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Proc. nº 74/90
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1 - A., na sequência de auto levantado pela Inspecção-Geral do Trabalho, foi condenada, no Tribunal do Trabalho de Vila Nova de Gaia, a pagar a empregados seus diferenças de remunerações e de subsídios de férias e de Natal correspondentes aos anos de 1987 e de 1988.
Desta sentença recorreu a ré para o Tribunal da Relação do Porto, invocando, além do mais, a inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade, da norma constante da cláusula 5ª do Anexo I ao Contrato Colectivo de Trabalho entre a Associação B. e outras e a Federação dos Sindicatos dos C. e outros (in Boletim do Trabalho e Emprego, I Série, nº 16, de 29 de Abril de 1983), quando interpretada no sentido de impedir que uma empresa, depois de entrar no Grupo A, possa alguma vez baixar de grupo, ainda que baixe a sua facturação anual, devendo, em consequência, continuar a remunerar sempre os seus trabalhadores de acordo com as tabelas em vigor para o referido Grupo A.
Não obtendo ganho de causa, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº
1, alínea b), da LTC, voltando a invocar a inconstitucionalidade da mesma cláusula.
Nas suas alegações, o Ministério Público assinala que se torna necessário resolver a questão de saber se a cláusula impugnada deve ser considerada uma norma, para efeitos de controlo pelo Tribunal Constitucional, e, quanto ao mérito do recurso, inclina-se, embora não sem dúvidas, para a não inconstitucionalidade da mesma cláusula.
Tudo visto, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
2 - A questão de fundo foi repetidamente suscitada pela recorrente ao longo do processo, tanto perante a
primeira instância como perante a Relação; resta, porém, saber se estamos perante uma norma, na acepção em que o termo é usado no artigo 280º da Constituição, já que dúvidas não subsistem de que a mesma foi aplicada na decisão recorrida.
Com efeito, de acordo com aquele dispositivo constitucional, para que se abra o recurso para o Tribunal Constitucional é indispensável que esteja em causa a questão da inconstitucionalidade de uma norma. Ora, não será unívoco o conceito de norma constante do artigo 280º da Lei Fundamental; designadamente, não é seguro, à partida, que nele se enquadrem as cláusulas das convenções colectivas de trabalho. A este propósito, note-se que não importa aqui saber se tais cláusulas devem ou não ser consideradas como normas para qualquer outro efeito, nomeadamente para efeitos de classificação doutrinal: do que se cura é de apurar se a Constituição pretendeu submetê-las ao específico sistema de controlo da constitucionalidade constante do artigo 280º (e 281º).
3 - Segundo Gomes Canotilho, 'os contratos e acordos colectivos de trabalho têm um valor normativo pelo menos equivalente ao das portarias regulamentares (cfr. artº. 57º/4 da C.R.P.). Como actos normativos, e na parte em que têm valor normativo, estão sujeitas ao controlo de constitucionalidade' (Direito Constitucional, 5ª edição, 1991, pág. 1011). No mesmo sentido, se pronunciaram também Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2º vol., 1984, pág. 60), Vitalino Canas (Introdução às Decisões de Provimento do Tribunal Constitucional, Cognitio, Lisboa, 1984, pág. 60, nota 54) e Luís Nunes de Almeida (O Tribunal Constitucional e o conteúdo, a vinculatividade e os efeitos das suas decisões, Portugal - O Sistema Político e Constitucional, págs.
947/948).
Em sentido contrário, porém, Jorge Miranda observa que 'a fiscalização da constitucionalidade não abrange normas provenientes da autonomia privada ou da autonomia colectiva, como as provenientes de convenções colectivas de trabalho (art. 57º,nº 4); não abrange, simplesmente, porquanto qualquer contradição entre essas normas e a Constituição não se reconduz, como acima vimos, a inconstitucionalidade no sentido técnico rigoroso e elas só poderão ser arguidas, nos termos gerais das respectivas normas, perante os tribunais competentes em razão da matéria.' (Manual de Direito Constitucional, tomo II, 1983, pág. 347). Este autor acrescenta que já as portarias de regulamentação do trabalho são susceptíveis de fiscalização de constitucionalidade perante o Tribunal Constitucional (ib. nota 3).
4 - Seja qual for a concepção que se queira adoptar sobre a natureza jurídica das convenções colectivas de trabalho
(isto é, quer se propenda para uma concepção contratualista, jurisprivatística, quer para uma concepção jurispublicística, quer para uma concepção intermédia, quer para a de um tertium genus), uma coisa é certa: no nosso direito vigente, as convenções colectivas de trabalho não têm constitucionalmente fixado o regime da sua eficácia, já que a Constituição remete tal fixação para a lei ordinária no artigo 56º, nº 4 (57º, nº 4, na versão anterior à revisão de 1989).
E a lei ordinária concretiza essa norma remissiva no Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro. Dispõe o artigo 7º deste diploma:
1. As convenções colectivas de trabalho obrigam as entidades patronais que as subscrevem e as inscritas nas associações patronais signatárias, bem como os trabalhadores ao seu serviço que sejam membros quer das associações sindicais celebrantes, quer das associações sindicais representadas pelas associações sindicais celebrantes.
2. As convenções outorgadas pelas uniões, federações e confederações obrigam as entidades patronais empregadoras e os trabalhadores inscritos, respectivamente, nas associações patronais e nos sindicatos representados nos termos dos estatutos daquelas organizações, quando outorguem em nome próprio ou em conformidade com o mandato a que se refere o artigo 4º.
Daqui resulta que a lei estabelece que as convenções colectivas obrigam exclusivamente as entidades que as celebram, e bem assim as organizações e trabalhadores que nelas estão ou venham a estar inscritos. E tanto assim que, para estender a eficácia dessas convenções a terceiros, se torna necessário usar um acto normativo público, a portaria de extensão prevista no artigo 29º, nº 1, do mesmo diploma.
Comparativamente, o artigo 39º, último parágrafo, da Constituição italiana estabelece que 'I sindacati [organizações profissionais de trabalhadores ou empresários] registrati [...] possono, rappresentati unitariamente in proporzione dei loro iscritti, stipolare contratti collettivi con efficacia obbligatoria per tutti gli appartenenti alle categorie alle quali il contrato si referisce'. Gustavo Zagrebelsky começa por comentar que aquela norma implica o reconhecimento explícito do contrato colectivo de trabalho como modo de produção de normas jurídicas, isto é, como fonte de direito (segundo a conhecida formulação de Carnelutti, para quem tal contrato tem corpo de contrato e alma de lei). Todavia, logo acrescenta que aquela norma autorizatória nunca teve qualquer concretização, por obstáculos técnicos e políticos que foram opostos à sua regulamentação, e que radicam sobretudo na contradição, latente em tal norma, entre o princípio da liberdade de organização sindical e a necessidade de regulamentar as associações profissionais, para tornar efectiva a eficácia erga omnes prevista naquele artigo 39º; e, daí, retira, como consequência, que os contratos colectivos hoje efectivamente celebrados não assumem a natureza de fontes de direito em sentido próprio (Manuale di Diritto Costituzionale, 1 - Il sistema delle fonti del diritto, UTET, Torino, 1988, págs. 247 e segs.).
Quanto ao direito português, e apesar de o artigo 56º, nº 4, da Constituição (actual redacção) dar ao legislador ordinário a possibilidade de estabelecer a eficácia das normas das convenções colectivas de trabalho, estas não são efectivamente configuradas, na legislação ordinária, como actos normativos públicos, as entidades que as subscrevem não têm poderes de autoridade, e o clausulado normativo que elas integram não obriga terceiros.
