|
Processo n.º 428/08
Plenário
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
O Presidente da República requereu, nos termos do n.º 1, do artigo 278.º, da
Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), e dos artigos 51.º, n.º 1, e
57.º, n.º 1, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC), que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade com a
Constituição da República das normas constantes dos artigos 22.º, n.º 2, e 29.º,
n.º 1, do Decreto da Assembleia da República n.º 204/X, recebido na Presidência
da República no dia 5 de Maio de 2008 para ser promulgado como lei.
O pedido de fiscalização de constitucionalidade apresenta, em síntese, a
seguinte fundamentação:
- o Decreto n.º 204/X opta pela deslegalização das competências das novas
unidades da PJ, através da sua regulação por portaria ministerial, o que suscita
dúvidas de constitucionalidade;
- como a alínea u), do artigo 164.º, da C.R.P., se refere ao “regime das forças
de segurança” sem o qualificar como “geral”, é legítimo extrair o entendimento
segundo o qual, quer o regime geral, quer os regimes especiais correspondentes a
cada força de segurança, devem integrar a reserva absoluta de competência
parlamentar;
- a integrar-se a estrutura organizativa da PJ na reserva de lei parlamentar é
defensável que estejam incorporadas na mesma reserva as competências cometidas
às suas unidades orgânicas, não só porque o facto destas unidades comporem o
modelo estrutural da mesma força policial as torna inseparáveis do objecto do
seu regime jurídico, mas também porque esses serviços se encontram investidos de
poderes funcionais para a prática de certos actos de polícia, os quais se
projectam sobre direitos fundamentais e reclamam a sua regulação em lei;
- a vingar a linha interpretativa exposta, as normas do n.º 2, do artigo 22.º, e
do n.º 1, do artigo 29.º, do Decreto, seriam inconstitucionais porque remeteriam
para portaria a disciplina de uma matéria que a Constituição integra na reserva
absoluta de competência da Assembleia da República;
- a não ser acolhida esta interpretação coloca-se, de todo o modo, a dúvida
sobre se as mesmas regras não integrarão, necessariamente, a reserva de acto
legislativo (ou seja, a reserva de lei ou decreto-lei);
- a norma contida no n.º 2, do artigo 272.,º da C.R.P., ao determinar que “as
medidas de polícia são as previstas na lei”, enuncia um princípio de tipicidade
legal dos actos de polícia susceptíveis de serem praticados por uma força de
segurança, como a PJ;
- a atentar nas competências cometidas pela legislação vigente a certas unidades
orgânicas da PJ, as mesmas implicam a adopção de medidas de polícia, com
especial relevo para a prevenção da criminalidade, pelo que a imposição
constitucional de tipicidade legal das medidas de polícia deve estender-se às
normas que definem inovatoriamente as competências que habilitam a respectiva
prática por parte dos serviços da PJ;
- se a tipificação de actos de polícia susceptíveis de serem praticados por cada
um dos serviços ou unidades da PJ deve constar de acto legislativo, por maioria
de razão devem assumir a mesma forma legal as normas jurídicas que fixem as
competências para prática dos primeiros, dado constituírem o pressuposto
necessário da sua emissão;
- assim as normas previstas no n.º 2, do artigo 22.º, e n.º 1, do artigo 29.º,
parecem contrariar o n.º 2, do artigo 272.º, da C.R.P., dado que deslegalizam
indevidamente uma matéria que cabe na reserva de acto legislativo;
- sem conceder, relativamente ao entendimento nos termos do qual se estimou que
a definição das competências das unidades da PJ deve integrar, no mínimo, a
reserva de lei, considera-se que, mesmo na hipótese de ser sustentada
interpretação diversa, a mesma deslegalização não poderia, sob pena de
inconstitucionalidade, ser operada por portaria ministerial;
- na verdade, toda e qualquer lei que se limite a definir a competência
objectiva e subjectiva para a emissão de regulamentos do Governo,
conferindo-lhes um poder inovatório, sem que atribua aos mesmos regulamentos
independentes a forma de decreto regulamentar, viola o disposto nos nºs 6 e 7,
do artigo 112.º, da C.R.P.;
- no caso em apreciação, o n.º 2, do artigo 22.º, do Decreto, ao deslegalizar as
normas que irão estabelecer a competência das unidades da PJ, limitou-se a
definir a competência subjectiva para a emissão da portaria que irá reger essa
matéria e a competência objectiva do acto regulamentar;
- a regra do n.º 2, do artigo 22.º, e, remissivamente, a do n.º 1, do artigo
29.º, não fixam qualquer tipo de critérios ou princípios conformadores de um
regime material que permitam diferenciar as competências policiais de cada
unidade da PJ, ou determinar o “sentido e os limites da intervenção
regulamentar”, pelo que ao limitarem-se a remeter em branco para portaria a
definição das competências das novas unidades da PJ, sem fixarem qualquer outro
critério que permita determinar o sentido e os limites das mesmas, autorizam que
uma disciplina tendencialmente primária, própria do conteúdo típico de um
regulamento independente do Governo, seja regida por portaria, contrariando o
disposto nos nºs. 6 e 7, do artigo 112.º, da C.R.P.
O Presidente da República concluiu o pedido de fiscalização de
constitucionalidade nos seguintes termos:
“Atenta a fundamentação das dúvidas de constitucionalidade expostas no presente
pedido, venho requerer ao Tribunal Constitucional que aprecie a
constitucionalidade das normas constantes do nº 2 do artº 22º e do nº 1 do artº
29º do Decreto nº 204/X da Assembleia da República, com fundamento:
a) Na violação da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da
República, estabelecida pelo disposto na alínea u) do artº 164º da CRP;
b) Na violação da reserva de lei ditada pelo nº 2 do artº 272º da CRP, caso
prevaleça a interpretação segundo a qual a definição da competência das unidades
da PJ das quais decorra a prática de actos típicos de polícia não integra a
reserva absoluta de competência legislativa parlamentar;
c) Na violação da reserva do decreto regulamentar constante das normas dos nºs 6
e 7 do artº 112º da CRP, caso proceda a interpretação favorável à validade da
deslegalização das normas que estabeleçam as competências das Unidades da PJ.”
Notificado para o efeito previsto no artigo 54.º, da LTC, o Presidente da
Assembleia da República veio oferecer o merecimento dos autos.
Elaborado o memorando a que se refere o artigo 58.º, n.º 2, da LTC, e tendo este
sido submetido a debate, cumpre agora decidir de acordo com a orientação que o
tribunal fixou.
*
Fundamentação
1. Da delimitação do objecto do pedido de fiscalização preventiva
Na parte final do pedido dirigido ao Tribunal Constitucional pede-se que este
aprecie “a constitucionalidade das normas constantes do nº 2 do artº 22º e do nº
1 do artº 29º do Decreto nº 204/X da Assembleia da República”.
No referido artigo 29.º, n.º 1, determina-se que “as competências, sede e área
geográfica de intervenção das unidades territoriais, regionais e locais da PJ
são estabelecidas nos termos das portarias referidas nos n.ºs 2 e 3 do artigo
22.º.”
Da leitura da fundamentação do pedido constata-se que apenas se suscitam dúvidas
sobre a constitucionalidade da remissão para portaria em matéria de fixação das
competências das diversas unidades da PJ, nos termos do n.º 2, do artigo 22.º,
do Decreto n.º 204/X, da Assembleia da República.
Não há qualquer referência a dúvidas sobre a constitucionalidade da remissão
para portaria, nos termos do artigo 22.º, n.º 3, do mesmo diploma, em matéria de
definição da sede e área geográfica de intervenção de qualquer uma daquelas
unidades.
O referido no artigo 2.º do próprio pedido é também claro ao efectuar a apontada
exclusão de parte do artigo 29.º, n.º 1, do Decreto n.º 204/X, da Assembleia da
República, do âmbito do pedido de fiscalização preventiva de
constitucionalidade.
Deste modo deve apenas ser verificada a constitucionalidade do conteúdo
normativo dos seguintes artigos do Decreto n.º 204/X, da Assembleia da
República:
- do artigo 22.º, n.º 2;
- e do artigo 29.º, n.º 1, apenas na parte em que determina que as competências
das unidades territoriais, regionais e locais da PJ são estabelecidas nos termos
da portaria referida no n.º 2 do artigo 22.º.
2. Das normas a fiscalizar e seu enquadramento
As normas cuja apreciação de constitucionalidade se requer constam do n.º 2, do
artigo 22.º, e do n.º 1, do artigo 29.º, do Decreto n.º 204/X, da Assembleia da
República, o qual aprova uma nova orgânica da Polícia Judiciária (PJ), revogando
parcialmente o anterior diploma que actualmente rege tal matéria - o Decreto-Lei
n.º 275-A/2000, de 9 de Novembro, na redacção conferida pela Lei n.º 103/2001,
de 25 de Agosto, pelo Decreto-Lei n.º 304/2002, de 13 de Dezembro, e pelo
Decreto-Lei n.º 43/2003, de 13 de Março.
Os referidos preceitos têm a seguinte redacção:
Artigo 22.º
Estrutura
(…)
2 - As competências das unidades da PJ são estabelecidas em portaria conjunta a
aprovar pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas das Finanças e da
Justiça.
(…)
Artigo 29.º
Unidades territoriais, regionais e locais
1 - As competências, sede e área geográfica de intervenção das unidades
territoriais, regionais e locais da PJ são estabelecidas nos termos das
portarias referidas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 22.º.
(…).
