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Processo n.º 776/08
Plenário
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional.
I – Relatório
1. O representante do Ministério Público junto do
Tribunal Constitucional requereu, nos termos do artigo 82.º da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela
Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), a apreciação e a declaração, com
força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do artigo
175.º, n.º 4, do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 114/94, de 3
de Maio, na redacção dada pelo Decreto‑Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro,
segundo a qual, paga voluntariamente a coima, ao arguido não é consentido, na
fase de impugnação judicial da decisão administrativa que aplicou a sanção
acessória de inibição de conduzir, discutir a existência da infracção.
Aduz o requerente que a referida interpretação normativa
foi, no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade, julgada
materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 20.º, n.ºs 1 e 5, e
268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP), através do Acórdão
n.º 45/2008 e das Decisões Sumárias n.ºs 295/2008 e 306/2008.
2. Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos
54.º e 55.º, n.º 3, da LTC, o Primeiro-Ministro, em resposta, ofereceu o
merecimento dos autos.
3. Debatido o memorando apresentado pelo Presidente do
Tribunal, nos termos do artigo 63.º da LTC, e fixada a orientação do Tribunal,
procedeu‑se à distribuição do processo, cumprindo agora formular a decisão.
II – Fundamentação
4. Não se suscitam dúvidas quanto ao preenchimento dos
requisitos previstos nos artigos 281.º, n.º 3, da CRP e 82.º da LTC, tendo o
Tribunal Constitucional julgado inconstitucional a interpretação normativa em
causa nas três decisões identificadas pelo requerente – Acórdão n.º 45/2008 e
Decisões Sumárias n.ºs 295/2008 e 306/2008 –, juízo esse que, aliás, foi
igualmente formulado nas Decisões Sumárias n.ºs 208/2008, 243/2008, 320/2008,
333/2008, 351/2008, 384/2008, 389/2008, 508/2008 e 510/2008, sendo idêntico o
critério normativo julgado inconstitucional em todas elas, apesar de, nalguns
casos, serem diversos os preceitos legais a que tal critério foi reportado (a
Decisão Sumária n.º 208/2008 foi reportada aos artigos 172.º, n.º 5, e 175.º,
n.º 4, a Decisão Sumária n.º n.º 320/2008 apenas ao artigo 172.º, n.º 5, as três
últimas aos artigos 172.º, n.º 5, 173.º, n.º 1, e 175.º, n.º 4, e as restantes
exclusivamente ao artigo 175.º, n.º 4, todos do Código da Estrada).
5. Na sua redacção originária, o Código da Estrada
vigente, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, permitia o
pagamento voluntário das coimas previstas para as contra‑ordenações nele
definidas, pagamento que seria feito pelo mínimo da coima aplicável (artigo
154.º, n.º 1) e que “implica[va] a condenação do infractor na sanção acessória
correspondente, também pelo mínimo, sem prejuízo do disposto nos artigos 143.º,
144.º e 145.º” (artigo 154.º, n.º 2), que, respectivamente, possibilitavam a
dispensa da sanção acessória (tendo em conta as circunstâncias da mesma e o
facto de o condutor ser infractor primário ou não ter praticado qualquer
contra‑ordenação grave ou muito grave nos últimos três anos – artigo 143.º), a
sua atenuação especial (com redução para metade da sua duração mínima e máxima,
tendo em conta os mesmos factores – artigo 144.º) ou a suspensão da sua execução
(verificando‑se os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a
suspensão da execução das penas – artigo 145.º). O procedimento para aplicação
das sanções era regulado no artigo 155.º, que previa que, antes da
correspondente decisão, as pessoas interessadas fossem notificadas dos factos
constitutivos da infracção e das sanções aplicáveis (n.º 1), sendo, “quando
possível, o interessado […] notificado no acto de autuação, mediante a entrega
de um exemplar do auto de notícia, donde conste a possibilidade de pagamento
voluntário pelo mínimo e suas consequências quanto à sanção acessória, prazo e
local para pagamento voluntário e para apresentação de defesa” (n.º 2), devendo
os interessados, no prazo de 15 dias a contar da notificação, apresentar a sua
defesa por escrito ou proceder ao pagamento voluntário (n.º 3), dispondo o
subsequente n.º 4 que: “Os interessados que procedam ao pagamento voluntário da
coima não ficam impedidos de apresentar a sua defesa para efeitos do disposto
nos artigos 143.º, 144.º e 145.º”, ou seja, para efeitos de alcançar a dispensa
de aplicação da sanção acessória, a sua atenuação especial ou a suspensão da sua
execução.
