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Proc. nº 528/92
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - A. e B. deduziram acusação, em processo de querela, contra C., oficial de justiça no 6º Juízo Cível do Porto, imputando-lhe a autoria dos crimes de introdução em casa alheia e abuso de poderes, previstos e puníveis, respectivamente, nos artigos 428º e 432º do Código Penal, havendo requerido simultaneamente a constituição como assistentes e o primeiro, ainda a concessão do benefício de apoio judiciário, na modalidade de dispensa total de pagamento de preparos, selos e custas.
Remetidos os autos ao Tribunal de Instrução Criminal do Porto, o senhor Juiz do 2ª Juízo, em 27 de Novembro de 1990, proferiu sobre aquele requerimento o seguinte despacho:
'Segundo as disposições legais aplicáveis aos autos, temos que nos pronunciar no que se refere tão só ao pedido de apoio judiciário e de constituição de assistente.
Quanto ao primeiro indefere-se liminarmente já que é manifesto que a pretensão do requerente, no âmbito da qual é solicitada, não tem viabilidade alguma.
Não foi o requerente, nem nenhum dos denunciantes notificado para deduzir acusação como impõe o art. 349º do C.P. Penal.
Notifique.
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Quanto ao segundo, foi prematura a remessa dos autos ao Tribunal de Instrução Criminal, já que não foi liquidado nem foram passadas as guias relativas ao imposto de justiça, devidas pela constituição como assistente.
Devolva, pois.'
Notificados deste despacho, vieram os requerentes arguir a nulidade da notificação por não lhes ter sido fornecida, no respectivo acto, cópia legível da comunicação em causa, pelo que foi repetida a notificação, com a entrega de cópia dactilografada daquele despacho.
Os requerentes interpuseram então, do despacho de
27 de Novembro de 1990, recurso de agravo para o Tribunal da Relação do Porto mas, porque não procederam ao pagamento do imposto de justiça liquidado, foi, em
4 de Fevereiro de 1991, preferido despacho a considerar sem efeito o recurso interposto, nos termos do disposto no artigo 192º do Código das Custas Judiciais.
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2 - Contra este despacho vieram então os requerentes reclamar para o senhor Presidente da Relação do Porto, sob invocação do disposto nos artigos 1º, § único e 652º do Código de Processo Penal de 1929 e
688º do Código de Processo Civil, havendo sobre tal reclamação, em 22 de Fevereiro de 1992, recaído o seguinte despacho:
'Como resulta do certificado nos autos, a fls. 113 do processo principal, o senhor Juiz do processo considerou sem efeito, nos termos e por força do disposto no art. 192º do Cód. das Custas Judiciais, o recurso que os, agora, reclamantes pretendiam interpor.
Tanto quanto resulta dos autos o que aqueles outros pretendiam fazer era impugnar o despacho de fls. 113.
Ao utilizarem a forma de reclamação, para tal, fizeram-no indevidamente, face ao disposto no art. 652º do Cód. Proc. Penal de 1929 e 688º, do Cód. Proc. Civil
('ex vi art. 1º daquele diploma), onde se determina sejam, unicamente, passíveis de reclamação despachos que não admitam recursos ou os retenham.
Assim e, por tal, não se conhece da reclamação deduzida.
Custas pelos reclamantes'.
Notificados deste despacho vieram os reclamantes arguir a nulidade da notificação por alegada ilegibilidade do acto comunicado, havendo então sido ordenada nova notificação acompanhada de cópia dactilografada do despacho em causa.
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3 - Os reclamantes apresentaram então requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos dos artigos 280º, nº 1, al. b) da Constituição e 70º, nºs 1, al. b) e 2 da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, do despacho do senhor Presidente do Tribunal da Relação, de 22 de Fevereiro de 1992, requerimento esse suportado na fundamentação que a seguir se transcreve:
'1º - Por via, `maxime', das suas más (não conformes à CRP.) interpretações - aplicadas - de, v.g.: CPP., de 1929, artºs 1º, psº único, e 652º; C.P.C., artº
688º; Apoio Judiciário [`maxime':
2º - Dec.-Lei nº 387-B/87, de 29.12., artºs 17º, 2, 24º, 1, a), e 2, e 39º; e Ac. STJ. (Assento), de 6.1.1988, in BMJ.; 373º-138]; C.C.J., art. 192º, e Ac. STJ., de 7.11.1984, in BMJ. 341º-347º.
