que a antecedentemente 
 referenciada simplificação processual dos actos que integram o incidente em 
 apreço não se compadece com a possibilidade de poder ter lugar a confissão 
 judicial – artigos 352.°, 355.° e 364.°, n.° 2, do Código Civil.
 Temos, portanto, e em síntese, que, caso não seja feita, documentalmente, e 
 pelo arrendatário, a prova do pagamento ou do depósito das rendas vencidas na 
 pendência da acção, tem, óbvia e necessariamente, de ser decretado o despejo 
 incidental imediato, requerido pelo senhorio.
 Ora, na situação que nos vem presente para decisão, mostra‑se aceite pelos 
 respectivos sujeitos passivos processuais – ré e interveniente –, que as 
 fracções que o autor ora pretende ver despejadas, por falta de pagamento das 
 rendas vencidas na pendência da acção por si instaurada, foram objecto de 
 arrendamento para comércio de mobiliário, não tendo sido objecto de qualquer 
 impugnação quer a titularidade da qualidade de senhorio por aquele invocada, 
 quer a existência de qualquer vício susceptível de constituir factor limitativo 
 do pleno uso e fruição do arrendado por parte da interveniente que, na lide, se 
 arroga a qualidade de arrendatária.
 Temos, portanto, que, encontrando‑se a recorrente a ocupar o locado, não 
 vislumbramos a que título, e com que fundamento legal, possa aquela questionar a 
 obrigação de eximir‑se ao pagamento da retribuição correspondente à aludida 
 disponibilidade de uso do mesmo, durante o período de pendência da acção de 
 despejo, já que, impendendo tal obrigação, como já anteriormente foi referido, 
 das normas em vigor para o contrato de arrendamento, nestas não foi consagrada 
 qualquer norma susceptível de, nas circunstâncias descritas, isentar o 
 arrendatário do pagamento da renda devida.
 Por outro lado, a já «estafada e comum» alegação de inconstitucionalidade de 
 qualquer norma que não sirva os interesses da parte vencida, também, e em nosso 
 entender, no caso em apreço, não colhe qualquer acolhimento.
 Com efeito, a recorrente alegou a inconstitucionalidade do artigo 58.° do RAU, 
 quando interpretado no sentido de a defesa por parte do arrendatário se 
 restringir apenas à prova documental, alegação essa que se torna, inclusive, 
 incompreensível na situação vertente, uma vez que, tendo a mesma referido que, a 
 partir de Setembro de 2000, «não procedeu a qualquer pagamento adicional ao 
 autor» – artigos 20.° e 32.° da contestação de fls. 46 e seguintes –, não 
 vislumbramos como poderia ser objecto de prova testemunhal a ocorrência de um 
 facto – pagamento das rendas vencidas na pendência da acção –, aliás o único em 
 causa no incidente em apreço, que a própria recorrente afirma não se ter 
 verificado.
 Todavia, ainda que o direito de defesa revista reconhecimento expresso de índole 
 constitucional, no âmbito do processo criminal – artigo 32.° da CRP –, e, de 
 natureza implícita, no domínio do processo civil – artigo 20.°, n.° 1, da CRP –, 
 tal direito, que tem como necessário pressuposto o chamamento do réu a juízo – 
 artigo 3.°, n.° 1, do Código de Processo Civil –, concretiza‑se, relativamente 
 
 àquele, no conhecimento efectivo do processo instaurado, na concessão de um 
 prazo suficientemente amplo para a dedução de oposição e no tempero da rigidez 
 das preclusões e cominações decorrentes da falta de contestação – Introdução ao 
 Processo Civil, do Prof. Lebre de Freitas, pág. 83 –, matérias estas das quais 
 se encontra manifestamente afastada a que se relaciona com os meios probatórios 
 admissíveis, na fase processual da instrução, quanto aos factos alegados pelas 
 partes intervenientes na lide.
 Na verdade, a opção do legislador comum por determinado meio de prova, em 
 detrimento de outro, não configura que tal opção seja violadora das garantias de 
 defesa daquele a quem incumbe a prova do facto em causa, antes sim constituindo 
 um meio de garantia e certeza do tribunal, quanto ao cumprimento ou 
 incumprimento de determinada obrigação, por parte daquele sobre quem impenda a 
 produção de tal meio de prova, encontrando‑se, portanto, em íntima correlação 
 com uma clara e nítida intenção da entidade legiferante de permitir ao órgão 
 judicial a prolação de uma decisão que constitua a efectiva concretização da 
 correcta e inquestionável solução do direito em litígio.
 Improcedem, pois, as conclusões da agravante.
 
  
 
                IV – Porém, ainda que, por mero exercício de raciocínio, pudesse 
 colher qualquer acolhimento a tese da recorrente, quanto à preterição, na 
 decisão impugnada, dos meios probatórios que são legalmente admissíveis no 
 incidente deduzido, sempre, porém, lhe não assistiria qualquer razão, no que 
 respeita à decidida restituição imediata do arrendado ao autor.
 
                Com efeito, à data da outorga do contrato de arrendamento 
 invocado na acção – 15 de Novembro de 1995 –, encontrava‑se em vigor a primitiva 
 redacção do artigo 7.° do RAU, em cujo n.° 2 se estatuía a obrigatoriedade de 
 redução a escritura pública dos arrendamentos para o exercício do comércio – 
 alínea b) e artigo 80.°, n.° 2, alínea l), do Código do Notariado.
 
                E, se é certo que tal imposição legal foi abolida pelo 
 Decreto‑Lei n.° 64‑A/2000, de 22 de Abril, a qual determinou a substituição da 
 exigência daquele documento autêntico por mero documento escrito – n.° 1 do 
 citado artigo 7.° do RAU –, a referida alteração, todavia, é irrelevante, 
 relativamente aos contratos, que, embora celebrados em momento anterior, se 
 mantinham em plena vigência à data da entrada em vigor da modificação ocorrida 
 quanto à forma a observar na sua celebração.
 
