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Proc. nº 109/95 1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I Relatório 1. A. foi julgado e condenado no Tribunal Militar Territorial de Coimbra como autor material de um crime de burla, previsto no artigo 204º do Código de Justiça Militar, e punido nos termos do artigo 313º do Código Penal, na pena de seis meses de prisão que, depois de substituída por prisão militar, foi declarada perdoada, na sua totalidade, sob a condição resolutiva prevista no artigo 11º da Lei nº 15/94, de 11 de Maio. Fundamentando a aplicação ao caso da penalidade cominada no artigo 313º do Código Penal, o tribunal a quo recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade material, por violação do princípio da proporcionalidade e da igualdade, da alínea c) do artigo 204º do Código de Justiça Militar, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 81/82, de 15 de Março. Tal disposição estabelecia para a conduta tipificada no corpo do artigo, quando tivesse por objecto valor compreendido entre 40.000$00 e 120.000$00, pena de 2 a 8 anos de prisão. 2. Dessa decisão interpôs o Ministério Público recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo dos artigos 280º, nºs 1, alínea a), e 3, da Constituição e 70º, nº 1, alínea a), e 72º, nº 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro. 3. Nas alegações produzidas neste Tribunal, o Ministério Público, depois de delimitar o objecto do recurso, acentuando que no acórdão recorrido não se pôs em causa a qualificação como essencialmente militar do crime por que o agente foi condenado, concluiu considerando que 'a norma da alínea c) do artigo 204º do Código de Justiça Militar - que estabelece a pena de prisão maior de dois a oito anos para o crime de burla, quando o valor, não excedendo 120.000$00, for superior a 40.000$00 - é materialmente inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, consagrados, respectivamente, nos artigos 13º e 18º, nº 2, da Constituição', razão pela qual entendeu que devia ser confirmado o acórdão recorrido, na parte impugnada. 4. Corridos os vistos legais, cumpre decidir. II Fundamentação 5. A questão de constitucionalidade que o Tribunal Constitucional terá que apreciar é a da violação da igualdade e da proporcionalidade, contempladas nos artigos 13º e 18º, nº 2, da Constituição pela cominação para o crime de burla previsto na alínea c) do artigo 204º do Código de Justiça Militar da pena de 2 a 8 anos de prisão, na medida em que para a burla realizada nas mesmas circunstâncias o Código Penal prevê penalidade inferior (prisão até 3 anos, na versão originária do Código Penal de 1982, nos termos do nº 1 do artigo 313º; presentemente, a pena compósita alternativa de prisão até três anos ou multa até 360 dias, por força das disposições conjugadas dos artigos 217º, nº 1, e 47º, nº 1, do Código Penal, na versão aprovada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março). Nem na decisão recorrida, que 'desaplicou' por inconstitucional a referida norma do Código de Justiça Militar, nem nas alegações produzidas pelo Ministério Público junto do Tribunal Constituticional foi suscitada a questão da natureza essencialmente militar do crime. Todavia, não será tal questão pressuposto da análise da violação do princípio da igualdade? O crime de burla não é exclusivamente militar. Porém, se se reconhecer que é essencialmente militar (no sentido de adquirir um significado autónomo no âmbito da instituição militar), não poderá aceitar-se a coincidência valorativa da conduta respectiva com outra estrutural e facticamente idêntica, de modo a afirmar-se uma total similitude dos ilícitos. Mas será ainda concebível, sem curar de saber da natureza essencialmente militar do crime, que se encontrem especialidades na burla cometida no seio da instituição militar justificativas de uma alteração das molduras penais previstas no Código Penal? A resposta a tal questão deverá ser afirmativa, na medida em que a gravidade do ilícito dependa de circunstâncias que concorram no núcleo da acção típica ou que modifiquem a identidade valorativa de tal acção devido à repercussão em bens jurídicos diferentes daqueles que a norma incriminadora visa directamente proteger. Uma alteração da medida da pena fundamentada na afectação de bens jurídicos acessoriamente protegidos não afectará, deste modo, o princípio da igualdade. Na verdade, este princípio, consagrado no artigo 13º da Constituição, impõe a proibição de discriminações arbitrárias, não devidamente justificadas nas especialidades fácticas de imediato significado valorativo, compatível com o quadro de valores constitucionais (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, p. 122). 