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Processo n.º 878/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Victor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82,
de 15 de Novembro (LTC), da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa de 19 de
Julho de 2008 que julgou procedente a oposição deduzida por A. à oposição
fiscal, que contra si reverteu, por dívida resultante de uma coima fiscal,
aplicada a B. Ldª.
Para assim decidir, a sentença recorrida recusou aplicação ao artigo
7.º-A do RJIFNA (Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras) por
ofensa aos princípios da intransmissibilidade das penas e da presunção de
inocência, consagrados nos nºs 3 do artigo 30.º e n.º 2 do artigo 32.º da
Constituição, respectivamente.
A execução foi inicialmente instaurada contra a referida sociedade
e, na falta de bens penhoráveis desta, revertera contra um gerente da executada
ao abrigo do artigo 7.º-A do RJIFNA e, não sendo este residente em território
português, também contra o oponente com invocação do artigo 27.º da Lei Geral
Tributária.
2. O Ministério Público alegou, sustentando que a norma do artigo
7.º-A do RJIFNA, aliás como a do artigo 8.º do RGIT de efeito jurídico
semelhante que lhe sucedeu, não viola qualquer dos referidos princípios, tendo
concluído no sentido da procedência do recurso.
II. Fundamentação
3. Para julgar procedente a oposição e extinta a execução contra o oponente, a
sentença recorrida entendeu bastante afastar, por inconstitucionalidade, a norma
do artigo 7.º-A, aditado pelo Decreto-lei n.º 394/93, de 4 de Novembro, ao
Regime Jurídico das Infracções não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
20-A/90, de 15 de Janeiro, que dispunha o seguinte:
“Artigo 7.º-A
1 – Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam funções de
administração em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados são
subsidiariamente responsáveis, em caso de insuficiência do património destas,
por si culposamente causada, nas relações de crédito emergentes da aplicação de
multas ou coimas àquelas entidades referentes às infracções praticadas no seu
mandato.
2 – Se forem várias as pessoas responsáveis nos termos do número anterior, é
solidária a sua responsabilidade.”
Socorrendo-se de jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo
que reproduz, o tribunal a quo entendeu que a atribuição de responsabilidade
subsidiária a administradores e gerentes e outras pessoas com funções de
administração em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados, por dívida
resultante de coima fiscal aplicada à pessoa colectiva, nos termos previstos na
transcrita disposição legal, é susceptível de violar os princípios da
intransmissibilidade das penas e da presunção de inocência do arguido,
consagrados no n.º 3 e do artigo 30.º e no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição
da República, que entende aplicáveis no domínio do ilícito contravencional.
Note-se que só está em apreciação a constitucionalidade da norma
desaplicada e não qualquer outra questão, designadamente, a qualificação da
actuação do oponente como representante fiscal ou gestor de bens alheios, ou a
extensão, em cadeia, da responsabilidade solidária prevista no artigo 27.º da
LGT às situações de responsabilidade subsidiária em que incorrem não residentes.
4. A questão é, no que à violação destes princípios respeita, em
tudo semelhante àquela que o Tribunal apreciou no recente acórdão n.º 129/2009,
disponível em www.tribunalconstitucional.pt a propósito das normas das alíneas
a) e b) do n.º 1 do artigo 8.º do RGIT (Regime Geral das Infracções
Tributárias), de teor, para o que interessa, semelhante ao da norma que
constitui objecto do presente recurso.
Conclui-se nesse acórdão pela não inconstitucionalidade das
referidas normas com a seguinte fundamentação:
“3. O tribunal recorrido considerou, na linha de anterior jurisprudência, que a
atribuição de responsabilidade subsidiária a administradores, gerentes e outras
pessoas com funções de administração em sociedades, por dívida resultante de não
pagamento de coima fiscal em que a pessoa colectiva tenha sido condenada, com a
consequente reversão da respectiva execução fiscal, em consequência do que
dispõe, nessa matéria o artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT, é
susceptível de violar o princípio da intransmissibilidade das penas, consagrado
no artigo 30.º, n.º 3, da Constituição da República, e, bem assim, o princípio
da presunção de inocência do arguido, que decorre do artigo 32.º, n.º 2,
princípios que, nesses termos, entende serem aplicáveis mesmo no domínio do
ilícito contra-ordenacional.
