Imprimir acórdão
Processo nº 29/93
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- O Tribunal de Trabalho de Leiria enviou carta precatória ao Tribunal Judicial de Alcobaça para penhora e subsequentes diligências, em autos de execução por custas em que são exequente o Ministério Público e executado A..
O Senhor Juiz do Tribunal deprecado, por despacho de 15 de Dezembro último, julgou esse Tribunal incompetente em razão da matéria para os actos deprecados e, consequentemente, competente o deprecante, fundamentando-se na seguinte ordem de considerações:
a) o pedido feito pelo Tribunal de Trabalho de Leiria baseou-se no disposto no artigo 26º, nº 1, do Código de Processo de Trabalho (CPT), na redacção do artigo 1º do Decreto-Lei nº 315/89, de 21 de Setembro;
b) trata-se de norma julgada organicamente inconstitucional pelo acórdão do Tribunal Constitucional de 7 de Abril de 1992, publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Agosto seguinte (Acórdão nº
139/92);
c) assim, a inconstitucionalidade do preceito em que se baseia a remessa da carta precatória determina que se mantenha e considere aplicável a anterior redacção daquele artigo 26º, nº 1, a qual, conjugada com a disciplina do Decreto-Lei nº 214/88, de 17 de Junho, confere competência para a realização da diligência deprecada ao próprio Tribunal deprecante.
Notificado, o magistrado do Ministério Público no Tribunal de Alcobaça interpôs recurso, obrigatório, para o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto nos artigos 70º, nº 1, alínea a), e 72º, nºs. 1, alínea a), e 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
2.- Nas alegações oportunamente apresentadas, o Senhor Procurador-Geral Adjunto conclui nos seguintes termos:
'1.- A norma constante do nº 1 do artigo 26º do Código de Processo de Trabalho, na redacção do Decreto-Lei nº 315/89, de 21 de Setembro,
é organicamente inconstitucional por incidir sobre matéria contida na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República e ter sido editada pelo Governo sem a necessária autorização legislativa [artigo 168º, nº
1, alínea q), da Constituição da República].
2.- Termos em que deve ser confirmada, na parte impugnada, a decisão recorrida'.
3.- Constitui objecto do presente recurso a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 26º, nº 1, do C.P.T., na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 315/89, de 21 de Setembro.
Trata-se de questão idêntica à tratada no citado Acórdão nº 139/92, recentemente reafirmada nos Acórdãos nºs. 374/92 e 375/92,
118/93, 119/93, 122/93, 128/93, 129/93, 130/93 e 131/93, todos desta Secção, o que significa a sua apreciação, razão pela qual se dispensaram os vistos, nos termos do artigo 707º, nº 3, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 69º da Lei nº 28/82. II
A similitude de situações aconselha a que se siga de perto a fundamentação constante do anterior aresto.
1.1.- No domínio do C.P.T. de 1963, aprovado pelo Decreto-Lei nº 45
497, de 30 de Dezembro, a regulamentação da matéria respeitante à prática de actos judiciais em comarca diferente daquela em que o tribunal da causa tinha a sua sede constava do artigo 34º, cujo nº 1 dispunha:
'As citações e notificações que não possam ou não devam ser feitas por via postal e quaisquer outras diligências, quando tenham de ser efectuadas em comarca diferente daquela em que o tribunal da causa tem a sua sede, serão solicitadas ao tribunal do trabalho que tenha sede nessa comarca ou, não o havendo, ao respectivo tribunal de comarca ou julgado municipal, dentro da esfera da sua competência, ou à autoridade administrativa ou policial territorialmente competente'.
Esta norma veio a ter correspondência no artigo 26º do C.P.T., aprovado pelo Decreto-Lei nº 272-A/81, de 30 de Setembro, que, na sua versão originária, sob a epígrafe 'citações, notificações e outras diligências em comarca alheia', preceituava:
'As citações e notificações que não possam ou não devam ser feitas por via postal e quaisquer outras diligências, quando tenham de ser efectuadas em comarca diferente daquela em que o tribunal em causa tem a sua sede, são solicitadas ao tribunal competente em matéria de trabalho na respectiva área ou
à autoridade administrativa ou policial territorialmente competente'.
