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Processo nº 391/91
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- A. e outros propuseram, a 6 de Março de 1987, no Tribunal de Trabalho de Lisboa, acção ordinária contra a B. e o Estado Português, pedindo:
a) o reconhecimento aos autores do direito à pensão complementar de reforma;
b) a condenação dos réus a pagar-lhes indemnizações por prejuízos sofridos pelo incumprimento das obrigações validamente assumidas pela ré B. de pagamento dos respectivos complementos de reforma.
A acção surgiu em virtude da extinção da B. operada pelo artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 138/85, de 3 de Maio, e do não reconhecimento pela respectiva comissão liquidatária dos créditos reclamados pelos autores, sendo o Estado corresponsável dado o incumprimento ser consequência da decisão e orientação dada aos órgãos de gestão da ré pelo Ministério do Mar, que tutelava a sua actividade e funcionamento.
2.1.- O Senhor Juiz, por decisão de 14 de Julho de 1989, considerou o Tribunal de Trabalho incompetente em razão da matéria e absolveu os réus da instância.
Para o efeito, entendeu, por um lado, estar a reclamação dos créditos dos autores 'manifestamente fora do âmbito dos tribunais de trabalho', citando os artigos 61º e 66º da Lei nº 82/77, de 6 de Dezembro, e, por outro lado, considerou que os tribunais comuns referidos no artigo 8º do Decreto-Lei nº 138/85 - sobre a impugnação judicial das decisões da comissão liquidatária da ré - devem ser considerados os tribunais cíveis, face ao teor dos artigos 56º e 57º daquela Lei nº 82/77, já que a eles compete preparar as acções que não estejam atribuídas a outros tribunais.
Desta decisão recorreram os autores para a Relação de Lisboa, sustentando, nomeadamente, ser o tribunal do trabalho o competente para apreciar e decidir a questão posta, de nítido conteúdo e contorno laboral, constituindo os tribunais judiciais, de que fazem parte os do trabalho, a primeira categoria dos tribunais comuns, atribuindo o artigo 66º citado competência aos tribunais de trabalho para conhecer e decidir da dita questão.
Os réus, contra-alegando separadamente, defenderam a improcedência do recurso.
A Relação de Lisboa, por acórdão de 4 de Abril de
1990, negou provimento, confirmando o decidido na 1ª instância.
2.2.- Recorreram então os autores para o Supremo Tribunal de Justiça, insistindo no seu ponto de vista e acrescentando que, de outro modo, o artigo
8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 138/85, é 'claramente inconstitucional' na medida em que, ao retirar competência própria ao Tribunal do Trabalho, entregando-a ao cível, viola o disposto no artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição da República (CR), sendo certo tratar-se de matéria de exclusiva competência da Assembleia da República - reserva relativa - não estando o Governo munido de autorização legislativa quando o diploma foi publicado.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 16 de Janeiro de 1991, confirmou, no entanto, o da Relação, tomando por boa a interpretação do artigo 8º no sentido da expressão tribunal comum significar tribunal cível, abonando-se, para o efeito nos artigos 14º e 45º da Lei nº
82/77, e 14º e 46º da Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro, conjugadas com o artigo
67º, nº 1, do Código de Processo Civil.
3.1.- Deste último aresto e com fundamento no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, os autores interpuseram para o Tribunal Constitucional o presente recurso, concluindo do seguinte modo as suas alegações:
'1.- Face ao actual sistema de organização judiciária, tribunais comuns são os Tribunais Judiciais.
2.- 'Os Tribunais de Trabalho são também Tribunais Judiciais e, segundo a Constituição da República Portuguesa, todos eles constituem a primeira categoria dos Tribunais Comuns (Constituição da R.P. Anotada, 2ª Edição - Professor Gomes Canotilho e Vital Moreira, págs. 322 vº e 323 VII)
3.- Ao atribuir ao 'Tribunal Comum' a competência para o conhecimento dos recursos das decisões da Comissão Liquidatária, o artigo 8º nº
1 do Dec/Lei nº 137/88 de 3/5 visou afastar a competência dos Tribunais Administrativos e atribuir tal competência aos Tribunais Judiciais.
4.- São os Tribunais do Trabalho os competentes para a acção por serem os Tribunais Judiciais de competência especializada aos quais cabe o conhecimento das questões civis emergentes de contrato de trabalho.
5.- Sendo a liquidação e extinção das empresas públicas operada por acto administrativo ou legislativo não se justifica, ao contrário do que acontece no instituto falimentar, o afastamento das regras de competência especializada.
