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Proc. nº 75/89
1ª Secção
Rel. Cons. ANTÓNIO VITORINO
Acordam, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional :
I
1. A. e mulher, B., C., D., companhia de seguros E.. e companhia de seguros F.., foram demandados judicialmente por G. e mulher, H., numa acção com processo especial do Código da Estrada, onde os autores pretendiam a condenação solidária dos réus no pagamento de uma indemnização por danos relativos à morte de seu filho I., ocorrida em acidente de viação.
Contra os réus C. e D., os autores invocaram a culpa do acidente, por condução parcialmente pela faixa contrária, em curva, por velocidade excessiva e por falta de atenção.
O filho dos autores seguia no veículo conduzido pelo réu D., pertencente aos réus A. e mulher, prestando serviço para a empresa J., os quais tinham transferido a sua responsabilidade para a ré F..
O reú C. era o proprietário e condutor do auto-pesado de mercadorias que colidiu com o anterior quando seguiam em sentidos contrários, o qual, por seu turno, havia transferido a sua responsabilidade para a ré E..
2. A ré F. foi absolvida do pedido no despacho saneador e a ré E. absolvida na sentença do Tribunal Judicial de Baião, a qual condenou solidariamente os réus D., A. e mulher e a J. a pagarem aos autores a indemnização de 624.000$00.
Os réus apelaram para o Tribunal da Relação do Porto, tendo suscitado nas respectivas alegações a questão da inconstitucionalidade da norma constante do nº 3 do artigo 503º do Código Civil, na interpretação dada pelo Assento nº 1/83, de 28 de Junho, por ofensa do princípio da igualdade ( artigo
13º da Constituição ).
Aquele Tribunal da Relação julgou improcedente o recurso e confirmou a sentença recorrida, tendo aplicado a norma do nº 3 do artigo 503º do Código Civil, a qual não considerou inconstitucional.
Recorreram então os réus para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do nº 1, do artº 70º, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
O recurso em causa foi rejeitado pelo desembargador-relator, mas viria a ser admitido, em sede de decisão de reclamação, pelo Tribunal Constitucional, em secção, pelo Acórdão nº 300/88.
O processo correu vistos. Com a recomposição do Tribunal, foi o mesmo redistribuido ao ora relator e correu novos vistos.
3. Nas alegações apresentadas neste Tribunal os recorrentes formularam o entendimento segundo o qual o disposto no nº 3, do artº 503º, do Código Civil está ferido de inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade (artº 13º da Constituição) uma vez que ' se alguém conduz o veículo como empregado de outrem tem contra si uma presunção de culpa e tal presunção pode acarretar-lhe sérias consequências económicas, já por ser desde logo responsável pelo pagamento da indemnização, já por ser objecto do direito de regresso. Contudo, ao conduzir o veículo como seu dono e proprietário, já não existe qualquer presunção e pode ficar a salvo de qualquer responsabilidade.'
Acrescentam ainda os recorrentes que ' tal regime pode ser altamente gravoso dados os limites da responsabilidade objectiva e a falta de limites na indemnização na responsabilidade subjectiva. Ora, perante um mesmo facto - um acidente - não pode o mesmo indivíduo e seu autor ver a sua conduta diferentemente valorada em função de uma diversa situação económica, social e funcional.' Para, noutro passo, sublinharem que ' a citada disposição legal na interpretação dada pelo Assento representa uma forte restrição ao exercício da profissão por conta de outrem, penalizando diferentemente os condutores por conta de outrem e os que trabalham por conta própria. Nem se vêm razões para um tratamento diverso e com consequências tão díspares', consequências essas também injustificáveis, segundo os recorrentes, na óptica da vítima : ' indemnizações algo díspares conforme a natureza do condutor.'
Apenas a recorrida F. contra-alegou, limitando-se a afirmar que ' muito embora a recorrida nada tenha a opôr quanto à imoralidade e flagrante injustiça que decorre do Assento nº 1/83 de 28 de Junho, a verdade é que da sua discutível inconstitucionalidade não poderá resultar para o caso sub judice as consequências que o recorrente pretende (...) [ pois ] carece o Tribunal de competência para fixar a indemnização a atribuir no acidente sub judice.'