No diploma em análise define-se a competência da PJ em matéria de prevenção e
detecção criminal (artigo 4.º), remete-se para a Lei de Organização de
Investigação Criminal (apesar desta remissão visar presumivelmente um diploma
que se encontra ainda em discussão na Assembleia da República, perante a
ausência de qualquer menção expressa no Decreto sob apreciação que concretize
essa intenção, a remissão tem de ser considerada para os artigos 3.º, n.ºs 4 e
5, e 4.º, da actual Lei de Organização de Investigação Criminal, aprovada pela
Lei n.º 21/2000, de 10 de Agosto) a definição das competências da PJ em matéria
de investigação criminal (artigo 5.º, n.º 1) e, após se enunciar o princípio de
que a organização interna dos serviços da PJ obedece ao modelo da estrutura
hierarquizada (artigo 21.º), enumeram-se no artigo 22.º, n.º 1, os diferentes
módulos dessa estrutura:
a) A Direcção Nacional;
b) As unidades nacionais;
c) As unidades territoriais;
d) As unidades regionais;
e) As unidades locais;
f) As unidades de apoio à investigação;
g) As unidades de suporte.
Concretizando a referida estrutura, o artigo 28.º prevê a existência das
seguintes unidades nacionais:
a) a Unidade Nacional Contra-Terrorismo;
b) a Unidade Nacional de Combate à Corrupção;
c) a Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefacientes.
O artigo 30.º prevê a existência das seguintes unidades de apoio à investigação:
a) a Unidade de Informação de Investigação Criminal;
b) a Unidade de Cooperação Internacional;
c) o Laboratório de Polícia Científica;
d) a Unidade de Telecomunicações e Informática.
Por seu turno, o artigo 31.º prevê a existência das seguintes unidades de
suporte:
a) a Unidade de Administração Financeira, Patrimonial e de Segurança;
b) a Unidade de Recursos Humanos e Relações Públicas;
c) a Unidade de Perícia Financeira e Contabilística;
d) a Unidade Disciplinar e de Inspecção.
Já relativamente às unidades territoriais, regionais e locais determina-se que
as suas competências sejam estabelecidas por portaria conjunta a aprovar pelos
membros do Governo responsáveis pelas áreas das Finanças e da Justiça (artigo
29.º, n.º 1).
Essa mesma remissão (artigo 22.º, n.º 2) ocorre também relativamente à definição
de competências de todas as unidades da PJ (além das territoriais, regionais e
locais, também as nacionais, as de apoio à investigação e as de suporte).
Daqui resulta que a Lei Orgânica da PJ remeteu para regulação por portaria a
distribuição das competências desta polícia por todas as suas unidades.
É a apreciação da constitucionalidade desta remissão que se requer. E, para esse
efeito, invocam-se três fundamentos numa relação de subsidiariedade:
a) a violação da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da
República, estabelecida pelo disposto na alínea u), do artigo 164.º, da C.R.P.;
b) a violação da reserva de lei ditada pelo n.º 2, do artigo 272.º, da C.R.P.,
caso prevaleça a interpretação segundo a qual a definição da competência das
unidades da PJ das quais decorra a prática de actos típicos de polícia não
integra a reserva absoluta de competência legislativa parlamentar;
c) a violação da reserva do decreto regulamentar constante das normas dos nºs 6
e 7, do artigo 112.º, da C.R.P., caso proceda a interpretação favorável à
validade da deslegalização das normas que estabeleçam as competências das
Unidades da PJ.
Antes de se iniciar a apreciação destes fundamentos importa ter presente que o
regime das forças de segurança mereceu uma especial atenção do legislador
constitucional (artigos 163.º, i), 270.º, 164.º, u), e 272.º, da C.R.P.) devido,
por um lado, ao papel fundamental que elas desempenham na garantia de
funcionamento da vida em sociedade num Estado de direito e, por outro lado, à
possibilidade de afectação dos direitos e liberdades dos cidadãos que pode
resultar da sua actividade. Se aquele interesse reclama operacionalidade e
eficácia das forças de segurança, o segundo exige que a lei conforme a sua
actividade de modo a que não se possam verificar restrições desproporcionadas
àqueles direitos e liberdades. Foi a procura da garantia da obtenção de um ponto
de equilíbrio entre estes dois interesses, mesmo que cintilante e precário, por
força da pressão de temores sociais com sentidos opostos, que motivou o
legislador constitucional a consagrar especiais exigências neste domínio,
sobretudo ao nível da definição dos órgãos competentes e da forma dos actos
normativos necessários à regulamentação de tal matéria.
O legislador constitucional não ignorou que na tensão dialéctica entre os
direitos à liberdade e segurança, consagrados no artigo 27.º, n.º 1, da C.R.P.,
a actividade das forças de segurança interna do Estado desempenha um papel
fundamental que justifica especiais preocupações relativamente a outros sectores
da Administração Pública.
Sendo esta actividade de elevada importância e risco que está na mira das
referidas directrizes constitucionais, o conceito constitucional de “forças de
segurança” não pode deixar de ser perspectivado numa visão ampla que abranja
todos os corpos organizados que tenham por missão, principal ou secundária,
garantir a segurança interna, o que inclui obrigatoriamente a prevenção de
crimes que ponham em causa o direito à segurança dos cidadãos (artigo 27.º, n.º
1, da C.R.P.).
Ora, competindo à PJ, nos termos do artigo 4º, do Decreto sob análise, além do
mais, uma actividade de prevenção e detecção criminal, não pode esta polícia
deixar de estar incluída no conceito constitucional de “forças de
segurança”(vide, neste sentido, PEDRO LOMBA, em “Sobre a teoria das medidas de
polícia administrativa”, em “Estudos de direito de polícia”, 1º volume, pág.
191-192, ed. de 2003, da A.A.F.D.L., JOÃO RAPOSO, em “Direito policial I”, pág.
43 e 49, da ed. de 2006, da Almedina, e GUEDES VALENTE, em “Teoria geral do
direito policial”, pág. 18, da ed. de 2005, da Almedina), independentemente das
discussões que suscite uma qualificação conceptual apurada deste tipo de
polícia (vide um relato desta polémica na doutrina nacional e estrangeira em “A
questão das polícias municipais”, de Catarina Sarmento e Castro, pág. 97-104, da
ed. de 2003, da Coimbra Editora).
3. Da questão de constitucionalidade
3.1. Da violação da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da
República
Dispõe o artigo 164.º, u), da C.R.P.:
“É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as
seguintes matérias:
(…)
u) Regime das forças de segurança;
(…).”
Esta alínea foi aditada pela Revisão Constitucional de 1997, com base numa
proposta apresentada pelo Partido Socialista com a seguinte redacção: “Base de
organização das forças de segurança”.
Após discussão e intervenções várias na Comissão Eventual para a Revisão
Constitucional, a alínea em questão passou a comportar a actual redacção, tendo
sido aprovada por unanimidade.
Para a compreensão do conteúdo dessa alínea revela-se essencial a consulta do
debate havido na referida Comissão Eventual sobre o seu aditamento ao elenco das
matérias que integram a reserva absoluta da Assembleia da República.
Na verdade, na reunião realizada em 29 de Outubro de 1996, revelam-se
significativas as seguintes intervenções, que se passam a transcrever:
“(…)
O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, em matéria de repartição
constitucional de competências, no tocante à regulação das questões relacionadas
com as forças de segurança, creio que a combinação entre o que decorre das
normas de competência inseridas na sede que agora estamos a examinar e o artigo
272.º da Constituição aponta já, sem nenhuma dúvida, para que haja regulação por
lei parlamentar de questões sociais do regime das forças de segurança. Nós,
aliás, também pretendemos rever o artigo 272.º, mas apenas no tocante à admissão
da possibilidade de criação de corpos municipais de polícia, pelo que não
propomos a alteração do essencial da norma, tal qual hoje vigora. O que se
trata, no caso da proposta do PS, é de prever que a Assembleia da República terá
competência para legislar sobre as 'Bases da organização das forças de
segurança'. Parece importante, para já, que haja definição dessas bases, isto é,
que haja intervenção parlamentar para definir as bases da organização. Pode ser
uma forma de clarificação, preferível à legiferação avulsa e, evidentemente,
sem prejuízo da existência de estatutos autónomos articulados e
compatibilizados, e até de sedimentos de produção normativa diferentes, como é
inevitável. A proposta parece-nos ser um passo em frente estruturante em
relação ao regime que vigora, sem prejuízo, todavia, desse regime. Gostaria de
sublinhar isto, uma vez que não se pretende uma margem de governamentalização,
porque não alteramos o artigo 272.º e a leitura deste artigo e do artigo 168.º
n.º 1, alínea ab) deve fazer-se articuladamente, como mandam as regras básicas.
(…)
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): (…) É inequívoco, para todos, e nunca se
questionou no nosso Estado de direito, que a chamada lei de bases de segurança
interna é, por força das matérias que lhe estão implícitas, reserva da
Assembleia da República. Isto nunca foi questionado por nenhum dos partidos e
não é questionável.
(…)
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): Uma coisa completamente diferente é falar-se na
organização das forças de segurança. De facto, aqui, temos as maiores reservas,
porque não nos parece minimamente aceitável que toda a matéria que tem que ver
com os problemas organizacionais de estruturas, que, obviamente, acabam por ser
estruturas da Administração, seja colocada na reserva de competência da
Assembleia da República, a não ser nos casos explícitos da defesa nacional em
que a Constituição já o faz, porque sempre o fez.