6.- A competência para apreciar e decidir as questões suscitadas nesta acção de nítido contorno e conteúdo laboral cabe ao Tribunal do Trabalho, nos termos claros do artº 66º da lei nº 82/77, de 6/12, vigente quando esta acção foi proposta.
7.- Na interpretação que lhe foi dada pelo Tribunal Recorrido, o artº 8º nº 1 do D/L 137/85 é organicamente inconstitucional.
8.- O conceito normativo de 'Tribunal Comum' tem hoje que ser enquadrado no âmbito do sistema de organização judiciária dos Tribunais introduzido pela Constituição de 1976 e pela Lei nº 82/77, de 6/12, e a essa luz se deve interpretar o artº 67º nº 1 do C.P.C..
A não ser assim, nessa parte, o artº 67º deve ser objecto da declaração de inconstitucionalidade (cfr. artºs 277 e segs. e 280º da Constituição da R. Portuguesa), ut supra nº 10 destas Alegações, declaração que em tal hipótese expressamente se requere'.
Inicialmente, o recurso não foi admitido pelo Senhor Relator no Supremo Tribunal de Justiça - despacho de 12 de Fevereiro de 1991
- mas, tendo havido reclamação para este Tribunal Constitucional - autos apensos - acabou por ser admitido em conferência, acórdão daquele Supremo de
19 de Junho seguinte.
3.2.- Após incidente de suspensão de instância por falecimento do mandatário constituído da ré, foram notificados os demandados para alegações, o que ambos fizeram.
A B. conclui do seguinte modo:
'1.- A fixação do Tribunal competente para a presente demanda
é matéria não abrangida pelo leque de competências atribuídas a este Tribunal;
2.- A norma constante do nº 1 do artigo 67º [entenda-se, do Código de Processo Civil] - 'o tribunal comum é o civil', por si só, não ofende nenhum preceito constitucional;
3.- A errada aplicação da lei, que no caso vertente só por mera hipótese se admite, não gera a inconstitucionalidade da norma erradamente aplicada;
4.- A questão 'sub judice' é o não conhecimento do alegado crédito reclamado no processo de liquidação ora alegante'.
Por sua vez, o Senhor Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal concluiu assim as suas alegações:
'1º- É organicamente inconstitucional, por violação do artigo
168º, nº 1, alínea q), da Constituição, a norma constante do nº 1 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 138/85, de 3 de Maio, na parte em que, de acordo com a interpretação acolhida na decisão recorrida, atribui ao tribunal cível competência para apreciar os recursos das decisões da comissão liquidatária da C. que não reconheçam créditos reclamados, mesmo que estes créditos sejam oriundos de relações de trabalho subordinado, pois, desta forma, sem autorização parlamentar, alterou a repartição de competência dos tribunais, matéria reservada à competência legislativa da Assembleia da República;
2º- Deve, assim, conceder-se provimento ao recurso, determinando-se a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de inconstitucionalidade'.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II
1.- Num primeiro momento, importa determinar o objecto do recurso, uma vez que, para além da eventual desconformidade constitucional do artigo 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 138/85, na interpretação que lhe foi dada nos autos, acrescentaram os recorrentes, já em alegações para este Tribunal, a do artigo 67º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Com efeito, só a questão de constitucionalidade da primeira destas normas foi suscitada pelos recorrentes durante o processo, como bem nota o Ministério Público, ou seja, suscitada perante o tribunal recorrido, em termos de este saber que tinha tal questão para decidir e em tempo de o poder fazer.
Ora, no domínio da fiscalização concreta, cabe recurso para o Tribunal Constitucional, designadamente, das decisões dos tribunais 'que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo' (artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da lei nº 28/82).
O recurso assim estabelecido '(...) supõe dois requisitos essenciais: por um lado, que durante o processo haja sido suscitada a inconstitucionalidade de uma norma, por outro lado, e subsequentemente que a norma questionada seja aplicada em decisão do tribunal' [cfr., por todos, Acórdão nº 1/85, publicado no Diário da República, II Série, de 12/3/85, e no Boletim do Ministério da Justiça, nº 360 (Suplemento), a pág. 7].
Preenche estes dois requisitos a norma do nº 1 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 138/85, em que se fundamenta a decisão recorrida e cuja inconstitucionalidade fora já questionada nas alegações para a Relação. Não a preenche o artigo 67º do Código de Processo Civil, cuja inconstitucionalidade não foi previamente suscitada pelos recorrentes, pelo que o presente recurso não pode abranger esta norma.