                Tal inaplicabilidade resulta do facto de a lei nova, referente à 
 forma a observar na celebração dos negócios jurídicos, ter o seu âmbito de 
 aplicação circunscrito às situações jurídicas que se venham a constituir após a 
 sua entrada em vigor, daí decorrendo a inalterabilidade das imposições legais 
 que se mostravam exigíveis à data da constituição das relações jurídicas já 
 existentes – artigo 12.°, n.° 2, do Código Civil, Código Civil Anotado, dos 
 Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, vol. I, 4.ª edição, pág. 61, e Sobre a 
 Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, do Prof. Baptista Machado, págs. 65, 
 
 66, 69 e 70.
 
                Assim, e uma vez que a celebração do contrato de arrendamento 
 entre o autor e a ré teve lugar por escrito particular, datado de 15 de Novembro 
 de 1995, ou seja, já no domínio da vigência do RAU – 1995 –, sempre, 
 igualmente, lhe será inaplicável o disposto no artigo 6.° do diploma preambular 
 do Decreto‑Lei n.° 321‑B/90, pelo que, consequentemente, a inobservância da 
 forma à data legalmente estabelecida para a celebração dos contratos de 
 arrendamento destinados a fim comercial tem como directa e imediata 
 consequência a nulidade do referido negócio jurídico – artigo 220.° do Código 
 Civil.
 
                Por outro lado, encontra‑se também apurado nos autos que a ré 
 procedeu ao trespasse à interveniente, e ora recorrente, do estabelecimento 
 comercial instalado nas fracções objecto do contrato de arrendamento celebrado 
 entre o autor e aquela trespassante.
 
                Ora, em caso de ocorrência do trespasse do estabelecimento 
 comercial ou industrial, que pode definir‑se como sendo o contrato mediante o 
 qual o arrendatário transmite para outrem, a título definitivo, juntamente com 
 o gozo do prédio, a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial no 
 mesmo instalado, transmissão essa que, normal e habitualmente, engloba o 
 respectivo direito ao arrendamento – vide Arrendamento Urbano, do Cons. Aragão 
 Seia, 6.ª edição, pág. 646, e Sobre a Transferência da Posição do Arrendatário 
 no Caso de Trespasse, do Prof. Rui Alarcão, págs. 36 e 38 –, se, por um lado, a 
 transmissão, por parte do trespassante para o trespassário, da posição de 
 arrendatário de que aquele era titular não se encontra condicionada à 
 autorização do respectivo senhorio – artigo 115.°, n.° 1, do RAU –, por outro 
 lado, é incontroverso que a titularidade daquele direito de uso e fruição 
 apenas pode ser transmitida por quem do mesmo seja titular, já que nemo 
 transferre potest quam ipse habet.
 
                Temos, portanto, que, carecendo a aludida ré da qualidade de 
 arrendatária, esta não poderia intervir no trespasse do aludido direito ao 
 arrendamento celebrado com a interveniente, e ora recorrente, procedendo à 
 transmissão de um direito de que não era titular, pelo que, não constando dos 
 autos que aquele direito haja sido excluído do negócio jurídico celebrado, e 
 sendo este presuntivamente oneroso, já que do conteúdo das peças processuais 
 juntas aos autos não resulta a gratuitidade do referido contrato, no que 
 respeita àquela indicada transmissão, tal contrato ter‑se‑á de considerar como 
 inquinado de um vício de invalidade, do tipo nulidade.
 
                Com efeito, no que respeita aos contratos onerosos, em que haja 
 lugar à alienação de bens, e relativamente aos quais inexista regulamentação 
 legal específica, como ocorre, v. g., no trespasse, aos mesmos são aplicáveis 
 as normas relativas ao contrato de compra e venda – artigo 939.° do Código 
 Civil.
 
                Assim, carecendo a trespassante de legitimidade para a alienação 
 do direito ao arrendamento referente ao estabelecimento objecto do referido 
 contrato, por se tratar de um bem do qual não era titular, configurando, 
 portanto, e em relação àquele, a natureza de um bem alheio, tal contrato é nulo 
 
 – artigo 892.° do Código Civil –, nulidade essa de conhecimento oficioso pelo 
 tribunal, a todo o tempo – artigo 286.° do Código Civil e págs. 263 do vol. I e 
 
 185 do vol. II da obra citada dos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela.
 
                Ora, do conhecimento oficioso pelo tribunal da referida nulidade, 
 e uma vez que foram alegados pelo autor factos tendentes à obtenção da entrega 
 do arrendado, sempre teria de haver lugar à restituição deste àquele – artigo 
 
 289.°, n.° 1, do Código Civil e Assento n.° 4/95, in Diário da República, I 
 Série‑A, n.° 114, de 17 de Maio de 1995 –, face à nulidade do arrendamento 
 celebrado com a trespassante e à ineficácia do trespasse relativamente ao 
 senhorio – pág. 185 do vol. II do Código Civil Anotado, dos Profs. Pires de Lima 
 e Antunes Varela, e Do Contrato de Compra e Venda, do Dr. Baptista Lopes, pág. 
 
 141 –, sem prejuízo, contudo, da responsabilidade da trespassária pelo 
 ressarcimento ao autor das contrapartidas pecuniárias correspondentes ao 
 período temporal em que deteve, e detém, o gozo e fruição do imóvel em causa.
 
                Temos, pois, que, nada obstaculizava, antes impunha, que o Senhor 
 Juiz, no despacho saneador, tivesse procedido à restituição das aludidas 
 fracções ao autor, sem prejuízo do prosseguimento da acção para apuramento dos 
 quantitativos em dívida peticionados pelo senhorio, mas, não tendo sido seguido 
 tal caminho, e, dada a procedência do requerido despejo incidental, também, no 
 momento presente, já se não justifica que tal decisão de índole substantiva, 
 consubstanciada naquela indicada entrega, seja agora decretada.
 