(…)
Mas, quanto à questão organizacional, penso que há sempre que não perder de
vista que a condução da política de segurança, em termos práticos, depois, é
também da responsabilidade do governo, e não devem ser retirados mecanismos ao
governo, para que este tenha uma total responsabilização sobre o resultado
final, a eficácia ou a eficiência, com que essa política de segurança é
executada ao longo de uma legislatura. Nesse sentido, do nosso ponto de vista,
só no caso das Forças Armadas, em que não há uma preocupação de eficiência ou
eficácia política nesse sentido, porque na defesa nacional as preocupações
colocam-se acima dessas lógicas de funcionamento e de responsabilidade política
pela administração e pela eficácia dos resultados obtidos, é que se justifica a
existência de reserva de competência da Assembleia. Em todos os outros casos não
faz sentido criar o 'exclusivo' para a Assembleia da República,
'desresponsalizando', de algum modo, o governo dos resultados obtidos nessas
matérias. De resto, o contrário só faria sentido se houvesse alguma
desconfiança política da Assembleia da República - eu entendo que, em termos de
sistema constitucional, isso não deve, pura e simplesmente, existir, nem sequer
ser pensado - relativamente ao governo, para a condução de determinado tipo de
matérias da Administração. Como o PSD entende que esse tipo de lógica, em
abstracto, nunca deve estar presente no próprio texto constitucional é da
opinião de que todas estas competências organizacionais, que actualmente são
matérias que se inscrevem na esfera concorrencial legislativa dos dois órgãos
de soberania, não devem ser 'transplantadas' para a esfera de competência
exclusiva da Assembleia da República. Em termos genéricos, é este o entendimento
do PSD.
O Sr. José Magalhães (PS): (…) Penso que o Parlamento e o regime ganharão com o
facto de, em relação a coisas tão importantes como os princípios e as regras
essenciais, haver uma clarificação e definição parlamentar, porque se trata de
duas coisas que permitem maiorias alargadas para gerir matérias em que é muito
importante haver grandes consensos nacionais. Por outro lado, todos os partidos
poderão sempre fazer com que o Parlamento - estou ciente disso - intervenha em
relação a questões que tenham que ver com alguns aspectos contidos sob a
designação 'regime das forças de segurança' através do instituto da ratificação
(claro que sim!), e é isso o que tem acontecido na maior parte das vezes, sem o
debate de fundo, que é também um debate estratégico (não é um debate puramente
de configuração de regimes legais, tem de estar associado a estratégias
nacionais para este sector). (…).”
(In DAR de 30-10-1996, pág. 1394-1398).
Bem como as intervenções havidas na reunião de 19 de Junho de 1997 que
igualmente se transcrevem:
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - (…) Esta matéria surge na mesa da Comissão de
Revisão Constitucional por força da proposta a.b) do artigo 168.º do PS, que
propõe a inclusão na reserva relativa de competência da Assembleia as 'Bases da
organização das forças de segurança', proposta a qual, já na primeira leitura, o
Partido Social-Democrata teve ocasião de colocar reservas por entender que,
tratando-se as forças de segurança de uma matéria da competência do governo, a
organização interna das forças de segurança é competência do governo, da qual o
PSD entende que não pode haver uma desresponsabilização política por parte do
Governo. Faz parte do programa de um qualquer governo, definir uma política de
organização das forças de segurança e não deve haver desresponsabilização
alguma desse governo face à política por que optar.
(…)
O Sr. Presidente: Tem a palavra o Sr. Deputado João Amaral.
O Sr. João Amaral (PCP): Sr. Presidente, creio que o que está subjacente à
proposta mantém intocado o disposto no n.º 4 do artigo 272.º.
O Sr. Presidente: Sim, não se mexe!
O Sr. João Amaral (PCP): Estou de acordo que não é a Assembleia que vai
organizar as diferentes forças policiais. Portanto, estou de acordo que não
compita à Assembleia fazer a lei orgânica da GNR, da PSP ou da Guarda Fiscal.
Não tenho qualquer dúvida quanto a isto. Agora, já que a questão foi aqui
colocada em termos de saber o que é que significa 'regime das forças de
segurança', eu apanhava precisamente o exemplo do sistema de informações da
República para dizer que faz parte do regime do sistema de informações da
República definir quais são os serviços que existem.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Quais são os serviços, mas não a organização.
O Sr. João Amaral (PCP): E, portanto, faz parte do regime das forças de
segurança definir que forças de segurança existem.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Com certeza!
O Sr. João Amaral (PCP): Se o entendimento é esse e se está salvaguardado o
artigo 272.º, n.º 4, que diz que a organização das forças de segurança é única
para todo o território nacional,...
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Tem o compromisso do PSD de que não
deixaremos alterar esse número.
O Sr. João Amaral (PCP): … então, percebo o alcance e congratulo-me com a
posição que o PS tomou aqui assim, porque significa o reforço...”
(…)” (DAR de 20-6-1997, pág. 3111 a 3113).
O alcance desta alínea u), do artigo 164.º, da C.R.P., já foi objecto de análise
pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 23/2002 (pub. em “Acórdãos do
Tribunal Constitucional”, 52.º vol., pág. 7 e seg.) no qual se procedeu à
fiscalização preventiva da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, e onde,
após transcrição de algumas intervenções ocorridas na Comissão Eventual para a
Revisão Constitucional de 1997, se concluiu:
“(…)
5. Se, como parece resultar das transcrições vindas de fazer, se poderá concluir
que o legislador da IV Revisão Constitucional não teve a intenção de abarcar na
alínea u) do vigente artigo 164º as matérias atinentes à «organização interna»
de cada força de segurança, isso não significa que, em face da prescrição hoje
existente, se tenha, e somente, de atender ao desiderato histórico daquele
legislador, extraível dos trabalhos levados a cabo na Comissão Eventual para a
Revisão Constitucional.
Há, antes, que considerar ainda outro elementos da interpretação jurídica.
Efectivamente se, face a estes outros elementos, se houvesse de considerar a
asserção regime utilizada nesta disposição constitucional de molde a nela se
dever incluir uma amplíssima ou total regulação da matéria a que o mesmo se
reporta, inclusivamente quando se tratasse de questões de pormenor, adjectivas
e de mera regulamentação, isso derivaria do entendimento de que, não obstante o
intento do legislador daquela Revisão, o intérprete e aplicador do direito
constitucional, maxime o juiz constitucional, se não deveria fundar tão só na
vontade desse legislador, porque, então, o resultado que adviria de uma
interpretação esteada unicamente nessa vontade seria contrária aos próprios
cânones interpretativos e prescrições constitucionais.
Há, pois, que prosseguir, com vista a descortinar-se o que deve ser incluído no
conceito de regime, para os efeitos da alínea u) do artigo 164º da Constituição.
Vincar-se-á aqui que a conclusão a que se chegar quanto ao alcance da asserção
regime não significa a extrapolação da mesma para todas as demais situações em
que a Lei Fundamental utilize idêntica expressão, designadamente para efeitos do
âmbito da reserva de competência legislativa parlamentar.
O que releva agora é, e tão só, descortinar qual o indicado alcance tendo em
mira o preceituado na citada alínea u), pelo que aquilo que este Tribunal
concluir quanto a este particular não conduzirá, por si só, a que seja, mutatis
mutandis, transponível para outros locais e matérias em que a Constituição se
reporte à palavra regime que, desta arte, poderá abarcar sentido diverso daquele
que é utilizado na falada alínea.
(…)
7. Transpondo para a situação em apreço os dados que se podem porventura retirar
de uma possível parametrização da jurisprudência constitucional sobre o que deva
ser entendido por «regime», «regime e âmbito» e «regime geral», dir-se-á que,
quanto à matéria ínsita na alínea u) daquele artigo, inequivocamente nela se
contêm as regras definidoras daquilo que é comum e geral às forças de segurança,
as grandes linhas da regulação, a definição dos serviços, organizações ou forças
que devem compor as forças de segurança, finalidades e os princípios básicos
fundamentais relativos, verbi gratia, à definição do seu sistema global,
complexo de poderes, funções, competências e atribuições de cada serviço, força
ou organização, inter-relacionação, projecção funcional interna e externa e,
ainda, os princípios básicos relativos à interferência das forças de segurança
com os direitos fundamentais dos cidadãos (cfr., quanto a estes últimos
aspectos, os princípios fundamentais elencados no artº 2º e a coordenação e
cooperação das forças de segurança estabelecidas no artº 6º, um e outro da Lei
de Segurança Interna - Lei nº 20/87, de 12 de Junho).
É cabido citar aqui Gomes Canotilho e Vital Moreira (ob. citada, 957) que, em
anotação ao artigo 272º da Lei Básica, embora numa diversa óptica, entendem que,
ao se consagrar o princípio da unidade de organização em todo o território das
forças de segurança, 'a Constituição estatui a exclusiva competência dos órgãos
de soberania (AR e Governo) quanto à criação, definição de tarefas e direcção
orgânica'.
Efectivamente, não poderá sustentar-se que se não inclua no regime das forças
de segurança a definição dos «princípios» que - relativamente a cada uma das
forças, serviços ou organizações que as compõem - a configurem basicamente o seu
modo de funcionamento e relacionamento com as demais entidades públicas e os
cidadãos, que definam as linhas básicas da sua organização e da sua natureza
(como, verbi gratia, um corpo especial de tropas, um corpo militar ou
militarizado, e aqueles pelos quais devem obedecer as suas missões gerais,
competências e atribuições).