Nada obstando ao conhecimento do pedido, cumpre decidir.
II
1. Dispõe o artigo 503º, do Código Civil :
' Artigo 503º
( Acidentes, causados por veículos )
1. Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.
2. As pessoas não imputáveis respondem nos termos do artº 489º.
3. Aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte; se, porém, o conduzir fora do exercício das suas funções de comissário, responde nos termos do nº 1.'
Deste normativo do Código Civil resulta que, em caso de acidente causado por veículos de circulação terrestre, quando estes forem conduzidos por condutor por conta de outrem, o detentor do veículo é responsável ( em termos objectivos, pelos danos decorrentes dos riscos próprios do veículo, nos termos do transcrito nº 1 ) tal como o próprio condutor, o qual, contudo, não responderá pelos danos causados a terceiro lesado se fizer prova que não teve culpa no acidente. Contudo, em caso de culpa do condutor - seja porque tal culpa resulta demonstrada no processo correspondente, seja porque não pode ou não conseguiu ilidir a presunção legal do citado nº 3 -, existe responsabilidade solidária do próprio condutor e do detentor do veículo ( cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Novembro de 1977, publicado no 'Boletim do Ministério da Justiça', nº 271, pág. 229 e segs. ).
O âmbito da presunção de culpa constante do nº 3 do artº 503º do Código Civil foi durante algum tempo objecto de discussão e de diferentes respostas por parte da jurisprudência, pois tratava-se de saber se tal presunção se aplicava estritamente no campo da responsabilidade objectiva do dono ou utilizador do veículo e nas relações entre este e o condutor (comissário), ou se, num sentido mais amplo, também abrangia as relações entre o condutor por conta de outrem e o lesado.
Durante um certo período de tempo a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça orientou-se no sentido de que o preceito em causa estabelecia uma presunção de culpa do condutor por conta de outrem e que tal presunção era aplicável nas relações entre ele e o lesado ( cfr. Acórdãos de 28 de Maio de 1974, de 22 de Julho de 1975, de 3 de Fevereiro de 1976, de 4 de Maio de 1976, de 25 de Janeiro de 1978 e de 17 de Maio de 1978 ( publicados, respectivamente, no Boletim do Ministério da Justiça nº 237, pág. 231, nº 249, pág. 480, nº 254, pág. 180, nº 257, pág. 121, nº 273, pág. 260 e nº 277, pág.
253 ), entendimento este que era sufragado pela doutrina, embora nem sempre de forma coincidente [cfr. as opiniões de Vaz Serra e Pires de Lima e Antunes Varela citadas no Assento nº 1/83, de 29 de Abril de 1983, publicado no Diário da República, I Série, nº 146 (suplemento), de 28 de Junho de 1983, pág. 2328 -
(2) ].
A evolução jurisprudencial ulterior ( designadamente a que decorreu do assento de 21 de Novembro de 1979 - publicado no Boletim do Ministério da Justiça nº 291, pág. 285 - quanto à interpretação do regime legal de culpa estabelecido pelo nº 2 do artigo 493º do Código Civil ) viria, contudo, a levar o mesmo Supremo Tribunal de Justiça, nos seus Acórdãos de 19 de Dezembro de 1979 e de 31 de Dezembro de 1980 ( publicados no Boletim do Ministério da Justiça, respectivamente, nº 292, pág. 361 e nº 293, pág. 346 ) a afirmar que ' a inversão do ónus da prova constante do nº 3 do artigo 503º do Código Civil funciona apenas nas relações internas dos vários responsáveis pelo risco', 'como resulta de se tratar de disciplina apenas ditada para a responsabilidade objectiva, não se referindo, pois, às relações entre lesante-lesado.'