Das alterações ao Código da Estrada introduzidas pelo
Decreto‑Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, resultou que, continuando a admitir‑se o
pagamento voluntário da coima, pelo mínimo (artigo 153.º, n.º 1), esse pagamento
“determina o arquivamento do processo, salvo se a contra‑ordenação for grave ou
muito grave, caso em que prossegue restrito à aplicação da inibição de
conduzir” (n.º 4 do artigo 153.º). O artigo 155.º passou a dispor que, “antes da
decisão sobre a aplicação das sanções, os interessados devem ser notificados: a)
Dos factos constitutivos da infracção; b) Das sanções aplicáveis; c) Do prazo
concedido para a apresentação de defesa e o local; d) Da possibilidade de
pagamento voluntário da coima pelo mínimo, bem como do prazo e do local para o
efeito, e das consequências do não pagamento” (n.º 1), podendo os interessados,
no prazo de 20 dias a contar da notificação, apresentar a sua defesa ou
proceder ao pagamento voluntário (n.º 2), dispondo o subsequente n.º 3 que: “Os
interessados que procedam ao pagamento voluntário da coima não ficam impedidos
de apresentar a sua defesa, restrita à gravidade da infracção e à sanção de
inibição de conduzir aplicável”.
O Decreto‑Lei n.º 265‑A/2001, de 28 de Setembro,
relativamente aos preceitos em causa, limitou‑se a transferir para o n.º 5, sem
alteração de redacção, o n.º 4 do artigo 153.º; a acrescentar, no n.º 1 do
artigo 155.º, a exigência da menção à “legislação infringida” (nova alínea b),
tendo transitado as anteriores alíneas b), c) e d) para as novas alíneas c), d)
e e)) na notificação que deve ser feita ao arguido “após o levantamento do
auto”; e, no n.º 3 do artigo 155.º, a substituir a expressão “interessados” por
“arguido” (“O arguido que proceda ao pagamento voluntário da coima não fica
impedido de apresentar a sua defesa, restrita à gravidade da infracção e à
sanção de inibição de conduzir aplicável”).
Finalmente, o Decreto‑Lei n.º 44/2005, de 23 de
Fevereiro, transferiu para os artigos 172.º e 175.º a matéria anteriormente
regulada nos artigos 153.º e 155.º, dispondo agora o n.º 5 do artigo 172.º que
“o pagamento voluntário da coima nos termos dos números anteriores determina o
arquivamento do processo, salvo se à contra‑ordenação for aplicável sanção
acessória, caso em que prossegue restrito à aplicação da mesma” e o n.º 4 do
artigo 175.º que “o pagamento voluntário da coima não impede o arguido de
apresentar a sua defesa, restrita à gravidade da infracção e à sanção acessória
aplicável”.
Apesar de as normas referidas (artigos 154.º e 155.º da
versão originária, artigos 153.º e 155.º das versões de 1998 e de 2001 e
artigos 172.º e 175.º da versão de 2005) estarem inseridas na regulamentação da
fase administrativa do procedimento contra‑ordenacional em causa e, portanto, a
“defesa” neles referida respeitar à defesa apresentada pelo arguido perante a
autoridade administrativa competente para proferir a decisão sancionatória, o
certo é que a restrição desta defesa, primeiro, para os “efeitos do disposto nos
artigos 143.º, 144.º e 145.º” (ou seja, para efeitos de alcançar a dispensa de
aplicação da sanção acessória, a sua atenuação especial ou a suspensão da sua
execução) e, desde 1998, “à gravidade da infracção e à sanção de inibição de
conduzir [ou sanção acessória] aplicável” tem sido jurisprudencialmente
entendida – como se demonstrou no Acórdão n.º 45/2008, com referência a diversas
decisões de Tribunais de Relação – como implicando também uma restrição da
defesa que o arguido pretenda deduzir perante os tribunais, no âmbito da
impugnação judicial da decisão administrativa sancionatória.
6. Diversamente do que ocorre nos processos de
fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade ou da legalidade
originados em pedidos formulados ao abrigo dos n.ºs 1 e 2 do artigo 281.º da
CRP, em que compete ao Tribunal Constitucional determinar, aplicando as regras
de interpretação jurídica tidas por relevantes, qual o correcto conteúdo da
norma questionada, não estando vinculado a adoptar a leitura perfilhada pelo
requerente, nos processos de “generalização” de juízos concretos de
inconstitucionalidade e de ilegalidade, referidos no n.º 3 daquele preceito
constitucional e no artigo 82.º da LTC, constitui um dado da questão a decidir,
insusceptível de alteração pelo Tribunal, a específica interpretação normativa
que foi objecto de anteriores juízos de inconstitucionalidade ou ilegalidade,
interpretação essa que, por seu turno, corresponde, em regra, à adoptada nas
decisões dos restantes tribunais objecto dos recursos de fiscalização concreta,
onde viriam a ser emitidos esses juízos, já que o Tribunal, por via de princípio
(ressalvados os casos de uso da faculdade excepcional prevista no artigo 80.º,
n.º 3, da LTC), se abstém de sindicar a correcção da interpretação do direito
ordinário efectuada pelas instâncias (cf. Acórdãos n.ºs 27/2006 e 63/2006).