Mas, se isto é assim, já se antevê como excessivo que - reportadamente a cada
um dos concretos serviços, forças ou organizações, que não podem deixar de ser
entendidos como estando integrados no domínio do funcionalismo da Administração
- da reserva absoluta de competência legislativa parlamentar deva fazer parte a
respectiva organização interna, suportes logístico, financeiro e humano,
respectivas gestão e corte de direitos e deveres funcionais dos funcionários que
as compõem.
Efectivamente, não se pode dizer que qualquer uma destas específicas
particularidades de regulação se insira nas grandes linhas de uma definição
comum das forças de segurança, na indicação de quais as organizações, forças ou
serviços que aquelas devam compor, no elencar das finalidades e princípios
básicos ou comuns inerentes a elas, tais como os acima exemplificados, na
definição de qual a inter-relacionação e projecção funcional interna e externa
que deve ser prosseguida pelas referidas forças.
Mesmo a entender-se que a matéria que se liga ao regime das forças de segurança
há-de compreender uma reserva, tanto para o regime material quanto para o regime
orgânico (cfr., quanto ao «regime dos serviços de informações e do segredo de
Estado» a posição de Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. citada, 676), neste
último deverá considerar-se tão só como abarcando as supra indicadas definição,
finalidades e princípios básicos organizatórios funcionais, de atribuição,
inter-relacionação e projecção.
Vale aqui acentuar que, tal como se pode extrair do debate levado a efeito na
Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, não será estranho à
consideração acima efectuada sustentar-se que a moldagem da organização de
serviços e forças que compõem ou comporão as forças de segurança não deixa de
estar ligada, de certa forma, à própria estruturação de um dado sector da
Administração Pública, com a consequente responsabilização governamental ao
nível da gestão dessa matéria, desde que estejam asseguradas as garantias
democráticas que se visaram salvaguardar pela intervenção parlamentar exclusiva
quanto aos pontos atrás indicados, onde avulta a salvaguarda dos direitos
fundamentais dos cidadãos (…).”
Na verdade, da leitura da discussão parlamentar sobre o aditamento do “regime
das forças de segurança” às matérias que exigem uma intervenção legislativa
exclusiva da Assembleia da República, resulta, sem margem para equívocos, que o
legislador da Revisão Constitucional de 1997 não teve a intenção de abarcar na
citada alínea u) os regimes específicos de cada uma das forças de segurança, mas
apenas o regime geral aplicável a todas elas, não estando, pois, aí incluídas as
regras atinentes à organização interna de cada uma das forças de segurança.
E este propósito revela-se perfeitamente ajustado ao modelo de repartição dos
poderes legislativos adoptado pela nossa Constituição.
Se a necessidade de mobilização de meios ofensivos para combater os perigos que
mais intensamente põem em causa os bens protegidos pela ordem jurídica justifica
que a Constituição procure rodear o enquadramento institucional desse combate de
diversas cautelas, conferindo, nomeadamente, competência exclusiva à Assembleia
da República para legislar em tal matéria, já seria excessivo que a atribuição
desta competência abrangesse a regulamentação do modo de organização interna de
cada uma das forças de segurança.
O “regime das forças de segurança” referido na alínea u), do artigo 164.º, da
C.R.P., deve, pois, ser entendido apenas na acepção de regime geral das forças
de segurança, o qual contemplará os fins e os princípios que devem nortear as
forças de segurança, a previsão dos corpos que as devem compor, o modo de
inter-relacionação entre eles, as grandes linhas de regulação destes corpos e os
princípios básicos relativos à interferência das forças de segurança com os
direitos fundamentais dos cidadãos.
Se é defensável que este regime geral deva incluir os princípios básicos
organizatórios comuns às forças de segurança, já não se justifica que apenas a
Assembleia da República possa legislar sobre a organização interna de cada um
dos concretos serviços, forças ou organizações, que não podem deixar de ser
entendidos como estando integrados na Administração Pública. Constituindo as
forças de segurança, apesar das suas características particulares, um sector da
Administração Pública, não faz sentido retirar ao Governo a possibilidade de
legislar em matéria de organização interna de cada uma dessas forças, pois é ele
que, por natureza, deve ser responsabilizado politicamente pela sua eficácia de
funcionamento.
A matéria da distribuição interna de competências entre os diversos módulos que
integram uma determinada força policial – neste caso a PJ –, respeita
exclusivamente à sua organização interna, pelo que tal matéria não deve ser
considerada como incluída na reserva de lei parlamentar imposta no artigo 164.º,
u), da C.R.P., não constituindo, pois, a remissão para portaria, contida nos
artigos 22.º, n.º 2, e 29.º, n.º 1, do Decreto n.º 204/X, da Assembleia da
República, qualquer violação daquele preceito constitucional.
3.2. Da violação da reserva de acto legislativo
O segundo fundamento de eventual inconstitucionalidade apresentado no pedido
respeita à possível violação da reserva de acto legislativo ditada pelo n.º 2,
do artigo 272.º, da C.R.P..
O artigo 272.º, da C.R.P., inserido no título respeitante à Administração
Pública, tem como título e tema a polícia, dispondo no seu n.º 2, que “as
medidas de polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além
do estritamente necessário”.
Revelando, mais uma vez, uma preocupação com a possibilidade da actividade
policial na prossecução dos seus fins – previstos no n.º 1, do artigo 272.º, da
C.R.P. - poder interferir de forma especialmente intensa com direitos e
liberdades fundamentais do cidadão, o legislador constitucional entendeu
expressar a necessidade das “medidas de polícia” terem uma previsão na lei.
A exigência da tipificação legal destes actos pretende limitar ao máximo a
existência de espaços de discricionariedade na actuação da polícia, em áreas
onde possam ser postos em causa direitos e liberdades dos cidadãos, enfatizando
a exigência das leis restritivas do artigo 18.º, n.º 2 e 3, da C.R.P., e
alargando o seu âmbito a meras situações de perigo.
Daí que, na contenda sobre o âmbito do conceito “medidas de polícia” utilizado
no n.º 2, do artigo 272.º, da C.R.P. (vide sobre esta polémica PEDRO LOMBA, em
“Sobre a teoria das medidas de polícia administrativa”, em “Estudos de direito
de polícia”, 1º volume, pág. 177 e seg., da ed. de 2003, da A.A.F.D.L., CATARINA
SARMENTO e CASTRO, em “A questão das polícias municipais”, pág. 82-89, da ed. de
2003, da Almedina, JOÃO RAPOSO, em “O regime jurídico das medidas de polícia”,
em “Estudos em homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano no centenário do
seu nascimento”, vol. I, pág. 693 e seg., da ed. de 2006, da Coimbra Editora, e
PEDRO MACHETE, em A polícia na Constituição da República Portuguesa”, in
“Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa ao Professor Doutor Inocêncio
Galvão Telles 90 anos”, pág. 1143-1150, da ed. de 2007, da Almedina) se perfilhe
a opinião de que apenas são alvo desta especial exigência aqueles actos
policiais donde poderão resultar restrições à esfera jurídica dos cidadãos.
Relativamente ao demais, a actividade policial estará subordinada ao princípio
da legalidade da Administração Pública, consignado no artigo 266.º, nº 2, da
C.R.P..
Como escreve Pedro Machete:
“O legislador constituinte procurou salvaguardar simultaneamente a segurança e
os direitos do cidadão, cometendo a arbitragem entre ambos ao legislador: as
medidas limitativas daqueles direitos que a polícia pode adoptar são apenas
aquelas que o legislador tenha autorizado, e não todas as que os serviços ou
agentes da polícia considerem necessárias e ajustadas ao caso. A medida das
agressões à esfera jurídica dos cidadãos passou, em virtude da decisão
constituinte em apreço, das autoridades e agentes de polícia para o legislador.
(…) a polícia, nos seus actos concretos de ingerência passou a ter de
corresponder aos modelos de actuação legalmente estabelecidos: nesse domínio “a
polícia só pode fazer o que o legislador lhe tiver permitido fazer. Fora do
âmbito das restrições à esfera jurídica dos cidadãos, a polícia já não está
limitada por tipos legais de actuação, mas, mais genericamente, apenas pelas
normas legais definidoras de atribuições e competências” (em “A polícia na
Constituição da República Portuguesa”, in “Homenagem da Faculdade de Direito de
Lisboa ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles 90 anos”, pág. 1146, da ed.
de 2007, da Almedina).
Na fundamentação do pedido de fiscalização defende-se a extensão desta imposição
constitucional da tipicidade legal das medidas de polícia às normas definidoras
das competências dos diversos serviços da PJ.
Note-se que as competências cuja definição foi remetida para portaria não foram
as competências da PJ, as quais se mostram enunciadas, em matéria de prevenção e
detecção criminal, no artigo 4.º, do Decreto sob fiscalização, e em matéria de
investigação criminal nos artigos 3º, n.º 4 e 5, e 4.º, da Lei de Organização
de Investigação Criminal, aprovada pela Lei n.º 21/2000, de 10 de Agosto, para a
qual remete o artigo 5.º, n.º 1, daquele Decreto, nem a competência atribuída
dentro da hierarquia da PJ a quem pode ordenar a adopção de tais medidas, a qual
se encontra prevista nos artigos 11.º e 12.º, do mesmo Decreto.
O que foi omitido e remetido para posteriores Portarias foi a distribuição das
competências da PJ, enumeradas no Decreto sob apreciação, pelas suas diversas
unidades, isto é a definição das competências internas.