5 - Segundo A. Menezes Cordeiro (Manual de Direito do Trabalho, Almedina, 1991, pág. 321), 'com as particularidades acima examinadas, que têm a ver com deveres instrumentais, as convenções colectivas surgem no termo do livre exercício de poderes de celebração e de estipulação. Elas formam-se nos moldes contratuais e têm eficácia porque as pessoas constituíram livremente associações para que estas, também em liberdade, contratassem em termos colectivos. - Os poderes que explicam este mecanismo não são originários, antes assentando numa normativização conferida pelo Direito objectivo. Mas isso ocorre precisamente com os diversos negócios jurídicos. - A autonomia colectiva representa assim uma particular forma de autonomia privada; as convenções colectivas de trabalho são negócios (privados) colectivos'.
Mas, mais à frente, este autor acrescenta que 'a privatização das convenções colectivas, fortemente alicerçada no princípio da filiação e na liberdade sindical e de associação, não pode ser levada até ao fim. ... O regime em vigor reconhece expressamente a contratação colectiva - artigo 57º/3 e 4 da Constituição - e aponta-a como fonte - artigo
12º/1 da LCT - sendo um facto que ela permite a revelação de normas jurídicas.
[...] As convenções colectivas são, pois, negócios (privados) colectivos e fontes mediatas do Direito' (ib. pág. 322).
O argumento retirado do texto do artigo 12º, nº 1, da Lei do Contrato Individual de Trabalho não será assim tão decisivo na determinação da natureza jurídica da convenção colectiva de trabalho: é preciso ter em conta que tal diploma é o Decreto-Lei nº 49 408, de 24 de Novembro de
1969, e que aí as convenções colectivas de trabalho são colocadas em último lugar na ordem de precedência, depois das normas legais, das emitidas pelo Ministério das Corporações e Previdência Social, e mesmo depois das normas corporativas. Trata-se, como se vê, de uma disposição legal estabelecida no quadro do anterior sistema jurídico corporativo, e cuja desactualização é patente.
Em resumo: a lei regulamenta a eficácia específica das convenções colectivas impondo a sua obrigatoriedade unicamente quanto àqueles que devem considerar-se representados pelas entidades que as subscrevem, à luz dos princípios do direito do trabalho. As organizações profissionais que as celebram não têm poderes de autoridade mas apenas poderes de representação, isto é, de defesa e de promoção da defesa dos direitos e interesses dos respectivos filiados (cfr. artigo 56º, nº 1, da Constituição). E, assim, o clausulado que elas incorporam não contém normas, entendidas como padrões de conduta emitidos por entidades investidas em poderes de autoridade.
6 - Ora, se pode discutir-se qual o exacto alcance da palavra norma estabelecida no artigo 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, parece seguro, pelo menos, que com ela se teve em vista apenas os actos dispositivos de entidades investidas em poderes de autoridade, e mais precisamente, os actos dispositivos dos poderes públicos. Por exemplo, esta questão é dada como assente no Acórdão nº 26/85 (Diário da República, 2ª série, de 26 de Abril de 1985), onde se concluiu que nem todos os actos dos poderes públicos devem considerar-se normas (e, portanto, sujeitos à fiscalização do Tribunal Constitucional): aí se optou por um conceito funcionalmente adequado, segundo o qual não são normas as decisões judiciais e os actos da administração sem carácter normativo, nem os actos políticos ou actos de governo em sentido estrito.
Tal conceito funcionalmente adequado seria retomado depois no Acórdão nº 150/86 (Diário da República, 2ª série, de 26 de Julho de 1986), onde se considerou ser o mesmo aplicável, não só aos casos de fiscalização abstracta, mas também aos casos de fiscalização concreta, e que neste domínio o que importa verificar é se o preceito a examinar tem por parâmetro de validade imediata a lei ou a Constituição, pois que neste último caso nada justificará que esse exame escape à jurisdição e à competência do Tribunal Constitucional.
O Tribunal, contudo, sempre afirmou com clareza que escapam ao seu poder de cognição as normas provenientes da autonomia privada, salvo quando decorrentes da atribuição de poderes ou funções públicas a entidades privadas (Acórdão nº 472/89, in Diário da República, 2ª série, de 22 de Setembro de 1989; e Acórdãos nº 156/88 e nº 157/88, in Diário da República,
2ª série, de 17 de Setembro e de 26 de Julho de 1988, respectivamente).
7 - Ora, como as normas das convenções colectivas de trabalho não provêm de entidades investidas em poderes de autoridade, e muito menos provêm de poderes públicos, então não estão sujeitas à fiscalização concreta de constitucionalidade que incumbe a este Tribunal exercer, nos termos do artigo 280º, nº 1, alínea b), da Constituição.
É certo que o artigo 56º, nº 4, da Constituição se refere a normas das convenções colectivas de trabalho. Todavia, com isto não pretende obviamente usar o termo no sentido de normas provenientes dos poderes públicos, as únicas que são consideradas no sistema de fiscalização de constitucionalidade pelo artigo 3º, nº 3, da Constituição, como nota Jorge Miranda no texto acima referido.
E esta conclusão não conflitua com o decidido no Acórdão nº 392/89 (Diário da República, 2ª série, de 14 de Setembro de 1989), na medida em que aí se conheceu de uma norma constante de uma convenção colectiva de trabalho objecto de uma portaria de extensão. É que, como então se assinalou, ' a cláusula foi aplicada ex vi de uma portaria de extensão, que, assim, a 'apropriou', fazendo seu o respectivo conteúdo normativo', sendo certo que 'as normas de uma portaria preenchem, seguramente, o conceito de norma para o efeito da sua submissão ao controlo de constitucionalidade'.
III - DECISÃO
8 - Nestes termos, decide-se não tomar conhecimento do recurso.
Lisboa, 10 de Fevereiro de 1993
Luís Nunes de Almeida Bravo Serra Fernando Alves Correia Mário de Brito Messias Bento
José de Sousa e Brito (vencido, nos termos da declaração de voto junta). José Manuel Cardoso da Costa
Processo nº. 74/90
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votei vencido, por entender que as normas das convenções colectivas de trabalho são 'normas' para efeito de fiscalização concreta da constitucionalidade, nos termos da alínea b) do nº. 1 do artigo
280º. da Constituição e da alínea b) do nº. 1 do artigo 7Oº da Lei do Tribunal Constitucional.
Trata-se de matéria nova que o Tribunal ainda não tinha tematizado. Em Acórdão recente (nº 266/92 de 14 de Julho, Diário da República, II série, de 23 de Novembro de 1992, pág. 11044 e ss.), esta secção tinha sido confrontada com um pedido de apreciação da inconstitucionalidade de norma contida numa cláusula de um acordo colectivo de trabalho, mas não tratou da questão. Sem questionar a qualidade normativa da cláusula jurídico-laboral desaplicada nesse processo, o Tribunal limitou-se a constatar, como se norma fora, que tal cláusula ou sofreria apenas do vício de ilegalidade - caso em que só indirecta ou mediatamente violaria a Constituição - ou violaria tão só a Constituição de 1933. Como a falta de um pressuposto de admissibilidade é suficiente para impedir o conhecimento do recurso, pôde a questão ficar debaixo do tapete. Importava desta vez dar um novo passo na definição do conceito de norma, como objecto de fiscalização concreta de constitucionalidade. Em vez disso, parece-me que o Tribunal retrocedeu - sem o conceder, decerto -, relativamente ao ponto já alcançado em plenário nos Acórdãos nºs 150/86
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7-I p. 287ss) e 472/89 (Diário da República, II série, de 22 de Setembro de 1989, p. 9578 ss.).
I
SOBRE A 'NORMA' COMO OBJECTO DO PROCESSO CONSTITUCIONAL
2. Conceito funcional de norma. A normatividade como elemento do conceito.
O ponto de partida só pode ser um conceito funcional de norma ou seja, nas palavras do Acórdão nº. 26/85 (Acórdãos cit 5, pág. 18) 'o que há-de procurar-se, para o efeito do disposto nos artigos 277º e segs. da Constituição, é ... um conceito funcionalmente adequado ao sistema de fiscalização da constitucionalidade aí instituído e consonante com a sua justificação e sentido'.