Assim como, nos processos de fiscalização concreta onde
foram emitidos os juízos de inconstitucionalidade cuja “generalização” agora se
pretende, o Tribunal Constitucional não se pronunciou sobre qual a
interpretação do direito ordinário que considerava mais correcta, também agora
do que se trata é de decidir se padece, ou não, de inconstitucionalidade o
critério normativo identificado nas decisões das instâncias e que foi objecto
dos juízos de inconstitucionalidade nas três decisões invocadas, que, a esse
respeito, utilizaram sempre a mesma formulação: o critério normativo segundo o
qual, “paga voluntariamente a coima, ao arguido não é consentido, na fase de
impugnação judicial da decisão administrativa que aplicou a sanção acessória de
inibição de conduzir, discutir a existência da infracção”.
E como resulta, designadamente, da fundamentação das
decisões das instâncias e das referências, nos respectivos relatórios, às
questões que os arguidos pretendiam discutir no âmbito das impugnações judiciais
das decisões administrativas aplicativas da sanção de inibição de conduzir, o
que, em concreto, se entendia pela “possibilidade de discutir a existência da
infracção” traduzia‑se, não apenas na faculdade de questionar a correcção da
qualificação jurídica dos factos, mas a própria verificação dos factos,
reivindicando os impugnantes o direito a, perante o tribunal, discutir quer a
efectiva verificação dos factos que teriam consubstanciado a contra‑ordenação,
quer a ocorrência de vícios de vontade que teriam inquinado a decisão de
proceder ao pagamento voluntário da coima. Recorde‑se, a título
exemplificativo, que, no recurso, interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC, onde foi proferido o Acórdão n.º 45/2008 (em caso em que na
impugnação judicial da decisão administrativa que aplicara a sanção acessória de
inibição de conduzir, na sequência do pagamento voluntário da coima por
contra‑ordenação consistente no não cumprimento do sinal de paragem obrigatória
num cruzamento, a recorrente sustentara ter parado ao sinal Stop, só reiniciando
a marcha após verificar que não circulava nenhum veículo na outra via, e só ter
pago voluntariamente a coima “porque pensou assim estar obrigada, mas não
reconheceu nem reconhece ter cometido a infracção por que foi condenada”), o
acórdão recorrido, do Tribunal da Relação de Coimbra, de 9 de Maio de 2007,
recusou, por inconstitucionalidade, a aplicação da norma questionada, entendida
como estabelecendo “uma presunção inilidível, que acarreta a derrogação do
direito de defesa ampla do arguido”, sustentando‑se nesse aresto que “o
indiciado infractor pode defender‑se, sem quaisquer restrições, alegando mesmo a
não verificação/prática da infracção, ainda que tenha ele mesmo (quiçá, outrem,
a fortiori) procedido ao pagamento voluntário da coima”. E no recurso,
interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, onde foi
proferida a Decisão Sumária n.º 306/2008, o acórdão recorrido, do Tribunal da
Relação de Lisboa, de 21 de Fevereiro de 2008, aplicou, por a não reputar
inconstitucional, a norma em causa, consignando que da sua correcta
interpretação “resulta que o arguido que paga voluntariamente a coima não pode
colocar depois em causa a prática dos factos, negando‑os”. Também no recurso,
este interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, onde foi
proferida a Decisão Sumária n.º 243/2008, o acórdão recorrido, do Tribunal da
Relação de Évora, de 26 de Fevereiro de 2008, aplicara a questionada norma no
sentido de ao recorrente (que pretendera, na impugnação judicial, “discutir a
verificação ou o cometimento da contra‑ordenação”), não ser “permitido (…)
pronunciar‑se sobre a veracidade dos factos”.
É, pois, com os apontados sentido e alcance quanto à
impossibilidade de discutir a existência da infracção que cumpre apreciar a
conformidade constitucional do critério normativo questionado.
7. Relativamente ao parâmetro constitucional a ter em
conta na apreciação da questão, o Acórdão n.º 45/2008 começou por salientar que
o n.º 10 do artigo 32.º da CRP, na sua directa estatuição, é irrelevante para o
presente caso, pois, como se sustentou nos Acórdãos n.ºs 659/2006 e 313/2007,
com a introdução dessa norma constitucional (efectuada, pela revisão
constitucional de 1989, quanto aos processos de contra‑ordenação, e alargada,
pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios) o que se pretendeu
foi assegurar, nesses tipos de processos, os direitos de audiência e de defesa
do arguido, direitos estes que, na versão originária da Constituição, apenas
estavam expressamente assegurados aos arguidos em processos disciplinares no
âmbito da função pública (artigo 270.º, n.º 3, correspondente ao actual artigo
269.º, n.º 3). Tal norma implica tão‑só ser inconstitucional a aplicação de
qualquer tipo de sanção, contra‑ordenacional, administrativa, fiscal, laboral,
disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido
(direito de audição) e possa defender‑se das imputações que lhe são feitas
(direito de defesa), apresentando meios de prova e requerendo a realização de
diligências tendentes a apurar a verdade (cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros,
Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, p. 363). É esse o
limitado alcance da norma do n.º 10 do artigo 32.º da CRP, tendo sido
rejeitada, no âmbito da revisão constitucional de 1997, uma proposta no sentido
de se consagrar o asseguramento ao arguido, “nos processos disciplinares e
demais processos sancionatórios”, de “todas as garantias do processo criminal”
(artigo 32.º‑B do Projecto de Revisão Constitucional n.º 4/VII, do PCP; cf. o
correspondente debate no Diário da Assembleia da República, II Série‑RC, n.º
20, de 12 de Setembro de 1996, pp. 541‑544, e I Série, n.º 95, de 17 de Julho de
1997, pp. 3412 e 3466).