  
 
                V – Perante o exposto, decide-se negar provimento ao recurso 
 interposto, com a consequente integral manutenção do despacho agravado.”
 
  
 
                A interveniente C., L.da, interpôs, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 
 
 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal 
 Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por 
 
 último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC), 
 recurso, para este Tribunal Constitucional, do referido acórdão do Tribunal da 
 Relação do Porto, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade da norma do 
 artigo 58.° do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto‑Lei n.° 
 
 321‑B/90, de 15 de Outubro (RAU), na interpretação, acolhida na decisão 
 recorrida, segundo a qual o arrendatário, na resposta ao incidente de despejo 
 imediato, “apenas pode fazer prova documental do pagamento ou de depósitos das 
 rendas”, não lhe sendo “permitido invocar quaisquer circunstâncias modificativas 
 e impeditivas do pagamento”, considerando a recorrente violados os princípios 
 do Estado de Direito democrático (artigos 2.° e 9.°, alínea b), da Constituição 
 da República Portuguesa – CRP), da igualdade (artigo 13.° da CRP), da força 
 jurídica dos preceitos constitucionais e da inadmissibilidade de restrições aos 
 direitos, liberdades e garantias (artigo 18.° da CRP) e do acesso ao direito e 
 da tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.° da CRP).
 
                No Tribunal Constitucional, a recorrente apresentou alegações, no 
 termo das quais formulou as seguintes conclusões:
 
  
 
                “1. A interpretação da norma do artigo 58.° do RAU no sentido de 
 que o arrendatário apenas pode fazer prova documental do pagamento ou de 
 depósito das rendas respectivas, não lhe sendo permitido invocar quaisquer 
 circunstâncias modificativas ou impeditivas do pagamento, viola princípios 
 fundamentais da Constituição da República Portuguesa, designadamente o 
 princípio do Estado de direito (artigos 2.° e 9.°, alínea b), da CRP), o 
 princípio da igualdade (artigo 13.° da CRP), o princípio da força jurídica dos 
 preceitos  constitucionais e da inadmissibilidade de restrições aos direitos, 
 liberdades e garantias (artigo 18.° da CRP) e o princípio do acesso ao direito e 
 da tutela jurisdicional (artigo 20.° da CRP).
 
                2. Acresce que o entendimento sufragado naquela douta decisão 
 constitui fundamento de incidente de ilegalidade perante o Tribunal 
 Constitucional, uma vez que a decisão em crise consagrou o acolhimento de 
 interpretação normativa impugnada por vício de ilegalidade (artigo 280.°, n.° 2, 
 alínea d), da CRP).
 
                3. De facto, a douta decisão recorrida fez incorrecta aplicação 
 legal do disposto no artigo 58.º do RAU, contrariando o entendimento que a 
 jurisprudência e a doutrina vêm seguindo (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de 
 Justiça, de 12 de Maio de 1998, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do 
 Supremo Tribunal de Justiça, 1998, tomo 2, pág. 81; Acórdão do Supremo 
 Tribunal de Justiça, de 26 de Novembro de 1985, Boletim do Ministério da 
 Justiça, n.° 351, págs. 368 e 369; Acórdão da Relação do Porto, de 17 de Maio de 
 
 1994, Boletim do Ministério da Justiça, n.° 437, pág. 577; Acórdão da Relação de 
 Lisboa, de 18 de Janeiro de 1983, Colectânea de Jurisprudência, 1983, tomo I, 
 págs. 102 e 103; Acórdão da Relação de Lisboa, de 14 de Junho de 1979, 
 Jurisprudência das Relações, 15.°, pág. 580;  Pais de Sousa, Extinção do 
 Arrendamento Urbano, 2.ª edição, págs. 437 e seguintes; Aragão Seia, 
 Arrendamento Urbano, 4.ª edição, Almedina, págs. 306 e 307; Pais de Sousa, 
 Cardona Ferreira e Lemos Jorge, Arrendamento Urbano, Notas Práticas, Rei dos 
 Livros, pág. 200).
 
                4. Perante a actual redacção do artigo 58.° do RAU não mais é 
 aceitável o entendimento nos termos do qual a única defesa relevante que o 
 arrendatário pode produzir é que pagou ou que depositou a renda a que o senhorio 
 se refere.
 
                5. É que da redacção do artigo 58.° do RAU resulta que este 
 artigo pressupõe que as rendas devem ser pagas, e não o foram.
 
                6. Conforme refere Aragão Seia (Arrendamento Urbano, pág. 306), 
 
 «só se pode falar em rendas vencidas na pendência da acção se esta tiver 
 subjacente um arrendamento válido, que não é posto de qualquer modo em questão 
 pelo réu ou se este não põe em causa o direito que o autor se arroga de receber 
 rendas».
 
                7. Ora é precisamente este o caso dos presentes autos.
 
                8. Na verdade, por um lado, é o próprio autor (locador) que, 
 desde logo nos termos em que configurou a acção, põe em causa a validade do 
 arrendamento em relação à aqui recorrente C., não a reconhecendo como actual 
 legítima arrendatária, sustentando expressamente que o trespasse realizado é 
 ineficaz em relação a si (cf. artigos 4.°, 13.°, 14.° e 15.° da réplica).
 
                9. Por outro lado, a recorrente também colocou em causa o direito 
 que o autor se arroga de receber rendas, nomeadamente alegando que foi este que 
 a dispensou do respectivo pagamento na sequência de contrato promessa de compra 
 e venda (artigo 13.° da contestação) e ainda porque o autor se recusou a dar 
 quitação de pagamentos efectuados (artigo 31.° da contestação).
 