Este último entendimento foi sujeito a aturada crítica por parte da maioria da doutrina, de que dá conta o assento nº 1/83 [ loc. cit., pág. 2328-
(3) ].
Em face desta divergência jurisprudencial, o STJ tirou o já citado assento nº 1/83 que dispôs que ' a primeira parte do nº 3 do artigo 503º do Código Civil estabelece uma presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem pelos danos que causar, aplicável nas relações entre ele como lesante e o titular ou titulares do direito a indemnização', o qual, assim, definiu a situação em causa optando pela solução mais ampla : a presunção de culpa em causa aplica-se às relações entre o lesado e o condutor e não apenas à responsabilidade do dono do veículo nas relações deste com o condutor ( comissário).
Assim sendo, como referem os recorrente nas suas alegações, nestes casos a indemnização devida ao lesado não está sujeita aos limites máximos da responsabilidade civil objectiva, constantes do artigo 508º do Código Civil. Contudo, conforme assinala Antunes Varela [ ' Das Obrigações em Geral', volume I, Coimbra, 1986, pág. 619 e 647 (nota nº 3 ) ], deverá entender-se que a indemnização devida pelo comissário pode ser limitada de acordo com o disposto no artigo 494º do mesmo Código.
Neste contexto, o problema que é colocado assenta, pois, na diferente formulação que a lei e o assento acolhem quanto ao regime do ónus da prova : enquanto nos casos em que o veículo é conduzido por comissário, opera uma presunção segundo a qual a culpa é dele ( comissário), já quando o veículo é conduzido pelo próprio dono é sobre o lesado que impende o ónus de provar que a culpa é do condutor (dono) do veículo ( nos termos do nº 1, do artigo 487º, do Código Civil ).
Desta forma, o regime resultante da norma com a sobreposição interpretativa do assento leva a que haja uma inversão do ónus da prova na parte referente à culpa do comissário, inversão esta que opera em desfavor deste.
Será esta inversão inconstitucional, por violar o princípio da igualdade ?
4. Pode-se considerar que é já vasta e consolidada a jurisprudência constitucional sobre o sentido e o alcance do princípio da igualdade ( cfr., entre outros, os Acórdãos nºs 39/88 - publicado no Diário da República, I Série, de 3 de Março de 1988 -, 157/88 - publicado no mesmo local e série, de 26 de Julho de 1988 -, 76/85, 142/85, 309/85 e 186/90, - todos publicados no Diário da República II Série, respectivamente, de 8 de Junho de 1985, de 7 de Setembro de
1985, de 11 de Abril de 1986 e de 12 de Setembro de 1990 -, 400/91 - publicado no Diário da República, I Série, de 15 de Novembro de 1992 e finalmente o Acórdão nº 226/92, publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Setembro de 1992, neste último caso versando especificamente a temática do presente processo, cujo desenvolvimento, aliás, seguiremos no essencial.
Da assinalada jurisprudência decorre que, vistas as coisas na óptica da igualdade em sentido material, e enquanto princípio vinculador do próprio legislador, se exige que a lei dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e trate de forma distinta o que for dissemelhante. O princípio da igualdade não comporta, pois, uma proibição absoluta de discriminações no tratamento legal de uma dada matéria, mas tão somente que essas discriminações sejam arbitrárias ou irrazoáveis, isto é, desprovidas de fundamento material bastante.
Neste contexto, citando o que se escreveu no Acórdão nº 400/91, ' o princípio da igualdade funciona, pois, como um limite objectivo da discricionaridade legislativa, proibindo a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional, proíbe, em termos gerais, o arbítrio legislativo.
Ora no caso vertente, contemplando a lei soluções distintas que operam em termos desfavoráveis para o comissário-condutor, a questão colocada consiste, pois, em saber se tal 'situação de desfavor' pode ser tida por arbitrária, irrazoável ou desprovida de fundamento material.
A referida distinção é justificada por Antunes Varela ('Das Obrigações em Geral' cit., pág. 619 e segs ) nos seguintes termos :
' Os comissários ou condutores de veículo por conta de outrem são, na generalidade dos casos, os camionistas das empresas, os chauffeurs particulares contratados, os motoristas de táxis pertencentes a outra pessoa.