Constitui, assim, objecto do presente recurso a questão da constitucionalidade da norma do artigo 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº
138/85, de 3 de Maio, na parte em que atribui ao 'Tribunal Comum' a competência para apreciar o recurso interposto por credores da B. cujos créditos não hajam sido reconhecidos pela Comissão Liquidatária, e na interpretação que a essa norma foi dada na decisão recorrida de que esse 'tribunal comum' é o 'tribunal cível'.
2.- O Decreto-Lei nº 138/85, de 3 de Maio, extinguiu a B., que, desse modo, entrou em liquidação (cfr. o nº 1 do seu artigo 1º).
Dispôs-se no artigo 2º que, por despacho conjunto dos Ministros das Finanças e do Plano, seria nomeada um comissão liquidatária que teria 'todos os poderes necessários e adequados à liquidação da empresa ora extinta, nos limites da lei e das directrizes que lhe foram fixadas por despacho conjunto dos Secretários de Estado das Finanças e da Marinha Mercante'.
E, na regulamentação do respectivo processo de liquidação, o nº 1 do artigo 8º, norma em apreço, prescreveu:
'Os credores cujos créditos não hajam sido reconhecidos pela Comissão Liquidatária e incluídos no mapa referido no artigo anterior, ou que não hajam sido graduados em conformidade com a lei, podem recorrer ao tribunal comum para fazer valer os seus direitos'.
O diploma surge na sequência do Decreto-Lei nº
260/76, de 8 de Abril - que contém as bases gerais do regime jurídico das empresas públicas - o qual, sobre a verificação do passivo, dispõe de preceito semelhante, o do nº 4 do artigo 43º, de modo a poder afirmar-se que o texto de
1985 aplica e explicita, quanto ao caso concreto da extinção e liquidação da B., o regime geral contido no de 1976, referindo a competência do 'tribunal comum' para o controlo judicial das decisões da Comissão Liquidatária quanto às reclamações de créditos.
Impõe-se, assim, precisar o que se entende por tribunal comum, para os efeitos em causa.
3.- Na verdade, à data da publicação do Decreto-Lei nº
260/76 - que iniciou vigência anteriormente à própria Constituição da República - a organização judiciária diferia significativamente da actual.
3.1.- Ora, o parâmetro constitucional invocado pelos recorrentes é o aferido pelo artigo 168º, nº 1, alínea q), da CR, do seguinte teor, no momento da propositura da acção e da publicação do Decreto-Lei nº 138/85 (1ª Revisão Constitucional):
'1.- É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização do Governo:
-----------------------------------
q) Organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e estatuto dos respectivos magistrados:
---------------------------------'.
Relativamente à redacção originária não se pronunciou diferentemente o legislador constitucional [cfr. os artigos 167º, alínea j), e
168º, nº 1], como se manteria o texto, nesta parte, após a 2ª Revisão.
Inscrevendo-se a matéria sobre 'organização e competência dos tribunais' na reserva legislativa parlamentar, significa que qualquer alteração normativa modificando as regras de competência material, como as que distribuem as matérias pelas várias espécies de tribunais horizontalmente dispostos, se for da iniciativa governamental carece de credencial parlamentar.
Como se disse recentemente neste Tribunal - Acórdão nº 271/92, publicado no Diário da República, II Série, de 23 de Novembro de 1992
- 'seja qual for o alcance a atribuir à reserva legislativa, no ponto em que ela tem por objecto a definição da 'competência dos tribunais', há-de incluir-se, aí, sem dúvida, a definição da competência dos tribunais (maxime dos tribunais judiciais) ratione materiae (cf., neste sentido, entre outros, os Acórdãos deste Tribunal nºs. 36/87, 356/89 e 72/90, publicados no Diário da República, I Série, de, respectivamente, 4 de Março de 1987, 23 de Maio de 1989 e 2 de Abril de 1990)'.
3.2.- O artigo 43º, nº 4, do Decreto-Lei nº 260/76, atribuiu aos tribunais comuns a competência para o controlo judicial das decisões dos liquidatários das empresas públicas em matéria de reclamação de créditos, como vimos.
Trata-se de disposição anterior à actual Constituição mas que, por não lhe ser contrária, nem aos princípios nela consignados, não é, por isso, inconstitucional (cfr., artigo 290º, nº 2, da CR, a que corresponde na versão originária o artigo 293º , nº 1, e, após a 1ª Revisão, o artigo 293º).