                10. Assim sendo, sendo controversos os termos que assume a 
 relação locatícia estabelecida entre as partes, mormente por indefinição quanto 
 
 à identidade do actual arrendatário, não é possível impor a nenhuma das rés (C. 
 e B.) uma obrigação (de pagamento ou depósito de rendas) sem previamente se 
 apurar, em definitivo, quem possui legitimidade para suportar tal obrigação.
 
                11. Aliás, nos presentes autos é igualmente controvertida a 
 questão de saber qual o montante da renda actual (cf. quesitos 3.°, 4.°, 5.°, 
 
 8.°, 13.° e 17.° da base instrutória), pelo que, por maioria de razão, não se 
 afigura legítimo exigir a qualquer uma das rés o pagamento de rendas e 
 indemnizações cujo montante não é possível liquidar.
 
                12. Em qualquer caso, a decisão recorrida enferma de vício de 
 inconstitucionalidade material por desconformidade e violação concreta das 
 normas e princípios constitucionais supra referidos.
 
                13. De facto, do princípio do Estado de direito, consagrado em 
 termos gerais no artigo 2.° da CRP, decorre a exigência de um procedimento justo 
 e adequado de acesso ao direito e de realização do direito – garantia da via 
 judiciária (artigo 20.°, n.° 1, da CRP).
 
                14. Na concretização desse princípio, a Constituição da República 
 Portuguesa contém alguns «sub-princípios» e normas designados por garantias 
 gerais de procedimento e de processo, entre os quais avultam a garantia de um 
 processo equitativo (artigo 20.°, n.° 4, da CRP) e o princípio da igualdade 
 processual das partes (artigos 13.° e 20.°, n.° 1, da CRP).
 
                15. Por outro lado, do princípio da garantia da via judiciária 
 
 (artigo 20.º da CRP) decorre uma imposição directamente dirigida ao legislador 
 no sentido de conferir operatividade prática à defesa de direitos, 
 designadamente por via da consideração de um direito subjectivo público 
 destinado a assegurar ao cidadão uma posição jurídica subjectiva adequada cuja 
 violação lhe permite exigir protecção jurídica.
 
                16. A douta decisão que considerou que no âmbito do incidente 
 previsto no artigo 58.° do RAU, a aqui recorrente «apenas pode fazer prova 
 documental do pagamento ou de depósito das rendas respectivas», não lhe sendo 
 
 «permitido invocar quaisquer circunstâncias modificativas ou impeditivas do 
 pagamento», consagra uma restrição inaceitável e que colide directamente com o 
 disposto no artigo 18.°, n.° 2, da CRP.
 
                17. Na verdade, restringir os meios de defesa ao dispor do 
 arrendatário, no âmbito do incidente previsto no artigo 58.° do RAU, «a pagar ou 
 a depositar rendas», constitui uma violação clara da norma constitucional 
 contida no artigo 18.°, n.° 2, da CRP.
 
                18. A sufragar aquele entendimento, ver‑se‑ia comprimida de modo 
 inadmissível, injusto e desproporcionado (e por isso, inconstitucional) uma das 
 mais significativas garantias constitucionais de um Estado de direito 
 consagradas na CRP, como sejam a garantia do processo equitativo e o princípio 
 da igualdade processual das partes, supra referidos.
 
                19. É, pois, violador da equidade e do princípio da igualdade das 
 partes restringir, no âmbito do incidente do artigo 58.° do RAU, o leque de 
 opções de defesa processual admitidas a uma das partes em termos distintos 
 daquelas que são admitidos em termos gerais processuais.
 
                20. De igual modo, a douta decisão recorrida, na interpretação 
 que acolheu da referida norma do RAU, colide com o princípio da igualdade 
 
 (artigo 13.° da CRP) – princípio estruturante do sistema constitucional global 
 
 –, designadamente com a garantia de igualdade processual das partes em litígio 
 
 (artigo 20.°, n.° 1, da CRP).”
 
  
 
                O recorrido contra‑alegou, preconizando o improvimento do recurso 
 e a condenação da recorrente como litigante de má fé.
 
                Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
 
  
 
                2. Fundamentação
 
                2.1. A primeira questão que, no âmbito do presente recurso, 
 poderia suscitar‑se respeita à utilidade do conhecimento do seu objecto, atentas 
 as considerações tecidas no ponto IV do acórdão recorrido, em que se desenvolve 
 um outro fundamento para o imediato decretamento do despejo das fracções em 
 causa: a nulidade, por falta de escritura pública, do contrato de arrendamento 
 para exercício de comércio celebrado com a ré B. e a consequente nulidade, por 
 falta de legitimidade da transmitente, do trespasse para a interveniente C..
 
                Sabido que o recurso de constitucionalidade tem natureza 
 instrumental, o que implica que é condição do conhecimento do respectivo objecto 
 a possibilidade de repercussão do julgamento que nele vier a ser efectuado na 
 decisão recorrida, a existência de um outro fundamento desta decisão, 
 insusceptível de ser afectado pelo eventual provimento do recurso de 
 constitucionalidade, justifica o não conhecimento deste recurso.
 
                Porém, no presente caso, apesar das aludidas considerações sobre 
 as nulidades do primitivo contrato de arrendamento e do trespasse, o certo é que 
 o acórdão recorrido acaba por não as assumir como fundamento autónomo da decisão 
 de improvimento do recurso de agravo. O que nele se consigna é que o juiz de 1.ª 
 instância, no despacho saneador, poderia ter logo decretado a restituição do 
 local, com base nas ditas nulidades contratuais, prosseguindo a lide para 
 apuramento das quantias em dívida ao autor; porém – conclui o acórdão – “não 
 tendo sido seguido tal caminho [pelo juiz de 1.ª instância], e, dada a 
 procedência do requerido despejo incidental, também, no momento presente, já 
 se não justifica que tal decisão de índole substantiva, consubstanciada naquela 
 indicada entrega, seja agora decretada”.
 