A primeira grande clarificação consistiu em substituir as exigências de generalidade das pessoas e abstração dos factos abrangidos pela previsão da norma pela de normatividade, ou função orientadora do comportamento, relativa à estatuição da norma. Reconheceu-se, assim, o carácter de norma a 'preceitos legais de conteúdo individual e concreto ainda mesmo quando possuam eficácia consultiva', como eram as normas dos decretos-leis em apreço no Acórdão nº. 26/85, que extinguiam, cada uma delas, uma empresa pública. Já, no mesmo sentido, a Comissão Constitucional tinha considerado normas os preceitos de decretos-leis que regulavam uma classe fechada de casos, impondo, por exemplo, em certas condições, a expulsão das fileiras das forças armadas dos autores das tentativas de golpe de 11 de Março e de 25 de Novembro
(Parecer nº. 223/78, Pareceres da Comissão Constitucional, 4, p. 221 ss.), ou a caducidade dos arrendamentos e termo do direito das ocupações de dois prédios de Lisboa (Parecer nº. 13/82, Pareceres cit., 19, p. 149 ss.). Esta jurisprudência tem-se mantido, nomeadamente nos Acórdãos nºs 80/86 (Acórdãos cit., 7-I, p. 79 ss.), quanto à norma que restringe o preenchimento de um lugar de escrivão de direito a ajudantes de escrivão constantes de uma lista nominativa e atribui a categoria de escrivão de 1ª classe aos ajudantes de escrivão constantes da mesma lista, 157/88 (Diário da República, I série, de 26 de Julho de 1988, p. 3020), quanto às normas que criam duas empresas de transportes marítimos,168/88 (Diário da República, I série, de 11 de Outubro de
1988, p. 4138 ss.) e quanto às normas de vários acordos - que o Tribunal qualificou de tratados-contratos - entre Portugal e os Estados Unidos da América em matérias de defesa. A razão essencial que justifica esta jurisprudência foi expressa, em minha opinião, já no Parecer nº. 13/82:
'... é decerto seguro e indiscutível que a Constituição, ao prever o controlo da constitucionalidade das 'normas' jurídicas, e ao fazê-lo quer no artigo 281º quer no seguinte, teve em vista não toda a actividade dos poderes públicos mas apenas um sector dela, a saber, o que se traduz na emissão de regras de conduta ou padrões de valoração de comportamentos (i.e., de 'normas'): deste modo, fora desse específico controlo ficam os puros actos de aplicação dessas regras ou padrões, que são os actos jurisdicionais e os actos administrativos, stricto sensu. Simplesmente - e este outro argumento será, no nosso modo de ver, decisivo - cumpre atentar em que um preceito legal que rege para um caso concreto, e que nessa medida se apresenta com uma eficácia equivalente à de um acto administrativo, nunca é um puro acto de 'aplicação' do direito pré-existente, pois que simultaneamente se traduz num acto de 'criação' de direito novo: é que nele estabelece-se também a regra aplicável ao caso, regra que muitas vezes (se não normalmente) constitui um desvio ou uma excepção às que de outro modo seriam aplicadas, mas que justamente se torna necessária para conferir à providência administrativa adoptada o seu mesmo fundamento de validade (de validade 'legal', claro). Em tal preceito ou disposição legal vai implicitamente contida, por conseguinte, uma norma - uma norma 'individual', decerto, mas que não há razão para subtrair só por esse facto, e como já se disse, à possibilidade do controlo previsto no artigo 281º da Constituição' (p.
159).
Formulou-se assim um critério de normatividade: só actos de criação normativa (em sentido amplo, abrangendo manifestamente a modificação e a revogação total ou parcial de normas), por oposição a actos de aplicação normativa são controlados por via da fiscalização de inconstitucionalidade do Tribunal. É esta a razão material que explica porque os actos com forma legislativa contêm sempre normas, mesmo quando contêm materialmente também actos administrativos: é que contêm então as normas que regem estes actos, que obrigam, como leis formais, particulares, autoridades e tribunais, e relativamente à constitucionalidade das quais as decisões dos tribunais administrativos estão sujeitas à última palavra, em fiscalização concreta, do Tribunal Constitucional.
Mal seria que violações directas da Constituição, por parte de órgãos de soberania ou de região autónoma, com conteúdo normativo e, portanto, projectando-se no futuro através da orientação de comportamentos, não pudessem ser prevenidas em geral e eliminadas em concreto, em última instância, pelo Tribunal Constitucional, podendo, contudo, ser julgadas por outros tribunais. Como assim, se o Tribunal Constitucional foi especificamente instituído 'para administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional' (artigo 223º da Constituição)?
Acresce que no mundo contemporâneo, que se caracteriza pelo pluralismo e pela emergência de grandes organizações, personalizadas ou não, a regulação jurídica da vida económica e social depende decisivamente de leis-medida e de leis individuais, de modo que uma renúncia à fiscalização constitucional de tais leis reduzir substancialmente a efectividade funcional do Tribunal Constitucional, o que 'não faria sentido',
'sendo certo que no seu âmbito é ainda maior o risco de desatenção e de desrespeito pelas exigências constitucionais' (assim o Acórdão nº. 26/85, cit. p.18).
Aliás, é da competência reservada da Assembleia da República conceder amnistias e perdões genéricos através de leis que são gerais, no sentido que se referem a uma classe de factos individualizados indirectamente através de conceitos genéricos, mas também retroactivos, referentes a uma classe fechada de factos que já existiram no momento da criação da lei. Nesta medida assemelham-se a leis-medida ou leis-providência, não são susceptíveis de aplicação indefinidamente repetida. Mas é claro que contêm normas que estatuem vários efeitos jurídicos que se impõem aos amnistiados, a vários órgãos do Estado e até a terceiros, e que estão sujeitas à fiscalização do Tribunal Constitucional (cfr. por último os Acórdãos nºs. 152/93 e 153/93, inéditos).
3. Afastamento de um conceito formal de norma.
Como se disse no Acórdão nº. 157/88, ao adoptar a doutrina do carácter normativo do conteúdo dos actos legislativos (artigo 115º, nº. 1 da Constituição), isto é, ao concluir que todas as leis em sentido formal são normas, o Tribunal limita-se a 'extrair a consequência' postulada pela
'consideração teológica e funcional (isto é, 'material') das coisas' (p.30 ss). Isto não é equivalente a dizer, como o mesmo acórdão equivocadamente disse, que tal consideração postula 'um critério ou noção 'formal' de norma'. A não ser que se entenda a expressão 'formal' no sentido amplíssimo de 'qualquer preceito ou disposição inserida num diploma normativo', referido no Parecer nº. 13/82
(p.161). Tratar-se-ia então de um conceito que só seria formal pela abstracção de toda a determinação de conteúdo para lá da simples normatividade e da restrição, aliás injustificada, ao direito escrito. Mas quando se fala em
'conceito formal de norma' tem-se mais frequentemente em vista o conceito de
'lei em sentido formal', que Haenel definiu, na esteira de Laband, como 'aquele acto do Estado que - segundo determina mais de perto o direito positivo - foi produzido e declarado de uma forma solene determinada, especialmente com intervenção da representação popular', e que pode ter ou não como conteúdo uma proposição jurídica (Das Gesetz im formellen und materiellen Sinne, 1888, reimp.
1968 pp 2O4-5). A exigência material de normatividade equivale à de ter como conteúdo uma proposição jurídica, o que afasta um conceito formal no sentido referido, independentemente da questão de saber onde passariam os seus limites no direito português - onde se justificaria uma delimitação baseada no conceito de 'acto legislativo' do nº. 1 do artigo 115º. da Constituição.