3º - Aquele despacho de Vª Exª de 22.2.1991 - manifesta e evidentemente - violou, directa e/ou reflexamente, `v.g., maxime': direitos (liberdade e garantias);
4º - O objecto e/ou conteúdo dos demais direitos fundamentais; e a essência dos outros princípios integrantes da Constituição material. Fixado `in, v.g., maxime':
5º - Além d(n)o regime jurídico das normas sobreditamente citadas; CRP., artºs
1º a 3º, 8º, 9º, b), 13º, 16º a 20º, 205º, 2, 206º a 208º, 1, 266º, 268º, 4, e
5, e 288º, b) e d);
6º - DUDH., artºs 2º, 1, 8º, e 10º; PIDCP., artºs 2º, 1, 2, e 3, a) e b), 14º,
1, I e II, e 3, b), e 26º; CEDH., artºs 6º, 1, I, e 3, b), 8º, 13º, e 14º, e Prot. Ad. (à CEDH.) nº 1, artº 1º;
7º - E Ac. Trib.Const. (2ª Secção), nº 433/87, de 4.11.1987, in BMJ. 371º-145 e segts., e (`maxime') Ac. STA. (1ª Secção), de 20.4.1989, in AD: 339º-336 e ss.
8º - Talqualmente (sobreditas violações) arguidas pelas apresentações de
13.11.1990 e de 15.2.1991 (esta última: reclamação do C.P.P., de 1929, artºs 1º, psº único, e 652º, e do C.P.C., artº 688º).'
Por despacho de 11 de Junho de 1991, o senhor Presidente do Tribunal da Relação do Porto não admitiu o recurso com base nas razões seguintes:
'Não se admite o pretenso recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
Nos termos e, por força do disposto no art. 689º, nº 2 do Cod. Proc. Civil, decisões proferidas em processos de reclamação não podem ser impugnadas.
O pretenso recurso interposto move-se na área dos Tribunais comuns, pelo que não há qualquer possibilidade legal de interposição do mesmo'.
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4 - Notificado este despacho aos reclamantes em 22 de Junho de 1992, vieram estes no dia 30 imediato, isto é, no 5º dia útil subsequente, apresentar reclamação para o Tribunal Constitucional, sustentando em conclusão serem 'passíveis de impugnação mediante recurso de inconstitucionalidade as decisões proferidas em processos de reclamação (do C.P.C., art. 688º)'.
Remetido o processo a este Tribunal, foi dada vista ao senhor Procurador-Geral Adjunto que se pronunciou no sentido do indeferimento da reclamação, por ser inadmissível o recurso de constitucionalidade interposto, embora por força de razões diversas das invocadas no despacho reclamado.
Corridos os demais vistos legais cabe agora apreciar e decidir.
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II - A fundamentação
1 - Em conformidade com o disposto nos artigos
280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Este específico tipo de fiscalização concreta de constitucionalidade, respeita às decisões negativas de inconstitucionalidade ou decisões de rejeição - como é o caso que se configura nos autos - e exige, além de outros requisitos indispensáveis à sua admissibilidade, que a questão da constitucionalidade da norma ou normas em controvérsia haja sido suscitada durante o processo, acrescendo ainda que a decisão recorrida venha depois, dela ou delas, a fazer aplicação como sua ratio decidendi, como fundamento normativo do seu próprio conteúdo.
O exacto significado da locução 'durante o processo' utilizada pela Constituição e pela lei, deverá apreender-se a partir de um sentido não puramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância), mas antes de um sentido funcional, tal que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão. Ou seja: a inconstitucionalidade terá de ser suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que
(a mesma questão de inconstitucionalidade) respeita. Um tal entendimento decorre do facto de se estar justamente perante um recurso para o Tribunal Constitucional o que pressupõe, obviamente, uma anterior decisão do tribunal a quo sobre a questão (de constitucionalidade) que é o objecto do mesmo recurso.