Com efeito, as suas normas só não se manteriam desde que materialmente contrárias às normas constitucionais e aos princípios gerais da Lei Fundamental, sem que se atenda, por conseguinte, às normas constitucionais relativas à forma e competência dos actos normativos, pois estes devem entender-se apenas aplicáveis para o futuro. De acordo com Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed.,
2º vol., Coimbra, 1985 , pág. 575) não tem sentido averiguar se as normas do direito anterior satisfazem ou não os requisitos de forma e de competência que a Constituição estabelece para essa espécie.
Nessa época, porém, a organização judiciária portuguesa achava-se compartimentada em ordens diversas, designadamente a ordem dos tribunais de trabalho (esta integrada no Ministério das Corporações e Previdência Social), sendo então estes últimos categorialmente tribunais especiais (cfr., neste sentido, Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 1º, 2ª ed., Coimbra, 1960, págs. 147 e segs., Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, I, Coimbra, 1956, pág. 92, e Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, vol. II, 1971, págs. 422 e segs.).
Assim, a atribuição de competência aos tribunais comuns visa excluir seja a competência dos tribunais administrativos, seja a competência dos tribunais de trabalho, tendo presente, para mais, o que sobre a competência dos primeiros estabelece o Código de Processo Civil, quer no artigo
66º ('As causas que não sejam atribuídas por lei a alguma jurisdição especial são da competência do tribunal comum'), quer no artigo 67º ('1.-O tribunal comum é o civil. 2.- A plenitude da jurisdição civil, pertence, em primeira instância, ao tribunal de comarca').
3.3- Como diz, nas suas alegações, o Senhor Procurador-Geral Adjunto em passagem que se transcreve:
'A Constituição de 1976 e, no seu desenvolvimento, a Lei nº 82/77, de 6 de Dezembro (Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais), estrutura em moldes diversos a organização judiciária. No que aqui interessa, importa sublinhar 'a tendência para a unificação, sob a égide do Ministério da Justiça, de todas as ordens de tribunais com excepção dos militares. Aquilo a que o artigo 117º, nº
5, da Constituição espanhola de 1978 chama princípio da unidade jurisdicional, dando-lhe como única excepção a dos tribunais militares' [Castro Mendes
'Organização Judiciária do Trabalho e Direito Processual Laboral', 1979, em Boletim do Ministério da Justiça (Suplemento), pág. 16]. E acrescenta este autor (ob. cit., pág. 17): 'Neste quadro geral, os tribunais do trabalho foram reclassificados como tribunais comuns e integrados na respectiva ordem (artigo
85º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais). As suas características de ordem autónoma foram suprimidas: foram ligadas ao Ministério da Justiça; os seus juízes e agentes do Ministério Público foram integrados no corpo único, a que, quanto aos juízes, faz referência o artigo 220º da Constituição; os seus tribunais de recurso são as Relações e o Supremo Tribunal de Justiça, em cujo
âmbito se criaram, correspondentemente, secções de jurisdição social, a organização básica dos seus tribunais consta fundamentalmente da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, Lei nº 82/77, de 6 de Maio'.
E ainda:
'Coincidentemente, afirma JOSÉ RODRIGUES DA SILVA (Trabalho, Processo e Tribunais, pág. 39): 'Em Portugal, a Lei nº 82/77 integra os tribunais de trabalho na unidade da organização judiciária - como tribunais de
1ª instância de competência especializada - e cria Secções Sociais nos Tribunais da Relação e no Supremo Tribunal de Justiça. Na 1ª Instância é reformulada a área de jurisdição dos tribunais do trabalho, os quais deixam de cobrir todo o território nacional. Assim, na 1ª instância, a jurisdição do trabalho é entregue aos tribunais do trabalho e aos tribunais de comarca de competência genérica. Os tribunais do trabalho integram-se administrativamente no Ministério da Justiça.'
Para o magistrado que vimos citando, a Lei nº 82/77, ao reestruturar a organização judiciária, veio sistematizar e regular ex novo a competência dos tribunais judiciais nos quais incluiu os tribunais de trabalho
(cfr., Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra, 1985, pág. 53).
Esta intenção legislativa de que a Lei nº 82/77 passasse 'a ser o único e completo texto de regulamentação' da orgânica dos tribunais judiciais está já implícita no nº 1 do artigo 301º da versão primeira da Constituição - 'A revisão da legislação vigente sobre a organização dos tribunais e o estatuto dos juízes estará concluída até ao fim da primeira sessão legislativa'.