4. Necessidade de outros critérios adicionais. Normatividade do objecto do processo e 'generalidade' de norma jurídica.
Mas é claro que todos estes argumentos, incluindo a razão essencial primária referida, implicam que as leis formais sejam
'normas', para efeito de fiscalização da constitucionalidade, mas não implicam que só elas o sejam. Os tribunais judiciais aplicam outras formas de regulação e orientação de comportamentos, nomeadamente normas gerais e individuais criadas por autoridades públicas, normas gerais do costume, interno e internacional, normas de direito estrangeiro recebidas por remissão das normas do direito internacional privado, decisões de tribunais com força obrigatória geral, normas de convenções colectivas de trabalho, normas gerais (como os regulamentos de empresa, de uso, de instalação, estatutos, etc.) e individuais criadas por pessoas privadas. Em todos estes casos pode haver violação directa da Constituição (pensa-se em violação do princípio da igualdade, ou da proibição da perda de direitos civis ou profissionais como efeito necessário de penas criminais, para referir exemplos actualmente presentes no Tribunal) por normas do caso e se aplicam os argumentos baseados na 'normatividade' tida em vista pelo Tribunal. Uma delimitação das normas relativamente às quais se justifica a fiscalização da constitucionalidade pelo Tribunal implica outros critérios adicionais. Os principais contributos da jurisprudência do Tribunal para a formulação desses critérios foram os acórdãos nº. 150/86 e 168/88, para a formulação do critério do reconhecimento estatal, os Acórdãos nºs 156/88
(Diário da República, II Série, de 17 de Setembro de 1988, p. 8579 ss) e 472/89, para a formulação do critério da heteronomia e os Acórdãos nºs. 26/85 e 150/86 para o critério da imediação (ou da violação directa da Constituição). Antes de tentar demonstrar esta doutrina, cumpre esclarecer a relação essencial entre a normatividade e a generalidade, relação decisiva para fixar o exacto alcance de todos os critérios envolvidos. A 'normatividade', se exclui a generalidade e abstracção, como características essenciais das previsões das normas que são objecto possível do processo constitucional, não exclui, antes possibilita, a apreciação da 'generalidade' das estatuições, como exigência da conformidade destas à vontade geral. O apuramento desta conformidade é a própria essência do processo constitucional. O objecto do processo tem que ser uma norma, como razão de agir, para se apurar se é uma recta ratio, uma razão correcta, sustentável perante a Constituição. A exigência de generalidade da lei surge historicamente em Rousseau como exigência de racionalidade, baseada na igualdade e na consequente concepção do bem comum como o maior bem de todos:
'como a coisa estatuída se refere necessariamente ao bem comum, segue-se que o objecto da lei deve ser geral bem como a vontade que o dita, e é esta dupla universalidade que faz o carácter da lei' (Rousseau, Du contrat social (1e version, Oeuvres complètes, ed. Pleiade, III, p. 438). Estabelece-se assim uma dialéctica entre a 'vontade de todos' e a 'vontade geral', que é a base de toda a teoria do Estado de direito: a vontade de todos, determinada por órgãos legitimados democraticamente, só obriga se conforme à 'vontade geral' e só através da 'vontade de todos' 'se pode assegurar que uma vontade particular é conforme à 'vontade geral' (Du contrat social, 1.2, e 7, ed. cit., p. 383). Assim entendida, a exigência de generalidade não depende do carácter mais ou menos determinado dos casos a que se aplica, mas da conformidade com a vontade geral, ou correcção, ou racionalidade, do ponto de vista do Estado de direito, da estatuição normativa, isto é, da susceptibilidade da sua generalização, como diz, no mesmo sentido, Krüger: 'a lei é geral (e portanto correcta) quando passa a prova do critério da capacidade de generalização (Allgemeine Staatslehre, 2ª ed., 1966, p. 306-7).
A norma que é objecto do processo constitucional não tem que ser geral neste sentido, pois poderá concluir-se pela sua inconstitucionalidade, mas tem que pretender sê-lo. A pretensão da generalidade confunde-se com a pretensão de constitucionalidade e não é um requisito autónomo do objecto de processo constitucional, mas fundamenta a heteronomia e o reconhecimento. O momento dialéctico da legitimação democrática conduz à doutrina do reconhecimento. Os dois momentos dialécticos da legitimação democrática e da legitimação racional (pela referência ao bem comum do Estado de direito) implicam a doutrina da heteronomia.
5. A imediação como elemento do conceito funcional de norma.
A exigência de mediação tem a ver com a dimensão fiscalizadora das competências constitucionais da jurisdição constitucional: o Tribunal Constitucional só excepcionalmente julga acerca da legalidade de quaisquer normas, nomeadamente quando se trata da ilegalidade de um acto legislativo - a que os tribunais, por consequência de inconstitucionalidade, não devem obediência -, ou quando está em causa a autonomia regional (nº. 2 do artigo 280º. da Constituição; artigo 70º. da Lei do Tribunal Constitucional). Em todos estes casos a ilegalidade implica a violação de limites à competência de órgãos soberanos ou de autonomia regional, regulados na Constituição, e assim, uma inconstitucionalidade orgânica indirecta. O Tribunal Constitucional então intervem na sua função típica de fiscalizar competências constitucionalmente definidas, tal como nos juízos de inconstitucionalidade. Esta problemática não existe nas restantes inconstitucionalidades indicadas por ilegalidade. São, portanto, os fins da jurisdição constitucional que implicam a imediação.
A imediação foi formulada logo no já citado Acórdão nº. 26/85: 'também os preceitos com a natureza agora considerada têm como parâmetro de validade imediato, não a lei ('outra' lei), mas a Constituição. Nada justifica, por consequência, que o seu exame escape ao controlo específico da constitucionalidade - é dizer, à jurisdição e à competência deste Tribunal' (p. 19). Identicamente se pronunciou o Acórdão nº.
150/86 (p. 299). Em rigor, são os fins da jurisdição constitucional e, portanto, o conceito funcional de norma, que implicam a imediação. Assim, se não houvesse violação directa da Constituição é que haveria uma razão para escapar ao controlo específico de constitucionalidade e tal não se verifica nas hipóteses dos acórdãos. A imediação não era problemática no caso do Acórdão nº. 26/85, em que se julgavam normas de actos legislativos, que estavam imediatamente sujeitos
à Constituição. Mas já se tornava decisiva quanto às normas do regulamento de arbitragem julgadas inconstitucionais no Acórdão nº. 150/86, que só violavam directamente a Constituição por não estar em vigor a Lei nº. 31/86 de 29 de Agosto (artigo 16º.), que as teria tornado ilegais. Assim foi com base na falta de imediação que o Acórdão nº. 266/92, de 14 de Julho, considerou inadmissível o recurso da alegada inconstitucionalidade de uma norma de convenção colectiva de trabalho, por se tratar de mera ilegalidade, deixando debaixo do tapete as questões relativas a outros elementos do conceito de norma (supra nº. 1).
A jurisprudência do Tribunal tem justamente deduzido a exigência da imediatação da alínea i) do nº. 4 do artigo 70º. da Lei do Tribunal Constitucional, introduzida pela Lei nº. 85/89, de 7 de Setembro, negando que haja inconstitucionalidade no sentido da alínea b) do mesmo nº.1 quando há violação directa da convenção internacional e indirecta do nº.2 do artigo 8º da Constituição (cfr. os Acórdãos nºs. 185/92, 277/92, 351/92,
603/92, 162/93, todos inéditos).
Contudo, tal como a normatividade, a imediação é uma condição necessária mas não suficiente da existência de uma norma, como objecto do processo constitucional: os negócios jurídicos podem violar directamente a Constituição, mas tal inconstitucionalidade é apenas fundamento de medida absoluta do negócio por o seu objecto ser 'contrário à lei', no sentido do artigo 280º. do Código Civil, em que a 'lei' inclui a Constituição.