Há na condução por conta de outrem um perigo sério de afrouxamento na vigilância do veículo, que a lei não pode subestimar: o dono do veículo ( muitas vezes, uma empresa cuja personalidade se dilui pelos gestores ) não sente as deficiências dele, porque o não conduz ; o condutor nem sempre se apresta a repará-las com a diligência requerida, porque o carro não é seu, porque outros trabalham com ele e o podem fazer, porque não quer perder dias de trabalho ou por qualquer outra de várias razões possíveis. E há um outro perigo não menos grave em que confluem a cada passo a actuação do comitente e a do comissário, que é o da fadiga deste (causa de inúmeros acidentes), proveniente das horas extraordinárias de serviço: o comitente, para não admitir mais pessoal nos seus quadros; o comissário para melhorar a sua remuneração.
Além disso, os condutores por conta de outrem são por via de regra condutores profissionais: pessoas de quem fundadamente se deve exigir ( de acordo com o padrão aceite para a definição da negligência em geral ) perícia especial na condução e que mais facilmente podem elidir a presunção de culpa com que a lei os onera, quando nenhuma culpa tenha realmente havido da sua parte na verificação do acidente.
Por último, a presunção de culpa deliberadamente sacada sobre o condutor por conta de outrem (comissário), aliada à responsabilidade solidária que recai sobre o comitente (dono ou detentor do veículo ), só pode estimular a realização do seguro da responsabilidade civil em termos que cubram todo o montante da indemnização a que possam estar sujeitos.
O condutor por conta própria não é abrangido pela presunção de culpa estabelecida no nº 3 do artigo 503º; em contrapartida, encontra-se sujeito ao regime da responsabilidade objectiva traçado no nº 1 do artigo 503º e no artigo
505º.
Goza, é certo, do benefício dos limites máximos fixados no artigo
508º para a responsabilidade sem culpa, cujo montante deve obviamente ser actualizado, de jure condendo, em função da desvalorização da moeda.
Mas, em compensação, não tem a cobri-lo, perante o lesado, como o comissário, a responsabilidade solidária do comitente, cujo crédito de regresso será muitas vezes praticamente incobrável.'
As razões indicadas no trecho citado de Antunes Varela, por si só, parecem, desde logo, argumentário suficiente para entender que a distinção contida no nº 3 do artigo 503º do Código Civil radica em situações materiais específicas dos destinatários da norma em causa que constituem fundamento bastante para a diversidade de tratamento que a lei acolhe face aos condutores de veículo próprio, razões que não podem deixar de ser tidas em linha de conta, hoje em dia, à luz da lógica de distribuição de encargos subjacente ao sistema de seguro obrigatório actualmente em vigor.
É que, conforme se deicidiu no já citado Acórdão nº 226/92, se do mero enunciado do princípio não resulta o que é igual, mas tão-somente que o que
é igual deve ser tratado de forma igual e, inversamente, o que não é igual deve ser tratado desigualmente, importa concluir que a concreta medida da discriminação contida no preceito em apreço ( a inversão do ónus da prova ) não se mostra desadequada nem desproporcionada face às distintas consequências jurídicas que a norma imputa a cada uma das situações em confronto.
Neste contexto, tem-se por não arbitrária nem irrazoável a distinção estabelecida no nº 3 do artigo 503º do Código Civil, na interpretação que lhe deu o assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 14 de Abril de 1983, pelo que a mesma não viola o princípio da igualdade.
III
Nestes termos, o Tribunal decide não julgar inconstitucional a norma do nº 3 do artigo 503º do Código Civil, com a sobreposição interpretativa do assento do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Abril de 1983, pelo que se nega provimento ao recurso.
Lisboa, 28 de Janeiro de 1993
António Vitorino
Vítor Nunes de Almeida
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
José Manuel Cardoso da Costa