O preceito análise, inserido nas disposições comuns do Regime Geral das
Infracções Tributárias, sob a epígrafe “Responsabilidade civil pelas multas e
coimas”, dispõe o seguinte:
1 – Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente
de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, ainda que
irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são
subsidiariamente responsáveis:
a) Pelas multas ou coimas aplicadas a infracções por factos praticados no
período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por
culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou
insuficiente para o seu pagamento;
b) Pelas multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão
definitiva que as aplicar for notificada durante o período do exercício do seu
cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento.
[…]”.
O que a norma, por conseguinte, prevê é uma forma de responsabilidade civil, que
recai sobre administradores e gerentes, relativamente a multas ou coimas em que
tenha sido condenada a sociedade ou pessoa colectiva, cujo não pagamento lhes
seja imputável ou resulte de insuficiência de património da devedora que lhes
seja atribuída a título de culpa.
Note-se, a este propósito, que o Tribunal Constitucional teve já oportunidade de
emitir um juízo de não inconstitucionalidade em relação a um idêntico efeito de
responsabilidade subsidiária que resulta da norma do artigo 112º, alínea a), do
Código das Sociedades Comerciais, que igualmente prevê que os direitos e
obrigações das sociedades extintas por incorporação ou por fusão se transmitam
para a sociedade incorporante ou a nova sociedade.
Esse juízo assentou, no entanto, essencialmente, no entendimento de que, nesses
casos, só formalmente se verifica uma transmissão, visto que não há lugar à
liquidação ou dissolução das sociedades incorporadas, antes se regista o
aproveitamento, no seio da sociedade incorporante, dos elementos pessoais,
patrimoniais e imateriais da sociedade extinta, o que conduz à inaplicabilidade,
nessa situação, da proibição da transmissibilidade das penas constante do artigo
30º, n.º 3, ainda que estejam em causa obrigações decorrentes de
responsabilidade contra-ordenacional (cfr. os acórdãos n.ºs 153/04, de 16 de
Março, 160/04, de 17 de Março, 161/04, de 17 de Março, 200/04, de 24 de Março, e
588/05, de 2 de Novembro).
Alguns desses arestos não deixaram, todavia, de enquadrar a questão da
intransmissibilidade das penas, em termos que mantêm plena validade para o caso
dos autos.
No acórdão n.º 160/04, por exemplo, considerou-se o seguinte:
“A evolução do texto constitucional – que anteriormente previa a
insusceptibilidade de transmissão de “penas” [e agora prevê que “A
responsabilidade penal é insusceptível de transmissão”] – não se ficou, porém, a
dever a qualquer intenção de transcender o domínio do direito penal (como,
aliás, resulta claramente também da nova redacção), mas sim evitar que o
princípio da intransmissibilidade se confinasse às situações em que a decisão de
aplicação da lei penal transitara em julgado, sobrevindo apenas na fase da
aplicação da pena.
Ora, não obstante a doutrina e a jurisprudência constitucionais irem no sentido
da aplicação, no domínio contra-ordenacional, do essencial dos princípios e
normas constitucionais em matéria penal, não deixa de se admitir, como se
escreveu no citado acórdão n.º 50/03, a “diferença dos princípios
jurídico-constitucionais que regem a legislação penal, por um lado, e aqueles a
que se submetem as contra-ordenações”. Diferença, esta, que cobra expressão,
designadamente, na natureza administrativa (e não jurisdicional) da entidade que
aplica as sanções contra-ordenacionais (como se decidiu no acórdão n.º 158/92,
publicado no DR, II Série, de 2 de Setembro de 1992) e na diferente natureza e
regime de um e outro ordenamento sancionatório (cfr. v. g. acórdãos n.ºs 245/00
e 547/01, publicados, respectivamente, no DR, II Série, de 3 de Novembro de 2000
e de 9 de Novembro de 2001).
Nestes termos, a intransmissibilidade de um juízo hipotético ou definitivo de
censura ética, consubstanciado numa acusação ou condenação penal, não tem de
implicar, por analogia ou identidade de razão – que não existe – a
intransmissibilidade de uma acusação ou condenação por desrespeito de normas sem
ressonância ética, de ordenação administrativa.