Ora, se para a obtenção dos objectivos visados com a exigência de tipificação
das “medidas de polícia”, imposta pelo n.º 2, do artigo 272.º, da C.R.P., é
importante encontrar-se definido na lei se determinada força policial as pode
utilizar e quais dos seus membros as podem ordenar, já a indicação de quais são
os departamentos dessa polícia competentes para as adoptar, de acordo com a sua
forma de organização interna, não parece relevante para a garantia que a
actuação da polícia se enquadre nos modelos de actuação legalmente
estabelecidos, de forma a acautelar eventuais restrições a direitos e liberdades
dos cidadãos.
A forma de estruturação interna de uma força policial, designadamente a
distribuição interna das suas competências, tem sobretudo consequências na
operacionalidade e eficácia desta, não tendo implicações directas com a
possibilidade de se registarem restrições aos direitos e liberdades dos
cidadãos.
Se para garantir que a actuação da polícia em áreas sensíveis assuma apenas as
formas previstas na lei é necessário que esta tipifique os actos cuja prática é
permitida a determinada força policial, já é indiferente para tal desiderato o
estabelecimento pela lei de qual o concreto departamento, serviço, ou unidade
dessa força, competente para a prática desses actos, de acordo com a sua
orgânica interna.
Mas, se do disposto no n.º 2, do artigo 272.º, da C.R.P., não é possível extrair
a conclusão que a distribuição das competências internas da PJ se encontra
abrangida pela reserva de acto legislativo, importa, todavia, ponderar se essa
reserva não resultará do conteúdo do n.º 4, do mesmo artigo. O facto da violação
deste parâmetro constitucional não ter sido invocada no pedido de fiscalização
apresentado pelo Presidente da República não impede a sua consideração por este
Tribunal (artigo 51.º, n.º 5, da LTC).
Introduzido pela Revisão Constitucional de 1982, consta do referido n.º 4, do
artigo 272.º, da C.R.P., que “a lei fixa o regime das forças de segurança, sendo
a organização de cada uma delas única para todo o território nacional”.
A expressão “regime das forças de segurança” coincide com a expressão constante
da alínea u), do artigo 164.º, da C.R.P., acima analisada. E esta coincidência
não é fortuita, uma vez que das intervenções ocorridas na Comissão Eventual para
a Revisão Constitucional de 1997 resulta que a fórmula escolhida para integrar
aquela alínea u) foi retirada conscientemente da redacção do n.º 4, do artigo
272.º, da C.R.P., na procura da obtenção de um acordo entre as diferentes forças
parlamentares na redacção da referida alínea.
Será que esta coincidência determina uma igual leitura relativamente à amplitude
desse regime, isto é, que o “regime das forças de segurança” referido no n.º 4,
do artigo 272.º, da C.R.P., é também apenas um regime geral ?
Se assim for, teremos de concluir que a Revisão Constitucional de 1997 se
limitou a reforçar as exigências quanto ao tipo de acto normativo que poderia
conter esse regime geral, deixando o mesmo de poder ser aprovado por decreto-lei
do Governo.
Se do debate ocorrido na supra aludida Comissão Eventual para a Revisão
Constitucional de 1997 resulta que foi muitas vezes esse o entendimento adoptado
sobre o n.º 4, do artigo 272.º, da C.R.P., apesar dos equívocos revelados sobre
o âmbito do termo “lei” constante deste dispositivo, devemos ter presente que o
mesmo foi introduzido pela Revisão Constitucional de 1982 e como tal deverá ser
interpretado nesse contexto, tanto mais que foi deixado incólume pela Revisão
Constitucional de 1997.
Infelizmente, a escassez dos registos dos trabalhos preparatórios da Revisão
Constitucional de 1982 impedem a utilização de qualquer argumento histórico
sobre o sentido da primeira parte deste preceito, mas uma interpretação
sistemática e teleológica do mesmo permite extrair uma conclusão diferente do
entendimento reflectido na discussão ocorrida aquando da Revisão Constitucional
de 1997.
Apesar da coincidência gramatical da expressão utilizada, o regime referido no
n.º 4, do artigo 272.º, da C.R.P., que deve obrigatoriamente constar de acto
legislativo, não tem o âmbito limitado do referido na alínea u), do artigo
164.º, da C.R.P., como aliás o Tribunal Constitucional já deixou antever no
citado acórdão n.º 23/2002, quando vincou que a conclusão a que chegasse quanto
ao alcance da asserção “regime” utilizada na referida alínea não permitia “(…)
a extrapolação da mesma para todas as demais situações em que a Lei Fundamental
utilizasse idêntica expressão, designadamente para efeitos do âmbito da reserva
de competência legislativa parlamentar”.
Se a solução da exigência da exclusividade da intervenção parlamentar, adoptada
na inclusão desta alínea na reserva absoluta da competência legislativa da
Assembleia da República, justifica que o regime aí referido se restrinja a um
regime geral, definidor de fins, princípios, regras básicas e grandes linhas de
regulação, pelas razões acima referidas, já a exigência de que o regime das
forças de segurança seja fixado por lei, contida no n.º 4, do artigo 272.º, da
C.R.P., deve abranger o regime concreto de cada uma das forças policiais,
nomeadamente o modo da sua organização interna, como aliás resulta da imposição
constitucional à lei, contida na segunda parte deste artigo – “sendo a
organização de cada uma delas única para todo o território nacional”.
Assim também parece pensar a doutrina, quando analisa este preceito
constitucional, ao afirmar:
“(…) Consagrando o princípio da unicidade de organização em todo o território, a
Constituição estatui a exclusiva competência dos órgãos de soberania (AR e
Governo) quanto à sua criação, definição de tarefas e direcção orgânica (…)”
(GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, em “Constituição da República Portuguesa
anotada”, pág. 957, da 3ª ed., da Coimbra Editora).
“(…) O nº 4, do artigo 272.º, da C.R.P. consagra, ainda, o princípio da unidade
de organização das forças de segurança para todo o território nacional – o que
implica, como assim estatui a CRP, que só os órgãos de soberania – AR e Governo
– podem criar, definir as tarefas e a direcção orgânica das forças de segurança
(…)” (GUEDES VALENTE, em “Teoria geral do direito policial”, Tomo I, pág. 18, da
ed. de 2005 da Almedina).
“(…) Naquilo que especificamente concerne às forças de segurança, a lei
fundamental consagra ainda dois outros relevantes princípios relativos à
respectiva organização. Tais princípios contêm-se no artigo 272.º, n.º 4 (…) A
Constituição estabelece, assim, o princípio da reserva de lei na definição do
regime das forças de segurança – o que vale por dizer que é à lei, e apenas à
lei, que cabe estabelecer o regime das referidas forças. Assim, e desde logo, é
da competência exclusiva da Assembleia da República legislar sobre o regime
geral ou comum das forças de segurança (cfr. artigo 164.º, alínea u) da
Constituição da República); já a orgânica de cada uma delas pode ser aprovada
por lei da mesma Assembleia (como foi o caso da Lei de Organização e
Funcionamento da Polícia de Segurança Pública) ou decreto-lei do Governo (como
em regra acontece). Proibida é, em qualquer caso, a fixação do regime geral ou
privativo das forças de segurança através de diploma legislativo regional e,
muito menos, de regulamento administrativo (…)” (JOÃO RAPOSO, em “Direito
policial I”, na pág. 42, da ed. de 2006, da Almedina).
Esta última opinião é também apoiada por Pedro Machete que a transcreve (em
“Constituição Portuguesa anotada”, de Jorge Miranda e Rui Medeiros, Tomo III,
pág. 681, da ed. de 2007, da Coimbra Editora).
Sendo evidente a importância da actividade das polícias na garantia dos direitos
à segurança e à liberdade consagrados no artigo 27.º, n.º 1, da C.R.P., e na
defesa do Estado de direito democrático, entendeu-se subordinar à lei a
construção do regime específico de cada uma das diferentes forças de segurança,
as quais assumem um papel de especial sensibilidade e relevância na
Administração Pública.
Se não é razoável retirar ao Governo a possibilidade de definir a estrutura de
cada uma das forças de segurança, pois é ele que deve responder politicamente
pela sua operacionalidade e eficácia, também tem sentido que se imponha que essa
definição seja feita através de acto legislativo, uma vez que a especial
qualificação e sensibilidade da matéria justifica a consagração duma competência
concorrente da Assembleia da República e do Governo, que não exclua a
possibilidade de intervenção dos representantes directos do povo na sua
definição e exija a produção de acto normativo dotado de maiores garantias de
participação e sujeito a maior controlo.
A actividade de garantir a segurança dos cidadãos, assegurando-lhe o gozo
tranquilo das liberdades e direitos que lhes assistem, é demasiado importante no
funcionamento do Estado de direito, para que a definição do regime específico de
cada um dos organismos que têm essa missão seja deixada a uma normação
administrativa.
Na verdade, a essencialidade da matéria a regular afasta quaisquer dúvidas sobre
a necessidade de emissão de acto legislativo geradas pela redacção do preceito e
dos debates ocorridos aquando da Revisão Constitucional de 1997.
Nesses regimes específicos das diversas forças de segurança assume fundamental
importância a sua organização interna. Se este aspecto não assume relevância
quanto às implicações que a actividade policial pode representar para os
direitos e liberdades dos cidadãos, como acima se constatou, já o adequado modo
de funcionamento interno duma força de segurança não deve escapar à reserva de
acto legislativo imposta pelo n.º 4, do artigo 272.º, da C.R.P..
Ora, em matéria de organização interna de qualquer entidade, em especial de uma
força de segurança, a definição da distribuição de competências pelos diferentes
serviços ou unidades que a compõem assume uma relevância crucial.