6. A heteronomia como elemento do conceito funcional de norma.
No Acórdão nº. 150/86 tratou-se da questão de saber se as normas de um regulamento de arbitragem aprovado pela 'determinação' de uma comissão arbitral, prevista nas condições gerais da Venda de Energia Eléctrica em Alta Tensão, anexas ao decreto-lei e constituída para resolver um litígio entre a D., e a Federação dos Municípios do Distrito de E., podem ser objecto de fiscalização concreta do Tribunal Constitucional. Depois de afirmar a normatividade de tal 'determinação', e a imediação das normas questionadas do regulamento de arbitragem que era conteúdo do Acórdão nº. 150/86, trilhou novos caminhos ao discutir a questão de saber se o regulamento de arbitragem é um acto normativo privado. O acórdão recusa uma concepção segundo a qual 'os preceitos em causa só seriam susceptíveis de constituirem objecto da fiscalização concreta de constitucionalidade, caso tivessem sido editados sob a forma de acto legislativo ou, quando conceito, no exercício de um poder regulamentar' (p.
297) E continua:
'Dando por adquirido - o que faltaria demonstrar - que os actos normativos privados estão todos eles subtraídos à fiscalização da constitucionalidade, a verdade é que tal natureza não pode, em rigor, ser atribuída à determinação em causa.
E isto, desde logo, porque sendo a comissão arbitral um tribunal arbitral necessário, o afastamento das normas legais vigentes em matéria de processo e a consequente subordinação aos termos processuais fixados por aquela comissão em nada resulta da vontade das partes, pelo que se não pode aí descortinar uma manifestação da autonomia privada.
Mas também, acrescente-se, porque os tribunais, arbitrais exercem poderes soberanos, tal como os restantes tribunais, não sendo legítimo, por isso, negar o carácter público da função que desempenham'.
Estes dois últimos argumentos apontam para duas diferentes determinações do conceito de norma. A subordinação à norma independentemente da vontade das partes aponta para o elemento da heteronomia, o apelo à soberania dos tribunais arbitrais aponta para o elemento do reconhecimento estatal.
A exigência de heteronomia é fácil de demonstrar. Heteronomia é a característica de uma orientação de comportamento que se impõe independentemente da vontade daqueles a quem se dirige. Excluem-se, portanto, as normas criadas pela autonomia privada. Só as normas heterónomas suscitam o problema típico da administração de justiça constitucional, que é o do conflito entre liberdade e autoridade, entre a vontade individual e a vontade geral, que as normas heterónomas resolvem fazendo depender a liberdade e a autodeterminação da pessoa, que são valores que decorrem imediatamente da dignidade da pessoa humana, da vontade alheia, que se impõe, se necessário pela força coercitiva do Estado, em nome da racionalidade do bem comum (neste sentido, citando Herzog, Ferdinand Kirchhof, Private Rechtssetzung, 1987, p.86). Consequentemente, o Tribunal Constitucional tem vindo a excluir as normas que considera de autonomia privada, da sua esfera de fiscalização.
A heteronomia funcionalmente relevante para a definição de norma jurídica como objecto do processo constitucional não se basta com a simples susceptibilidade de imposição a terceiros. Também as normas de uso por terceiros de certas instalações, de coisas ou de prédios privados, emitidas pelo seu proprietário como tal, e não no âmbito de relações obrigacionais de que seja sujeito, obrigam terceiros independentemente da vontade destes. E, no entanto, tais normas pertencem à autonomia privada. A vontade privada - incluindo a vontade particular de associações infra-estatais
- exprime-se nelas dentro da sua esfera própria de actuação no prosseguimento de fins pessoais ou particulares, que não se integram num sistema de fins do Estado. Não têm pretensão de 'generalidade', como qualidade da estatuição normativa, no sentido atrás (nº. 4) apontado. Não têm, por isso, que se legitimar democraticamente, nem racionalmente pelo bem comum do Estado de direito, pelo que não se justifica o específico controlo da sua constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional. É a 'generalidade' que fundamenta a heteronomia do direito objectivo, a qual nessa medida se contrapõe
à autonomia privada, mesmo quando esta se impõe ao respeito de terceiros. Assim o Tribunal considera no Acórdão nº. 156/88 que uma norma do Regulamento da Prevenção e Controlo do Alcoolismo da F.. não podia ser objecto de controle da constitucionalidade pelo Tribunal por ser proveniente de autonomia privada. Do mesmo modo, o Tribunal decidiu, no Acórdão nº. 472/89 - desta vez profundamente dividido, não quanto à doutrina, mas quanto à sua aplicação - que duas normas, uma do Estatuto e outra do Regulamento de Disciplina da Federação Portuguesa de G., não podiam ser objecto de fiscalização de constitucionalidade por parte deste Tribunal, porque os poderes regulamentar e disciplinar em questão são poderes privados, que a lei reconhece às associações de direito privado, no quadro da sua autonomia própria (p. 9585).
7. O reconhecimento como elemento do conceito funcional de norma.
O direito heterónomo que os tribunais aplicam e de que o Tribunal Constitucional controla a constitucionalidade não é apenas constituído por normas criadas por órgãos do Estado. A Constituição incorpora no direito português o direito internacional, nos termos do artigo 8º. (cfr. ainda o artigo 16º.) e 278º., nº. 1), e refere-se às 'normas' das convenções colectivas de trabalho (nº. 4 do artigo 56º.), resultantes do direito à contratação colectiva que é reconhecido às associações sindicais (nº. 3 do artigo 58º.). Sendo indiscutível o controlo da constitucionalidade das convenções internacionais (nº. 1 do artigo 278º.), que o Tribunal tem feito, tanto preventiva (cfr., por exemplo, o Acórdão nº. 168/88) como sucessivamente
(cfr., por exemplo, o Acórdão nº. 423/87, Acórdãos, cit., 10, p. 77 ss), é difícil conceber outra solução para o restante direito internacional, incluindo as normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais (nº. 3 do artigo 8º.) e o costume internacional (nº. 1 do artigo 8º.). Ora nenhuma forma de ratificação, assinatura ou incorporação transforma os órgãos de Estado estrangeiros e de organizações internacionais e os sujeitos das práticas e das convenções jurídicas costumeiras em poder público do Estado português, nem este se investe em poderes de autoridade, para usar a dicotomia que fez vencimento no presente acórdão. Tanto basta para negar o monopólio normativo do Estado português. Tal monopólio não deriva aliás de nenhum princípio constitucional. A soberania interna do Estado apenas exige que o Estado tenha 'a última palavra'
(Ossenbühl fala numa 'prerrogativa de criação normativa'), o que equivale à supremacia da Constituição. O monopólio da força física coercitiva apenas exige que as sanções jurídicas garantam coercitivamente o cumprimento das obrigações contidas naquelas normas que o Estado reconhece para tal efeito, a que empresta a força do seu braço. Não impede a existência de outros poderes que não são públicos, nem por si nem por delegação, com competência para criar normas heterónomas, que são reconhecidas como tais pelo Estado. Numa palavra: o Estado detém não o monopólio de criação, mas apenas o do reconhecimento das normas como normas jurídicas (neste sentido: Ferdinand Kirchhof, ob. cit., p. 133 ss., Fritz Ossenbühl em Josef Isensee, Paul Kirchhof, Handbuch des Staatsrechts,
1988, § 61, Rn. 3O ss.).