6. No que ao direito penal respeita, o apelo à igualdade corresponde, em primeiro lugar, a um apelo à igualdade na protecção jurídica, de modo a que bens identicamente dignos de tutela penal merecem, em princípio, a mesma tutela. Esta lógica, todavia, não impõe uma identidade absoluta de medidas legais das penas, na medida em que à ilicitude material não é alheia a gravidade da violação do imperativo jurídico, a gravidade do desvalor da acção, a gravidade da violação do dever de cuidado e, em geral, outros critérios de punibilidade com relevância político-criminal. E, finalmente, a igualdade na protecção jurídica, baseada na similitude da dignidade punitiva, é depurada pela carência de protecção jurídico-penal imposta pelo princípio da necessidade das penas e das medidas de segurança, consagrado no artigo 18º, nº 2, da Constituição (sobre as categorias da dignidade punitiva e da carência de protecção penal, cf. Costa Andrade, 'A 'Dignidade Penal' e a 'Carência de tutela penal' como referências de uma doutrina teleológico-racional do crime', Revista de Ciência Criminal, 1992, nº 2, p. 175 e ss.). Não há, deste modo, um princípio de idêntica punição de lesões de bens jurídicos do mesmo valor, na ordem axiológica constitucional. A isso se opõe a lógica da carência de protecção penal, que exprime a tradicional natureza subsidiária do direito penal. O direito penal não é o único nem o primeiro meio de protecção de bens jurídicos, mas a ultima ratio da política social (cf. Roxin, Strafrecht. Allgemeiner Teil, I, 1ª ed., 1992, pp. 16 e 17). A relevância do princípio da igualdade como critério de constitucionalidade das medidas legais das penas é, consequentemente, filtrada por uma complexa teia de condicionantes que impedem nivelações de sanções com base em abstractos juízos de valor orientados apenas pela importância objectiva dos bens jurídicos protegidos. A existência destes factores condicionantes, em situação análoga, foi reconhecida no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 370/94, D.R., II Série, de 7 de Setembro de 1994, a propósito dos crimes previstos no Código de Justiça Militar e no Código Penal, tendo-se afirmado então que 'a diferenciação da moldura penal do artigo 203º do Código de Justiça Militar, relativamente à moldura do artigo 300º do Código Penal, sendo aquela mais gravosa, para a mesma fattispecie do crime de abuso de confiança, pode, em abstracto, buscar a justificação material no exercício de certos cargos ou funções, aqui cargos ou funções militares'. 7. Todavia, a diferença entre a medida legal da pena do crime de burla no Código Penal (artigos 313º, nº 1, do Código Penal de 1982, na sua versão originária, e 217º, nº 1, após a Revisão de 1995) e no Código de Justiça Militar [artigo 204º, alínea c)] é significativa. A pena atribuída à burla no Código de Justiça Militar corresponde à pena cominada, em função do valor do prejuízo, no Código Penal de 1886 (artigos 451º e 421º, nº 4). Isto demonstra que o Código de Justiça Militar não pretendeu, originariamente, uma elevação da penalidade da burla relativamente à lei penal geral. A evolução legislativa posterior veio degradar intensamente a penalidade da burla (pena de prisão até 3 anos no artigo 313º, nº 1, da versão originária do Código Penal de 1982 e pena de prisão até 3 anos ou multa alternativa até 360 dias no artigo 217º do Código Penal após a Revisão de 1995), mas a legislação penal militar não acompanhou esta tendência. Neste contexto, e sem questionar agora as especificidades da legislação penal militar, é reconhecível uma desproporcionalidade efectiva entre as penalidades previstas para a burla nos dois Códigos, tanto na medida legal da pena de prisão como (após Outubro de 1995) na natureza das penas previstas, pois a burla passa a poder ser punida com multa e o artigo 44º, nº 1, do Código Penal (ou o artigo 43º, nº 1, antes da Revisão de 1995) impõe a substituição da pena de prisão não superior a 6 meses por multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. Uma tal desproporcionalidade constitui ainda, sem dúvida, uma violação da igualdade, na medida de uma comparação entre realidades, eventualmente diferentes, através de um critério comum. Foi essa desproporcionalidade que o Acórdão nº 370/94 do Tribunal Constitucional, anteriormente referido, constatou a propósito de situação semelhante. Reitera-se, consequentemente, a argumentação desse Acórdão, no que respeita à violação conjugada dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, referida aos artigos 13º e 18º, nº 2, da Constituição. Daqui resulta que a comparação do regime punitivo dos dois Códigos, embora não imponha em abstracto uma igualdade de penas, não fundamenta a desproporcionalidade entre elas. O juízo de inconstitucionalidade sobre a norma do artigo 204º, alínea c), do Código de Justiça Militar, ao impedir a aplicação daquela norma, implica, tendo em conta o princípio da legalidade, que sempre será impossível aplicar pena superior à prevista para o correspondente crime previsto no Código Penal (artigo 29º, nº 3, da Constituição), bem como pena superior à que resulte da aplicação de lei penal mais favorável (artigo 29º, nº 4, da Constituição). III Decisão 8. Nestes termos, decide-se: a) Julgar inconstitucional - por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, em articulação - a norma do artigo 204º, alínea c), do Código de Justiça Militar, na medida em que estabelece pena desproporcionadamente superior às previstas para o mesmo tipo de crime no Código Penal. b) Negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido, na parte impugnada. Lisboa, 10 de Julho de 1996 Maria Fernanda Palma Maria da Assunção Esteves Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz José Manuel Cardoso da Costa
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