                Neste contexto, não se pode considerar que a decisão contida no 
 acórdão recorrido assenta também num segundo fundamento autónomo, pelo que 
 persiste utilidade no conhecimento do presente recurso de constitucionalidade.
 
  
 
                2.2. Dispunha o artigo 979.º do Código de Processo Civil, no 
 
 âmbito da regulamentação da acção de despejo:
 
  
 
    “1. Se o réu deixar de pagar rendas vencidas na pendência da acção, pode o 
 autor requerer, por esse motivo, que se proceda imediatamente ao despejo.
 
    2. Ouvido o arrendatário, se este não provar, por documento, que fez o 
 pagamento ou o depósito, é logo ordenado o despejo.
 
    3 (...).”
 
  
 
    Esta estatuição foi substituída pelo artigo 58.º do RAU, ora em causa, nos 
 termos do qual:
 
  
 
    “1 – Na pendência da acção de despejo, as rendas vencidas devem ser pagas ou 
 depositadas, nos termos gerais.
 
    2 – O senhorio pode requerer o despejo imediato com base no não cumprimento 
 do disposto no número anterior, sendo ouvido o arrendatário.
 
    3 – O direito a pedir o despejo imediato nos termos deste preceito caduca 
 quando o arrendatário, até ao termo do prazo para a sua resposta, pague ou 
 deposita as rendas em mora e a importância de indemnização devida e disso faça 
 prova, sendo, no entanto, condenado nas custas do incidente e nas despesas de 
 levantamento do depósito, que serão contadas a final.”
 
  
 
                A formulação genérica do preceito parece indiciar a sua 
 aplicabilidade sempre que ocorra falta de pagamento de rendas na pendência de 
 uma acção de despejo, seja qual for o fundamento desta (falta de pagamento de 
 rendas ou qualquer outro) e independentemente das questões litigiosas no seu 
 
 âmbito suscitadas, mas esse entendimento – sufragado no acórdão recorrido – não 
 tem sido sempre seguido, quer na doutrina, quer na jurisprudência.
 
                Como assinalava Jorge Alberto Aragão Seia (Arrendamento Urbano, 
 
 7.ª edição, Coimbra, 2003, p. 382): “Só se pode falar em rendas vencidas na 
 pendência da acção se esta tiver subjacente um arrendamento válido, que não é 
 posto de qualquer modo em questão pelo réu ou se este não põe em causa a 
 qualidade de senhorio que o autor se arroga para receber as rendas”.
 
                A nível jurisprudencial – quer face ao artigo 979.º do CPC, quer 
 já na vigência do artigo 58.º do RAU – também se tem entendido que a providência 
 em causa (despejo imediato por falta de pagamento de rendas na pendência da 
 acção), constituindo como que uma nova acção de despejo imediato, com base na 
 falta de pagamento de renda, inserida ou enxertada na acção pendente, atenta a 
 sua tramitação simples e expedita, “pressupõe que se acha assente a relação 
 processual entre demandante e demandado: indiscutido, ou tornado líquido, que 
 ao demandante assiste o direito a receber uma renda mensal do demandado, se este 
 se absteve de a pagar no decurso da acção, o preceito em análise [então ainda o 
 artigo 979.º, n.º 2, do CPC] permite restabelecer prontamente a ordem jurídica 
 desse modo ofendida; já não, porém, quando precisamente se discute se aquele 
 que se arroga o direito a recebê‑las está ou não realmente na situação jurídica 
 de poder exigi‑lo; nessa última hipótese, não há que decretar o despejo com 
 base neste preceito” (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14 de Junho 
 de 1969, Jurisprudência das Relações, 15.º, p. 580). Entendimento reiterado no 
 Acórdão da mesma Relação, de 19 de Janeiro de 1989 (Colectânea de 
 Jurisprudência, ano XIV, tomo 1, p. 112), segundo o qual “o despejo imediato 
 por falta de pagamento ou depósito de rendas na pendência da acção pressupõe 
 estar assente a relação processual onde é proferido” e “tal não sucede se o réu 
 suscitar a questão da ilegitimidade do autor e esta se mantém em aberto” (no 
 caso, o réu suscitara a questão da ilegitimidade do autor, sustentando que o 
 senhorio não era ele, mas a sua ex‑mulher; mantendo‑se esta questão em aberto à 
 data da suscitação do incidente, entendeu‑se não ser aplicável o incidente de 
 despejo imediato).
 
                Já na vigência do artigo 58.º do RAU, o acórdão do Supremo 
 Tribunal de Justiça, de 12 de Maio de 1998, proc. n.º 197/98 ((Colectânea de 
 Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano VI, tomo 2, p. 81; 
 texto integral disponível em www.dgsi.pt/jstj), sustentou que só na hipótese de 
 mora do locatário aquele preceito prevê que, para evitar o despejo imediato, ele 
 tenha de fazer prova de ter pago ou depositado as rendas em dívida e a 
 indemnização respectiva, pois que, havendo mora do senhorio, tem de se aceitar 
 que o inquilino se defenda de um eventual pedido incidental de despejo imediato 
 com a simples invocação dessa mora e seja admitido a prová‑la, não tendo a prova 
 a produzir de ser apenas documental.
 
                Numerosa jurisprudência das Relações tem também sublinhado que o 
 incidente de despejo imediato pressupõe que se mostre assente, na acção em que 
 ele se enxerta, não só a existência de um contrato de arrendamento válido, mas 
 também que autor e réu são efectivamente as partes no contrato e que nenhum 
 litígio persiste quanto, por exemplo, ao montante da renda, à mora do locador ou 
 ao incumprimento, por parte deste, de qualquer dever contratual, que fosse 
 susceptível de não tornar líquida e incontroversa a mora do locatário no 
 pagamento das rendas vencidas na pendência da acção. Só perante situações em 
 que não existe controvérsia quanto ao dever de o réu pagar certa renda ao autor, 
 por força de contrato de arrendamento, é que seria aceitável que, face a 
 incumprimento dessa obrigação na pendência da acção de despejo e formulação, 
 pelo autor, de pedido de despejo imediato, a possibilidade de defesa do réu 
 fosse restringida à prova do pagamento ou depósito das rendas em dívida.
 