Mas, como se reconheceu nesse Acórdão n.º 659/2006, é
óbvio que não se limitam aos direitos de audição e defesa as garantias dos
arguidos em processos sancionatórios, mas é noutros preceitos constitucionais,
que não no n.º 10 do artigo 32.º, que eles encontram esteio. É o caso, desde
logo, do direito de impugnação perante os tribunais das decisões sancionatórias
em causa, direito que se funda, em geral, no artigo 20.º, n.º 1, e,
especificamente para as decisões administrativas, no artigo 268.º, n.º 4, da
CRP. E, entrados esses processos na “fase jurisdicional”, na sequência da
impugnação perante os tribunais dessas decisões, gozam os mesmos das genéricas
garantias constitucionais dos processos judiciais, quer directamente referidas
naquele artigo 20.º (direito a decisão em prazo razoável e garantia de processo
equitativo), quer dimanados do princípio do Estado de direito democrático
(artigo 2.º da CRP), sendo descabida a invocação, para esta fase, do disposto
no n.º 10 do artigo 32.º da CRP.
8. A questão que se coloca é, pois, a de saber se
respeita os requisitos constitucionais do acesso aos tribunais para tutela
efectiva de direitos e interesses legalmente reconhecidos, através de um
processo equitativo, no âmbito de um processo judicial de impugnação de uma
decisão administrativa de cariz sancionatório, o critério normativo segundo o
qual o pagamento voluntário da coima por contra‑ordenação rodoviária
impossibilita o arguido de discutir em tribunal a própria existência da
infracção.
A resposta – adiante‑se desde já – é negativa, quer se
considere que na base de tal entendimento se encontra o estabelecimento de uma
presunção inilidível (cf., infra, 8.2), quer a atribuição de valor probatório
absoluto à confissão do arguido que estaria implícita na sua opção pelo
pagamento voluntário da coima (cf., infra, 8.3), quer uma renúncia à impugnação
do acto ou à invocação de um específico fundamento de impugnação (cf., infra,
8.4).
8.1. Em anteriores decisões deste Tribunal é possível
encontrar contributos úteis para a apreciação do presente caso.
Assim, no Acórdão n.º 29/84 julgou‑se inconstitucional a
norma do artigo 168.º do Contencioso Aduaneiro, “quanto ao seu § 2.º, quando
estatui que o pedido de liquidação importa a confissão dos factos referidos no
auto de notícia ou na participação”, pretendendo‑se com tal disposição “fazer
resultar do pedido de liquidação de responsabilidade pelo arguido a condenação
automática deste, fazendo equivaler esse pedido à aceitação de uma qualquer
condenação pela infracção constante do auto de notícia”.
Antes da conversão da generalidade das infracções
rodoviárias de transgressões (ou contravenções), ainda inseridas no âmbito
penal, em contra‑ordenações, diversos juízos de inconstitucionalidade (Acórdãos
n.ºs 28/83, 315/85, 135/86 e 187/96) conduziram, através de processo de
generalização, à prolação do Acórdão n.º 337/86, que declarou, com força
obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do artigo 32.º, n.ºs
1, 3 e 5, da CRP, da norma do artigo 61.º, n.º 4, do Código da Estrada então
vigente, na parte em que atribuía competência à Direcção‑Geral de Viação para
aplicar a medida de inibição da faculdade de conduzir ao condutor que, tendo
cometido uma transgressão estradal, paga voluntariamente a multa. E no Acórdão
n.º 442/94 foi julgada inconstitucional, por violação do princípio
constitucional da defesa que para os processos sancionatórios decorre do
princípio do Estado de Direito democrático e das garantias que o realizam,
consagradas no artigo 32.º, n.ºs 1, 3 e 5, da CRP, a norma do artigo 1.º, n.º 1,
alínea e), do Decreto‑Lei n.º 387‑E/87, de 29 de Dezembro, na interpretação
(acolhida na decisão então recorrida) segundo a qual, havendo pagamento
voluntário da multa pela transgressão prevista no artigo 1.º da Lei n.º 3/82, de
29 de Março (condução sob efeito do álcool), a medida de inibição de conduzir
pode ser decretada por despacho, sem prévia audiência de julgamento;
consignando‑se neste acórdão que a controvérsia acerca da natureza da medida de
inibição de conduzir (medida de segurança, pena acessória ou efeito da pena)
“não afasta a evidência de que ela representa a ablação de um espaço de
liberdade cívica que só pode ser determinada por acto de juiz e com prévia
audiência de julgamento”.