Para esse efeito, não basta prever-se a existência desses serviços ou unidades,
atribuindo-se-lhes uma designação (nomeadamente “nacional”, “regional”
“territorial”, ou “local”) que, na prática, nada revela sobre as respectivas
competências. Sem a mínima indicação concreta das competências dos serviços ou
unidades em questão, desconhece-se quais as funções que os mesmos vão assegurar
e fica-se perante um simples organigrama que constitui um esqueleto vazio de
conteúdo, o qual pode ser preenchido, nos termos propostos, por um número
restrito de membros do Governo, sem qualquer possibilidade de controlo pela
Assembleia e pelo Presidente da República.
Se os novos tempos exigem a criação nas forças de segurança de estruturas que
não se revelem demasiado rígidas, de modo a não dificultar o acompanhamento das
constantes mutações do fenómeno criminal, isso não justifica que a definição das
suas competências internas seja deslegalizada, sob pena de desrespeito pelas
actuais regras de equilíbrio e controlo dos diferentes poderes do nosso Estado
de direito democrático, em matérias constitucionalmente consideradas de
especial importância.
De tudo o que se vem dizendo, conclui-se que a fixação de competências das
diferentes unidades da PJ constitui matéria abrangida por reserva de acto
legislativo, nos termos do n.º 4, do artigo 272.º, da C.R.P., pelo que a
remissão da regulação desta matéria para portaria constitui uma violação a essa
reserva, o que determina a inconstitucionalidade das normas sob fiscalização.
Alcançado este juízo positivo de inconstitucionalidade, fica necessariamente
prejudicada a apreciação da alegada questão subsidiária de violação de reserva
de decreto regulamentar.
*
Decisão
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide pronunciar-se pela
inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 22.º, n.º 2, e 29.º, n.º
1, do Decreto da Assembleia da República n.º 204/X, na parte em que determinam
que as competências das diversas unidades da Polícia Judiciária são
estabelecidas nos termos da portaria referida no mencionado n.º 2 do artigo
22.º, por violação da reserva de acto legislativo imposta no artigo 272.º, n.º
4, da Constituição da República Portuguesa.
*
Lisboa, 30 de Maio de 2008
João Cura Mariano
José Borges Soeiro
Mário José de Araújo Torres
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Benjamim Rodrigues (com declaração
de voto anexa)
Vítor Gomes (Vencido, conforme declaração anexa)
Ana Maria Guerra Martins (vencida
quanto ao juízo de inconstitucionalidade a que o acórdão chegou
relativamente à reserva de acto legislativo imposta pelo art. 272.º,
n.º 4, da CRP, no essencial, pelas razões constantes do ponto 1 da
declaração de voto do Senhor Conselheiro Vítor Gomes. Não me
pronuncio, no entanto, quanto ao terceiro fundamento do pedido,
ou seja, a violação da exigência do decreto regulamentar constante
do art. 112.º, n.º s 6 e 7, CRP, por considerar que a questão se
encontra prejudicada).
Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido de acordo com a declaração de voto junta)
Maria João Antunes (vencida, pelas razões constantes do ponto 1. da declaração
de voto do Senhor Conselheiro Victor Gomes)
Carlos Pamplona de Oliveira – vencido conforme declaração em anexo
Gil Galvão (vencido, no essencial, pelas razões constantes do número 1. da
declaração de voto do Exmo. Conselheiro Vítor Gomes, para o qual remeto,
considerando prejudicada, face à decisão tomada no acórdão, a pronúncia sobre a
eventual violação dos n.º s 6 e 7 do artigo 112.º da Constituição da República
Portuguesa)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Voto a decisão de inconstitucionalidade com base no fundamento de violação de
reserva de acto legislativo, retirando-a, mesmo em matéria de distribuição de
competência dentro da organização interna, como no acórdão recorrido, do art.
272.º, n.º 4, da CRP, no seu todo.
Não dissocio, porém, o n.º 4 do art.º 272.º do estabelecido no n.º 2
do mesmo artigo, ao contrário da posição assumida no acórdão, assumindo, antes,
o n.º 4, enquanto envolvendo também a definição do regime de organização interna
e a atribuição de competências dentro dele, a natureza de um elemento
pressuposto na operatividade das regras constitucionais a que está sujeita a
definição e utilização das medidas de polícia (n.º2).
Na verdade, entendo que são as razões que justificam o comando do
n.º 2 que justificam também a solução adoptada pelo n.º 4 do art.º 272.º da CRP.
O n.º 2 consagra o princípio da tipicidade legal das medidas de
polícia e o princípio da proporcionalidade na sua utilização.
A sujeição das medidas de polícia ao princípio da tipicidade legal
colhe o seu último fundamento no princípio democrático: no princípio que demanda
que sejam representantes do povo, sujeitos a escrutínio político e parlamentar,
a eleger as medidas de polícia, na medida em que a utilização destas é
susceptível de restringir os direitos e liberdades dos cidadãos que representam.
E é porque correspondem a restrições dos direitos e liberdades dos
cidadãos que a utilização das medidas está sujeita ao princípio da
proporcionalidade.
De resto, a segunda parte do n.º 2 do art.º 272.º podia já
distrair-se do n.º 2 do art.º 18.º da CRP.
Ora, as medidas de polícia não são realidades etéreas: são meios
cuja utilização prática é sentida no corpo e na alma dos cidadãos.
Mas essa utilização das medidas de polícia é levada a cabo
essencialmente pelas forças de segurança.
Daí que não seja indiferente, na perspectiva da defesa dos direitos
e liberdades dos cidadãos, saber quem é que pode utilizar, em concreto, contra
ele de tais medidas.
Desde logo, para saber contra quem há-de reagir-se na defesa dos
seus direitos e liberdades.
Depois, porque, estando a sua utilização sujeita ao princípio da
proporcionalidade, são os concretos órgãos dessas forças de segurança quem tem
de fazer esse concreto juízo de ponderação.
Deste modo, uma posição congruente da Constituição postula também
que a tarefa da definição dos órgãos das forças de segurança e da atribuição de
competência para a utilização das medidas de polícia fique igualmente cometida
ao legislador sujeito a controlo político e parlamentar: é que só assim se pode
controlar a escolha efectuada pelo legislador sobre a competência funcional do
órgão que utiliza as medidas de polícia e que nessa utilização está sujeito a um
princípio constitucional de proporcionalidade.
Destarte, o princípio democrático, que justifica o n.º 2 do art.º.
272.º da CRP, postula que a atribuição da competência de quem pode utilizar, em
concreto, as medidas de polícia e que deve conter-se, nessa utilização, pelo
justo grau seja, também, efectuada segundo o mesmo princípio, pelo que concluo
ser o n.º 4 do mesmo artigo indissociável do estabelecido no n.º 2.
Benjamim Rodrigues
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Vencido quanto ao juízo de inconstitucionalidade a que o acórdão
chegou relativamente à remissão para acto regulamentar da fixação das
“competências” das “unidades” da Polícia Judiciária pelas normas sob apreciação,
em fundamentação breve, pelo seguinte:
Embora acompanhando o acórdão enquanto extrai do n.º 4 do artigo
272.º da Constituição a exigência de acto legislativo para a conformação do
regime jurídico próprio de cada força de segurança, divirjo do entendimento
maioritário relativamente à extensão ou alcance material dessa reserva de acto
legislativo no que toca aos aspectos organizativos sobre que incide o pedido de
fiscalização preventiva de constitucionalidade.
Seguramente que cabe na reserva de lei a criação e a definição de
tarefas e direcção orgânica de cada força de segurança. Mas só os aspectos
essenciais do regime de cada força de segurança pertencem à reserva de acto
legislativo, podendo o mais ser deixado ao poder regulamentar do Governo [artigo
199.º, alínea c) da Constituição], como responsável pela Administração Pública
que as forças de segurança integram. O que se considera essencial para
determinar o âmbito da reserva de lei (por confronto com acto de natureza
regulamentar) tem de ser delimitado em função das razões que presidem à
imposição constitucional específica (isto é, que vai além do princípio geral da
precedência de lei) de que seja a lei a fixar o regime das forças (de cada
força) de segurança. Admitida a diferenciação, que em último termo é de geral
para particular, entre o que cabe na expressão “regime das forças de segurança”
no contexto do artigo 164.º e na previsão do n.º 4 do artigo 272.º da
Constituição, para este último efeito, é conteúdo necessário de acto legislativo
tudo o que, relativamente a cada uma dessas forças, a caracteriza enquanto tal e
na repartição de tarefas entre os elementos integrantes do sistema de segurança
interna (a sua missão e atribuições), bem como aquilo que, nos aspectos
materiais, orgânicos e no estatuto dos seus membros, discipline a sua actuação
na defesa da legalidade democrática e da segurança interna em domínio que afecte
ou possa contender com os direitos dos cidadãos e a preservação do Estado de
Direito democrático e do Estado unitário.
Nesta perspectiva, no aspecto organizativo, o essencial é que se
defina a estrutura da força de segurança em causa de modo a assegurar a sua
unidade em todo o território nacional, a composição dos seus órgãos e a
respectiva competência, isto é, o complexo de poderes funcionais que a cada um
destes cabe na prossecução das atribuições que a essa força são cometidas.
Fundamental neste domínio de determinação de competências, o que a lei não pode
deixar para o poder normativo da Administração, é saber qual o centro de poderes
funcionais que pode praticar os actos susceptíveis de colisão com os direitos
dos indivíduos e com a preservação dos interesses da comunidade, seja em matéria
de prevenção e detecção criminal, seja em matéria de investigação, que à Polícia
compete prosseguir. A defesa da legalidade democrática e a garantia dos direitos
dos indivíduos exigem que a lei defina como essa força de segurança se
estrutura, o que pode fazer e quem pode praticar actos com eficácia externa no
exercício desses poderes. O que o Decreto n.º 24/X da Assembleia da República
satisfaz (cfr, designadamente, os artigos 21.º e 22.º, n.º 1, os artigos 23.º a
26.º, os artigos 32.º a 36.º e os artigos 2.º, 4.º, 5.º, 11.º e 12.º do Decreto
em apreciação).