                O Tribunal da Relação de Lisboa (www.dgsi.pt/jtrl), por exemplo, 
 considerou inaplicável o incidente quando se mantém em aberto a questão de saber 
 quem é o locatário (acórdão de 4 de Fevereiro de 1992, proc. 37901); se existe 
 contrato de arrendamento (acórdão de 2 de Junho de 1999, proc. 71622); se é 
 exigível o pagamento da renda (acórdãos de 8 de Março de 2001, proc. 110012, e 
 de 19 de Junho de 2001, proc. 32537); ou se foi legal a actualização da renda 
 efectuada pelo senhorio (acórdão de 30 de Abril de 2002, proc. 24357).
 
                O Tribunal da Relação do Porto (www.dgsi.pt/jtrp) entendeu não 
 poder ser decretado o despejo imediato em casos em que persiste controvérsia 
 sobre se o demandado mantém a qualidade de inquilino (acórdãos de 14 de 
 Fevereiro de 1991, proc. 409737, de 25 de Fevereiro de 1997, proc. 9621498, de 1 
 de Abril de 1997, proc. 97200008 [este sumariado no Boletim do Ministério da 
 Justiça, n.º 466, p. 587], e de 5 de Janeiro de 1999, proc. 9820943); sobre o 
 efectivo vencimento das rendas reclamadas (acórdão de 22 de Junho de 1992, proc. 
 
 9230318); sobre o incumprimento pelo senhorio do dever de assegurar ao inquilino 
 o gozo do local arrendado (acórdão de 17 de Maio de 1994, proc. 9311416); sobre 
 o direito do autor a receber do demandado as rendas reclamadas (acórdãos de 10 
 de Abril de 1997, proc. 9730093, de 30 de Junho de 1997, proc. 9651415, de 12 de 
 Maio de 1998, proc. 9820329, de 14 de Março de 2000, proc. 20145, de 3 de Abril 
 de 2001, proc. 120328, e de 20 de Maio de 2002, proc. 250216); sobre a 
 existência de mora do locador (acórdãos de 10 de Julho de 1997, proc. 9520204, e 
 de 6 de Julho de 2001, proc. 150768) e do locatário (acórdão de 19 de Junho de 
 
 2001, proc. 120165); sobre a existência de acordo segundo o qual os réus 
 pagariam as rendas quando pudessem e iriam entregando quantias para serem 
 imputadas na liquidação das rendas vencidas, começando pelas mais antigas 
 
 (acórdão de 24 de Novembro de 1997, proc. 9750679); sobre o direito do inquilino 
 a efectuar o depósito de apenas 30% do montante da renda, nos termos do artigo 
 
 18.º do RAU, para reembolso das despesas efectuadas com obras por ele 
 executadas ao abrigo do precedente artigo 16.º (acórdão de 2 de Dezembro de 
 
 1997, proc. 965283); sobre a existência de acordo no sentido de não pagamento de 
 rendas a partir de certa data, como modo de ressarcir prejuízos sofridos pelo 
 arrendatário, só sendo reactivado o pagamento das rendas após a feitura de 
 certas obras pelo senhorio (acórdão de 15 de Junho de 1998, proc. 9850631); ou 
 sobre a validade do contrato de arrendamento (acórdãos de 11 de Outubro de 2004, 
 proc. 454472, e de 2 de Dezembro de 2004, proc. 436441).
 
                Também o Tribunal da Relação de Coimbra (www.dgsi.pt/jtrc), no 
 acórdão de 2 de Novembro de 1999, proc. 294/99, entendeu que, porque o incidente 
 previsto no artigo 58.º do RAU é um incidente autónomo, com cariz de uma acção 
 nova, enxertada na acção de despejo e independente em relação a esta, “ao 
 arrendatário está aberta a possibilidade de se opor ao seu senhorio do mesmo 
 modo em que se lhe oporia numa acção autónoma, designadamente esgrimindo as 
 excepções que lhe poderia opor em tal acção, como, por exemplo, a ilegitimidade, 
 a cláusula cum potuerit ou a exceptio non adimpleti ou non rite adimpleti 
 contractus”; o Tribunal da Relação de Évora, no acórdão de 6 de Março de 1997, 
 proc. 1201/95 (sumariado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 465, p. 663), 
 decidiu que “não pode ser ordenado aquele despejo imediato enquanto não estiver 
 decidida a excepção de ilegitimidade invocada pelo réu na contestação, em que 
 alega não ter a condição de arrendatário”; e o Tribunal da Relação de Guimarães 
 
 (www.dgsi.pt/jtrg), no acórdão de 4 de Fevereiro de 2004, proc. 2387/03‑1, 
 considerando que “o direito de o senhorio obter o despejo imediato do locado 
 com fundamento na falta de pagamento ou depósito das rendas vencidas no decurso 
 da acção não é uma prerrogativa absoluta que sempre lhe assiste no caso de, numa 
 acção de despejo, se constatar que o arrendatário não demonstra ter pago a renda 
 invocada pelo demandante”, pois “para que esta medida possa ser accionada 
 necessário se torna ter como certas a validade do contrato e a certeza de que as 
 rendas em análise são devidas ao senhorio”, decidiu que “se a própria renda ou 
 o seu exacto montante estiverem em litígio na acção, essa vicissitude faz com 
 que já não se esteja no enquadramento da disciplina estatuída no artigo 58.º do 
 RAU”.
 