A jurisprudência do Tribunal tem procurado manter a doutrina do monopólio da criação normativa através da noção de 'atribuição de poderes ou funções públicas a entidades privadas'. Segundo o Acórdão nº. 472/89
'essa atribuição ou devolução de poderes pode incluir também a outorga de faculdades normativas - e, então, as correspondentes normas serão normas públicas, porque justamente produzidas no exercício desse poder público devolvido ou delegado no ente privado' (p. 9 584). Não se nega a possibilidade de delegação de poderes normativos públicos. Só que tal delegação é uma ficção indesejável sempre que implica a atribuição a um acto de um sentido diferente daquele que corresponde à intenção do seu autor e ao sentido explícito das palavras em que se manifesta. Não é necessário, para explicar a validade das regras de processo a observar na arbitragem, atribuir um poder público, e menos ainda 'poderes soberanos' (como pretende o Acórdão nº. 150/86, p. 299), às partes e na falta do seu exercício por estas, aos árbitros que elas escolheram. Como é pura ficção falar de um poder público estatal português derivado atribuído ao governo de um Estado estrangeiro ou ao órgão de uma organização internacional para criar direito internacional convencional. O mesmo se deve dizer, como procurarei mostrar a seguir, do poder de contratação colectiva. Basta, em todos estes casos, evocar as normas legais ou constitucionais, de remissão ou de reconhecimento, que são aplicáveis. Quanto ao costume, tal atribuição nem sequer é concebível, pelo que não pode ser ficcionada.
A imposição dogmática do modelo da delegação de competência normativa pública corresponde, aliás, a uma doutrina da identidade
- isto é, dos critérios de pertença de uma norma jurídica a uma ordem jurídica - e da unidade da ordem jurídica - isto é, dos elementos comuns a todas as normas da ordem jurídica -, que encontrou a sua mais acabada expressão na teoria de Kelsen. A consequência indesejável desta doutrina é a impossibilidade de admitir a simultânea validade de ordens normativas diversas - a internacional, as estrangeiras, as eclesiásticas, as institucionais infra-estaduais. A doutrina mais recente tem seguido a orientação pluralista propugnada por Santi Romano
(L'ordinamento giuridico, 1918, reimp. 1977), que chama a atenção para os factos institucionais ligados à criação, à aplicação e à garantia das normas e considera a ordem estatal como uma entre outras ordens institucionais. Nesta linha, Hart ('Kelsen's, Doctrine of the Unity of Law', em Ethics and Social Justice, ed. for H.E.Kiefer, M. K. Munitz, 197O, p. 171 ss.) defendeu que o critério de pertença de normas jurídicas a um único sistema depende de critérios comuns de reconhecimento dessas normas pelos agentes da aplicação e garantia delas, e não de uma relação de delegação de competência ou de derivação de validade e, portanto, de uma inexistente origem comum. E Wengler
('Betrachtungen über den Zusammenhang der Rechtsnormen in der Rechtsordnung und die Verschiedenheit der Rechtsordnungen', em Festschrift für Laun, 1953, p. 719 ss) mostrou como a unidade sistémica da ordem jurídica se revelava, não na origem comum das suas normas, mas na comum contribuição de todas elas para a definição dos mesmos bens jurídicos. Não importa aqui decidir esta questão doutrinária, apenas mostrar que a transformação de poderes privados ou outros não-estatais em poderes públicos é uma desnecessária hipóstase de evitável dogmatismo para explicar a validade dentro do Estado de normas de origem não estatal, validade que resulta simplesmente de normas remissivas, de incorporação normativa ou de reconhecimento de fontes de direito.
8. Outros elementos do conceito funcional de norma.
A determinação que anteriormente se fez dos elementos do conceito funcional de norma como objecto do processo constitucional não pretende ser exaustiva, mas apenas destacar aqueles elementos que importa questionar na generalidade dos casos e justificar suficientemente a solução a dar ao presente caso. Noutras hipóteses poderá haver outros problemas de delimitação, nomeadamente os relacionados com o âmbito de aplicação especial e temporal das normas (quanto ao direito estrangeiro, dos órgãos de Governo próprio de Macau, pretérito, etc.) que não são aqui relevantes.
II
SOBRE AS CONVENÇÕES COLECTIVAS DE TRABALHO COMO NORMAS
9. Nada mais resta do que aplicar os resultados que uma ponderação da jurisprudência anterior do Tribunal permitia alcançar, às convenções colectivas de trabalho.
Não é duvidosa a normatividade das convenções colectivas de trabalho, porque regulam o comportamento dos membros das associações sindicais subscritoras, dos membros das associações patronais subscritoras e ainda dos trabalhadores ao serviço de empresas públicas ou de capitais públicos, cujo processo de negociação foi autonomizado, sejam ou não membros das associações negociantes. Não se aplicam aos membros actuais, mas também aos futuros e aos que não são membros mas já alguma vez o foram durante o período da sua vigência (artigos 8º., 9º. e 3º., nº. 3, da Lei da Regulamentação Colectiva de Trabalho (Decreto-Lei nº. 519-C1/79, de 29 de Dezembro)). Uma vez que a generalidade da previsão normativa não é exigida pelo conceito funcional de norma, sempre seria irrelevante para a normatividade que as convenções não se apliquem aos trabalhadores não filiados nem às entidades patronais não subscritoras ou não filiadas. Mas, dada a delimitação que a lei faz do âmbito de aplicação pessoal das normas das convenções colectivas, é claro que elas não se aplicam a uma classe fechada, mas a uma classe aberta de casos e de pessoas, são susceptíveis de aplicação indefinidamente repetida, são, portanto, gerais e abstractas. Aplicam-se, nomeadamente da forma indicada, a trabalhadores futuros e a futuras entidades patronais.
1O. Também contra o que diz o acórdão, não é duvidoso que a norma sub judicio viola directamente a Constituição, nomeadamente o princípio da igualdade, e não há uma primária ilegalidade que exclua o pretendido exame. É certo que as convenções colectivas não podem
'limitar o exercício dos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos'
(alínea a) do nº. 1 do artigo 6º. da Lei da Regulamentação Colectiva de Trabalho), mas a disposição do artigo 6º. da Lei da Regulamentação Colectiva de Trabalho não transforma as normas constitucionais em normas legais, não incorpora o princípio da igualdade, que é aplicável à relação de trabalho por força da Constituição e não por força da Lei da Regulamentação Colectiva de Trabalho.
11. As normas das convenções colectivas são potencialmente heterónomas, vinculam as pessoas por elas abrangidas nos termos da lei independentemente e eventualmente contra a vontade dos destinatários das normas. Impõem-se aos contratos individuais de trabalho que lhes estão subordinados como se fossem leis imperativas e mesmo contra leis imperativas: ao alterarem mínimos legais de remuneração, por exemplo, proíbem cláusulas de contratos individuais permitidas por lei (alínea c) do nº. 1 do artigo 6º. enº.
1 do artigo 14º. da Lei de Regulamentação Colectiva de Trabalho).As convenções colectivas de trabalho têm, é certo, uma imperatividade em sentido único, só enquanto estabelecem condições mais favoráveis para os trabalhadores: impõem níveis mínimos e não tectos máximos, os quais só podem ser estabelecidos por lei. Além disso, valem para trabalhadores e entidades patronais que não se integram em associações ou entidades subscritoras no momento da celebração da convenção ou que deixaram de as integrar. É certo que para as partes outorgantes, as normas das convenções colectivas são autónomas, são resultado de um processo negocial de criação normativa, regulam de acordo com a sua vontade os seus interesses, mas impõem-se depois aos seus destinatários por força e nos termos da lei, independentemente da contribuição destes para a sua criação.
Dizer que os destinatários são representados pelas associações outorgantes só faz sentido relativamente aos que são associados ao tempo da celebração. Mas mesmo quanto a estes cumpre acentuar que a filiação numa associação sindical ou patronal não tem o sentido de um mandato de representação em futuras convenções colectivas nem é um acto de submissão voluntária a prévias ou futuras convenções colectivas - do mesmo modo que a aquisição de cidadania por naturalização, por exemplo, não é um acto de submissão voluntária às leis do Estado. A sua submissão às convenções colectivas
- como além, no caso de naturalização - não deriva normativamente da vontade mas da lei (assim, Ferdinand Kirchhof, ob. cit., p. 184 ss).