A afectação interna das tarefas operativas e instrumentais, a
distribuição pelos diversos serviços da estrutura legalmente definida das
competências pré-fixadas à Polícia, não contende com o carácter unitário da sua
organização para todo o território nacional (a proibição de forças de segurança
locais ou regionais), nem interfere com os termos, seja de conteúdo ou
pressupostos, seja de nível orgânico, em que esta pode afectar os direitos dos
cidadãos. Titulares dos poderes de polícia são os órgãos (director nacional,
directores nacionais adjuntos, directores das unidades nacionais, directores das
unidades territoriais), não os departamentos ou serviços (as “unidades”, na nova
terminologia) que estes dirigem ou chefiam. A regulação da competência das
diversas unidades limita-se a situar ou deslocar internamente a responsabilidade
pelo desempenho da tarefa, seja esta investigatória ou de prevenção criminal,
seja de apoio imediato à actividade operativa, seja de suporte administrativo e
financeiro. Trata-se de normas não relacionais, meramente organizativas (domínio
preferencial de intervenção regulamentar – cfr. artigo 24.º, da Lei n.º 4/2004,
de 15 de Janeiro), que não contendem com o nível hierárquico ou com os termos em
que se desenvolve a actividade da Polícia com eficácia externa. Interessam,
sobretudo, à eficiência da prossecução da missão legalmente atribuída à força de
segurança em causa o que, embora correspondendo a um valor constitucionalmente
tutelado, é já matéria de responsabilidade pela boa execução dessa missão. Não
estava vedado ao legislador, no nosso sistema constitucional de produção
normativa, em que não existe “reserva de regulamento” (abstracção feita da
caracterização de reservas de autonormação, que não vem ao caso), descer a esse
pormenor organizativo. O que não vejo é razão – seja da defesa dos direitos dos
indivíduos, no gozo tranquilo das liberdades e direitos que lhes assistem, seja
da defesa da segurança da comunidade – para elevar essa especificação a conteúdo
necessário do regime legal de cada força de segurança, concebida a
essencialidade delimitadora da reserva em função dos valores que o artigo 272.º
da Constituição pretende acautelar. Sendo a Polícia Judiciária “um serviço
central da administração directa do Estado” por cuja operacionalidade e eficácia
o Governo é responsável no exercício de funções administrativas (artigo 199.º da
Constituição), cabe na discricionariedade do legislador esgotar a disciplina da
matéria ou deixar o espaço normativo aberto à maior proximidade e flexibilidade
do poder regulamentar do Governo, por entender que é adequado um procedimento
normativo mais leve e flexível, que melhor possa responder à susceptibilidade de
variação dos meios disponíveis e da avaliação da realidade sobre que actuam. O
que não significa eximir a normação produzida pelo Governo a qualquer
possibilidade de controlo pelo Presidente da República, como adiante veremos
(infra n.º 2).
Acresce que, a meu ver, não é exacto que a estrutura definida pelo
Decreto em apreciação (artigo 22.º e artigos 27.º a 31.º) equivalha a um mero
organigrama, isto é, que seja vazia de conteúdo normativo quanto às tarefas que
podem ser alocadas a cada uma das “unidades” que a compõem. Num domínio de
comunicação racional como é o espaço de normação pública, há que respeitar a
força prescritiva dos termos usados pelo legislador, pelo que não pode deixar de
reconhecer-se a cada uma dessas unidades um núcleo competencial inerente ao
conteúdo normativo da própria designação e à sua inserção e relacionamento
sistemático no quadro geral de competências em que comunga (artigo 9.º, n.ºs 2 e
3 do Código Civil). Por exemplo, não me parece que possa duvidar-se de que, no
âmbito dos crimes que a lei da organização da investigação criminal reserva à
competência da Polícia Judiciária, à Unidade Nacional Contra-Terrorismo
competirá a prevenção, detenção e investigação dos crimes previstos na lei de
combate ao terrorismo e que à Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de
Estupefacientes caberão competências similares quanto ao tráfico de
estupefacientes, embora possa haver uma margem de regulamentação, v. gr., quanto
à absorção das competências relativas ao narcotráfico ou à criminalidade
financeira internacional ou transnacional instrumentais ou conexos com o
terrorismo.
Assim, não acompanho o acórdão quando conclui que a fixação das
“competências” das diferentes unidades orgânicas da Polícia Judiciária constitui
matéria abrangida por reserva de acto legislativo nos termos do n.º 4 do artigo
272.º da Constituição.
2. Isto posto, tornar-se-ia necessário apreciar o terceiro
fundamento de inconstitucionalidade invocado no pedido: a violação da chamada
“reserva de decreto regulamentar”
O artigo 112.º, n.º 6, da Constituição estabelece que «[o]s
regulamentos do Governo revestem a forma de decreto regulamentar quando tal seja
determinado pela lei que regulamentam, bem como no caso dos regulamentos
independentes», acrescentando o n.º 7 que «[o]s regulamentos devem indicar
expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência
subjectiva e objectiva para a sua emissão». Da conjugação destes preceitos
constitucionais resulta que os regulamentos independentes são aqueles cuja lei
habilitante se limita a definir a competência subjectiva e objectiva para a sua
emissão, o que sucede quando a lei é uma pura lei de reenvio ou remissão para
regulamento (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa
Anotada, 3ª edição revista, citada, págs. 513-514).
Como o Tribunal reconheceu no acórdão n.º 620/2007, a exigência da
forma de decreto regulamentar para os regulamentos independentes – que estão
sujeitos a promulgação do Presidente da República, nos termos do artigo 134.º,
alínea d), da Constituição – «justifica-se pela necessidade de evitar que, sob a
capa de regulamento independente, o Governo faça aquilo que deve fazer sob forma
legislativa, fugindo à intervenção presidencial» (Jorge Miranda/Rui Medeiros,
ob. e loc. cit.); podendo também entender-se que a imposição da forma mais
solene de decreto regulamentar decorre da circunstância de os regulamentos
independentes «criarem disciplina inicial de relações jurídicas e, em regra, com
larga margem de liberdade ou discricionaridade» (Coutinho de Abreu, Sobre os
regulamentos administrativos e o princípio da legalidade, Coimbra, 1987, pág.
83)
Ora, os termos em que as normas sujeitas a fiscalização preventiva
procedem à remissão da matéria em causa para o poder regulamentar correspondem
ao que a jurisprudência do Tribunal tem qualificado como configurando um
regulamento independente.
Na verdade, as directrizes gerais sobre a reorganização dos serviços
da Polícia Judiciária enunciados na exposição de motivos da proposta de Lei (n.º
143/X) que esteve na origem do Decreto n.º 204/X, da Assembleia da Republica,
não ganharam forma de lei no articulado do diploma aprovado, não se colhendo
neste suficiente indicação do sentido e limites da intervenção regulamentar,
pelo que o diploma que venha a definir as competências cuja especificação foi
omitida não corresponderá a um acto de execução ou complementar de um regime
material que diferencie o campo de intervenção de cada unidade da Polícia
Judiciária, mas sim a um acto de definição, com eventualidade de comportar
aspectos inovatórios substanciais, da distribuição de competências pelas
diversas unidades.
Assim sendo, o disposto no n.º 6 do artigo 112.º Constituição impõe
que tal regulamentação revista a forma de decreto regulamentar, pelo que a
remissão para portaria, contida no n.º 2 do artigo 22.º e no n.º 1 do artigo
29.º do Decreto sob fiscalização, viola o referido preceito constitucional, o
que determina a inconstitucionalidade das respectivas normas.
Concluiria, portanto e na linha de exigência do Tribunal quanto ao
grau necessário de densificação da lei habilitante, que a remissão da fixação da
competência das unidades da Polícia Judiciária para portaria, nos termos em que
é feita pelas normas compreendidas no âmbito do presente pedido de fiscalização
preventiva, viola a exigência de decreto regulamentar resultante do n.º 6 do
artigo 112.º da Constituição
Vítor Gomes
DECLARAÇÃO DE VOTO
Divergi do acórdão, porque entendo que as normas constantes dos artigos 22.º,
n.º 2, e 29.º, n.º 1, do Decreto da Assembleia da República n.º 204/X, não
violam a reserva de acto legislativo imposta pelo artigo 272.º, n.º 4, da CRP.
A procedência da tese contrária, que fez vencimento, não dependeria apenas da
atribuição à expressão “regime das forças de segurança”, utilizada naquele
preceito constitucional, de uma maior amplitude de significado do que a que cabe
a idêntica expressão contida na alínea u) do artigo 164.º da CRP, fazendo-a
abranger aspectos do regime que estão para além da definição das grandes linhas
reguladoras de todas as forças de segurança e da identificação dos corpos que as
constituem, juntamente com a fixação das tarefas e competências que cabem a cada
um deles. Desde que devidamente fundamentada, a extensão do alcance do conceito
seria um passo insusceptível, em si, de levantar objecções legítimas, pois a
leitura funcional dos conceitos integrados em proposições jurídicas, dada a “sua
subordinação ao juízo de valor que aponta um fim” (BAPTISTA MACHADO, prefácio a
K. Engisch, Introdução ao pensamento jurídico, Lisboa, 1965, XXXI) — conducente,
eventualmente, a denotações de sentido não coincidentes —, é uma operação
hermenêutica normal, de há muito propugnada pela melhor metodologia jurídica.