Já após a aludida introdução do ilícito de mera
ordenação no domínio das infracções rodoviárias, o Acórdão n.º 264/99 viria a
não julgar inconstitucional a norma do artigo 154.º, n.º 2, do actual Código da
Estrada (aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 114/94, de 3 de Maio), na versão anterior
à que lhe foi dada pelo Decreto‑Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, mas fê‑lo porque
entendeu que o pagamento voluntário da coima não tinha como efeito automático a
aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir, consignando‑se neste
acórdão que “este pagamento não impõe só por si a aplicação da sanção acessória,
dependendo das «circunstâncias da mesma» ser ou não aplicada em cada caso”. E,
no caso, o objecto do recurso fora limitado à constitucionalidade da
interpretação que o recorrente fazia resultar do dito artigo 154.º, n.º 2,
pretendendo “ver aí uma condenação automática [na sanção acessória] derivada do
pagamento voluntária da coima”, tendo sido excluída do conhecimento do
Tribunal, porque extemporaneamente suscitada apenas no requerimento de
interposição de recurso de constitucionalidade, a questão da constitucionalidade
do entendimento, extraído do mesmo preceito, de que “o pagamento voluntário (…)
implica confissão dos factos imputados ao arguido”.
8.2. O entendimento da norma ora questionada como
estabelecendo uma presunção inilidível não pode deixar de ter‑se como
constitucionalmente insolvente. Não se questiona a possibilidade de o
legislador, mesmo em matéria sancionatória (inclusive penal) estabelecer
presunções e, portanto, seria lícito fazer presumir do pagamento voluntário da
coima a ocorrência da infracção. Mas o que é intolerável é a inilidibilidade
dessa presunção, ao proibir‑se que o arguido faça prova, perante o tribunal, da
sua não verificação. No sentido da admissibilidade de presunções, desde que
ilidíveis, cf. os Acórdãos n.ºs 63/85, 447/87, 135/92 e 922/86 (sobre a
responsabilidade criminal dos directores de periódicos) e 252/92 (sobre
presunção de origem estrangeira de determinadas mercadorias).
Na situação em apreço, não surge como razoável impor
como contrapartida à “vantagem” que o arguido terá obtido, ao decidir proceder
ao pagamento voluntário da coima, consistente em ter de desembolsar o montante
mínimo aplicável, o inconveniente de não poder discutir a efectiva verificação
dos factos, surgindo como suficientemente penalizador a posição de desvantagem
de que ele naturalmente partirá, perante o tribunal, que normalmente associará
àquele pagamento o reconhecimento da prática da infracção, sendo, por isso, o
impugnante particularmente onerado com especiais exigências probatórias que
conduzam à ilisão dessa “presunção”.
Não se ignorando que serão menos intensas as
preocupações garantísticas em processos contra‑ordenacionais em comparação com o
processo criminal (cf. Acórdãos n.ºs 269/87 e 313/2007), aquelas não podem,
contudo, ser de tal modo desvalorizadas que ponham em cheque a própria
efectividade da tutela jurisdicional e as exigências de um processo equitativo.
8.3. Mesmo que não se transponham para o processo
contra‑ordenacional as apertadas regras de que o artigo 344.º do Código de
Processo Penal rodeia a relevância da confissão do arguido em processo criminal,
não pode, porém, deixar de considerar‑se que não pode valer como confissão da
prática da infracção – em termos de postergar em definitivo qualquer hipótese de
retractação – o pagamento voluntário da coima, designadamente feito no próprio
acto da autuação, por arguido normalmente desprovido da possibilidade de
aconselhamento jurídico e que poderá não se ter apercebido das consequências
dessa opção. Como já no Acórdão n.º 337/86 se admitiu, no domínio de anterior
legislação, “o arguido pode ter liquidado a multa apenas para evitar o incómodo
de ir a tribunal discutir a prática da própria contravenção, mas sem sequer se
ter lembrado de que poderia vir a ficar privado, por algum tempo, do direito de
conduzir (…), ou sem que, ao menos, essa consequência se lhe apresentasse como
provável (…)”. Eventualidade de desconhecimento esta que, no regime legal ora em
apreço, ganha plausibilidade, pois, enquanto na redacção originária do Código da
Estrada de 1994 se impunha que na notificação da autuação fosse entregue ao
arguido um exemplar do auto de notícia “donde conste a possibilidade de
pagamento voluntário pelo mínimo e suas consequências quanto à sanção acessória”
(artigo 155.º, n.º 2), a partir das alterações introduzidas pelo Decreto‑Lei
n.º 2/98, de 3 de Janeiro, o interessado passou a ser notificado “da
possibilidade do pagamento voluntário da coima pelo mínimo (…), e das
consequências do não pagamento” (artigo 155.º, alínea d)); isto é: o
interessado deixou de ter de ser informado das consequências do pagamento
voluntário, designadamente da probablilidade (e, em diversos casos, mesmo
inevitabilidade) da aplicação da sanção acessória de inibição de condução e da
impossibilidade de discutir, quer na fase administrativa, quer na fase judicial
do procedimento contra‑ordenacional, a existência da infracção.