Decisiva é, porém, a questão de saber se as convenções colectivas de trabalho têm pretensão de 'generalidade', isto é, se se integram no sistema do direito objectivo, se prosseguem ao fim e ao cabo os fins da Constituição, não obstante o espaço da autonomia na sua negociação. De tal depende justificar-se ou não, quanto a elas, o controlo específico de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional. O mesmo é dizer, na terminologia adoptada (supra nº. 6), que de tal depende serem ou não heterónomas no sentido funcional relevante.
São úteis a este respeito os contributos constitucionalistas alemão e italiano, não obstante o contexto constitucional e legal seja parcialmente diferente. Na Alemanha é discutida e ainda não foi decidida pelo Tribunal Constitucional Federal a questão de saber se as convenções colectivas são actos de criação de direito e se, por isso, é possível contra eles um 'Verfassungsbeschwerde' (recurso de agravo constitu-cional).Benda (Benda, Klein, Lehrbuch des Verfassungspro-zessrechts,
1991, p. 1835) põe, em minha opinião, o dedo na ferida, embora as suas considerações estejam afinal em contradição com toda a evolução do direito do trabalho para a sua plena integração na ordem constitucional, com paralelas consequências no entendimento das relações entre o Estado e a sociedade como relações jurídicas subordinadas à Constituição. Benda começa por expor a opinião contrária nos seguintes termos: 'A opinião que, além do mais, vê nos contratos colectivos objectos possíveis de um agravo constitucional, invoca não por acaso a função objectiva do agravo constitucional. A sua função não é simplesmente esgotar-se na protecção da esfera dos direitos fundamentais do indivíduo. Antes deve preencher também uma 'função geral' dentro da ordem jurídica na medida em que defende o direito constitucional e promove a sua interpretação e desenvolvimento. Daqui resulta a tarefa de conceber o conceito de poder público de modo tão amplo que não fique limitado ao exercício da autoridade estatal, mas abranja outras relações de autoridade, que se tivessem estabelecido a par do poder estatal e subsistissem por força do reconhecimento estatal'. Passando a expor a sua própria opinião escreve: 'tais considerações têm, porém, consequências para o entendimento da liberdade no domínio da liberdade sindical (artigo 9º., secção 3, da Lei Fundamental), que é uma parte importante da liberdade dos cidadãos. A liberdade sindical e a autonomia das convenções colectivas não são expressão de uma divisão de trabalho entre Estado e partes convencionais ou da assunção pelas forças sociais de funções públicas. Elas devem, ao contrário, respeitar um espaço livre do Estado. Nisso tem-se em conta que as decisões tomadas neste domínio independentemente do Estado, tais como a conclusão de contratos colectivos podem ter reflexos muito importantes, mas também prejudiciais, sobre a política económica e financeira. Se as partes convencionais fossem 'poder público', estariam nas suas convenções vinculadas ao bem comum. É certo que a consciência de ser corresponsável pelo todo é um pressuposto essencial também da autonomia convencional. Mas se associações, que representam interesses parciais legítimos, são vinculadas juridicamente ao bem comum ou se lhes é imposta uma 'vinculação social', então não só se limita o carácter liberal da autonomia convencional, como também o Estado se desonera da sua obrigação de actuar no interesse do bem comum, no caso de derivarem perigos da actividade de associações livres e não incorporadas no Estado'. Quanto à avaliação que Benda faz dos argumentos dos que defendem que as convenções colectivas são fontes de direito, já aqui se mostrou que o reconhecimento estatal das normas não implica o carácter de poder público das partes convencionais como entidades criadoras de direito. Por outro lado, se é verdade que é a vinculação ao bem comum que fundamenta o reconhecimento das convenções colectivas como direito objectivo e não o invés, não é menos que se trate de uma questão a responder na base do direito positivo, e aí as várias manifestações do reconhecimento podem ser outras tantas provas do carácter jurídico e não de novas regras da autonomia privada, das normas das convenções colectivas. A ser assim, como se pretenderá para o direito português, haverá que concluir-se que as regras achadas por concordância de empregadores e trabalhadores na prossecução dos seus interesses parciais são, em princípio, as mais conformes com o bem comum a que estão não obstante vinculadas e que o Estado não está desonerado de promover através da legislação económica financeira e da legislação laboral de enquadramento e suprimento que lhe competem. Uma orientação relevante, apesar das críticas, parece, aliás, ser a do Tribunal Constitucional Federal Alemão, embora formulada em contextos diferentes do objecto do processo constitucional. Assim aquele Tribunal disse que 'a convenção colectiva contém na sua parte normativa regras jurídicas, isto é, disposições imperativas - nos termos do § 4, secção 3ª da Lei da Convenção Colectiva - gerais-abstractas sobre o conteúdo das relações jurídicas de trabalho por ela abrangidas '(BVerfGE 34, 3O7 [317]. Na criação de normas pelas partes convencionais trata-se de legislação no sentido material que produz normas em sentido técnico-jurídico (acórdão de 24 de Maio de 1977: BVerfGE 44,
341)'.
Em Itália existia a prática de obter a eficácia erga omnes das normas dos contratos colectivos de âmbito limitado através de decretos legislativos delegados de recepção daquelas normas. Estes decretos tinham a natureza de uma lei transitória, provisória e excepcional, mas podiam ser reiterados, obtendo-se assim um efeito semelhante às portarias de extensão do direito português. A Corte Costituzionale (sentença 70/1963) considerou inconstitucionais as leis de reiteração, por serem uma forma de estabilizar um sistema de eficácia erga omnes das convenções colectivas diverso do previsto no artigo 39º da Constituição Italiana que prevê a possibilidade de convenções colectivas de trabalho com eficácia obrigatória para todos os que pertencem às categorias profissionais a que as convenções se referem. Mas a jurisprudência passou a entender que as convenções colectivas assumiam indirectamente uma eficácia geral por aplicação imediata do artigo 36º da Constituição Italiana, na parte relativa aos direitos retributivos do trabalhador. Em síntese da descrição que faz desta solução, conclui Zagrebelsky (Manuale di Diritto Costituzionale, I, 1984, p. 252 ss.) que ' o direito efectivo triunfou sobre o direito formal. Se bem que de modos indirectos, a contratação actual chega a valer de um modo que se assemelha bastante mais ao que é típico das fontes de direito do que dos actos de autonomia privada '.
12. Passando finalmente ao exame do direito português, deverá dizer-se que ele claramente reconhece as convenções colectivas de trabalho como fontes de direito e que as integra na unidade sistemática do direito objectivo subordinado à Constituição, pelo que as normas das convenções colectivas não são só reconhecidas como heterónomas.
Desde logo, o nº. 4 do artigo 56º da Constituição tem o sentido de reconhecer como 'normas' jurídicas as das convenções colectivas de trabalho. Quando dispõe que ' a lei estabelece as regras respeitantes à legitimidade para a celebração das convenções colectivas de trabalho, bem como à eficácia das respectivas normas ', a Constituição não deixa ao arbítrio do legislador ordinário a própria existência das convenções colectivas como normas jurídicas, mas apenas as modalidades do seu regime. De qualquer modo, a lei tem de respeitar a garantia constitucional às associações sindicais do direito de contratação colectiva (nº. 3 do mesmo artigo 56º.).A redacção do nº. 4 é altamente significativa na medida em que atribui à lei e não
à vontade das partes a determinação da legitimidade das partes e do âmbito da eficácia pessoal das convenções colectivas. Se se tratasse de autonomia privada, essa legitimidade e esse âmbito estariam predeterminados pela natureza das coisas: as convenções só poderiam obrigar as partes contratantes. A redacção revela assim que a Constituição teve em vista a manutenção das características essenciais do instituto jurídico no direito português da altura, que se mantêm hoje (artigo 12º. da Lei do Contrato Individual de Trabalho, ainda em vigor; artigos 4º., 5º. e 9º. da Lei nº. 169-A/76, de 28 de Fevereiro, correspondentes aos artigos 6º, 14º. e 7º. do Decreto-Lei nº. 519-C1/79), dando justificadamente uma base constitucional à heteronomia, como fonte de direito, das convenções colectivas.