Mas não basta, na verdade, dar esse passo, pois o que está em causa, como
matéria de remissão para acto regulamentar, não é, globalmente, o regime
privativo da Polícia Judiciária, nem sequer, in toto, a sua organização interna.
É apenas, um concreto aspecto da organização interna desta entidade: a
distribuição, pelas várias unidades que a compõem, das tarefas e competências
que lhe estão cometidas. Sendo assim, a conclusão a que acórdão chegou teria que
vir apoiada numa fundamentação que gerasse o convencimento de que o âmbito da
reserva de lei do artigo 272.º, n.º 4, cobre essa específica dimensão
organizatória de qualquer força de segurança.
Ora, em minha opinião, a fundamentação apresentada não logrou cumprir este ónus
de argumentação.
A primeira razão em que assentou a decisão de violação da reserva de lei é de
índole sistemática, prendendo-se com a (afirmada) articulação de sentido entre
as duas componentes do artigo em questão. No entender do acórdão, a exigência de
que o modo de organização interna de cada uma das forças de segurança deve
constar de lei « (…) resulta da imposição constitucional à lei, contida na
segunda parte deste artigo – “sendo a organização de cada uma delas única para
todo o território nacional”.»
Não pode perder-se de vista, contudo, que “no preceito em análise definem-se
duas regras distintas” (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República
Portuguesa anotada, 3.ª ed., Coimbra, 957), ainda que integrantes do mesmo
domínio normativo. A primeira regra é de cunho competencial, consagrando o
princípio da reserva de lei, para a fixação do regime das forças de segurança; a
segunda é de natureza material, estabelecendo o princípio da unidade de
organização das forças de segurança para todo o território nacional.
Este último segmento do preceito impõe que todas as forças de segurança formem
um corpo único em todo o território da República, obedecendo a uma direcção
central, de acordo com uma estrutura hierárquica unificada. O alcance do
princípio é, pois, proibitivo da existência de forças de segurança regionais ou
locais (cfr. JOÃO RAPOSO, Direito policial, I, Lisboa, 2006, 41). Como princípio
básico organizatório de todas as forças de segurança, diz-nos o que o regime de
cada uma delas não deve conter, sendo inteiramente silente quanto ao modo de
regulação e aos conteúdos da orgânica interna das várias forças policiais. Nem a
sua localização contígua ao princípio de reserva de lei é de molde a justificar
qualquer inferência quanto à cobertura, pelo âmbito deste princípio, da
repartição interna das competências funcionais. Trata-se de questões em planos
normativos distintos, envolvendo distintas dimensões organizacionais: a questão
que nos ocupa tem a ver com um aspecto do regime privativo de uma dada força de
segurança, sendo atinente à sua orgânica interna, ao passo que a organização que
é objecto do princípio da unidade é uma componente essencial do regime geral de
todas as referidas forças — constitui, repete-se, um princípio básico definidor
do sistema global das forças de segurança. Pretender extrair deste princípio,
pelo simples facto de ele se referir à ”organização”, uma directriz vinculativa
quanto ao conteúdo necessário da lei reguladora da orgânica interna da Polícia
Judiciária é um salto interpretativo que nenhum critério hermenêutico dotado de
validade autoriza. Quanto a esta questão – e não é outra a questão de
constitucionalidade aqui sub judicio — o princípio da unidade de organização é
absolutamente neutro e inócuo.
Cumpre assinalar, aliás, que pelo menos os dois primeiros trechos doutrinais com
que se intenta abonar a decisão passam inteiramente ao lado desta questão.
Ninguém duvida que a “criação, definição de tarefas e direcção orgânica” das
forças de segurança é matéria de lei, como ninguém porá em causa que a exigência
tenha sido acatada pelo Decreto da Assembleia da República n.º 204/X. E a
invocação destas posições doutrinais é tanto mais falha de pertinência quanto é
certo que elas, na medida em que atribuem competência também ao Governo para a
regulação daqueles pontos de regime, se apresentam datadas, sendo insustentáveis
após a Revisão Constitucional de 1997. De facto, atento o disposto, hoje, na
alínea u) do artigo 164.º, essa matéria é de competência exclusiva da Assembleia
da República, integrando a reserva absoluta de competência legislativa deste
órgão.
A decisão de que divirjo estriba-se também numa razão de fundo, de ordem
substancial ou teleológica. A imposição de acto legislativo justificar-se-ia
pela “essencialidade da matéria a regular”. Mas, se bem ajuízo, a fundamentação
do acórdão claudica na identificação, em termos convincentes, das causas dessa
característica distintiva.
Na verdade, nele se afasta expressamente que a alegada importância fundamental
do modo de funcionamento interno tenha algo a ver com o eventual impacto da
actividade policial na esfera de liberdade dos cidadãos, para a relacionar
antes, de modo implícito, com razões de operacionalidade e eficácia. É o que
resulta do seguinte trecho:
«Nesses regimes específicos das diversas forças de segurança assume fundamental
importância a sua organização interna. Se este aspecto não assume relevância
quanto às implicações que a actividade policial pode representar para os
direitos e liberdades dos cidadãos, como acima se constatou, já o adequado modo
de funcionamento interno duma força de segurança justifica que não deva escapar
à reserva de acto legislativo imposta pelo n.º 4, do artigo 272.º, da C.R.P.»
Afastada, como razão justificativa, a possibilidade de interferência com os
direitos dos cidadãos, o “adequado modo de funcionamento” só pode ter a ver com
preocupações de operacionalidade e eficácia. E. sendo estas comuns, até em
termos constitucionais, a todos os sectores da Administração Pública, fica por
compreender porque é que se lhes atribui maior relevo, justificativo da forma de
acto legislativo, quando se reportam à matéria da distribuição interna de
competências da Polícia Judiciária.
É bem certo – e nisso acompanho inteiramente a fundamentação do acórdão — que,
tipificadas as “medidas de polícia” a utilizar por determinada força de
segurança, « (…) a indicação de quais são os departamentos dessa polícia
competentes para as adoptar, de acordo com a sua forma de organização interna,
não parece relevante para a garantia de que a actuação da polícia se enquadre
nos modelos de actuação legalmente estabelecidos, de forma a acautelar eventuais
restrições a direitos e liberdades dos cidadãos.»
Mas, se assim é, decai a única razão que, do ponto de vista valorativo que
presidiu à exigência de forma de lei para o “regime das forças de segurança”,
poderia justificar a “relevância crucial” da matéria em causa e a sua integração
no âmbito da reserva. Por outras palavras: as razões que levaram o acórdão a
afastar – e bem! — a invocada inconstitucionalidade por violação do n.º 2 do
artigo 272.º deveriam também ter conduzido a idêntico juízo quanto à violação da
reserva de lei consagrada no n.º 4 do mesmo artigo.
Se as razões em que se apoia o decidido não merecem, a meu ver, acolhimento, não
se descortinam quaisquer outras que possam levar a concluir que o particular
aspecto da organização interna da Polícia Judiciária que é a repartição de
competências pelas suas unidades caia dentro da reserva de acto legislativo
consagrada no n.º 4 do artigo 272.º da CRP.
Diga-se, para concluir, que a necessidade de garantir a possibilidade de
controlo pela Assembleia da República e pelo Presidente da República não pode
ser decisivamente invocada em favor da abrangência desta matéria pela reserva de
lei. Há que atentar, na verdade, que esse controlo ficaria, no essencial,
assegurado com a emissão de um decreto regulamentar. O que vem sugerir que, pelo
menos desta perspectiva, a questão não é tanto a da deslegalização, mas a da
forma de deslegalização. Mas, com isso, estaríamos a deslocar a questão de
constitucionalidade para a eventual violação da reserva de decreto regulamentar
– questão cuja apreciação ficou prejudicada pela posição que fez vencimento e
que, em conformidade, me dispenso aqui de apreciar.
Por todo o exposto, é minha firma convicção de que o acórdão não deveria ter-se
pronunciado pela inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 22.º,
n.º 2, e 29.º, n.º 1, do Decreto da Assembleia da República n.º 204/X (na parte
especificada na decisão), com fundamento na violação de reserva de lei imposta
pelo n.º 4 do artigo 272.º.
Joaquim de Sousa Ribeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não acompanho o acórdão quanto ao julgamento da inconstitucionalidade das normas
impugnadas por violação do artigo 272º n.º 4 da Constituição. Não creio, na
verdade, que seja possível extrair do artigo 272º n.º 4 da Constituição – como
faz o acórdão – uma reserva de acto legislativo na regulamentação da matéria em
causa. Entendo, pelo contrário, que esta matéria se integra no poder
regulamentar do Governo, nos termos previstos essencialmente na alínea d) do
artigo 199º da Constituição, e isto independentemente de saber se se mostra
cumprida a exigência de forma prevista na última parte do n.º 6 do artigo 112º
da Constituição.
Tenho, aliás, alguma dificuldade em reconhecer que as forças de segurança
interna desempenham um 'papel fundamental' na garantia de funcionamento da vida
em sociedade num Estado de direito, como diz o acórdão, por entender que, tal
como a Administração Pública em geral, esses serviços constituem apenas um meio
(se bem que de especial relevância) de que dispõe o Estado para desempenhar
correctamente – e, em regra, através do Governo – a missão que a Constituição
lhe impõe neste domínio.
Carlos Pamplona de Oliveira
|