O sentido e alcance da norma do artigo 26º do Código de Processo do Trabalho, na sua versão originária, foi entendido divergentemente pela jurisprudência, que acabou por se dividir em duas linhas interpretativas: uma sustentava que o cumprimento de deprecadas extraídas de processo do foro laboral e expedidas pelo tribunal da causa para fora da comarca da sua sede competia ao tribunal de competência genérica da comarca em cuja área jurisdicional houvesse de praticar-se o acto deprecado, salvo se nessa comarca estivesse sediado um tribunal de trabalho (neste sentido, pronunciara-se o Supremo Tribunal de Justiça, acórdão de 11 de Junho de 1986, Boletim do Ministério da Justiça, nº 358, pág. 444, e o Tribunal da Relação de Évora, acórdãos de 15 de Outubro de 1987 e de 2 de Fevereiro de 1988, Colectânea de Jurisprudência, ano XII, 1987, tomo 4, pág. 322, e ano XIII, 1988, tomo I, pág.
296, respectivamente); outra defendia que o cumprimento daquelas deprecadas competia ao tribunal de trabalho em cuja área territorial de jurisdição estivesse incluída a comarca onde tivesse de ser praticado o acto deprecado
(cfr. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Junho de 1986 e do Tribunal da Relação de Coimbra, Boletim do Ministério da Justiça, nº 358, pág.
420, e nº 367, pág. 580, respectivamente).
Emitiu então o Governo, no uso da competência legislativa conferida pela alínea a) do artigo 201º da Constituição, o Decreto-Lei nº 315/89, de 21 de Setembro, cujo objectivo principal foi a criação dos mecanismos processuais adequados à efectivação do direito à impugnação do despedimento colectivo.
Ao editar o referido diploma, o Governo resolveu aproveitar 'também a oportunidade para esclarecer as dúvidas que têm surgido relativamente à questão da competência para o cumprimento de deprecadas, cujas diligências devem ter lugar em comarca onde não haja tribunais do trabalho'
(cfr. preâmbulo).
Foi por este motivo que o artigo 1º do Decreto-Lei nº 315/89 alterou o artigo 26º do Código de Processo do Trabalho, que passou a ter a seguinte redacção:
'1.- As citações e notificações que não devam ser feitas por via postal e quaisquer outras diligências, quando tenham de ser efectuadas em comarca diferente daquela em que o tribunal tem a sua sede, são solicitadas ao tribunal do trabalho sediado naquela comarca, se o houver, e, não o havendo, ao tribunal de competência genérica com sede naquela mesma comarca ou ainda, em qualquer destes casos, à autoridade administrativa ou policial territorial competente.
2.- No caso de existir mais de um tribunal do trabalho na mesma comarca, a competência de cada um, para cumprimento do referido no número anterior, é determinada de acordo com a área de jurisdição dentro dessa comarca'.
1.2.- A recusa do Senhor Juiz em aplicar a norma constante do nº 1 deste artigo 26º teve por fundamento, como ficou dito, a inconstitucionalidade orgânica do preceito acabado de transcrever, uma vez que, versando matéria relativa à competência dos tribunais - logo, incluída na reserva de competência legislativa da Assembleia da República - foi emitida pelo Governo sem a necessária autorização, assim violando o disposto no artigo 168º, nº 1 e alínea q) da CR.
Ora, o legislador de 1989, ao alterar o artigo 26º, assume confessadamente natureza interpretativa, pretendendo determinar autenticamente o sentido da versão anterior do preceito, optando por recuperar a formulação do artigo 34º do Código de 1963, como foi propugnado por Alberto Leite Ferreira (Código de Processo do Trabalho Anotado, Coimbra, 1988, págs. 144 e segs.).
A natureza interpretativa da norma não deixa, porém, de inovar, na medida em que a solução legislativa consagrada não deixa de envolver alteração da competência material dos tribunais comuns e da competência territorial dos tribunais do trabalho.