São, obviamente, ininvocáveis argumentos, extraídos da
regulamentação do processo sumaríssimo penal, no sentido da admissibilidade
constitucional de se atribuir relevância à manifestação de concordância do
arguido com as sanções propostas pelo Ministério Público, com dispensa de
realização de audiência de julgamento e de produção de prova, já que, nesses
casos: (i) ao arguido é sempre assegurada assistência por advogado constituído
ou defensor nomeado; (ii) a notificação ao arguido do requerimento do Ministério
Público (com indicação das sanções concretamente propostas e da quantia exacta a
atribuir a título de reparação) ou da alternativa estabelecida pelo juiz é
feita por contacto pessoal e deve conter obrigatoriamente a informação do
direito de o arguido se opor à sanção e da forma e prazo para o fazer, além do
esclarecimento dos efeitos da oposição e da não oposição (artigos 394.º a 396.º
do CPP).
Também neste contexto, o entendimento em causa não pode
deixar de ser considerado como determinando um encurtamento intolerável das
garantias exigidas pelo princípio da tutela jurisdicional efectiva e do processo
equitativo.
8.4. Finalmente, não se afigura possível evitar a
censura constitucional do critério normativo em causa, vendo no pagamento
voluntário da coima uma “renúncia” ao direito à impugnação judicial do acto de
aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir ou a “renúncia” à
invocação de um dos fundamentos possíveis de impugnação do acto.
Sublinhe‑se que o que está em causa não é a
impossibilidade de, uma vez paga voluntariamente a coima, questionar o dever
deste pagamento, sob qualquer perspectiva, mas antes a imposição, já no âmbito
da impugnação judicial da decisão administrativa que aplicou a sanção acessória
de inibição de conduzir na sequência do pagamento voluntário da coima, da
proibição de discutir a existência da infracção, o que se traduz, no mínimo, na
negação da possibilidade de o interessado arguir um dos possíveis vícios desse
acto administrativo: o erro sobre os pressupostos de facto.
Ora, como a jurisprudência deste Tribunal (cf., entre
outros, os Acórdãos n.ºs 429/89 e 8/99) e a mais relevante doutrina têm
reiteradamente afirmado, “o artigo 269.º, n.º 2 [actual artigo 268.º, n.º 4], da
Constituição, pode e deve ser interpretado como estabelecendo uma garantia
completa de recurso, quer dizer, uma garantia que assegura aos particulares a
possibilidade de impugnarem judicialmente todos os actos singulares e concretos
da Administração Pública que produzam efeitos jurídicos externos e sejam
susceptíveis, portanto, de lesar os seus direitos”, pelo que “quaisquer normas
legais que excluam esta possibilidade de impugnação relativamente a certos actos
ou a certas categorias de actos administrativos ou que restrinjam os possíveis
fundamentos de tal impugnação apenas a alguns dos vícios susceptíveis de gerar a
antijuridicidade desses actos, têm de ser havidas como inconstitucionais, e, por
via de consequência, como inteiramente irrelevantes” (José Manuel Cardoso da
Costa, “A tutela dos direitos fundamentais”, Boletim do Ministério da Justiça –
Documentação e Direito Comparado, n.º 5, 1981, p. 209). Ou, na formulação de J.
J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa
Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, p. 938): “A garantia constitucional do
recurso impede a isenção contenciosa de certos actos, ou partes de actos, ou a
exclusão do conhecimento de certos vícios, de modo a conferir direito à
impugnação contenciosa de todos os actos em todos os aspectos juridicamente
vinculados”.
O critério normativo questionado, nesta última
perspectiva, não poderia deixar de ser encarado como representando a proibição
de impugnar o acto administrativo aplicativo da inibição de conduzir com
fundamento num dos seus possíveis vícios geradores de ilegalidade: o erro sobre
os pressupostos de facto. Também por esta via se impõe a emissão de declaração
de inconstitucionalidade do critério normativo questionado.
III – Decisão
Em face do exposto acordam em declarar, com força
obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 20.º, n.ºs
1 e 5, e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, da norma
constante do artigo 175.º, n.º 4, do Código da Estrada, aprovado pelo
Decreto‑Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, na redacção dada pelo Decreto‑Lei n.º
44/2005, de 23 de Fevereiro, interpretada no sentido de que, paga
voluntariamente a coima, ao arguido não é consentido, na fase de impugnação
judicial da decisão administrativa que aplicou a sanção acessória de inibição
de conduzir, discutir a existência da infracção.
Lisboa, 18 de Março de 2009.
Mário José de Araújo Torres
Joaquim de Sousa Ribeiro
Maria Lúcia Amaral
José Manuel Borges Soeiro
João Cura Mariano
Benjamim Silva Rodrigues
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes (Com declaração anexa)
Carlos Pamplona de Oliveira - Com declaração
Gil Galvão (Vencido, no essencial, pelas razões constantes da declaração de
voto da Exma. Conselheira Maria João Antunes, para a qual remeto)
Maria João Antunes (Vencida, nos termos da declaração junta)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Entendo que não viola a garantia de tutela jurisdicional contra
actos administrativos lesivos (artigo 268.º, n.º 4, da CRP) ou a garantia de
tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º, n.º 1, da CRP) a consagração
normativa da possibilidade de renúncia antecipada a discutir o pressuposto de
facto pré-determinado do acto sancionatório em processo de contra-ordenação
(Para esta questão de constitucionalidade não é decisivo que a indiscutibilidade
seja concebida como resultante da presunção, confissão, aceitação ou renúncia).