Nem sequer se pode, pois, a partir da referida norma, obter um padrão
constitucional previsto a partir do qual se pudesse censurar o referido
entendimento do artigo 112º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais. Não
o impõe, também, o artigo 30º da Constituição, referido aos “Limites das penas e
medidas de segurança”; não o impõe o artigo 32º, n.º 10, da Constituição, que
estende apenas os direitos de audiência e defesa do arguido aos processos de
contra-ordenação e a quaisquer outros processos sancionatórios; e não o impõe a
lógica de tutela do arguido que justificou a jurisprudência constitucional em
matérias como o princípio da legalidade, ou a aplicação da lei mais favorável
(v.g., acórdãos n.ºs 227/92 e 547/01, publicados, respectivamente, no DR, II
Série, de 12 de Setembro de 1992 e de 15 de Julho de 2001).
Mais do que verificar a desconformidade de um certo sentido da norma impugnada
em relação ao parâmetro invocado, conclui-se, pois, pela inexistência do
pretendido parâmetro, aplicável para o efeito pretendido”.
O referido aresto, embora centrado ainda na sobredita questão da transmissão de
responsabilidade por incorporação ou fusão de sociedades, não deixa de fornecer
elementos decisivos para a interpretação da norma do artigo 30º, n.º 3, da
Constituição, salientando que ela não pode servir de parâmetro uniforme para a
responsabilidade penal e a responsabilidade contra-ordenacional.
Procurando decifrar o sentido e alcance da norma, também Gomes Canotilho e Vital
Moreira salientam que a insusceptibilidade da transmissão da responsabilidade
penal está associada ao princípio da pessoalidade, daí resultando como
principais efeitos: (a) a extinção da pena (qualquer que ela seja) e do
procedimento criminal com a morte do agente; (b) a proibição da transmissão da
pena para familiares, parentes ou terceiros; (c) a impossibilidade de subrogação
no cumprimento das penas. O que, em todo o caso, não obsta – como acrescentam os
mesmos autores - à transmissibilidade de certos efeitos patrimoniais conexos das
penas, como, por exemplo, a indemnização de perdas e danos emergentes de um
crime, nos termos da lei civil (Constituição da República Portuguesa Anotada,
vol. I, 4.ª edição, Coimbra, 2007, pág. 504)).
No caso vertente, importa ter em consideração, antes de mais, que não estamos
perante uma qualquer forma de transmissão de responsabilidade penal ou tão pouco
de transmissão de responsabilidade contra-ordenacional.
O que o artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT prevê é uma forma de
responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes, que resulta
do facto culposo que lhes é imputável de terem gerado uma situação de
insuficiência patrimonial da empresa, que tenha sido causadora do não pagamento
da multa ou da coima que era devida, ou de não terem procedido a esse pagamento
quando a sociedade ou pessoa colectiva foi notificada para esse efeito ainda
durante o período de exercício do seu cargo.
O que está em causa não é, por conseguinte, a mera transmissão de uma
responsabilidade contra-ordenacional que era originariamente imputável à
sociedade ou pessoa colectiva; mas antes a imposição de um dever indemnizatório
que deriva do facto ilícito e culposo que é praticado pelo administrador ou
gerente, e que constitui causa adequada do dano que resulta, para a
Administração Fiscal, da não obtenção da receita em que se traduzia o pagamento
da multa ou coima que eram devidas.
A simples circunstância de o montante indemnizatório corresponder ao valor da
multa ou coima não paga apenas significa que é essa, de acordo com os critérios
da responsabilidade civil, a expressão pecuniária do dano que ao lesante cabe
reparar, que é necessariamente coincidente com a receita que deixa de ter dado
entrada nos cofres da Fazenda Nacional; e de nenhum modo permite concluir que
tenha havido a própria transmissão para o administrador ou gerente da
responsabilidade contra-ordenacional.
Por outro lado, o facto de a execução fiscal poder prosseguir contra o
administrador ou gerente é uma mera consequência processual da existência de uma
responsabilidade subsidiária, e não constitui, em si, qualquer indício de que
ocorre, no caso, a transmissão para terceiro da sanção aplicada no processo de
contra-ordenação (cfr. artigo 160º do Código de Procedimento e de Processo
Tributário).