Na verdade, e como observa o MºPº nas suas alegações:
'Enquanto, por força do artigo 26º do Código de Processo de Trabalho, na sua versão originária, o tribunal competente para o cumprimento de deprecadas emanadas de processos do foro laboral era o tribunal competente em matéria de trabalho com jurisdição na área onde devesse ser praticado o acto deprecado, o nº 1 do artigo 26º do mesmo diploma, na redacção do Decreto-Lei nº
315/89, veio atribuir competência para o cumprimento de deprecadas do tribunal de competência genérica sediado na comarca onde tiver de praticar-se o acto, excepto se nessa comarca estiver sediado um tribunal de trabalho' (a fls. 30 e
31 dos autos)'.
2.- Aceitando que a alteração efectuada pelo Governo no uso da sua competência legislativa própria, não autorizadamente, implica as consequências referidas pelo magistrado recorrente e condensadas no trecho transcrito - o que se afigura inequívoco - caberá, então, perguntar se haverá efectiva violação da norma do artigo 168º, nº 1, alínea q), da CR.
A este propósito acompanha-se o que, sobre a matéria, se escreve nos recentes Acórdãos nºs. 374/92 e 375/92, pois não se vislumbram razões válidas conducentes ao afastamento da argumentação aí desenvolvida.
Passando a transcrever, na parte que interessa:
'Decorre da formulação utilizada por esta alínea do nº 1 do artigo
168º da Constituição - quando confrontada com as alíneas d), e), f) ou g) - que cabe na competência reservada da Assembleia toda a matéria de organização e competência dos tribunais. Nesse sentido se tem pronunciado sempre a jurisprudência do Tribunal Constitucional, embora não de forma unânime, a qual não tem aceite a formulação mais restritiva sugerida no Parecer nº 4/81 da Comissão Constitucional, segundo a qual poderia estar 'reservada à Assembleia da República apenas a fixação dos princípios básicos de competência, os grandes quadros de competência que integram a organização judiciária (in Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 14º, pág. 259). Em numerosos acórdãos do Tribunal Constitucional tem sido acolhida a interpretação dos comentadores Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª edição, 2º volume, Coimbra, 1985 págs. 197 a 199 e 202), de que na reserva relativa cabe toda a matéria de organização e competência dos tribunais (cfr. Acórdãos nºs. 25/88, 3/89 e 356/89, publicados no Diário da República, II Série, nº 106, de 7 de Maio de 1988, nº 85, de 12 de Abril de 1989, e I Série, nº 118, de 23 de Maio do mesmo ano, respectivamente), só não cabendo na reserva as modificações de competência judiciária que decorrem da adopção de uma certa forma processual (Acórdão nº 404/87, in Diário da República, II Série, nº 202, de 21 de Dezembro de 1987, solução adoptada subsequentemente em múltiplos arestos tirados em matéria de colonia).
Seja como for, e mesmo nesta questão tão restrita de execução de cartas precatórias para citações ou notificações e outros actos processuais, sempre se há-de considerar relevante que a norma desaplicada pelo tribunal recorrido modifique regras de competência em razão da matéria, afectando tribunais de competência genérica e tribunais especializados, do mesmo passo que
é também modificada a área territorial de competência dos próprios tribunais de trabalho, fixada anteriormente à modificação de 1989 pela Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais de 1987 e seu Regulamento.
Daí a conclusão de que o artigo 1º do Decreto-Lei nº 315/89, de 21 de Setembro, na parte em que alterou a redacção do artigo 26º do Código de Processo de Trabalho, é organicamente inconstitucional, por violação da alínea q) do nº 1 do artigo 168º da Constituição'.
III
Em face do exposto:
a) julga-se a norma constante do nº 1 do artigo 26º do Código de Processo de Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei nº
272-A/81, de 30 de Setembro, na redacção do artigo 1º do Decreto-Lei nº 315/89, de 21 de Setembro, organicamente inconstitucional, por violação do disposto na norma do artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição da República, e,
b) nesses termos, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, na parte impugnada.
Lisboa, 9 de Fevereiro de 1993
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
António Vitorino
Vítor Nunes de Almeida (vencido, conforme declaração aposta no Acórdão nº 139/92)
José Manuel Cardoso da Costa (vencido, conforme declaração anexa ao Acórdão nº 139/92)