O que a jurisprudência do Tribunal tem considerado contrário à plenitude da
garantia de impugnação de actos administrativos lesivos são limitações do âmbito
da discussão jurisdicional da legalidade do acto administrativo, estabelecidas
de modo geral e abstracto em função de factores estranhos à vontade do
interessado. Não se retira dessa jurisprudência a proibição da renúncia à
discussão de elementos já conhecidos ou cognoscíveis do acto em formação,
mediante um acto de vontade expresso ou tácito. Designadamente, afigura-se
compatível com essa garantia que, num procedimento complexo de aquisição ou
formação progressiva da decisão administrativa, em que seja possível autonomizar
um momento procedimental susceptível de fixar o pressuposto de facto do acto
final, se ligue a determinada conduta do interessado o efeito de estabilizar
esse elemento do acto. Sobretudo quando também o interessado disso retira
consequências vantajosas num outro aspecto da relação jurídica (aqui)
sancionatória.
Ora, em regra, quem paga voluntariamente uma coima é porque aceita
os factos que lhe são imputados no auto de notícia ou, suposto tratar-se de um
decisor racional, porque opta por sacrificar a probabilidade de que a infracção
não venha a provar-se à vantagem certa do pagamento da coima pelo mínimo. A
inibição de conduzir tem a natureza de sanção acessória e é aplicada com base
nesses mesmos factos, no âmbito do mesmo procedimento que culminaria numa
decisão que abrangeria necessariamente os dois aspectos, a sanção principal (a
coima) e a sanção acessória ( a inibição da faculdade de conduzir), não fora o
interessado ter aceite a primeira. Nada tem de arbitrário ou desrazoável que a
aceitação da factualidade para efeito da sanção principal mediante o pagamento
voluntário, bloqueador do poder administrativo de graduação da coima entre os
limites legalmente estabelecidos, valha para a sanção acessória que depende da
prova da mesma infracção.
E não vislumbro razão para ser mais exigente perante actos de
disposição de poderes processuais ou espaços de consenso no processo de
contra-ordenação do que no processo penal, onde se admite a renúncia à discussão
dos factos, mediante confissão livre, integral e sem reservas (artigo 344.º do
CPP) e, em processo sumaríssimo, quando não se trate de aplicar pena ou medida
de segurança privativas da liberdade como aqui também não se trata, se vai ao
ponto de permitir a própria aceitação da pena proposta pela acusação (artigo
397.º do CPP).
Força é, porém, que tal efeito normativo seja ligado a um acto de
vontade, livre e esclarecido. Ora, como o acórdão demonstra, o Código da Estrada
não exige actualmente às entidades policiais ou administrativas a advertência do
interessado para as consequências do pagamento voluntário da coima e, por outro
lado, a norma vem interpretada no sentido de nem sequer permitir a demonstração
de vícios de vontade na aceitação da infracção que se extrai do pagamento
voluntário da coima. Só por estas razões acompanhei o juízo de
inconstitucionalidade.
Vítor Gomes
DECLARAÇÃO DE VOTO
Acompanho a decisão relativamente à norma retirada do n.º 4 do artigo 175º do
Código da Estrada (na versão do Decreto-Lei n.º 44/2005 de 23 de Fevereiro), com
o sentido de que, na impugnação da decisão administrativa em que é aplicada
sanção acessória de inibição de conduzir, ao arguido que pagou voluntariamente
a coima não é consentido impugnar os factos que lhe foram imputados,
constitutivos da infracção geradora da medida acessória de inibição de conduzir.
Assim interpretada a norma é, em meu entender, inconstitucional por violação do
princípio da liberdade de julgamento ínsito na garantia de tutela jurisdicional
efectiva prevista no n.º 1 do artigo 20º da Constituição.
Entendo, todavia, que a Constituição não proíbe que o legislador possa
expressamente retirar do pagamento voluntário da coima uma presunção de renúncia
ao direito à impugnação judicial da contra-ordenação e da medida acessória
correspondente, assim como entendo que não proíbe que o legislador condicione a
apreciação judicial da impugnação das medidas de aplicação da coima e da sanção
acessória ao prévio pagamento de uma quantia equivalente ao montante da coima.
Carlos Pamplona de Oliveira
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votei no sentido da não inconstitucionalidade da norma apreciada neste
processo por entender que a Constituição da República Portuguesa não proíbe o
legislador de fazer corresponder ao pagamento voluntário da coima a existência
da infracção.