                Não compete ao Tribunal Constitucional, no âmbito dos recursos de 
 constitucionalidade para ele interpostos, tomar posição sobre qual a 
 interpretação do direito ordinário que considera mais correcta, mas a enunciação 
 da corrente jurisprudencial que restringe a aplicabilidade do incidente de 
 despejo imediato, previsto no artigo 58.º do RAU, às situações em que não 
 persiste, na acção de despejo, controvérsia quer quanto à existência de um 
 contrato de arrendamento válido, quer quanto à qualidade de locador e locatário 
 de autor e réu, quer quanto à exigibilidade e valor das rendas não pagas na 
 pendência de acção, permite compreender que, nessas situações, possa vir a ser 
 considerada constitucionalmente tolerável a restrição dos meios de defesa do réu 
 ao pagamento ou depósito das rendas em dívida, mas que idêntica solução já não 
 seja de acolher em situações em que se encontra questionada, por qualquer 
 fundamento, o próprio dever de efectuar pagamento de rendas na pendência da 
 acção.
 
                É esta última a situação dos presentes autos, em que, como se 
 viu, para além de se encontrar questionada a qualidade de arrendatária quer da 
 ré B. (por ela própria), quer da interveniente C. (pelo autor), esta invoca a 
 existência de um acordo (contrato promessa de compra e venda das fracções em 
 causa), celebrado com o autor, distinto do contrato de arrendamento, acordo esse 
 que seria o título que legitimaria a sua ocupação do local, e que incluiria 
 cláusula que a dispensava do pagamento de rendas, sendo os valores que fosse 
 entregando ao autor imputados no pagamento do preço de compra das fracções. 
 Trata‑se, como se relatou, de matéria controvertida, que foi levada à base 
 instrutória (quesitos 14.º a 21.º).
 
                A questão que constitui objecto do presente recurso consiste, 
 assim, na constitucionalidade da interpretação do artigo 58.º do RAU segundo a 
 qual, mesmo que na acção de despejo persista controvérsia quer quanto à 
 identidade do arrendatário, quer quanto à existência de acordo, diverso do 
 arrendamento, que legitimaria a ocupação do local pela interveniente 
 processual, se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em 
 falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, o único meio de 
 defesa do detentor do local é a apresentação de prova, até ao termo do prazo 
 para a sua resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora 
 e da importância da indemnização devida.
 
  
 
                2.3. A recorrente alega que a interpretação normativa impugnada 
 viola os princípios do Estado de Direito democrático (artigos 2.° e 9.°, 
 alínea b), da CRP), da igualdade (artigo 13.° da CRP), da força jurídica dos 
 preceitos constitucionais e da inadmissibilidade de restrições aos direitos, 
 liberdades e garantias (artigo 18.° da CRP) e do acesso ao direito e da tutela 
 jurisdicional efectiva (artigo 20.° da CRP).
 
                Entende‑se, porém, que o parâmetro constitucional mais pertinente 
 se centra no princípio da proibição da indefesa, que decorre, em primeira linha, 
 do princípio do contraditório, a que se deve subordinar todo o processo, uma 
 vez iniciado. Como refere Carlos Lopes do Rego (“Os princípios constitucionais 
 da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime 
 de citação em processo civil”, Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel 
 Cardoso da Costa, Coimbra, 2003, pp. 835‑859): “A garantia da via judiciária – 
 
 ínsita no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa e a todos 
 conferida para tutela e defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos – 
 envolve, não apenas a atribuição aos interessados legítimos do direito de acção 
 judicial, destinado a efectivar todas as situações juridicamente relevantes que 
 o direito substantivo lhes outorgue, mas também a garantia de que o processo, 
 uma vez iniciado, se deve subordinar a determinados princípios e garantias 
 fundamentais: os princípios da igualdade, do contraditório e (após a revisão 
 constitucional de 1997) a regra do «processo equitativo», expressamente 
 consagrada no n.º 4 daquele preceito constitucional”, sendo do princípio do 
 contraditório que “decorre, em primeira linha, a regra fundamental da proibição 
 da indefesa”.
 
                Este Tribunal, no Acórdão n.º 335/95, teve oportunidade de 
 densificar o sentido desta regra, ao consignar:
 
  
 
    “7. O direito de defesa do demandado é indiscutivelmente um direito de 
 natureza processual que está ínsito no direito de acesso aos tribunais, nos 
 termos do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição. Quando este preceito estatui 
 que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos 
 seus direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por 
 insuficiência de meios económicos, é manifesto que tanto abrange os demandantes 
 que recorrem aos tribunais para fazer valer as suas pretensões, como os 
 demandados que ficam sujeitos à jurisdição do tribunal da causa e que têm o 
 direito de se opor a tais pretensões. Como estabelece o n.º 1 do artigo 103.º da 
 Grundgesetz alemã, «todos têm o direito a ser ouvidos em juízo» (veja‑se também 
 o artigo 24.º da Constituição italiana).
 
    Em todas as tramitações de natureza declarativa que conduzem à emissão de um 
 julgamento (judicium) por parte de um tribunal, tem de existir um debate ou 
 discussão entre as partes contrapostas, demandante e demandado, havendo o 
 processo jurídico adequado (a due process of law clause, da tradição 
 anglo‑americana) de garantir que cada um dessas partes deva ser chamada a dizer 
 de sua justiça (audiatur et altera pars). E esta exigência alarga‑se a todas as 
 outras tramitações processuais cíveis, salvo contadas excepções, mesmo nos 
 processos executivos, em especial quando são deduzidas oposições à própria 
 execução ou à penhora.
 