4.- Tal significa o afastamento da competência fixada no nº 4 do artigo 43º citado por virtude da chamada revogação de sistema - Código Civil, artigo 7º, nº 2; João de Castro Mendes, Introdução ao Estudo do Direito, Lisboa, 1984, pág. 116.
4.1.- Ou seja, a competência material para o conhecimento dos recursos contra as decisões da Comissão Liquidatária de empresa pública que não reconheçam créditos reclamados passou a ter que ser fixada de acordo com a Lei nº 82/77, pelo que, tratando-se de créditos oriundos de relações laborais, competentes eram os tribunais do trabalho. Com efeito, dispunha o artigo 66º, alínea b), dessa Lei competir aos tribunais do trabalho, em matéria cível, conhecer das questões emergentes de relações de trabalho subordinado.
Era este o quadro vigente quando foi publicado o Decreto-Lei nº 138/85, cujo artigo 8º, nº 1, veio, assim, transferir tal competência para o 'tribunal comum', entendido, na decisão recorrida, como
'tribunal civil'. Este entendimento tem, aliás, suporte na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça [cfr., por último, acórdãos de 23 de Janeiro 1991
(processo nº 2698), de 6 de Fevereiro de 1991 (processo nº 2655), e de 14 de Fevereiro de 1991 (processo nº 3008), sumariados em Actualidade Jurídica, nºs.
15/16, págs. 11, 14 e 15).
Nesta óptica, a parcela de competência dos tribunais judiciais em causa passou para a competência dos tribunais de trabalho, inovatoriamente, por força da revogação do anterior sistema.
Assim não seria se, por força das regras de competência territorial, a jurisdição do trabalho houvesse de ser exercida por tribunais de competência genérica.
Esta é, aliás, a tese do Supremo Tribunal de Justiça em cujo acórdão se lê, a final:
'É certo que, entretanto, a Organização Judiciária - Lei nº
82/77, de 6 de Dezembro - afastando-se da tradicional classificação bipartida dos tribunais, em comuns e especiais, substituiu-a por outra que prevê os de competência genérica, de competência especializada e de competência específica.
Mas o tribunal comum, referido no nº 1 do artigo 8º, corresponde,
[...], como se retira do disposto nos artigos 14º e 45º da Lei nº 82/77 e artigos 14º e 46º do Decreto-Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro, ao tribunal de competência genérica.
E o tribunal comum é o civil - nº 1 do artigo 67º do Código de Processo Civil'.
4.2.- A insindicabilidade, pelo Tribunal Constitucional, das decisões de outros tribunais sobre revogação de normas de direito infraconstitucional não se observa no caso da decisão em apreço em que se interpreta determinada norma jurídica - no caso, o artigo 8º. nº 1, do Decreto-Lei nº 138/85 - como atribuindo ao tribunal cível a competência para conhecer de questões de natureza jurídico-laboral que, anteriormente, por força da citada revogação de sistema, pertencia aos tribunais de trabalho.
É que, neste ponto, como bem pondera o citado Acórdão nº 271/92 em caso análogo, coloca-se já uma questão de constitucionalidade,
'que consiste em saber se o legislador tinha competência para editar o dito nº
1 do artigo 8º com aquele sentido, ou seja, com o sentido de atribuir a uma das espécies dos tribunais judiciais a competência que retirou a outra espécie deles'.
Ora, a esta luz, e face ao já exposto sobre a reserva de lei parlamentar, o Governo, para atribuir a competência aos tribunais comuns, que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça qualificou como tribunais cíveis, retirando-a aos tribunais de trabalho - de competência especializada - necessitava, pois que se trata de uma competência em razão da matéria, de autorização legislativa de que não estava munido.
Daí, a existência de inconstitucionalidade orgânica.
III
Pelo exposto:
a) Julga-se inconstitucional, por violação da norma do artigo 168º, nº 1, alínea q) da Constituição da República, texto da 1ª Revisão Constitucional, a norma do nº 1 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 138/85, de 3 de Maio, interpretada no sentido de que os tribunais comuns de que aí se fala são os tribunais cíveis quando estejam em causa créditos oriundos de relações laborais;
b) Consequentemente, concede-se provimento ao recurso e revoga-se o acórdão recorrido, que deve ser reformado em conformidade com o ora decidido sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 9 de Fevereiro de 1993
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Vítor Nunes de Almeida
António Vitorino
José Manuel Cardoso da Costa