Para este juízo é decisivo tratar-se de pagamento voluntário e de pagamento de
uma coima. A infracção dá-se por verificada – e só essa consequência está em
causa – por efeito de uma manifestação de vontade do arguido, em matéria
sancionatória de tipo contra-ordenacional. A conformidade constitucional de
soluções processuais consensuais no âmbito das infracções de pequena gravidade
foi já sustentada no Acórdão n.º 164 da Comissão Constitucional, a propósito do
artigo 61.º, n.º 4, do Código da Estrada, então vigente (publicado em apêndice
ao Diário da República, de 31 de Dezembro de 1979):
«3 – Que significa exactamente a afirmação, naquele preceito contida, de que o
pagamento voluntário da multa feito depois de instaurado o processo equivale à
condenação? (…).
a) Significando ela tão-só – é esse, na verdade, o seu conteúdo mínimo possível
– que o pagamento voluntário da multa feito depois de instaurado o processo
equivale à confissão da prática da transgressão e, portanto, à fixação
definitiva dos factos relevantes para a condenação, deveríamos concluir que a
lei portuguesa se teria a este respeito aproximado do conhecido modelo
anglo-americano da sentença agnitória ou da guilty plea, com a consequente
necessidade de condenação do arguido por efeito de uma sua manifestação de
vontade (cf. Eduardo Correia, «Les Preuves en Droit Pénal Portugais», Revista de
Direito e de Estudos Sociais, xiv, 1967, pp. 13 e seguintes; Figueiredo Dias,
Direito Processual Penal, i, 1974, p. 208; e, em pormenor, J. Herrmann, Die
Reform der deutschen Hauptverhandlung nach dem Vorbild des anglo -amerikanischen
Strafverfahrens, 1971, pp. 161 e seguintes). Modelo que, sendo desconhecido em
geral dos restantes sistemas processuais (nomeadamente no que se refere à
célebre plea barbaining), não deixa, todavia, de ter extensos pontos de contacto
com a regulamentação de certas formas de processo continentais, em particular
das mais rápidas e menos solenes, como seria o caso do Strafbefehls – e
Strafverfügungsverfahren na Alemanha (cf J. Herrrnann, cit., p. 164, e,
criticamen4e, P. Hünerfeld, «A Pequena Criminalidade e o Processo Penal»,
Revista de Direito e Economia, xv, 1978, pp. 43 e seguintes) ou o do processo de
transgressão entre nós.
Fosse este o entendimento a dar ao período questionado do artigo 61.°, n.° 4, do
Código da Estrada e não haveria razão bastante para concluir pela sua
inconstitucionalidade. Decerto que o processo agnitório é fenómeno estranho ao
(e contrastante com o) nosso sistema processual, na medida em que frontalmente
contraria os princípios da verdade material, da investigação oficial, da
indisponibilidade do objecto processual e da livre apreciação da prova, e em que
vai ao arrepio do valor não definitivo da confissão, consagrado para o processo
penal pelo artigo 174.° do respectivo código [Código de Processo Penal de 1929].
A verdade, porém, é que nenhum dos aludidos princípios tem entre nós assento e
dignidade constitucional, pelo que – por mais aberrante e criticável que fosse
no plano político-legislativo – não haveria em definitivo razão para negar
legitimidade, à luz da Constituição, a uma norma consagradora do sistema da
guilty plea em certo ou certos processos, máxime em processos rápidos e simples,
como é o caso do processo de transgressão».
2. Este entendimento em nada colide com os juízos de inconstitucionalidade
constantes dos Acórdãos n.ºs 337/86 e 442/94, fundados na “necessidade de
intervenção do juiz para aplicação da medida de inibição da faculdade de
conduzir”. As normas apreciadas em tais decisões fazem corresponder ao pagamento
voluntário da sanção principal (multa) uma consequência que já não é suportável
na manifestação de vontade do arguido. Que já não é suportável na imagem do
homem-arguido como ser dotado de uma livre determinação e de uma
auto-responsabilidade (cf. Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais no
novo Código de Processo Penal”, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988,
p. 29). Com efeito, do pagamento voluntário de uma multa por infracção estradal
“não pode derivar-se a dispensabilidade da audiência de julgamento para a
aplicação da medida de inibição da faculdade de conduzir” (Acórdão nº 442/94). E
tão pouco colide com o entendimento que se extrai do Acórdão nº 264/99. Nesta
decisão, o Tribunal decidiu não conhecer a norma que então se extraía do artigo
154º, nº 2, do Código da Estrada, na interpretação de que o pagamento voluntário
da coima implicava a confissão dos factos imputados ao arguido.
O acórdão da Comissão Constitucional já referido é, de resto, bem significativo
do que acaba de ser dito. Pronuncia-se pela conformidade constitucional do
último período do primeiro parágrafo do artigo 61.º, n.º 4, do Código da Estrada
– o pagamento voluntário da multa feito depois de instaurado o processo equivale
à condenação –, interpretado no sentido de o pagamento voluntário da multa
equivaler à confissão da prática da transgressão e, portanto, à fixação
definitiva dos factos relevantes para a condenação; mas já considera
inconstitucional a mesma disposição legal, interpretada no sentido de permitir a
aplicação da inibição da faculdade de conduzir como efeito automático do
pagamento e, assim, independentemente de audiência de julgamento e da
possibilidade efectiva de constituição de defensor e de presença e audiência do
arguido.
Maria João Antunes
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