    Como escreveu Manuel de Andrade, a estruturação «dialéctica ou polémica do 
 processo teria partido do contraste dos interesses dos pleiteantes, ou até só do 
 contraste das suas opiniões (...) para o esclarecimento da verdade. É tal a sua 
 vantagem – seu rendimento – que as leis a consagram mesmo onde repelem ou 
 cerceiam o princípio dispositivo (...). Espera‑se que, também para os efeitos do 
 processo, da discussão nasça luz; que as partes (ou os seus patronos), 
 integrados no caso e acicatados pelo interesse ou pela paixão, tragam ao debate 
 elementos de apreciação (razões e provas) que o juiz, mais sereno mas mais 
 distante dos factos e menos activo, dificilmente seria capaz de descobrir por si 
 
 (...)» (Noções Elementares de Processo Civil, com a colaboração de Antunes 
 Varela, edição revista por Herculano Esteves, Coimbra, 1979, pág. 379).”
 
  
 
                E no Acórdão n.º 473/94:
 
  
 
    “2 – A Constituição acolhe e define no artigo 2.º o princípio do Estado de 
 direito democrático, individualizando depois no artigo 20.º, n.º 1, como um dos 
 seus subprincípios concretizadores, o direito de acesso aos tribunais.
 
    Este direito inclui, desde logo, no seu âmbito normativo, o direito de 
 acção, isto é, o direito subjectivo de levar determinada pretensão ao 
 conhecimento de um órgão jurisdicional, solicitando a abertura de um processo 
 com o consequente dever (direito ao processo) do mesmo órgão de sobre ela se 
 pronunciar mediante decisão fundamentada.
 
    Mas, para além do direito de acção, que se materializa através do processo, 
 compreendem-se, no direito de acesso aos tribunais, nomeadamente: (a) o direito 
 a prazos razoáveis de acção ou de recurso; (b) o direito a uma decisão judicial 
 sem dilações indevidas; (c) o direito a um processo justo baseado nos princípios 
 da prioridade e da sumariedade no caso daqueles direitos cujo exercício pode 
 ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas; (d) o direito a um 
 processo de execução, ou seja, o direito a que, através do órgão jurisdicional, 
 se desenvolva e efective toda a actividade dirigida à execução da sentença 
 proferida pelo tribunal.
 
    Há‑de ainda assinalar‑se como parte daquele conteúdo conceitual «a proibição 
 da ‘indefesa’, que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do 
 particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que 
 lhes dizem respeito. A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o 
 ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar‑se‑á sobretudo 
 quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de 
 processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de 
 alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses» (cfr. Gomes 
 Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª 
 ed., Coimbra, 1993, pp. 163 e 164, e Fundamentos da Constituição, Coimbra, 
 
 1991, pp. 82 e 83).
 
    Entendimento similar tem vindo a ser definido pela jurisprudência do Tribunal 
 Constitucional, caracterizando o Acórdão n.º 86/88, Diário da República, II 
 Série, de 22 de Agosto de 1988, o direito de acesso aos tribunais como sendo 
 
 «entre o mais, um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve 
 chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e 
 independência, possibilitando‑se, designadamente, um correcto funcionamento das 
 regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas 
 razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do 
 adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras (cfr. Manuel 
 de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, p. 364)».”
 
  
 
                Fazendo aplicação destas considerações ao caso ora em análise, 
 surge, de forma ostensiva, como uma restrição constitucionalmente intolerável do 
 direito de defesa a limitação, no incidente de despejo imediato por falta de 
 pagamento de rendas na pendência de acção de despejo, das possibilidades de 
 defesa do requerido à alegação e prova de que, até ao termo do prazo para a sua 
 resposta, procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância 
 da indemnização. Tal meio de defesa é manifestamente desajustado em todos os 
 casos em que justamente se questiona o próprio dever de pagamento de determinada 
 renda, seja por que fundamento for (inexistência de contrato de arrendamento 
 válido, não serem autor e/ou réu os verdadeiros locador e/ou locatário, 
 dissídio quanto ao montante da renda ou da sua imediata exigibilidade, invocação 
 de diverso título para justificar a ocupação do local). No presente caso, em 
 que, para além da controvérsia sobre a qualidade de locatária da primitiva ré, a 
 interveniente (ora recorrente) sustenta o seu direito de ocupação do local em 
 contrato promessa de compra e venda que teria celebrado com o autor, com 
 consequente inexistência do dever de pagamento de rendas, sendo as entregas de 
 valor feitas imputadas no pagamento do preço de compra, questão que se 
 encontrava ainda pendente quando foram proferidas as decisões das instâncias 
 ora em causa, é óbvia a desadequação e inefectividade do único meio de defesa 
 que foi reconhecido à recorrente: a prova do pagamento ou depósito das rendas 
 pretensamente em falta, acompanhada da indemnização devida.
 
                Tal entendimento não assegura um tratamento equitativo das partes 
 nem a efectividade da tutela jurisdicional, pelo que não pode deixar de ser 
 considerado como violador do princípio da proibição da indefesa, ínsito no 
 artigo 20.º da CRP.
 
  
 
                3. Decisão
 
                Em face do exposto, acordam em:
 
                a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da 
 proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.º da Constituição da República 
 Portuguesa, a norma do artigo 58.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado 
 pelo Decreto‑Lei n.º 321‑B/90, de 15 de Outubro, na interpretação segundo a 
 qual, mesmo que na acção de despejo persista controvérsia quer quanto à 
 identidade do arrendatário, quer quanto à existência de acordo, diverso do 
 arrendamento, que legitimaria a ocupação do local pela interveniente 
 processual, se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em 
 falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, o único meio de 
 defesa do detentor do local é a apresentação de prova, até ao termo do prazo 
 para a sua resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora 
 e da importância da indemnização devida; e, consequentemente,
 
                b) Conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação da 
 decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de 
 inconstitucionalidade.
 
                Sem custas.
 
  
 Lisboa, 6 de Dezembro de 2005
 Mário José de Araújo Torres 
 Benjamim Silva Rodrigues
 Paulo Mota Pinto
 Rui Manuel Moura Ramos