Acresce que a responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes
assenta, não no próprio facto típico que é caracterizado como infracção
contra-ordenacional, mas num facto autónomo, inteiramente diverso desse, que se
traduz num comportamento pessoal determinante da produção de um dano para a
Administração Fiscal.
É esse facto, de carácter ilícito, imputável ao agente a título de culpa, que
fundamenta o dever de indemnizar, e que, como tal, origina a responsabilidade
civil.
Tudo leva, por conseguinte, a considerar que não existe, na previsão da norma do
artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT, um qualquer mecanismo de
transmissibilidade da responsabilidade contra-ordenacional, nem ocorre qualquer
violação do disposto no artigo 30º, n.º 3, da Constituição, mesmo que se pudesse
entender - o que não é liquido - que a proibição aí contida se torna aplicável
no domínio das contra-ordenações.
4. Concluindo-se, como se concluiu, que a norma do artigo 8º, n.º 1, alíneas a)
e b), do RGIT não pode entender-se como consagrando uma modalidade de
transmissão para gerentes ou administradores da coima aplicada à pessoa
colectiva, facilmente se compreende que esse dispositivo não pode também pôr em
causa o princípio da presunção da inocência do arguido, a que o tribunal
recorrido também fez apelo para declarar a inconstitucionalidade do preceito.
Na verdade, o artigo 32º, n.º 2, da Constituição, ao estipular no seu primeiro
segmento que “[t]odo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da
sentença de condenação”, estabelece um princípio da constituição processual
criminal que assenta essencialmente na ideia de que o processo deve assegurar ao
arguido todas as garantias práticas de defesa até vir a ser julgado publicamente
culpado por sentença definitiva (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição
Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2005, pág. 355).
Ainda que se aceite que este princípio tem também aplicação no âmbito dos
processos de contra-ordenação, como refracção da garantia dos direitos de
audiência e de defesa do arguido, que é tornada extensiva a essa forma de
processo pelo artigo 32º, n.º 10, da Constituição, o certo é que, no caso,
conforme já se esclareceu, não estamos perante uma imputação a terceiro de uma
infracção contra-ordenacional relativamente à qual este não tenha tido
oportunidade de se defender, mas perante uma mera responsabilidade civil
subsidiária que resulta de um facto ilícito e culposo que se não confunde com o
facto típico a que corresponde a aplicação da coima.”
5. Estas considerações são inteiramente transponíveis para a apreciação da
constitucionalidade da norma que é objecto do presente recurso.
Efectivamente, não é aqui menos evidente do que era na norma apreciada nesse
outro acórdão a natureza civilística da responsabilidade em causa, ou seja, que
se trata de efectivar uma responsabilidade de cariz ressarcitório, fundada numa
conduta própria, posterior e autónoma relativamente àquela que motivou a
aplicação da sanção à pessoa colectiva. O chamamento do terceiro a responder
pela quantia que não foi possível obter mediante execução do património do
primitivo devedor resulta de ser imputada a uma sua conduta culposa a não
satisfação das “relações de crédito emergentes da aplicação de multas ou coimas”
às pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados a que a sanção foi
aplicada. Não é a sanção aplicada pelo ilícito contra-ordenacional que se
transmite, mas a responsabilidade culposa pela frustração da satisfação do
crédito correspondente que se efectiva contra o gerente ou administrador que,
incumprindo deveres funcionais, não providenciou no sentido de que a sociedade
efectuasse o pagamento da coima em que estava definitivamente condenada e deixou
criar uma situação em que o património desta se tornou insuficiente para
assegurar a cobrança coerciva.
III. Decisão
Pelo exposto, concedendo provimento ao recurso, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 7.º-A do Regime Jurídico
das Infracções Fiscais não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de
15 de Janeiro, na parte em que se refere à responsabilidade civil subsidiária
dos administradores e gerentes pelos montantes correspondentes às coimas
aplicadas a pessoas colectivas em processo de contra-ordenação fiscal;
b) Consequentemente, ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade
com o juízo de não inconstitucionalidade agora formulado.
Lisboa, 25/3/2009
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão
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