Mas, para que estes requisitos de admissibilidade do recurso - e são os que aqui importa considerar - se possam ter por verificados importa, por um lado, que o recorrente haja efectivamente suscitado a questão de constitucionalidade e o tenha feito de um modo directo e perceptível, indicando a disposição legal suspeita de inconstitucionalidade ou, no caso de apenas questionar determinada interpretação que dela haja sido feita, enunciar qual o sentido ou a dimensão normativa que se tem por violadora do texto constitucional, demonstrando, por outro lado, que essa norma ou uma sua determinada interpretação, foram aplicadas na decisão recorrida como seu suporte normativo (cfr. a propósito deste tema a jurisprudência pacífica e uniforme do Tribunal Constitucional, indicando-se por todos os Acórdãos nºs 62/85, 94/88 e
123/89, Diário da República, II série, respectivamente, de 31 de Maio de 1985,
22 de Agosto de 188 e 29 de Abril de 1989).
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2 - Na situação em apreço os reclamantes pretenderam interpor recurso de constitucionalidade do despacho proferido pelo senhor Presidente do Tribunal da Relação do Porto, em 22 de Fevereiro de 1991, no qual se fez aplicação das normas constantes dos artigos 652º do Código de Processo Penal de 1929 e 688º do Código de Processo Civil.
O artigo 652º do Código de Processo Penal, dispõe, no seu corpo, do modo seguinte:
'Se o juiz ou o tribunal obstarem à interposição de qualquer recurso, o interessado poderá requerer por escrito ao presidente do tribunal para onde pretenda recorrer, no prazo de cinco dias, que o mande admitir, não podendo para tal fim valer-se de qualquer outro meio'.
Por seu turno, o nº 1 do artigo 688º do Código de Processo Civil, contém a seguinte formulação:
'Do despacho que não admita a apelação, a revista, o agravo ou o recurso para o tribunal pleno interposto na Relação e bem assim do despacho que retenha o agravo, pode o recorrente reclamar para o presidente do tribunal que seria competente para conhecer do recurso'.
E naquele despacho, foram estas normas interpretadas no sentido de que as reclamações nelas previstas constituem o meio processual adequado para reagir contra os despachos que não admitam ou que retenham recursos interpostos, mas não são já tais reclamações utilizáveis para reagir contra os despachos que julgam desertos ou sem efeito tais recursos, com fundamento, designadamente, na falta de pagamento de custas devidas (como sucedeu no caso em apreço).
Ora, como bem resulta do exame dos autos e, nomeadamente, das peças indicadas no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional ('apresentações de 13 de Novembro de 1990 e de 15 de Fevereiro de 1991') durante o processo, nunca os reclamantes suscitaram a questão da inconstitucionalidade das aludidas normas na interpretação que lhes foi dada no despacho reclamado.
E não suscitaram a inconstitucionalidade dessa interpretação apesar de ser de todo previsível a aplicação daquelas normas com esse sentido por ser, desde logo, o que resulta directamente do texto de tais preceitos legais.
E assim sendo, à luz das considerações anteriores relativas à jurisprudência deste Tribunal sobre os pressupostos de admissibilidade dos recursos de constitucionalidade, há-de dizer-se, ser patente a inexistência de um dos requisitos indispensáveis à abertura desta via de recurso.
Deste modo, por força desta específica razão, e não já com base no entendimento sufragado no despacho que não admitiu o recurso - 'o pretenso recurso interposto move-se na área dos tribunais comuns, pelo que não há qualquer possibilidade legal de interposição do mesmo' -, entendimento esse que não teve seguramente em conta a existência dos recursos de constitucionalidade levados junto do Tribunal Constitucional (cfr. neste sentido a jurisprudência constante deste Tribunal, citando-se por todos o Acórdão nº
316/85, Diário da República, II série, de 14 de Abril de 1986), haverá de ser desatendida a reclamação.
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III - A decisão
Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação e condenar os reclamantes em custas, fixando-se a taxa de justiça em
4 UCs.
Lisboa, 9 de Fevereiro de 1993
Antero Alves Monteiro Dinis
Vítor Nunes de Almeida
António Vitorino
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes
José Manuel Cardoso da Costa