Isto é confirmado, de forma decisiva, pelo confronto entre o nº. 3 e o nº. 4 do artigo 56º. Na verdade, a Constituição não reconhece as normas das convenções colectivas como consequência da atribuição de um poder público ou sequer normativo a certas entidades ou órgãos. Apenas ressalva o direito de contratação colectiva de cada associação sindical, como uma possível parte contratual, direito que terá que ser respeitado pela lei definidora das regras respeitantes à legitimidade para a celebração das convenções, além de que implica desde logo um espaço de autonomia reservado à contratação colectiva. O reconhecimento das normas das convenções colectivas é feito pela Constituição através da criação da forma jurídica da convenção colectiva, cujas normas, por revestirem essa forma, têm a eficácia que a lei, não a vontade das partes, determinar.
13. O regime legal veio desenvolver e reafirmar as determinações constitucionais. Além do que já se disse sobre o âmbito da eficácia pessoal das convenções colectivas, importante é a inserção das convenções colectivas no sistema de fontes do direito do trabalho. Do artigo
12º. da Lei do Contrato Individual de Trabalho e dos artigos 5º, 6º, e 14º., nº. 1 da Lei da Regulamentação Colectiva do Trabalho deriva, nomeadamente, que as convenções colectivas se situam hierarquicamente abaixo das normas jurídicas de origem estatal, mas que regulam os direitos e deveres recíprocos dos trabalhadores e das entidades patronais reconhecido por contrato individual de trabalho, não podendo ser afastadas por estes salvo para estabelecer condições mais favoráveis aos trabalhadores. As normas convencionais que estabelecem condições mais favoráveis aos trabalhadores prevalecessem nessa parte sobre as normas estatais que derrogam relativamente às entidades patronais e aos trabalhadores abrangidos pela convenção. Nestas as normas que impõem limites mínimos não são dispositivas mas imperativas, contêm uma proibição de limites contratuais abaixo dos mínimos e uma permissão de limites contratuais superiores. As normas mais favoráveis dos contratos individuais movem-se dentro do permitido, não derrogam parcialmente a norma que as permite. Quanto às normas estatais dispositivas, são derrogadas parcialmente pelas convenções colectivas mais favoráveis, e são afastadas pelos contratos individuais em todos os casos. Ora a derrogação parcial de normas estatais só pode ser feita por outras normas jurídicas igualmente heterónomas.
O argumento também vale, por maioria de razão, quando não há subordinação hierárquica, mas identidade de nível, entre a norma estatal e a convenção colectiva. É o que se passa entre as portarias de regulamentação e as convenções colectivas. Estas últimas fazem cessar automaticamente a vigência das portarias em cujo âmbito são aplicáveis, relativamente aos trabalhadores e identidades patronais abrangidas pelas convenções (artigo 38º. da Lei da Regulamentação Colectiva do Trabalho).
O mesmo se diga das decisões arbitrais em conflitos colectivos que resultem da celebração ou revisão de uma convenção colectiva, decisões que têm os mesmos efeitos das convenções colectivas (nº. 8 do artigo 34º. da mesma Lei). Ora, segundo a doutrina do Acórdão nº. 150/86, as decisões arbitrais contêm normas sujeitas ao controlo de constitucionalidade do Tribunal. É inadmissível que deste ponto de vista as normas das convenções colectivas tenham natureza diferente das normas das decisões arbitrais.
14. O âmbito da eficácia pessoal das convenções colectivas pode ser estendido, total ou parcialmente, a entidades patronais do mesmo sector económico e a trabalhadores da mesma profissão ou profissão análoga mediante portarias de extensão (artigos 27º. a 29. da Lei da Regulamentação Colectiva de Trabalho). As portarias de extensão tornam-se necessárias por força do princípio da igualdade (artigo 13º. da Constituição) e da sua especial aplicação que é o princípio de que para trabalho igual salário igual (alínea a) do nº. 1 do artigo 59º. da Constituição). A relatada jurisprudência constitucional italiana (supra nº. 11) pôs este ponto em relevo. Mesmo sem portaria, a imediata aplicabilidade do princípio já impõe que na mesma empresa os trabalhadores de igual qualificação tenham as mesmas condições remuneratórias, independentemente da sua filiação sindical. Todos eles devem ser considerados no número de trabalhadores por categoria profissional envolvidos no processo que se situem no âmbito da aplicação do acordo a celebrar
(nº. 4 do artigo 22º. da Lei da Regulamentação Colectiva do Trabalho). Mas o princípio também vale para empresas e trabalhadores fora da convenção mas em iguais circunstâncias. As portarias de extensão não se aplicam aos trabalhadores abrangidos directamente pelas convenções colectivas que estendem. Ora o princípio da igualdade que fundamenta a extensão do âmbito pessoal de um certo regime jurídico, proíbe também que tenham diferente regime jurídico trabalhadores e empresas que se encontram em circunstâncias iguais do ponto de vista relevante da igualdade. Ora não há dúvida de que as portarias de extensão são fontes de direito objectivo, contêm normas jurídicas 'gerais' e, portanto, vinculadas ao bem comum como é entendido no Estado de direito democrático da Constituição e sujeitas ao controlo de constitucionalidade do Tribunal Constitucional. É jurisprudência assente (Acórdão nº. 392/89, Diário da República, 2ª Série, de 14 de Setembro p. 9177 ss.) e o acórdão também o confirma ( nº. 7 ). Seria uma ofensa da igualdade, se as normas da convenção colectiva não estivessem sujeitas aos mesmos critérios de validade, e se as pessoas por esta abrangidas não tivessem os mesmos direitos garantidos da mesma maneira, inclusivamente do ponto de vista da fiscalização concreta da constitucionalidade. E que a lei assim o considera depreende-se desde logo de se tratar de portarias de extensão e não, como na Alemanha, de generalização. Se a portaria tivesse uma diferente natureza jurídica ( norma jurídica em vez de regra da autonomia privada ), diferentes critérios de apreciação da sua conformidade com a Constituição e diferente regime de controlo da constitucionalidade, então o princípio da igualdade exigiria que o Estado substituísse o título e o regime dos direitos e obrigações resultantes da convenção e 'generalizasse' o regime desta. Não o faz porque pressupõe que as normas da convenção já têm a mesma qualidade jurídica e o mesmo regime que a portaria se limita a estender a outra classe de pessoas.
As portarias não visam, portanto, essencialmente, controlar a conformidade das convenções colectivas com a Constituição e a lei e com a política económico-financeira do Governo. Não há controlo do fundo deste tipo no processo de depósito para publicação e entrada em vigor das convenções, que o Governo controla (artigos 24º a 26º da Lei da Regulamentação Colectiva do Trabalho ). A interpretação correcta é antes a de que se comete aos parceiros sociais a determinação de certos aspectos da política económico-social e de que essa comissão serve melhor o bem comum do que a interferência do Estado nessa esfera.
15. Finalmente o Código de Processo de Trabalho prevê acções de anulação e interpretação de cláusulas de convenções colectivas de trabalho (artigo 177º e ss.), estatuindo-se que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça sobre tais questões tem o valor de assento e como tal é designado, e será publicado na 1ª Série do Diário da República e no Boletim do Trabalho e Emprego. Sem caber discutir aqui a constitucionalidade dos assentos, tem justamente o Tribunal considerado que os assentos contêm normas susceptíveis de controlo específico da constitucionalidade (cfr. Acórdão nº. 359/91, Diário da República, I série-A, de 15 de Outubro de 1991, p. 5332 ss.). Seria absurdo que a norma interpretativa de uma cláusula de convenção colectiva de trabalho fosse uma norma jurídica objecto possível do processo constitucional, e que a materialmente idêntica norma interpretada já não o fosse. O assento fixa direito, e por isso só anula ou interpreta normas jurídicas, nunca regras da autonomia privada.
José de Sousa e Brito